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BUROCRACIA COM DEMOCRACIA: A ADMINISTRAÇÃO

artigo
BUROCRÁTICA-COLEGIADA-PARTILHADA COM
SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO-LIVRE SEGUNDO
MAX WEBER

BUREAUCRACY WITH DEMOCRACY:


THE BUREAUCRATIC-COLLEGIATE ADMINISTRATION WITH
FREE-REPRESENTATION SYSTEM ACCORDING TO
MAX WEBER

Carlos Eduardo Sell*

Introdução da e Política como profissão) que discutem a


crise do Império Alemão e o nascimento da
A dualidade burocracia-democracia é República de Weimar (MOMMSEN, 1959).
uma das principais chaves interpretativas Partindo desse dado, mesmo um pensador
da sociologia política de Max Weber tão distante da sociologia weberiana, como
(SCHLUCHTER, 1980). No entanto, ambos Niklas Luhmann (1969), observou que aí se
os temas receberam um tratamento encontra em germe a tese da diferenciação
diferenciado na obra deste pensador. interna de dois âmbitos do sistema político
Enquanto a burocracia ocupa seu lugar – o complexo administrativo e o complexo
no contexto da reflexão sociológico- eleitoral-parlamentar –, cujas complexas e
sistemática sobre os tipos de dominação tensas relações não escaparam ao olhar de
(Economia e Sociedade), a teoria weberia- Weber. E é exatamente nesse ponto, segun-
na da democracia foi desenvolvida predo- do Treiber (2007), que reside o caráter dinâ-
minantemente no contexto dos seus escri- mico de sua teoria, aberta a explorar dife-
tos político-engajados (em particular, Par- rentes cenários e configurações da luta en-
lamento e Governo na Alemanha Reordena- tre quadro administrativo (burocrático) e li-

*Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Departamento de Sociologia e Ciência Política,


Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: carlos.sell@ufsc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3281-7045.

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deranças políticas (eleitas democraticamen- parágrafo 15 a 21 do capítulo III de Econo-
te) que, em excelente síntese, ele caracteri- mia e Sociedade) nos quais Weber trata, res-
zou da seguinte forma: a) o predomínio da pectivamente, do modelo monocrático e do
lógica burocrática sobre a liderança polí- modelo colegiado-partilhado de burocracia.
tica; b) o controle da máquina burocrática Na Conclusão, demonstro porque essa dife-
pelos líderes políticos; e c) o insulamento rença nos permite um nova leitura da obra
entre direção política e lógica burocrática. de Weber que explora, além das tensões e
Embora Weber tenha desenvolvido contradições, também os nexos estruturais
sua teoria da burocracia e da democracia existentes entre burocracia e democracia.
a partir de motivações externas distintas
e em âmbitos internos diferentes de sua 1. A evolução do tema da dominação nas
obra escrita, isso não significa que ele não duas fases de redação de Economia e
procurou integrá-las teoricamente. É o que Sociedade
sugere uma análise comparativa do tema
da burocracia nos dois capítulos sobre a O leitor atento notará que parece existir
dominação existentes em Economia e So- certa oscilação terminológica quando We-
ciedade. Comparando a versão do capítu- ber se refere à forma moderna da domina-
lo que Weber escreveu ainda antes da pri- ção. Ora ele se reporta a ela de modo amplo
meira guerra com a versão final de 1920, como dominação racional, ora ela recebe
demonstro que nos escritos tardios ele dife- uma conotação mais específica (dominação
renciou seu modelo teórico, agregando-lhe burocrática), sem esquecer ainda do termo
novas variáveis de análise. Dessa forma, ao médio – dominação legal. Temos também as
lado do tipo puro (dominação legal-buro- expressões combinadas, como “racional-le-
crática-monocrática), a burocracia moder- gal” e “legal-burocrática”. Essas variações
na é caracterizada levando em consideração não representam nenhuma confusão e não
formas descentralizadas de gestão, em par- são acidentais, dado que estão relacionadas
ticular a partilha do poder (divisão de pode- com o processo de amadurecimento de sua
res), bem como o sistema de representação reflexão. Como é hoje amplamente reco-
política. Emerge, assim, um tipo complexo nhecido, Economia e Sociedade não é um li-
que podemos denominar de “dominação le- vro diretamente produzido por Max Weber,
gal com administração burocrática-colegia- mas uma coletânea de textos posteriormen-
da-partilhada e sistema de representação- te organizada por Marianne Weber em duas
-livre” (MWG I/23, III, §15 a 21). partes (abstrata e concreta).
Trata-se de uma novidade interpretati- Afastando-se dessa visão sincrônica,
va cujas implicações teóricas valem a pena os estudos histórico-exegéticos até hoje
considerar. Nessa direção, o primeiro tópi- realizados propõem que Economia e Socie-
co do artigo apresenta brevemente as prin- dade deve ser visto como um projeto incon-
cipais mudanças que o tema da burocracia cluso composto por duas grandes fases se-
sofre ao longo do processo de redação de paradas pela Primeira Guerra Mundial. Esse
Economia e Sociedade. Os dois tópicos se- aspecto diacrônico simplesmente desapare-
guintes fixam sua atenção no seu manuscri- ce na sistematização realizada por Marian-
to mais recente e analisam, separadamente, ne Weber (seguida por Johannes Winckel-
os dois blocos temáticos (parágrafo 3 a 5 e mann, 1952), pois o que ela fez foi reunir

