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DOI: http doi og!10.500712175-7984.20 8 7r40p431 Do neoliberalismo progressista a Trump — e além! Naney Fraser? Resumo Neste artigo, Nancy Fraser passa em revista a faléncia do modelo politicamente hegeménico de uma alianga entre uma versao progressiva das politicas de reconhecimento e uma verso regres- siva da politica econdmica, chamada por ela de neoliberalismo progressista. Frente a emergencia de uma versio hiperreacionaria do neoliberalismo, simbolizada por Donald Trump, a autora defende a ideia de uma versio progressista do populismo como ator contra-hegembnico no atual contexto social Palavras-ehave: Neoliberalismo; reconhecimento; hegemonia: populisrmo. Introducao Qualquer um que fale em “crise” hoje em dia corre o risco de ser re- jeitado, tido como um falastrao, devido a banalizacao do termo, por meio de discursos desarticulados e infindaveis. Mas hé um sentido preciso em que enfrentamos uma crise hoje. Se a caracterizarmos com precisio ¢ iden- tificarmos suas dindmicas caracteristicas, poderemos determinar melhor © que é necessdrio para resolvé-la. Com base nisso, poderemos também vislumbrar um caminho que leve para além do atual impasse — com 0 rea- linhamento politico para a transformagao social. A primeira vista, a crise atual parece ser politica. Sua expressio mais es- petacular esta bem aqui, nos Estados Unidos: Donald Trump — sua el | Texto originalmente publicado na American Affi. v J. m. 4. p. 46:64. inverno de 2017. Traduedo de Paulo S C Neves 2 Naney Fraser é a Projessora Henry and Louise J. Loeb de Filosofia e de Politiea na New Sehool for Social Research; recebeu o prémio Alfred Sehutz da American Philosophical Association e # doutora honoris causa pela Universidad Nacional de Cérdoba (Argentina). Direito autoral e licenca de uso: Fste artigo esti licenciado sob uma Licenca Creative Commons. Com essa licena voce pode compartlhar, adaptar, para qualquer fim. desde que atribua a autoria da obra, forneca um link para a licenca,e indicar se foram feitas alteragdes. 43 - 64 43 44 Do neoliberaismo progressista 8 Trump —e além | Nancy Fraser sua presidéncia ¢ a discérdia em torno dele. Mas nao hé escassez de casos andlogos alhures: 0 desastre do Brexit no Reino Unidos a declinante legiti midade da Unido Europeia ea desintegragao dos partidos socialdemocra- tas ¢ de centro-direita que a promoveram; 0 sucesso crescente de partidos racistas e anti-imigrantes em todo o norte ¢ centro-leste da Europa; eo aumento de forgas autoritarias, algumas se classificando como protofacista, na América Latina, Asia ¢ Pacifico. Nossa crise politica, se € isso 0 que é, nao é apenas americana, mas global. © que torna essa afirmagéo plausivel é que, apesar de suas diferengas, todos esses fendmenos compartilham uma caracteristica comum. Todos envolvem um enfraquecimento dramitico, se nao um evidente colapso da autoridade das classes politicas estabelecidas e dos partidos politicos. E como se massas de pessoas em todo o mundo pararam de acreditar no reinante senso comum que sustentou a dominagao politica nas tltimas décadas. E como se tivessem perdido a confianga na boa fé das elites ¢ bus- cavam novas ideologias, organizagées, ¢ lideranga. Dada a escala da falha, é improvavel que isso seja uma coincidéncia. Vamos supor, portanto, que enfrentamos uma crise politica global. Tao importante quanto possa parecer, isso é somente parte da histéria. Os fenémenos apenas evocados aqui constiruem a vertente especificamente politica de uma crise vasta e multifacetada, que também tem outras vertentes = econémica, ecoldgica, ¢ social — as quais, tomadas em conjunto, resultam em uma crise geral. Longe de ser meramente setorial, a crise politica nao pode ser entendida independente dos obsticulos aos quais ela esta reagindo em outras instituigées ostensivamente nao politicas. Nos Estados Unidos, esses obstaculos incluem a metaestatizago das finangas; a proliferagao de empregos precitios no setor de servigos, como aqueles no McDonald’; 0 inchamento da divida dos consumidores para permitir: a compra de pro- dutos baratos produzidas alhures; 0 crescimento simultaneo das emiss6es de carbono, de condigées climéticas extremas ¢ do negacionismo climatico; ‘© encarceramento racializado em massa e a violéncia policial sistémica; e 0 crescimento do estresse na vida familiar e comunitéria, gracas, em parte, a0 prolongamento das horas de trabalho ¢ 4 diminuicio dos auxilios sociais. Juntas, essas forgas vinham esmagando nossa ordem social ha algum tempo sem produzir um terremoto politico. Agora, no entanto, todas as apostas 43-64 Politica & Sociedade -Flrandpolis- Vol. 17 N° 40- Set Der. de 2018, estio encerradas. Na tejei¢éo generalizada atual da politica, como de cos- tume, uma crise objetiva e sistémica encontrou sua voz politica subjetiva. A vertente politica da nossa crise geral é uma rise de hegemoni Donald Trump € o garoto-propaganda dessa crise hegeménica. Mas nao podemos entender sua ascensio sem esclarecemios as condigdes que pet- mitiram isso. E isso significa identificar a viséo de mundo que o Trumpismo deslocou e mapear o proceso por meio do qual isso se desenrolou. As ideias indispensdveis para esse fim vém de Antonio Gramsci. “Hegemonia” ¢ 0 ter- mo que ele usa para 0 proceso pelo qual uma classe dominante naturaliza sua dominagio instalando os pressupostos de sua prépria visio de mundo como o senso comum da sociedade como um todo. Sua contrapartida or- ganizacional é 0 “bloco hegeménico”: uma coalizio de forcas sociais dispa- res que a classe dominante monta ¢ através da qual afirma sua lideranga. Se esperam desafiar esses artanjos, as classes dominadas devem construir um novo, mais persuasivo senso comum, ou “contra-hegemonia”, e uma nova, mais poderosa alianga politica, ou “bloco contra-hegeménico”. Aessas ideias de Gramsci, devemos acrescentar uma outra. Todo bloco hegeménico incorpora um conjunto de suposigées sobre 0 que é justo ¢ correto e o que nao é. Desde pelo menos a metade do século XX, nos Esta- dos Unidos ¢ na Europa, a hegemonia capitalista foi forjada combinando dois aspectos diferentes de direito ¢ justica — um focado na distribuigdo, 0 outro no reconhecimento. O aspecto distributivo transmite uma visdo sobre como a sociedade deve alocar bens divisiveis, especialmente renda. Este aspecto fala sobre a estrutura econémica da sociedade e, ainda que obli- quamente, As suas divisdes de classe. O reconhecimento expressa um senso de como a sociedade deve atribuir respeito € estima, as marcas morais do deleito