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os textos sobre dominação escritos por Max quando comparamos as duas versões, salta
Weber ainda antes da Primeira Guerra Mun- aos olhos que Weber, na primeira delas, não
dial e alocá-los na segunda parte de Econo- estabeleça conexão clara entre o “burocra-
mia e Sociedade sob o nome de Capítulo 09 tismo” – como o tema é chamado nessa ver-
- Sociologia da Dominação. Ela também se são –, e o problema da legitimidade (BADER,
deu ao trabalho de incluir neste capítulo um 1989 e HANKE, 2001). O que lhe interessava,
escrito chamado As cidades. Já Johannes naquele momento, era refletir sobre os fun-
Winckelmann não viu problema nenhum em damentos da administração, razão pela qual
considerar partes dos escritos jornalístico- ele empregava a expressão “dominação bu-
engajados de Weber [Parlamento e Gover- rocrática”. Na versão tardia, a distinção en-
no na Alemanha reordenada] como uma es- tre o princípio da legitimidade e o princípio
pécie de sociologia do Estado. Mas, segundo organizacional será mais clara, como indica
os editores da coleção Max Weber Gesam- a expressão “dominação legal com adminis-
tausgabe, esses antigos manuscritos (excluí- tração burocrática”.
dos os acréscimos acima), por vezes incom- Apesar desse desajuste, corrigido pe-
pletos, são pouco articulados entre si, o que lo autor em sua versão tardia, não cabe fa-
os levou a desmontá-los em texto indepen- lar, propriamente, de duas teorias distintas
dentes intitulados 1) Dominação, 2) Buro- ou de duas concepções diferentes de domi-
cratismo, 3) Patrimonialismo, 4) Feudalismo, nação legal-burocrática ao longo da obra de
5) Carismatismo, 6) Transformação do caris- Weber. Inútil procurar qualquer ruptura no
ma, 7) Manutenção do carisma e 8) Estado e pensamento weberiano. Mas isso não signi-
Hierocracia. Já o escrito weberiano do pós- fica que não existam outros desdobramen-
-guerra, bem mais enxuto, foi parar na pri- tos. Um dos mais importantes é que Weber
meira parte com o título de Capítulo 03 - Os começou a desenvolver conceitos que visa-
tipos de dominação. vam caracterizar variações internas no seu
Existe uma ampla e polêmica discussão modelo geral. Na versão mais recente de
a respeito da evolução da sociologia webe- Economia e Sociedade, ao descrever a for-
riana da dominação em seu conjunto, mas ma racional-moderna de dominação, Weber
não pretendo discutir todas estas questões tratou do assunto em dois blocos separados,
histórico-exegéticas aqui (BREUER, 2011). colocados, respectivamente, no início e no
Limito-me a uma descrição bastante sumá- fim do capítulo sobre a dominação. Primei-
ria dessa evolução textual no que tange ao ro ele tratou da dominação legal e burocrá-
primeiro dos seus tipos (a dominação legal tica em sua forma pura (dos parágrafos 3
com quadro burocrático), tendo em vista que a 5). Depois de tratar dos demais tipos de
ele é indispensável para o desenvolvimento dominação, ele voltou ao tema, agregando
posterior do meu argumento. Mais especifi- à dominação racional novas variáveis, no-
camente, há uma questão da qual não pode- tadamente a colegialidade, divisão dos po-
mos escapar e que assim reza: quais são as deres e formas de representação (parágrafos
principais semelhanças e diferenças entre o 15 a 21). Portanto, naquele primeiro bloco
texto da fase antiga, intitulado “burocratis- temos a análise típico-ideal da burocracia
mo”, e os parágrafos 1 a 6 do novo capítu- monocrática, e neste segundo uma variante
lo sobre a dominação que trata da burocra- intitulada burocracia colegiada. Poucos co-
cia? O principal ponto a considerar é que, mentadores se dão ao trabalho de conectar

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sistema de representação-livre segundo Max Weber
esses dois blocos, resultando em uma visão economia, bem como enfatiza a antinomia
simplificada do modo como Weber conce- entre racionalidade formal e material da ad-
be o lugar analítico da democracia na or- ministração burocrática. No seu conjunto, a
dem legal-burocrática moderna. Mas antes segunda versão não é só mais enxuta, co-
de estabelecer a ligação analítica entre am- mo também mais sistemática que seus tex-
bos, vamos examinar cada um desses tipos tos antigos. É o que detalharei abaixo.
separadamente.
2.1. As representações da dominação
2. A dominação legal com administração racional: a legalidade
burocrática-monocrática
Weber define a ordem política moderna
Comecemos examinando a tipologia como um tipo puro de dominação na qual a
weberiana da dominação racional em sua vigência da legitimidade é “de caráter racio-
forma geral. Comparando detalhadamente nal: repousa na crença da legalidade dos or-
os dois capítulos de Economia e Sociedade denamentos estatuídos e do direito de man-
que tratam da burocracia em sua forma pu- do daqueles que, em virtude desses orde-
ra, temos um testemunho do quanto Max namentos, estão aptos a exercer a domina-
Weber procurou refinar e aperfeiçoar seu lé- ção (dominação legal)” (MWG I/23, III, §2,
xico conceitual. A sequência de assuntos é p. 453). Esta definição diz respeito apenas ao
praticamente a mesma, pois tanto na prime- âmbito das pretensões de legitimidade (que
ria quanto na segunda versão desses capí- regulam a relação entre governante e go-
tulos ele trata das características da admi- vernados) e precisam ser complementadas
nistração burocrática (em nível macro) e do também pelo aspecto organizacional, âmbi-
perfil do burocrata (em nível micro), exa- to da relação entre dirigente e quadro admi-
minando, após, os elementos anteceden- nistrativo. Na versão antiga, esses dois eixos
tes (condições sociais e econômicas de seu não estavam claramente demarcados, pois,
surgimento) e subsequentes da organização até então, o propósito de Weber era investi-
burocrática (efeitos da burocracia). Na se- gar apenas “o funcionamento específico do
gunda versão, essa ordem de conteúdos foi funcionalismo moderno” (MWG I/22-4, p.
organizada em três parágrafos que tratam, 157). É só na segunda versão que ele distin-
respectivamente: das §3) representações e gue entre as “representações” e “categorias”
das categorias fundamentais da dominação da dominação moderna (MWG I/23, III, §3,
racional, §4) das características do quadro p. 455), quer dizer, é somente neste segun-
administrativo e §5) da racionalidade e dos do texto que ele diferencia claramente o ei-
efeitos da “administração puramente buro- xo da legitimidade do eixo organizacional.
crática”. Todavia, apesar de manter a mes- Em relação ao eixo da legitimidade, a se-
ma plataforma de temas, ele modifica diver- gunda versão afirma que “a dominação le-
sos detalhes da sua exposição, bem como gal baseia-se na validez das seguintes re-
aperfeiçoa o tratamento dado à diferença presentações entrelaçadas entre si” (MWG
entre o aspecto da legitimidade (a legalida- I/23, §3, p. 455). Tais representações, que
de) e o aspecto institucional (a burocracia). dizem respeito ao lugar do direito na ordem
De igual maneira, confere maior importân- política e nas relações de comando e obedi-
cia ao tema da relação entre dominação e ência, seguem esquematizadas abaixo:

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Quadro 1 - Eixo da legitimidade

Caráter do direito
1. Estatuído de modo racional referente a fins ou valores
2. Abstrato cosmos de regras abstratas
3. Impessoal 1 superior está submetido ao direito
4. Impessoal 2 obediência do comandado como membro (não como súdito)
5. Impessoal 3 obediência à norma (e não a pessoa)

Fonte: autor

Todo o raciocínio está baseado no 2.2. A administração burocrático-mono-


papel que o direito ocupa nessa forma de crática mediante documentação
dominação. Por essa razão, ele descreve o
caráter da legislação (estatuída e abstrata), Após o exame do eixo da legitimidade,
além de mostrar como esta define os papéis segue a discussão sobre o eixo especifica-
de governantes e governados que, neste mente organizacional da dominação racio-
caso, estabelecem suas relações políticas nal que considera como ela está estrutura-
com base no princípio abstrato da norma, da institucionalmente (LEPSIUS, 1990). Por
e não das relações pessoais. A inovação é esse ângulo, a análise de Weber se modifi-
tremendamente importante e tece um elo ca, e em vez da relação governante e gover-
indissolúvel entre a sociologia política nado, entra em tela o problema das relações
e a sociologia do direito de Weber que, entre os governantes e seu aparato adminis-
infelizmente, não teremos condições de trativo. Na primeira versão, a estrutura bu-
explorar aqui. Tal forma de dominção tam- rocrática vinha caracterizada em função de
bém coloca em tela um problema de ordem seis aspectos. Na segunda versão, esta lis-
normativa que, futuramente, desencadea- ta se amplia em mais um ponto, mas diver-
rá uma grande controvérsia que diz respeito sas correções, deslocamentos, acréscimos e
aos aspectos fundacionais da ordem jurídi- supressões terminológicas podem ser detec-
co-política moderna: pode o direito funda- tadas. O quadro abaixo sintetiza essas dife-
mentar-se a si mesmo (LÜBBE, 1991)? renças para o leitor:

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sistema de representação-livre segundo Max Weber
Quadro 2 - Eixo estrutural: dimensão macro

Caráter da burocracia
1ª versão 2ª versão
Contínua
Competência: Competência:
(Autoridade Burocrática) (Autoridade institucional)
a) Atividades 2. Com âmbito delimitado
b) Poderes limitados 3. Com poderes de mando correspondentes
II. Qualificação 5. Com limitação dos meios coercitivos
Hierarquia de cargos Hierarquia oficial
Baseado em documentos Princípio da documentação
Instrução na matéria (incluído na hierarquia)
Pleno emprego da força de trabalho (eliminado)
Regras gerais Regras (técnicas ou normas) e qualificação profissional
Separação absoluta entre quadro administrativo e meios
de administração
Caráter objetivo do cargo (sem apropriação pessoal)

Fonte: autor

Na literatura sociológica, a tipologia de tuições políticas modernas e é neste sentido


Weber exerceu enorme influência, tanto na que nos propomos a lê-la.
sociologia das organizações sociais quanto Para uma sociologia de orientação
na sociologia da administração pública. individualista como a de Weber, era de se
Embora possamos criticar a deformação esperar que a tipificação sociológica das
formalista e a-histórica dessa apropriação organizações burocráticas não estivesse
(MAYNTZ, 1965), ela não deixa de ter sua desconectada de seus agentes sociais. Ele
importância, pois é fato que Weber não res- sempre prestou enorme atenção às lógicas
tringia o fenômeno da burocracia apenas ao de ação prevalecentes na era moderna e às
âmbito político, já que ele mesmo afirmou formas de condução de vida. No segundo
que sua tipologia “é aplicável, igualmente artigo que compõe a coletânea intitulada
(…) a empresas econômico-aquisitivas, ca- a A ética protestante e o espírito do capi-
ritativas ou outras” (MWG I/23, III, §6, p. talismo, por exemplo, Weber nos apresen-
460). No entanto, esse elemento não pode ta a célebre expressão Fachmensch – o es-
ser simplesmente isolado e cortado do con- pecialista. Na primeira versão de Economia
texto de sua sociologia política que com- e Sociedade, em direção similar, ele se refe-
porta, ainda, outros aspectos, como vere- re ao caráter do burocrata como profissio-
mos doravante. Mais do que uma sociolo- nal [Berufmensch], e na segunda versão ele
gia organizacional, a dominação racional- vai se reportar às características pessoais do
-legal-burocrática é uma teoria das insti- quadro administrativo ou dos “funcionários