de associagao e do pertencimento. Focado na estrutura de status da sociedade, este aspecto refere-se as suas hierarquias de status. Juntos, distribuigéo e reconhecimento constituem os componentes normativos essenciais com os quais as hegemonias sio construidas. Colo- cando essa ideia junto com as de Gramsci, podemos afirmar que o que fez ‘Trump ¢ 0 Trumpismo possiveis foi o colapso de um bloco hegeménico anterior — € o descrédito de seus nexos normativos distintivos de distri- buigao ¢ reconhecimento. Analisando a construgéo ¢ ruptura desse nexo, 43-64 45 46 Do neoliberaismo progressista 8 Trump —e além | Nancy Fraser podemos esclarecer néo apenas o Trumpismo, mas também as perspecti: vas, aps Trump, de um bloco contra-hegeménico que poderia resolver a crise. Deixe-me explicar A hegemonia do neoliberalismo progressivo Antes de Trump, 0 bloco hegeménico que dominava a politica ameri- cana era 0 neoliberalismo progressista. Isso pode soar como um oximoro, mas foi uma alianga real e poderosa de dois companheiros improvveis: por um lado, as principais correntes liberais dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo, ambientalismo e direitos LGBTQ); por outro lado, os setores mais dindmicos, de alto nivel “sim- bédlico” ¢ financeiro da economia dos EUA (Wall Street, Vale do Silicio ¢ Hollywood). O que manteve esse casal estranho junto foi uma combinagao diferenciada de pontos de vista sobre distribuigao ¢ reconhecimento. O bloco progressista-neoliberal combinava um programa econémico expropriativo e plutocrético com uma politica liberal-meritocratica de re- conhecimento. O componente distributivo deste amélgama era neolibe- ral. Determinado a soltar as forgas do mercado da mao pesada do estado e da mina de “impostos ¢ gastos”, as classes que controlavam este bloco queriam liberalizar ¢ globalizar a economia capitalista. O que isso signi- ficava, na realidade, era financeirizagao: 0 desmantelamento das barreiras e protegdes para a livre circulagao do capital; a desregulamentagao dos bancos ¢ a bolha das dividas predatérias; desindustrializagio, enfraqueci- mento dos sindicatos e propagacio de trabalho precdrio e mal remunera- do. Popularmente associadas com Ronald Reagan, mas substancialmente implementadas ¢ consolidadas por Bill Clinton, essas politicas esvaziaram os padrées de vida da classe trabalhadora ¢ da classe média, enquanto transferiam riqueza e valor para cima, principalmente para o grupo 1% mais rico, € claro, mas também para os extratos superiores das classes pro- fissionais em funcées gerenciais. Os neoliberais progressistas nao sonharam com essa economia politi- ca. Essa honra pertence & direita: aos seus intelectuais luminares Friedrich Hayek, Milton Friedman e James Buchanan; aos seus politicos visiondrios Barry Goldwater ¢ Ronald Reagan; ¢ aos seus facilitadores endinheirados, 43-64 Politica & Sociedade -Flrandpolis- Vol. 17 N° 40- Set Der. de 2018, Charles ¢ David Koch, entre outros. Mas a versio “fundamentalista” de direita do neoliberalismo nao podia tornar-se hegeménica em um pais cujo senso comum ainda era moldado pelo pensamento do New Deal, a “revolu- gio dos direitos” ¢ uma série de movimentos sociais descendendo da Nova Esquerda. Para o projeto neoliberal triunfar, ele tinha de ser reembalado, dado um apelo mais amplo, ligado a outras aspiragées nao econdmicas de emancipagio. Somente quando adornada como progressista poderia uma economia politica profundamente regressiva tornar-se o centro dinamico de um novo bloco hegeménico. Calhou, desse modo, aos “Novos Democratas” contribuir com 0 ingre- diente essencial: uma politica progressista de reconhecimento. Recorrendo as forcas progressistas da sociedade civil, eles difundiram um ethos de reconhe- cimento superficialmente igualititio e emancipatério. O niicleo desse exhos eram os ideais de “diversidade”, “empoderamento” das mulheres e direitos LGBTQ; pés-racialismo, multiculturalismo ¢ ambientalismo. Esses ideais foram interpretados de uma forma especifica ¢ limitada que era totalmente compativel com a Goldman Sachsificacio da economia dos BUA. Proteger © meio ambiente significava comeércio de carbono. Promover a posse da casa propria significava empréstimos subprime? agrupados ¢ revendidos como ti tulos lastreados em hipotecas. Igualdade significava meritocracia. A redugo da igualdade & meritoctacia foi especialmente fatidica, O programa neoliberal progressista para atingir uma ordem de status justa nao visava a abolir a hierarquia social, mas “diversificd-la”, “empoderando” mulheres “talentosas’, pessoas de cor ¢ minorias sexuais para que chegas- sem ao topo. E esse ideal era inerentemente especifico a cada classe: voltado para garantir que individuos “merecedores” de “grupos sub-representados” poderiam atingir posicdes de prestigio ¢ poder aquisitivo igual aos dos ho- mens brancos heterossexuais de sta prépria classe. A variante feminista diz isso; mas, infelizmente, nao ¢ a tinica. Focado em “afirmar-se” e “quebrar © teto de vidro”, seus principais beneficidrios sé poderiam ser os que j4 possufam o necessario capital social, cultural ¢ econémico. ‘Todos os outros seriam mantidos no andar debaixo. 3 Empréstimo de baixa qualidade, sem lastro finaneeiro e incompativel eom a renda dos clientes. (Nota do Tradutor) 43-64 4t 48 Do neoliberaism progesista @ Trump — ¢além | Nancy Fraser Por mais enviesada que fosse, essa politica de reconhecimento funcio- nou para seduziras principaiscorrentes dos movimentos sociais progressistas para o novo bloco hegeménico. Certamente, nem todas as feministas, antirracistas, multiculturalistas, ¢ assim por diante, foram ganhos para 2 causa neoliberal progressista. Mas aqueles que o foram, conscientemente ou nao, constitufam o maior, o mais visivel segmento de seus respectivos movimentos, enquanto aqueles que resistiram foram confinados 3s mar gens. Os progressistas no bloco neoliberal progressista eram, com certeza, seus parceiros juniores, muito menos poderosos do que seus aliados em ‘Wall Street, Hollywood e no Vale do Silicio. Embora eles contribuissem com algo essencial para essa ligacto perigosa: carisma, um “novo espi- rito do capitalismo”. Exsudando uma aura de emancipagio, esse novo “espirito” adornava a atividade econdémica neoliberal com um frisson de excitagao. Agora associado com o pensamento progressista € Libertario, © cosmopolita ¢ o moralmente avangado, o sombrio repentinamente se tornou emocionante. Graga em grande parte a este ethos, politicas que fomentaram uma vasta redistribuigao de riqueza e renda para estratos