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considerados individualmente” (MWG I/23, soal, na segunda versão esse corte é elimi-
III, §4, p. 459). Comparando as duas tipo- nado e a lista de características é duplica-
logias que Weber nos apresentou a respei- da, chegando ao número de dez componen-
to dos burocratas, as correções foram bem tes. Do elenco antigo, somente três aspectos
maiores, pois enquanto na versão antiga o restaram (nomeação, remuneração e carrei-
funcionário vinha caracterizado pela opo- ra), como ilustra, mais uma vez, o esquema
sição entre posição exterior e posição pes- comparativo abaixo:

Quadro 03 - Eixo estrutural: dimensão micro

o caráter do burocrata
1ª versão 2ª versão
I. Cargo é profissão
II. Posição pessoal
1.Estima pessoal 1. Livre: obrigações objetivas
2. Nomeado 2. Nomeados (hierarquia rigorosa)
3.Vitalício 3. Competências funcionais fixas
4. Remuneração 4. Livre seleção
5. Carreira 5. Qualificação profissional
6. Salários fixos
7. Cargo c/ profissão principal
8. Carreira

Fonte: autor

Para além das minúcias, Weber ao princípio da impessoalidade. Para além


aperfeiçoou sua tipologia em função de um dos detalhes, fundamental é não perder de
critério analítico novo, que passa a subsidiar vista a conexão que Weber estabelece entre
sua sociologia da dominação. Trata-se do a estrutura social e a identidade social,
elemento “apropriação dos meios de gestão”, também podemos dizer, entre as instituições
uma fórmula que, modificando (pois se trata sociais, em nível macro, e a ação social, em
de apropriação) e generalizando a teoria da nível micro.
propriedade de Marx, é utilizada por ele
para pensar a relação que se estabelece entre 2.3. Racionalidade material e
os governantes e o quadro administrativo racionalidade formal
(não só na dominação legal, mas também
nas formas tradicionais e carismáticas de O estudo de Weber não é apenas descri-
domínio). No caso da dominação racional- tivo-estrutural, mas também dinâmico-pro-
legal-burocrática, como sabemos, os meios cessual. Além de examinar a origem, ele
de gestão estão completamente apropriados também considera as variações que, em fun-
pelo governante que, em compensação, ção da luta entre dirigentes e quadro admi-
está submetido à ordem jurídica formal e nistrativo, nos permitem identificar diferen-

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sistema de representação-livre segundo Max Weber
tes tipos de constelações sociais e políticas. continuidade, disciplina, rigor, calculabili-
Na versão antiga (a primeira), era o aporte dade, intensidade e extensibilidade dos ser-
histórico que tinha a precedência analítica, viços e, por fim, aplicabilidade universal. De
enquanto na versão mais recente podemos qualquer forma, a burocracia não se restrin-
afirmar que a exposição se organiza em tor- ge apenas a essa lógica. A antinomia entre
no da categoria da racionalidade. racionalidade formal (o “espírito” da buro-
Do ângulo histórico, Weber trata das cracia) e material atravessa internamente a
pré-condições técnicas (comunicação e administração burocrática, dividida contra-
transporte) e fiscais da emergência da bu- ditoriamente entre o formalismo e a “incli-
rocracia moderna, bem como da relação en- nação dos funcionários a uma execução uti-
tre administração burocrática e a formação litário-materialista de suas tarefas adminis-
do Estado Moderno (“a célula germinativa trativas a serviço da satisfação dos domina-
do moderno Estado Ocidental”). Na mesma dos” (MWG I/23, III, §5, p. 467).
direção, devem ser entendidas suas análises Vertendo a reflexão de Weber na termi-
de longo alcance acerca das afinidades ele- nologia atual, podemos dizer que a socio-
tivas entre a dinâmica da burocracia estatal, logia weberiana da ordem jurídico-políti-
do direito formal e do capitalismo industrial ca moderna, em sua forma pura, dedica-se
moderno. Na perspectiva propriamente po- tanto ao aspecto macro (legitimidade + or-
lítica, Weber observa que a divisão entre di- ganização) quanto ao micro da dominação
rigente e quadro administrativo é permeada (tipificação do funcionário) – ambas orien-
por tensões e lutas, desembocando em dife- tadas em função do problema da tensão di-
rentes correlações de força. nâmica entre racionalidade formal e mate-
Na segunda versão de seu escrito, o tema rial. Trata-se de um quadro analítico mul-
das relações entre a dominação racional- tidimensional, que vai muito além de uma
legal-burocrática e o capitalismo racional- análise organizacional da administração
moderno foi bastante diminuído, e sua pública e que constitui uma autêntica socio-
protossociologia da educação (centrada na logia política da ordem político-institucio-
formação do funcionário) foi enxugada. Por nal da modernidade.
outro lado, a exposição ampliou dois ou-
tros elementos centrais. Um deles diz respei- 3. A dominação legal com administração
to aos efeitos sociais da dominação burocrá- burocrática-colegiada-partilhada e
tica que ele caracterizou segundo três carac- sistema de representação-livre
terísticas: nivelamento social (de caráter es-
tamental), plutocratização e impessoalidade. Quanto mais distante de realidade
Todavia, o mais importante deles, a meu ver, [Weltfremd], mais precisos e unívocos ten-
é a questão da relação entre racionalidade e dem a ser os tipos ideais sociológicos. Por
burocracia, que articula todo o §5. Do ponto outro lado, tais conceitos também precisam
de vista formal, a “administração burocrá- ser desdobrados e enriquecidos para con-
tica-monocrática mediante documentação” templar o caráter complexo e multifacetado
(MWG I/23, III, §5, p. 463) é o tipo mais ra- da realidade social. Isso também vale para
cional do exercício da dominação, e desdo- os tipos de dominação, pois são raras as as-
bra a racionalidade formal da burocracia em sociações políticas que se adequam perfei-
sete elementos, assim dispostos: precisão, tamente a apenas um dos tipos puros. Por