su- periores adquiriram a patina de legitimidade. Para alcangar a hegemonia, no entanto, 0 bloco neoliberal progres sista emergente teve que derrotar dois rivais diferentes. Primeiro, teve de vencer os temanescentes nao insubstanciais da coalizao do New Deal. Antecipando o New Labour de Tony Blair, a ala Clintoniana do Partido Democrata silenciosamente desarticulou essa antiga alianga. No lugar de um bloco histérico que havia unido com sucesso os trabalhadores organi zados, os imigrantes, os afro-americanos, as classes médias urbanas e algu- mas facg6es do grande capital industrial por varias décadas, eles forjaram uma nova alianga de empresitios, banqueiros, suburbanos, “trabalhadores que lidam com o simbélico”, novos movimentos sociais, latinos ¢ jovens, ao mesmo tempo em que mantinha o apoio dos afro-americanos, que achavam que nfo tinham para onde it. Fazendo a campanha pela no- meagio presidencial democrata em 1991/1992, Bill Clinton venceu no dia em que falava sobre a diversidade, multiculturalismo ¢ os direitos das mulheres, mesmo enquanto se preparava para caminhar a caminhada de Goldman Sachs. 43-64 Politica & Sociedade -Flrandpolis- Vol. 17 N° 40- Set Der. de 2018, A derrota do neoliberalismo reacionario © neoliberalismo progressivo também teve de derrorar um segundo competidor, com o qual compartilhou mais do que deixava transparecer. O antagonista neste caso foi o neoliberalismo reaciondrio. Alojado prin- almente no Partido Republicano e menos coerente do que seu rival dominante, este segundo bloco ofereceu um nexo diferente entre distri: buigao ¢ reconhecimento. Combinou uma politica similar, neoliberal de distribuicgo, com uma politica diferente, reaciondria de reconhecimento. Embora afirmando promover os pequenos negécios e a manufatura, 0 ver- dadeiro projeto econdmico do neoliberalismo reacionstio estava centrado no apoio as financas, & producdo militar ¢ 4 cnergia extrativa, tudo para beneficiar, sobretudo, os 1% global. O que supostamente deveria tornar isso palativel para a base que eles buscavam criar era uma viso excludente rista, se de uma ordem de status justa: etnacional, anti-imigrante € pr nao abertamente racista, patriarcal e homofébica. Essa foi a formula que permitiu aos evangélicos cristaos, brancos sulis- tas, americanos rurais e de cidades pequenas e estratos da classe trabalha- dora branca descontentes coexistissem por um par de décadas, embora des- confortavelmente, com libertarios, partidarios do Tea Partiers, a Camara de Comércio e os itmaos Koch, além de um punhado de banqueiros, falcées do setor imobilidrio, magnatas do setor de enetgia, capitalistas de isco ¢ especuladores de fundos especulativos. Enfases setoriais 4 parte, o neoli- beralismo reaciondrio no diferia substancialmente de seu rival neoliberal progressista nas grandes questées de economia politica. Previsiveis, as duas partes debateram um pouco acerca dos “impostos sobre os ricos”, com os democratas geralmente insistindo mais. Mas ambos os blocos apoiavam 0 “livre comércio”, os baixos impostos corporativos, direitos trabalhiscas re- duzidos, a primazia do interesse dos acionistas, a lagica de toda recompen- sa para os vencedores ¢ a destegulamentacio financeira. Ambos os blocos clegeram lideres que buscavam “grandes barganhas” destinadas a cortar direitos. As diferengas-chave entre eles se voltavam para o reconhecimento, nao para a distribuigao. Em grande medida, o neoliberalismo progressista ganhou essa batalha também, mas a um custo. Os centros de fabricagéo decadentes, especial- 43-64 49 50 Do neoliberaismo progressista 8 Trump —e além | Nancy Fraser mente no chamado Cinturio da Ferrugem*, foram sacrificados. Essa regio, junto com 0s novos centros industriais no Sul, sentiram um grande impac- to gragas a uma triade das politicas de Bill Clinton: NAFTA, a adesao da China a OMC (justificada, em parte, como promogio da democracia), ¢ a revogacio da lei Glass-Steagall’. Juntas, essas politicas ¢ suas sucessoras devastaram as comunidades que dependiam da manufatura. No decorrer de duas décadas de hegemonia neoliberal progressista, nenhum dos dois grandes blocos fez qualquer esforco sério para apoiar essas comunidades. Para os neoliberais, suas economias nd4o eram competitivas e deveriam es- tar sujeitas “A corregio do mercado”. Para os progressistas, suas culturas estavam presas no passado, ligadas a valores obsoletos € paroquiais que logo desapareceriam em uma nova desregulamentagio cosmopolita. Em nenhum dos dois terrenos — distribuigdo ou reconhecimento — neoliberais progressistas poderiam encontrar algum motivo para defender as comuni- dades manufatureiras do Cinturao da Ferrugem e do sul. A lacuna hegem6nica - e a luta para preenché-la O universo politico que Trump articulou era altamente restritivo. Ele foi construido em torno da oposigio entre duas verses do neoliberalismo, distinguidas principalmente pelo eixo do reconhecimento. Potencialmente alguma delas poderia escolher entre multiculcuralismo e etmonacionalismo. ‘Mas uma delas estava presa, de qualquer forma, com a financeitizagio ea de- sindustrializacio. Com 0 cardépio limitado aos neoliberalismos progressista e reacionario, nao havia forca para se opor A dizimagao dos padrées de vida da classe trabalhadora e da classe média. Projetos antineoliberais estavam seriamente marginalizados, se nao simplesmente excluidos, da esfera publica. Isso deixou um segmento considerdvel do cleitorado dos EUA, viti- ma da financeirizacéo e da globalizacio corporativa, sem um lar politico natural. Dado que nenhum dos dois grandes blocos falou por eles, havia uma lacuna no universo politico americano: um vazio, zona desocupa- da, onde politicas antineoliberais ¢ pré-familia trabalhadora poderiam ter 4° Denominaedo para a area de industralizacao antiga compreendida aproximativamente entre as cidades de Chicago e Nova York (Nota do Tradutor) 5 Leide 1933 que impedia que os bancos se oeupassem de atividades ndo banedrias. camo 0s seguros. 43-64 Politica & Sociedade -Flrandpolis- Vol. 17 N° 40- Set Der. de 2018, criado raizes. Dado o ritmo acelerado dadesindustrializacéo, aproliferagéode empregos precérios e de baixos salitios, a expansio das dividas predatérias, € 0 consequente declinio nos padrées de vida para os dois tergos inferiores dos americanos, era apenas uma questio de tempo antes que alguém pas- sasse a ocupar aquele espago vazio ¢ preencher a lacuna Alguns supuseram que esse momento havia chegado em 2007/2008. Um mundo ainda se recuperando de um dos piores desastres de politica externa na historia dos EUA foi entao forgado a enfrentar a pior crise financeira desde a Grande Depressio — ¢ uma quase desintegragio da eco- nomia global. A politica, como de costume, foi deixada de lado. Um afro- -americano que falou de “esperanca” ¢ “mudanga” ascendeu a Presidéncia, prometendo transformar nao apenas a politica, mas toda a “mentalidade” da politica americana. Barack Obama poderia ter aproveitado a opor- tunidade para mobilizar apoio em massa para uma grande mudanga do neoliberalismo, mesmo em face da oposicao do Congresso. Em vez disso, cle confiou a economia as préprias forcas de Wall Street que quase a des- trufram. Definindo 0 objetivo como “recuperacéo” em oposicao a reforma estrutural, Obama despejou enormes somas em planos de salvamento de bancos que eram “grandes demais para quebrar”, mas ele nao conseguiu fazer nada remoramente comparével para as vitimas deles: os dez milhdes de americanos que perderam suas casas em execugées hipotecrias duran- te a crise. A Unica excegao foi a expansio da assisténcia médica através do Affordable Care Act, que forneceu um real beneficio material para uma parte da classe trabalhadora dos EUA. Mas essa era a excecio que comprovava a regra. Ao contrario do single payer’ e das propostas de pu- blic option’ que Obama renunciou antes mesmo das negociacées sobre a assisténcia médica terem comegado, sua abordagem reforcou as préprias divisdes denuro da classe trabalhadora que, de fato, se mostrariam téo politicamente fatais. Para dizer tudo, o impulso devastador de sua presi- déncia era manter o status quo do neoliberalismo progressista, apesar de sua crescente impopularidade. 6 Sistema em que os servicas de saiide seriam geridos por uma agéncia publiea ou semipibliea. eapaz de garantir a eobertura universal de saiide 7 Proposta de eriagdo de uma agéncia piibliea que ofereceria planos de satide mais baratos para eompetir com as empresas privadas. 43-64 SI 52 Do neoliberaismo progressista 8 Trump —e além | Nancy Fraser Outta chance de preencher a lacuna hegeménica chegou em 2011, com a erupeio do Occupy Wall Street. Cansado de esperar por repara- ‘io do sistema politico e resolvendo cuidar do assunto com suas préprias mos, um segmento da sociedade civil se apoderou de pragas pelo pais em nome dos “99 por cento”. Denunciando um sistema que pilhou a grande maioria a fim de enriquecer 0 um por cento do topo, grupos relativamente pequenos de manifestantes jovens logo atrairam grande apoio — até 60% do povo americano, de acordo com algumas pesquisas — especialmente de sindicatos sitiados, estudantes endividados, familias de classe média em dificuldades e o crescente “precariado”. Os efeitos politicos do Occupy foram contidos, no entanto, servindo principalmente para recleger Obama. Foi adotando a retérica do mo mento que ele ganhou o apoio de muitos que iriam vorar em ‘Trump em 2016 e, assim, derrotou Romney em 2012. Ele venceu por mais quatro anos; contudo, a recém-descoberta consciéncia de classe do presidente evaporou rapidamente. Confinando a busca por “mudanga” 4 emissio de ordens executivas, ele nem processou os malfeitores de riqueza nem usou 0 ptilpito para mobilizar 0 povo americano contra Wall Street. Assumindo que a tempestade havia passado, as classes politicas dos EUA por pouco perderam o bonde. Continuando a defender 0 consenso neoliberal, elas nao conseguiram ver em Occupy os primeiros rumores de um terremoto que estava por vir. Esse terremoto finalmente ocorreu em 2015/2016, como o desconten- ramento que estava por longo tempo fervendo e que de repente mudou de forma em uma crise aberta da autoridade politica. Naquela campanha elei toral, os dois principais blocs politicos pareceram colapsar. Do lado repu- blicano, Trump, fazendo campanha com temas populistas, derrotou com facilidade (como ele continua a nos lembrar) seus dezesseis rivais infelizes nas primérias, incluindo varios escolhidos a dedo pelos chefes politicos ¢ principais doadores. No lado democrata, Bernie Sanders, um autoprocla- mado socialista democratico, montou um surpreendente e sério desafio & sucessora ungida por Obama, que teve de usar cada truque ¢ alavanca do poder partidario para afasté-lo. Em ambos os lados, os scripts habituais foram postos de pernas para o ar na medida em que um par de outsiders 43-64 Politica & Sociedade -Flrandpolis- Vol. 17 N° 40- Set Der. de 2018, ocuparam a lacuna hegeménica ¢ passaram a preenché-la com novos “me- mes” politicos. ‘Tanto Sanders quanto Trump escoriaram a politica de distribuicao neoliberal. Mas suas politicas de reconhecimento diferiam acentuadamen- te. Enquanto Sanders denunciava a “economia manipulada” com sotaques universalistas ¢ igualitérios, Trump tomou emprestada a mesma frase, mas a coloriu de nacionalismo e protecionismo. Apostando em tropos exclu- dentes ¢ antigos, ele transformou o que tinha sido “mero” ladrar de caes em explosdes de urros de racismo, misoginia, islamofobia, homo ¢ transfobia e sentimento anti-imigrante. A “classe trabalhadora” que servia de base para sua retérica conjurada era branca, heterosexual, masculina e crista, que trabalhava na mineragao, na perfuragao, na construgao ¢ na indiistria pesada. Em contraste, a classe trabalhadora que Sanders cortejava era am- pla e expansiva, abrangendo nao s6 os operarios das fabricas do Cinturéo da Ferrugem mas também trabalhadores do setor ptiblico ¢ de servigos, incluindo mulheres, imigrantes, ¢ pessoas de cor. Certamente, 0 contraste entre esses dois retratos da “classe trabalhado- ra” era em grande medida retérica. Nenhum retrato correspondia estrita- mente A base de eleitores de cada candidato. Embora a margem da vitéria de Trump tenha vindo de centros de fabricacao eviscerados que tinham apoiado Obama em 2012 ¢ Sanders nas primérias democratas de 2015, seus eleitores também inclufam os habituais suspeitos republicanos — in- cluindo libertérios, donos de negécios, ¢ outros que pouco apelam para 0 populismo econémico. Da mesma forma, os eleitores mais confidveis de Sanders eram jovens, americanos com educacao superior. Mas esta nao é a questo. Como uma projegao retorica de uma possivel contra-hegemonia, foi a visto expandida de Sanders sobre a classe trabalhadora dos EUA que mais acentuadamente distinguia seu tipo de populismo do de Trump. Ambos outsiders esbogaram os contornos de um novo senso comum, mas cada um fez do seu jeito. Na melhor das hipéteses, a retérica da cam- panha de Trump sugeriu um novo bloco proto-hegeménico, que podemos chamar de populismo reaciondrio. Parecia combinar uma politica hiper- ria de reconhecimento