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essa razão, ficam fora da análise “casos im- descritas em lugares separados do seu escri-
portantes dentro da dominação legal e da to. No parágrafo 05, ele dedica-se apenas à
tradicional: a colegialidade e o princípio “administração puramente burocrática”, isto
feudal” (MWG I/23, III, §13, p. 527). Afinal, é, da “administração burocrática-monocráti-
de que “casos” Weber está falando e como ca” (MWG I/23, III, §5, p. 463). Como esta já
eles afetam a “dominação legal”? foi exposta acima, resta acompanhar agora
Parte da resposta a essas perguntas po- o que ele desejava “falar adiante”.
de ser obtida examinando os parágrafos 14 Tanto a dominação tradicional quanto a
a 21 da versão mais recente da sociologia racional podem ter sua autoridade limitada,
da dominação. Eles foram situados por We- seja pela tradição, seja pela lei (MWG I/23,
ber depois de sua exposição sobre os tipos III, §15, p. 542). Mas, além da tradição e da
puros (legal, tradicional e carismático) e dos legislação, tais limites também decorrem
tipos mistos (o feudalismo e a democracia da existência de outras instituições ou
plebiscitária – uma forma de reinterpretação organizações com elas concorrentes. No
não autoritária do carisma) e parecem suge- caso dos regimes feudal e patrimonial, esse
rir que ele desejava diversificar sua análise limite costuma estar dado pela existência
das instituições políticas modernas, incluin- de privilégios estamentais. Já a “dominação
do os temas da colegialidade (§15), da divi- burocrática pode ser limitada (e o deve ser,
são de poderes (§16 e 17), dos partidos polí- no caso do desenvolvimento pleno do tipo
ticos (§18), da democracia antiga (direta ou legal de modo que esta seja gerida apenas
dos honoráveis) e dos tipos de representa- através de leis), por meio de outros órgãos”
ção (§19 a 21). Esse bloco ainda não exis- (MWG I/23, III, §15, p. 542). Esses órgãos,
tia na versão antiga. O modo fragmentado que existem ao lado da hierarquia burocrá-
da disposição do material indica um esfor- tica, podem exercer o controle da aplica-
ço que não se consumou plenamente, e para ção dos estatutos, seu monopólio de criação
facilitar a exposição podemos aglutiná-los ou mesmo o monopólio da concessão dos
em dois grandes eixos: as formas colegiada meios de administração. Existe ainda uma
de administração e a representação. Ambas segunda situação, na qual “todo tipo de do-
serão examinadas, separadamente, a seguir. minação pode estar despojado de seu cará-
ter monocrático, vinculado a uma pessoa,
3.1. Administração colegiada e pelo princípio da colegialidade” (MWG I/23,
divisão dos poderes III, §15, p.543). É a este tema que Weber se
volta no §15. O raciocínio mostra que, em
Diz Weber que “o conjunto do quadro seu fundamento, Weber entendeu os con-
administrativo se compõe, no tipo mais pu- selhos antes como formas de limitação do
ro, de funcionários individuais (monocracia) poder monocrático e não tanto como uma
em oposição à “colegialidade”, da qual fala- forma de substituição do poder indireto pe-
rei ainda adiante” (MWG I/23, III, §4, p. 459, lo poder direto. Não obstante, a distinção
negrito meu). Trata-se de uma indicação “administração monocrática x administra-
muito clara de que existem duas variantes ção colegiada” não deixa de possuir um cla-
de administração burocrática em sua obra: ro sentido democrático, na medida em que
a versão “monocrática” e a versão “colegia- se mostra uma forma de desconcentração e
da”. Essas duas variantes de burocracia são pluralização das fontes decisórias.

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sistema de representação-livre segundo Max Weber
Weber elaborou uma longa e complexa particular atenção ao seu “sentido” ou “fun-
lista dos tipos e sub-tipos de colegialidade ção” que são, basicamente, a colegialidade
que limitam a administração monocrática. de cassação [Kassationskolegiallität] e a co-
Essa lista tem uma característica trans-his- legialidade [Leistungskollegialität]. No pri-
tórica, dado que inclui diversos exemplos meiro modelo, o que temos são (a) organis-
tirados do passado e do presente. Dessa for- mos monocráticos que atuam como instân-
ma temos: a colegialidade de cassação (co- cias de controle, enquanto no segundo ca-
mo o conselho de trabalhadores e soldados); so o que temos, por sua vez, são (a) organis-
colegialidade de funções; colegialidade de mos não monocráticos que atuam como (b)
funções com dirigente preeminente; corpo- instâncias de partilha do poder.
rações colegiais consultivas, colegialidade Vista dessa forma, a tipologia weberia-
específica (composta por especialistas); co- na demonstra ser especialmente útil para
legialidade especificada apenas consultiva; pensar a realidade atual dos conselhos, em
colegialidade tradicional dos anciãos. Te- particular dos atuais conselhos gestores de
mos também outro caso, no qual o princí- políticas públicas, considerados atualmen-
pio da colegialidade é aplicado às instâncias te um dos principais instrumentos de am-
supremas, o que implica, entre outros recur- pliação de públicos participativos no apare-
sos, o rodízio ou ressorts permanentes de lho do Estado (WATERS, 1993). Nesse par-
determinadas pessoas. Weber também apre- ticular, cabe lembrar que o próprio Weber
senta uma lista de colégios das associações teve contato direto com a experiência dos
políticas feudais ou patrimoniais, mas dado conselhos como forma de efetivação da de-
seu caráter histórico, não vou reproduzi-los mocracia direta quando acompanhou o pro-
aqui. Um último caso diz respeito ao meca- cesso da República de Operários e Soldados
nismo colegial no interior de organizações de Munique, onde se encontrava no inver-
sociais independentes do Estado ou, na no- no revolucionário de 1918. Essa experiência
menclatura atual, da sociedade civil. Dessa deixou marcas em Economia e Sociedade,
forma, temos associações colegiais que se inclusive na parte dedicada aos conselhos,
caracterizam justamente por uma colegia- onde se pode ler textualmente que “a dita-
lidade de compromisso [Kompromissekole- dura do proletariado, especialmente para o
giallität] em oposição à colegialidade par- fim da socialização, exigia precisamente um
lamentar. De todo modo, a colegialidade ditador apoiado na confiança das massas”.
de votação [Abstimmunskolegiallität], que Mas Weber acrescenta, logo na fase seguin-
é típica dos parlamentos, volta a aparecer te, que o ditador precisa ser sustentado não
quando várias organizações se associam em só pelas massas, mas sim pelos parlamen-
seus interesses, ainda que desemboque, nes- tos, partidos ou “daqueles que dominam nos
te caso, em um colegiado de fusão [Versch- “conselhos” (MWG I/23, III, §15, p. 543).
melzungskolegiallität]. Lançando mão de sua tipologia, os
Independentemente do mérito heurísti- conselhos da revolução foram enquadrados
co da tipologia (questionando se ela descre- na forma colegialidade de cassação e
ve exaustivamente as modalidades de con- entendidos como “instâncias de adiamento”
selhos possivelmente existentes), Waters (MWG I/23, III, §15, p. 543) em relação aos
(1989) demonstra que, do ponto de vista so- poderes administrativos convencionais. A
ciológico generalizante, é necessário prestar opção parece indicar que Weber pretendia