com uma politica populista de distribui- 40: com efeito, o muro na fronteira mexicana, além de gastos de larga -reaciona 43-64 53 34 Do neoliberaism progesista @ Trump — ¢além | Nancy Fraser escala em infraestrutura. © bloco idealizado por Sanders, em contraste, era um populismo progressista. Ele procurou unir uma politica inclusiva de reconhecimento com uma politica de distribuigéo favorével as familias dos trabalhadotes: reforma da justiga criminal mais assisténcia médica para to- dos; justica reprodutiva mais ensino superior gratuito; direitos LGBT, mais desmembramento dos grandes bancos. Iscar e trocar® Contudo, nenhum desses cenérios, na verdade, se materializou. A perda de Sanders para Hillary Clinton removeu a opgao populista pro- gressiva da cédula, o que nao foi nenhuma surpresa. Mas o resultado subsequente da vitéria de Trump sobre ela foi mais inesperado, pelo me- nos para alguns. Longe de governar como populista reacionério, 0 novo presidente ativou a velha expressao iscar e trocar, abandonando as poli- ticas distributivas populistas que sua campanha havia prometido. Como previsto, cle cancelou o Acordo de Parceria Transpacifico —Trans-Pacific Partnership (TPP). Mas ele contemporizou sobre o NAFTA e falhou ao nao avangar nem um milimetro para controlar Wall Street. Trump tam- bém nao deu um tinico passo sério para implementar projetos de infraes- rrutura ptiblica criadores de empregos em larga escala; seus esforgos para incentivar a industria foram limitados a exibig6es simbdlicas de ameag ¢ alivio na regulamentagao para o carvao, cujos ganhos se revelaram em grande parte ficticios. E longe de propor uma reforma do cédigo tributé- rio cujos principais beneficidrios seriam familias da classe trabalhadora e da classe média, ele assinou a versio republicana padrao, projetada para canalizar mais riqueza para o um por cento mais rico (incluindo a familia Trump). Como este tiltimo ponto atesta, as agées do presidente na fren- te distributiva incluiram uma forte dose de capitalismo de compadrio © autonegociagao. Mas se Trump, ele mesmo, ficou aquém dos ideais Hayekianos de razio econémica, a nomeacio de mais um ex-aluno da Goldman Sachs para 0 Tesouro garante que o neoliberalismo continuaré onde ele realmente conta. Ss 8 “Bait and Switch” (iscar e trocar) é uma expressdo para descrever operacdes comerciais fraudulentas em que se anuneia um produto e se vende outro diferente. (Nota do Tradutor. 43-64 Politica & Sociedade -Flrandpolis- Vol. 17 N° 40- Set Der. de 2018, Tendo abandonado a politica populista de distribuigéo, Trump passou a apostar na politica reaciondria de reconhecimento, enormemente inten- sificada e cada vez mais cruel. A lista de suas provocagées ages em apoio a hierarquias de status injustas é longa e arrepiante: a proibicao de viagens nas suas varias verses, todas diigidas a paises de maioria mugulmana, mal disfarcada pela cinica adigio tardia da Venezuela; a destruicso dos direitos civis na justiga (que abandonou o uso dos acordos judiciais) © no traba- Iho (que parou a fiscalizacéo sobre discriminagées cometidas por empresas contratadas pelo governo federal); a recusa em defender processos judi- ciais sobre direitos LGBTQ; a reversio da cobertura do seguro obrigatério de contracepgio; a contengao das protegdes do Titulo IX para mulheres € meninas mediante cortes no pessoal de fiscalizagao; pronunciamentos piiblicos de apoio as abordagens policiais truculentas de suspeitos, a0 des- prezo do “Sheriff Joes”? pelo primado do diteito, ¢ &s “pessoas de bem” en- tre os brancos supremacionistas que semearam o caos em Charlottesville. O resultado nio € um mero conservadorismo republicano de saléo, mas uma politica hiper-reacionaria de reconhecimento. No total, as politicas do Presidente Trump divergiram das promessas de campanha do candidato Trump. Nio apenas seu populismo econdmi- co desapareceu, como também seu método de culpabilizagéo cresceu cada vez mais vicioso. O que seus apoiadores votaram, em suma, nao foi o que obtiveram. O resultado nao é populismo reacionério, mas o neoliberalismo hiper-reaciondrio. O neoliberalismo hiper-reaciondrio de Trump nao constitui um novo bloco hegeménico, no entanto. E, a0 contrario, caético, instivel e frégil. Isso se deve em parte & peculiar psicologia pessoal de seu porta-estandarte ¢, em parte, devido & sua codependéncia disfuncional com o establishment do Partido Republicano, que tentou ¢ falhou em reafirmar o seu controle ¢ agora est4 matando © tempo enquanto procura por uma estratégia de saida. Nés nio podemos agora saber exatamente como isso vai se desenro- lar, mas seria tolice excluir a possibilidade de que o Partido Republicano se dividira. De qualquer maneira, 0 neoliberalismo hiper-reaciondrio nao oferece nenhuma perspectiva de hegemonia segura. 9 Trata-se de joe Arpaio. antiga xerfe do Arizona. condenado par seus métodos racistas e desrespeitadores dos direitos fundamentais, foi perdoado por Trump em agosto de 2017. 43-64 55 56 Do neoliberaism progesista @ Trump — ¢além | Nancy Fraser Mas também hé um problema mais profundo. Ao desativar a face eco- némico-populista de sua campanha, o neoliberalismo hiper-reaciondrio de Trump eferivamente busca restabelecer a lacuna hegeménica que ele aju- dou a explodir em 2016. $6 que agora nao consegue suturar essa lacuna. Agora que 0 gato populista esté fora do saco, é duvidoso que a poreéo da classe trabalhadora da base de Trump fique satisfeita, por longo tempo, em ter apenas (des)reconhecimento no jantar. Por outro lado, enquanto isso “a resisténcia” se organiza. Mas a opo- sigao esta fraturada, compreendendo Clintonistas obstinados, Sanderistas engajados, ¢ muitas pessoas que poderiam ir para um ou outro lado. Para complicar a paisagem, ha uma vaga de grupos arrivistas cujas posturas mi- litantes atrairam grandes doadores apesar (ou por conta) da imprecisao de suas concepcées programéticas. Especialmente preocupante é 0 ressurgimento de uma velha tendén- cia na esquerda para opor raga 3 classe. Alguns resistentes esto propondo reorientar a politica do Partido Democrata em torneo da oposigao & supre- macia branca, concentrando esforgos em ganhar apoio de negros ¢ latinos. Outros defendem uma estratégia centrada na classe, voltada para recon- quistar comunidades da classe trabalhadora branca que passaram para o lado de Trump. Ambas as visdes so problematicas na medida em que elas chamam a atencao para classe e raca como inerentemente antitéticas, um “jogo de soma zero”. Na realidade, ambos os eixos da injustiga podem ser atacados em conjunto, como de fato devem ser. Nenhum dos dois pode ser superado enquanto 0 outro Horesce. No contexto de hoje, no entanto, propostas para deixar de lado preo- cupagées relativas & classe representam um risco especial: sio susceptiveis de se encaixar nos esforgos da ala de Clinton para restaurar 0 status quo an- terior com alguns novos disfarces. Nesse caso, o resultado seria uma nova versao do neoliberalismo progressista— uma que combina o neoliberalismo no front da distribuigdo com politicas militantes antirracistas de reconheci- mento. Essa perspectiva deve provocar uma descontinuidade entre as for- cas “antiTrump”. Por um lado, isso enviard rapidamente muitos potenciais aliados na diregao oposta, validando a narrativa de Trump e reforcando sua base de sustentagao. Por outro lado, isso vai efetivamente agregar forgas em 43-64 Politica & Sociedade -Flrandpolis- Vol. 17 N° 40- Set Der. de 2018, torno dele na supresséo de alternativas para o neoliberalismo —¢, portanto, restabelecendo a lacuna hegeménica. Mas 0 que eu acabei de afirmar so- bre Trump aplica-se igualmente aqui: 0 gato populista esté fora do saco nao vai fugir furtivamente. Restabelecer o neoliberalismo progressista, em qualquer base, é recriar — na verdade, exacerbar — as mesmas condicées que criaram Trump. E isso significa preparar 0 terreno para futuros Trumps — cada vez mais cruéis e perigosos. Sintomas mérbidos e perspectivas contra-hegeménicas Por todas estas razées, nem um neoliberalismo progressista revivido nem um neoliberalismo hiper-reaciondrio inventado é um bom candidato para a hegemonia politica no futuro préximo. Os lacos que uniram cada um desses blocos desgastaram-se terrivelmente. Além disso, nenhum dos dois estd atualmente em posicio de moldar um novo senso comum. Am- bos nao sao capazes de oferecer uma imagem autorizada da realidade social, uma narrativa em que um amplo espectro de atores sociais pode encontrar- -se. F igualmente importante citar que nenhuma das variantes do neolibe- ralismo pode resolver com sucesso os bloqueios objetivos do sistema que fundamentam nossa crise hegeménica. Na medida em que ambos estao na cama com as financas globais, néo podem desafiar a financeirizacao, a desindustrializagio ou a globalizagio corporativa. Nem podem cortigir os padrées de vida em declinio ou o endividamento crescente, as mudangas climaticas ou os “déficits de cuidado”, ou o estresse intolerdvel na vida da comunidade. (Re)instalar qualquer um desses blocos no poder é garantir nao apenas uma continuag’o, mas uma intensificagdo da crise atual. O que, entio, podemos esperar em curto prazo? Na auséncia de uma hegemonia segura, enfrentamos um interregno inst4vel ¢ a continuacao da crise politica, Nesta situagio, as palavras de Antonio Gramsci ressoam verdadeiras: “O velho esta morrendo € 0 novo nao pode nascer; nesse inter- regno, uma grande variedade de sintomas mérbidos aparece”. A menos, é claro, que exista um candidato viével a uma contra-hege- monia. O candidato mais provavel é uma forma ou outta de populismo. Poderia o populismo ainda ser uma opgio possivel — se néo imediatamen- te, pelo menos em longo prazo? O que fala a favor dessa possibilidade 43-64 sv 58 Do neoliberaism progesista @ Trump — ¢além | Nancy Fraser © fato de que entre os partidatios de Sanders ¢ aqueles de Trump, algo préximo de uma massa critica de eleitores dos EUA rejeitou as politicas neoliberais de distribui¢éo em 2015/16. A pergunta ardente é se essa massa poderia agora ser fundida em um novo bloco contra-hegeménico. Para isso acontecer, membros da classe trabalhadora que apoiaram ‘Trump ¢ Sanders teriam que se entenderem como aliados — vitimas situadas de maneiras diferentes em uma “economia manipulada”, que eles poderiam buscar transformar em conjunto. O populismo reacionario, mesmo sem Trump, nao é uma base prova- vel para tal alianga. Sua politica de reconhecimento hierdrquico ¢ exclu- dente € um assassino de negécios infalfvel para os principais setores das classes operdria ¢ média dos EUA, especialmente as familias dependentes de rendimentos do trabalho em servicos, na agriculrura, no trabalho do- méstico e no setor piblico, cujas fileiras incluem um grande ntimero de mulheres, imigrantes ¢ pessoas de cor. Somente uma politica inclusiva de reconhecimento tem chances de lutar para trazer essas forgas sociais indispensdveis para uma alianca com outros setores das classes trabalha- dora ¢ média, incluindo também comunidades historicamente associadas A manufatura, 8 mineragao € 4 construgao. Isso deixa 0 populismo progressista como o mais provavel candidato para um novo blaco contra-hegeménico. Combinando redistribuigio igua- litaria com reconhecimento nio hierdrquico, esta opcéo tem pelo menos uma chance de lutar pela uniao de toda a classe trabalhadora. Mais que isso, essa estratégia poderia posicionar essa classe, entendida de forma ampliada, como a principal forga de uma alianga que também inclui segmentos subs- tanciais da juventude, da classe média ¢ do estrato profissional-gerencial. Ao mesmo tempo, ha muito na situagéo atual que fala contra a pos- sibilidade, em breve, de uma alianga entre populistas progressistas ¢ es- tratos da classe trabalhadora que voraram em Trump na tiltima eleigao. Enue os principais obstéculos, estio as profundas divisées — ou mesmo édios — latentes por longo tempo, mas recentemente transformados em uma verdadeira febre por Trump, que, como David Brooks de forma pers- picaz coloca, tem um “faro para cada ferida no corpo politico” e nao tem escripulos em “enfiar um ferro em brasa (nelas) ¢ rasgé-las até ficarem 43-64 Politica & Sociedade -Flrandpolis- Vol. 17 N° 40- Set Der. de 2018, abertas”. O resultado é um ambiente téxico que parece validar 0 ponto de vista, defendido por alguns progressistas, de que todos os eleitores de Trump sio “deploraveis” — racistas irredimiveis, misdginos e homofbicos. Também reforca a visto inversa, defendida por muitos populistas reacio- natios, de que todos progressistas sio moralizadores incorrigiveis ¢ clitistas presungosos que olham para baixo, enquanto saboreiam café com leite e acumulam délares. Uma estratégia de separacao As perspectivas para o populismo progressista nos Estados Unidos hoje dependem de combater com sucesso esses dois pontos de vista. O que é ne- cessaria € uma estratégia de separacao, destinada a precipitar duas grandes divisdes. Primeiro, mulheres menos privilegiadas, imigrantes e pessoas de cor tm de ser cortejados longe das feministas empreendedoras”, dos antir- racistas ¢ anti-homofébicos meritocraticos, da