18 Rev. Pós Ciênc. Soc., São Luís, v.18, n.1, 9-24, jan/abr, 2021
realçar o efetivo papel desses conselhos bém não é da opinião de que a colegialida-
como esferas decisivas na tomada de decisão de é sinônimo de eficiência, pois ela quase
política, capazes, portanto, de sobrepor-se sempre dificulta decisões precisas, inequí-
às decisões das instâncias administrativas vocas e rápidas. Em termos da disputa po-
e parlamentares de poder: resulta daí o uso lítica, os governantes sempre procuraram
do termo “cassação”. Ao mesmo tempo, de- enfraquecer a existência de colegiados, en-
ve-se notar que ele não entendia esses con- quanto seus opositores costumam ver ne-
selhos como instâncias localizadas no inte- les uma forma de combater o dirigente. Em
rior do aparelho do Estado, mas fora dele, contrapartida, Weber reconhece que “a co-
qual seja, como instâncias paralelas de po- legialidade garante maior ‘solidez’ na consi-
der. É por isso que Weber vai enfatizar que deração das administrações” (MWG I/23, III,
os conselhos revolucionários duraram “até a §15, p. 555), o que significa que ela opera
emancipação da administração regular desta como um mecanismo pelo qual as decisões
instância controladora” (MWG I/23, III, §15, são divididas e instauram formas de co-res-
p. 543). Com efeito, sabemos que Weber não ponsabilidade.
era otimista frente ao caráter carismático No sentido histórico, a colegialidade te-
dos conselhos revolucionários, pois enten- ve um efeito duplo. Por um lado, ela po-
dia que eles sucumbiriam frente ao poder da de ser considerada uma forma de “divisão
burocratização. Neste sentido, Weber pare- técnica de poderes para minimizar a domi-
cia pender para uma avaliação mais positiva nação”, e de outro lado, um mecanismo de
dos conselhos de tipo consultivo nos quais “formação colegial da vontade”, ou seja, de
ele enxergou uma “moderação da domina- produção de decisões majoritárias e consen-
ção no sentido da racionalização” (MWG suais. Este mecanismo pode ser considera-
I/23, III, §15, p. 543). do “o conceito moderno de colegialidade”
Este último ponto já nos conduz para (MWG I/23, III, §15, p.555-556). Partindo
o tema da avaliação da relevância política da modernidade, temos uma nova lista de
da colegialidade. De fato, é mister acompa- formas de colegialidade: 1) a colegialidade
nhar Weber na transição de sua caracteriza- de direção, 2) a colegialidade de autoridades
ção para sua avaliação dos efeitos que a li- executivas e 3) a colegialidade de autorida-
mitação do caráter monocrático da burocra- des consultivas.
cia possui sobre o processo decisório. Co- A burocracia monocrática e a burocra-
mo é comum, quando Weber avalia ques- cia colegiada não são apenas tipos opos-
tões políticas do ponto de vista sociológico, tos, mas também lógicas políticas em con-
ou seja, desprovida de referência a seus pró- flito. Qual o resultado dessa luta? Na avalia-
prios valores [Wertfrei], trata-se de ponde- ção de Weber, “o desenvolvimento moderno
rações essencialmente técnicas. Talvez por da dominação burocrática levou sempre ao
isso, o autor esclarece logo que “a colegia- enfraquecimento da colegialidade” (MWG
lidade não é em absoluto nada especifica- I/23, III, §15, p. 559). Os motivos que ele
mente “democrático”” (MWG I/23, III, §15, elenca para explicar esse fenômeno são co-
p.553). Esse mecanismo também pode ser- nhecidos: 1) prontidão das decisões, 2) uni-
vir aos ditames das camadas dominantes formidade da liderança, 3) responsabilidade
contra um poder monocrático que represen- inequívoca do indivíduo, 4) ações sem ini-
te o interesse dos dominados. Weber tam- bições em face do exterior e a manutenção