diversidade corporativa e do capitalismo verde fake que sequestraram suas preocupagées, flexionando-as em termos consistentes com o neoliberalismo. Este é 0 objetivo de uma recente iniciativa feminista, que busca substituir “empreendedora” por um “feminismo” para os 99 por cento”. Outros movimentos emancipatérios devem copiar essa estratégia. Em segundo lugar, as comunidades de classe trabalhadora do Cinturao da Ferrugem, sulistas e rurais tém de ser persuadidas a abandonar seus alia- dos atuais criptoneoliberais. O truque é convencé-los de que as forgas que promovem 0 militarismo, a xenofobia ¢ 0 etnonacionalismo nao podem e nao fornecerio a eles os pré-requisitos materiais essenciais para uma boa vida, enquanto que apenas um bloco populista progressista poderia. Dessa forma, poder-se-ia separar aqueles eleitores de Trump que poderiam, ¢ de- vem, ser responsivos.a tal apelo, daqueles racistas de carteirinha e alt-right!! etnacionalistas que nao sao. Afirmar que o primeiro grupo supera 0 se- gundo por uma larga margem nao é negar que movimentos populistas 10. “Lean-in feminism”. expressao que descreve as feministas que incentivam as mulheres a correrem mais riscos em suas carreras (nota do tradutor) 1 Trata-se dos grupos que se autodenominam alt rent (direita alternativa) que pregam o supremacismo branco e outras pautas conservadoras (nota do tradutor). 43-64 59 60 Do neoliberaism progesista @ Trump — ¢além | Nancy Fraser reaciondrios baseiam-se fortemente em uma retérica pesada ¢ tém encora- jado antigos grupos marginais de verdadeiros supremacistas brancos. Mas isso refuta a conclusio precipitada de que a esmagadora maioria dos elei totes populistas reaciondtios esta sempre fechada para apelos em nome de uma classe trabalhadora expandida do tipo evocado por Bernie Sanders. Essa visio € nao apenas empiricamente errada, mas também contraprodu- cente, provavelmente por ser autoconfiante. Deixem-me esclarecer. Nao estou sugerindo que um bloco populista progressista deve silenciar as preocupagées prementes sobre racismo, se- xismo, homofobia, islamofobia ¢ transfobia. Pelo contrario, a luta contra todos esses males devem ser centrais para um bloco populista progres- sista. Mas é contraproducente aborda-los através de condescendéncia moralizadora, a0 modo do neoliberalismo progressista. Essa abordagem pressupde uma visdo superficial ¢ inadequada dessas injustigas, exageran- do grosseiramente a dimensio de que o problema esta dentro das cabegas das pessoas ¢ perdendo a profundidade das forcas institucionais ¢ estru- turais que as subjuga. O ponto é especialmente claro ¢ importante no caso da raga. A injus- tiga racial nos Estados Unidos hoje nao é, no fundo, uma questo de ati tudes humilhantes ou de mas condutas, embora estas certamente existam. O ponto crucial sao antes os impactos racialmente especificos da desin- dustrializacio ¢ da financeirizacio no periodo da hegemonia neoliberal -progressista, como aparece através de longas histérias de opressdo sistémi- ca. Nesse periodo, americanos pretos € mestigos, a quem tradicionalmente tinham sido negados créditos imobiliarios normais, estando confinados em habitagoes segregadas e de qualidade inferior, ¢ recebendo remuneragoes muito baixas para acumular poupangas, foram sistematicamente visados pelos fornecedores de empréstimos subprime e, consequentemente, esta- vam sujeitos &s taxas mais elevadas de execugées hipotecarias no pais. Neste periodo, também, cidades e bairros com forte proporeio de minorias que ha muito vinham sendo sistematicamente privadas de recursos publicos foram atingidos pelo fechamento de fibricas em centros manufatureiros em declinio; suas perdas foram calculadas nao apenas em empregos mas também nas receitas fiscais, que os privaram de fundos para as escolas, hos- pitais e manutengao de infraestrutura basica, levando-os eventualmente 4 43-64 Politica & Sociedade -Flrandpolis- Vol. 17 N° 40- Set Der. de 2018, faléncia, como na cidade de Flint — ¢, em um contexto diferente, no bairro Lower Ninth Ward em Nova Orleans. Finalmente, os homens negros ha muito sujeitados a condenagées diferenciadas, a encarceramentos severos, a trabalhos forgados ¢ a violéncia socialmente tolerada, inclusive nas mos da policia, estavam neste periodo massivamente circunscritos a um “com- plexo industrial de prisées", mantidas lotadas por uma “guerra as drogas” que visava a posse de crack ¢ por taxas desproporcionalmente altas de de- semprego de minorias, tudo isso uma cortesia de “conquistas” legislativas bipartidarias orquestradas em grande medida por Bill Clinton. H4 que se acrescentar ainda que, embora fosse inspiradora, a presenga de um afro- -americano na Casa Branca nao conseguiu afetar esses desenvolvimentos? E como poderia? Os fenémenos apenas evocados mostram a profundi- dade em que o racismo esta ancorado na sociedade capitalista contempori- nea—ea incapacidade do discurso moralizador do neoliberalismo progres- sista para fazer face a isso. Eles também revelam que as bases estruturais do racismo tém tanto a ver com classe e economia politica como com status ¢ (des)reconhecimento. Igualmente importante, tais fendmenos evidenciam que as forcas que estao destruindo as chances de vida das pessoas de cor sio parte e parcela do mesmo complexo dinAmico de forgas que esto destruin- do as chances de vida dos brancos — ainda que algumas especificidades possam diferir. O efeito é revelar finalmente o inextricdvel entrelagamento entre raga e classe no capitalismo financeirizado contemporineo. Um bloco populista progressista deve fazer com que tais insights guiem estrelas. Renunciando ao estresse neoliberal progressista nas atitudes pes- soais, ele deve focar seus esforgos nas bases estruturais-institucionais da sociedade contemporanea. Especialmente importante, ele deve destacar as ratzes compartilhadas das injusticas de classe e de status no capitalismo finan- ceirizado. Concebendo esse sistema como uma totalidade social integrada € Unica, ele deve ligar os danos sofridos por mulheres, imigrantes, pessoas de cor e pessoas LGBTQ com aqueles vivenciados pelas camadas da classe trabalhadora agora atraidas pelo populismo de direita. Dessa forma, pode estabelecer a fundacao para uma nova ¢ poderosa coalizao entre todos os que Trump e seus homélogos em outros lugares estao traindo agora — nao apenas imigrantes, feministas ¢ pessoas de cor que jé se opdem ao seu neoliberalismo hiper-reaciondrio, mas também estratos da classe operéria 43-64 6l 62 Do neoliberaism progesista @ Trump — ¢além | Nancy Fraser branca que até agora o apoiaram. Aliando grandes segmentos do toda a classe trabalhadora, é crivel que essa estratégia poderia ganhar. Ao contré- rio de qualquer outra opgio considerada aqui, 0 populismo progressista tem o potencial, pelo menos em principio, de se tornar um bloco contra- -hegeménico relativamente estével no futuro. Mas 0 que recomenda o populismo progressista ndo é apenas o seu potencial de viabilidade subjerina. Em contraste com seus provaveis rivais, ele tem a vantagem adicional de ser capaz, pelo menos em principio, de abordar o lado real, objetive, de nossa crise. Deixem-me explicar. Como observei no inicio, a crise hegeménica dissecada aqui é uma vertente de um complexo de crise maior, que engloba vérias outras verten- tes — ecolégica, econdmica e social. E também a contrapartida subjetiva de uma crise sistémica objetiva para a qual constitui a resposta ¢ da qual nao pode ser separada. Em tiltima anilise, esses dois lados da crise — um subjetivo, 0 outro objetivo — ficam de pé ou caem juntos. Nenhuma res- posta subjetiva, embora aparentemente convincente, pode assegurar uma contra-hegemonia duradoura, a menos que ofereca a dissecagao de uma solugao real para os problemas objetivos subjacentes. O lado objetivo da crise nao é uma mera multiplicidade de disfungdes separadas. Longe de formar uma pluralidade dispersa, suas diferentes ver- tentes estao interconectadas, compartilham uma fonte comum. O objeto subjacente de nossa crise geral, a coisa que abriga suas instabilidades miil- tiplas, é a forma atual de capitalismo — globalizador, neoliberal, financei- rizado. Como toda forma de capitalism, esta € nao € um mero sistema econémico, mas algo maior, é uma ordem social institucionalizada. Como tal, engloba um conjunto de condigées nao econdmicas de base que sio indispensaveis a uma economia capitalista: por exemplo, atividades nao remuneradas de reprodugao social, que asseguram a oferta de mao de obra assalariada para produgao econémica; um aparato organizado do poder puiblico (lei, policia, agéncias reguladoras e capacidades administrativas) que fornece a ordem, previsibilidade ¢ infraestrutura que sio necessdrias para a acumulagio sustentada; ¢, finalmente, uma organizacio telativa- mente sustentavel da nossa interacio metabdlica com o resto da natureza, que garante suprimentos essenciais de energia ¢ matérias-primas para a 43-64 Politica & Sociedade -Flrandpolis- Vol. 17 N° 40- Set Der. de 2018, producio de commodities, para nao mencionar um planeta habitavel que possa suportar a vida. O capitalismo financeiro representa uma maneira historicamente especifica de organizar a relagdo de uma economia capitalista com estas indispensaveis condigées basicas. Ele ¢ uma forma de organizagao social profundamente predatéria ¢ instavel, que libera a acumulagio de capital das préprias restrig6es (politicas, ecolégicas, sociais, morais) necessarias para sustenta-lo ao longo do tempo. Liberto de tais restrigées, a economia capitalista consome suas préprias condigées basicas de possibilidade. Isto & como um tigre que come sua prépria cauda. Como a vida social como tal ¢ cada vez mais dependente da economia, a busca desenfreada do lucro desestabiliza as préprias formas de reprodugao social, sustentabilidade eco- légica e poder ptiblico do qual depende. Visto desta maneira, 0 capitalismo financeiro é uma formagio social inerentemente propensa a crises. O com- plexo de crise que nés encontramos hoje é a expresso cada vez mais aguda de sua tendéncia intrinseca de autodesestabilizagao. Essa é a face objetiva da crise: a contrapartida estrutural do desmante- lamento hegeménico dissecado aqui. Hoje, assim, ambos os polos da crise — um objetivo, o outro subjetivo — estéo em plena floragio. E, como ja foi dito, eles se mantém de pé ou caem juntos. Resolver a crise objetiva requer uma grande transformacio estrutural do capitalismo financeirizado: uma nova maneira de relacionar economia com politica, produgdo com repro- ducao, sociedade humana com natureza nao humana. Neoliberalismo em qualquer disfarce nao é a solucao, mas o problema. O tipo de mudanga que exigimos sé pode vir de outro lugar, de um projeto que é no minimo antineoliberal, se nao anticapitalista. Tal proje- to pode se tornar uma forga historica somente quando incorporada em um bloco contra-hegeménico. Embora o prospecto possa parecer distante agora, nossa melhor chance para uma resolucao subjetiva-objetiva é 0 po- pulismo progressista. Mas mesmo isso pode nao ser um ponto final estavel. © populismo progressista pode acabar sendo transitério — uma estagéo a caminho de algo novo, uma forma pds-capitalista de sociedade. Seja qual for a nossa incerteza em relagio ao ponto final, uma coi- sa é clara: se falharmos em perseguir essa opgio agora, prolongaremos 0 43-64 63 64 Do neoliberaism progesista @ Trump — ¢além | Nancy Fraser presente interregno. E isso significa condenar os trabalhadores de cada convicc4o e cada cor ao estresse crescente e ao declinio da satide, 4 divida inflacionaria e ao excesso de trabalho, ao apartheid de classe e A inseguranga social. Significa imergi-los, também, em uma cada vez maior extensio de sintomas mérbidos — em édios nascidos de ressentimento ¢ expressos na forma de bodes expiatérios, de surtos de violéncia seguidos de ondas de repressao, de um mundo vicioso de “cies raivosos”, onde solidariedades le- vam ao ponto de fuga. Para evitar esse destino, devemos romper definitiva- mente tanto com a economia neoliberal quanto com as varias politicas de reconhecimento que ultimamente o tém apoiado — descartando nao ape- nas 0 etnonacionalismo de exclusao, mas também o individualismo liberal- -meritocrético. Apenas unindo politicas robustas de distribuicéo igualitaria a politicas de reconhecimento substancialmente inclusivas, sensfveis As de- sigualdades de classe, poderemos construir um bloco contra-hegeménico que poderia nos levar além da crise atual para um mundo melhor, From progressive Neoliberalism to Trump - and beyond Abstract In ths article, Nancy Fraser reviews the failure of the politically hegemonic model of an alliance between a progressive version of recognition politics and a regressive version of economical politics. deemed by her progressive neoliberalism. Challenged by the rise of hyper-reactionary, symbolizes by Donald Trump. the author defends the idea of a progressive version of populism as a counter-hegemonic actor in the current context Keywords: Neoliberalism: recognition. hegemony; populism, 43-64

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