Burocracia com democracia: a administração burocrática-colegiada-partilhada com 19


sistema de representação-livre segundo Max Weber
da disciplina no interior. Dados esses moti- dade” no funcionamento do aparato buro-
vos, Weber não acreditava que mecanismos crático” (MWG I/23, III, §16, p. 565-566). E,
colegiados representassem o futuro das ins- por esse motivo, favorecem o desenvolvi-
tituições políticas. Sua opinião (MWG I/23, mento da racionalidade formal.
III, §15, p. 560) era a de que:
3.2. As formas de representação
Só após a vitória definitiva e irreversível
da burocracia profissional racional surgiu, Há quem lamente o fato de que o eixo
especialmente frente aos parlamentos (ve- da teoria política de Weber não seja a
ja adiante) -, a necessidade de uma solida- democracia. De fato, renunciando a uma
riedade monocrática conduzida (pelo presi- perspectiva normativa e adotando uma
dente do conselho de ministros) com colégios perspectiva causal-compreensiva, os
superiores, protegida pelo príncipe e prote- fundamentos da sua sociologia política são
gendo-o, com isso, da tendência geral à mo- os fenômenos do poder e da dominação,
nocracia e, portanto, à burocracia na admi- e não o exercício igualitário do poder.
nistração. Mas existe sim uma teoria da democracia
em Weber, e ela atravessa os diferentes
Não é apenas o aspecto organizacional tipos de dominação. Suas formas antigas
da forma moderna de dominação – a são tratadas no parágrafo 19, que trata
burocracia – que conhece variações. Elas da “democracia direta genuína” e da
também podem ser identificadas em sua ou- “administração honorária” (MWG I/23,
tra ponta essencial: a legalidade. Isso por- III, §19, p. 577). Trata-se, é claro, de
que o poder do governante também po- formas essencialmente históricas, sobre as
de ser atenuado pela divisão dos poderes. quais, antes, Weber já havia se demorado
No caso da legalidade temos, então, “a di- longamente em caracterizar a democracia
visão constitucional dos poderes, racional- eleitoral-moderna como um sub-tipo da
mente determinada”. Dessa forma, os pode- dominação carismática. Sabemos também
res de mando “estão distribuídos, segundo que na Conferência sobre Problemas da so-
seu caráter objetivo, “constitucionalmente ciologia do Estado, proferida em Viena,
(…) entre vários detentores do poder (ou do em 1918, Weber testou a ideia de criar um
controle)” (MWG I/23, III, §16, p. 527). Mais quarto tipo de dominação, mas ela não vin-
do que competências – caso da colegialida- gou. Ao fim e ao cabo, sua teoria da demo-
de – o que se distribui, neste caso, é o pró- cracia ficou dispersa, o que não quer dizer
prio poder. que não seja possível sistematizá-la. Lon-
Ao ponderar seus efeitos sobre o proces- ge de achatá-la no conceito de “elitismo de-
so político, Weber, mais uma vez, manteve- mocrático” (HELD, 1987), Breuer (2006) de-
-se nos marcos de uma análise objetiva. Ele monstra que podemos encontrar até quatro
reconheceu que a divisão dos poderes é uma modelos de democracia em Weber: a demo-
estrutura instável, embora tenha sido muito cracia direta, a democracia parlamentar, a
mais otimista na sua avaliação técnica, afir- democracia plebiscitária e a democracia dos
mando que tal divisão pode criar competên- conselhos. As duas formas modernas da de-
cias fixas que, mesmo não sendo sempre ra- mocracia representativa (parlamentarista e
cionais, “trazem elementos de “calculabili- plebiscitário-presidencialista) evidenciam

20 Rev. Pós Ciênc. Soc., São Luís, v.18, n.1, 9-24, jan/abr, 2021
que sociologia weberiana é especialmente Considerações finais: o lugar da democracia
atual quando se trata de pensar, para além na ordem burocrática moderna
do mero institucionalismo, a dinâmica so-
cial dos regimes democráticos. Esses dois blocos de temas analisados,
Não que nesta parte de seu escrito We- ou seja, a dominação legal-burocrática-mo-
ber não esteja tratando de instituições, pois nocrática (parágrafos 3 a 5), de um lado, e
é dos governos representativos que se tra- as questões da colegialidade e da represen-
ta. É claro que não vamos encontrar aqui tação (parágrafos 15 a 21), de outro, pare-
nenhuma grande inovação, pois a tipolo- cem, à primeira vista, não combinar. Como
gia weberiana que distingue entre represen- Weber imaginava integrar estes dois con-
tação apropriada, representação vinculada, juntos? De início poderíamos supor que a
representação livre e a representação de in- primeira variante é um tipo puro, enquanto
teresses não é nenhuma revolução concei- esse segundo bloco seria um tipo misto ou
tual. No seu cerne, está a célebre distinção até mesmo um sub-tipo. Mas este não pare-
entre mandato imperativo e mandato repre- ce ser o caso, dada a diferença de conteúdo.
sentativo. De todo modo, as pistas abertas O que sabemos é que eles representam uma
pela representação apropriada e, principal- tentativa de diversificar a análise, incluindo
mente, pela representação de interesses, fi- no tipo moderno da dominação outras vari-
caram esquecidas. Este último conceito po- áveis dos sistemas políticos contemporâne-
deria iluminar muitos dos problemas da os. Esse dado tem uma importância histó-
chamada democracia participativa que, sob rico-exegética fundamental, pois demons-
certo aspecto, enquadra-se muito bem nes- tra que Weber não limitou sua tipificação
se tipo. Quanto à representação no seu todo, da estrutura política moderna ao monolítico
recorda Weber, ela não é nenhuma exclusi- tipo da dominação racional-legal-burocrá-
vidade ocidental, mas a representação “li- tica-monocrática. A realidade política con-
vre”, sim (MWG I/23, III, §21, p. 583), por- temporânea tem uma natureza complexa
tanto, pode assumir duas formas institucio- que podemos exprimir com a seguinte fór-
nais. A primeira é o chamado “governo par- mula: dominação racional-legal com admi-
lamentar de gabinete”, típico dos sistemas nistração burocrática-“colegiada” e repre-
parlamentaristas. A outra variante é o go- sentação “livre”. A formulação abaixo, su-
verno representativo plebiscitário, marca- gerida por Wolfgang Schluchter (1988, p.
do pela co-existência de uma “presidência 237), nos apresenta uma visão sintética dos
plebiscitária e um parlamento representati- esforços de Weber em pensar, na sua com-
vo”. Seu modelo mais acabado é o “siste- plexidade e diversidade, a ordem político-
ma representativo-plebiscitário americano” -institucional moderna:
(MWG I/23, III, §16, p. 565-583).

Burocracia com democracia: a administração burocrática-colegiada-partilhada com 21


sistema de representação-livre segundo Max Weber
Quadro 04 - Ordem política moderna

TIPO DE REPRESENTAÇÃO TIPO DE ADMINISTRAÇÃO


MONOCROMÁTICA COLEGIADA
LIVRE Dominação burocrática Dominação parlamentar
VINCULADA Dominação plesbiscitária do líder Dominação dos conselhos

Fonte: autor

Para além do aspecto histórico, esta ti- plebiscitária do líder). No entanto, em seus
pologia tem uma repercussão fundamental estudos teórico-sistemáticos (em particular
também no modo como o tema da democra- na versão final de Economia e Sociedade),
cia está posto teoricamente na obra de We- a relação entre o complexo administrativo
ber. Embora haja quem lamente que sua te- e o complexo representativo (cuja diferen-
oria geral da política (centrada na domina- ça não deve ser simplesmente dissolvida) é
ção) e sua teoria particular da democracia pensada em chave institucional, ou seja, pa-
tenham sido desenvolvidas de forma para- ra além dos indivíduos, permitindo que ele
lela e até estanque, o esforço indica, por ou- contemple não só as formas democrático-
tro lado, que Weber estava em busca da in- -colegiadas de administração, mas também
tegração de ambos os temas em seu esque- o lugar da representação no quadro buro-
ma teórico. Dito de outra forma, ele esta- crático do Estado moderno racional. Nestes
va tentando acomodar o tema da democra- termos, está posta a possibilidade de pensar
cia no interior do tipo ideal da dominação os nexos intrínsecos entre a dimensão ad-
racional, seja em relação âmbito interno da ministrativa do Estado Moderno (com suas
burocracia (com a colegialidade e a divisão possibilidades de divisão vertical e horizon-
do poder), seja em relação ao âmbito exter- tal do poder) e sua dimensão democrático-
no da representação. -representativa, ou seja, burocracia e demo-
Portanto, a relação entre burocracia e cracia não aparecem aqui como temas es-
democracia, em Weber, não pode ser lida tanques.
apenas sob a chave da oposição, como vemos Há muitas lições a serem extraídas des-
na maior parte da literatura que discute o se esforço weberiano, mas, a título de sín-
tema (AVRITZER, 1995). Com efeito, se tese final, gostaria de acentuar o seguin-
partimos apenas dos escritos conjunturais de te aspecto. Ele nos permite libertar Max
Weber, toda a reflexão parece articulada em Weber da equívoca etiqueta do “elitismo
torno das múltiplas relações entre liderança democrático” com o qual costuma ser ro-
política e quadro administrativo. Por esse tulado pelos manuais de ciência política
ângulo, Weber estava em busca de um (HELD, 1987). Para além disso, a ciência
formato institucional capaz de restabelecer política nos permite também explorar Max
a precedência do primeiro elemento sobre Weber para além de outra visão restriti-
o segundo, levando-o a defender o reforço va vigente na literatura secundária: aque-
dos elementos carismáticos da moderna la que que enxerga, na visão weberiana da
democracia de massas (a democracia burocracia, um impedimento para a de-

22 Rev. Pós Ciênc. Soc., São Luís, v.18, n.1, 9-24, jan/abr, 2021
mocracia, em particular para sua versão MAYNTZ, R. Max Webers Idealtypus der Bürokra-
participativo-deliberativa. Apesar das su- tie und die Organisationssoziologie. Kölner Zeit-
as preferências normativas, no nível analí- schrift für Soziologie und Sozialpsychologie, n.
tico Max Weber sabia que a realidade con- 17, p. 493-502, 1965.
temporânea do Estado exige um tratamen- SCHLUCHTER, W. Rationalismus der Weltbe-
to que leve em consideração tanto o lugar herrschung. Frankfurt a.M: Suhrkamp, 1980.
da democracia na ordem burocrática, quan- ______. Die Entstehung des modernen Rational-
to o lugar da burocracia na ordem demo- ismus: Eine Analyse von Max Webers Entwick-
crática. Nestes termos, importa frisar que lungsgeschichte des Okzidents. Frankfurt a.M:
a análise de Weber está muito longe de ser Suhrkamp, 1988.
apenas uma sociologia das organizações ou
TREIBER, H. Moderner Staat und moderne Büro-
uma sociologia da administração pública kratie bei Max Weber. Max Webers Staatssozio-
(MAYNZT, 1965 e DERLIEN, 1994), até por- logie. Baden-Baden 2007, p.121-15.
que Estado não é simplesmente sinônimo de
WATERS, M. Collegiality, Bureaucratization and
burocracia. Em Weber, o que temos, na ver-
Professionalization: A Weberian Analysis. Ameri-
dade, é uma sociologia do Estado em senti-
can Journal of Sociology, v. 94, n. 5, p. 945-972,
do amplo, ou seja, do formato jurídico-ins-
1989 .
titucional da ordem política atual (ANTER,
2014). Nesta sociologia há um lugar ana- ______. Alternative Organizational Formations: A
Neoweberian Typology of Policratic Administra-
lítico tanto para legalidade (Estado legal)
tion. The Sociological Review, v. 41, n. 1, p. 54-
quanto para a burocracia (Estado burocrá-
81, 1993.
tico), mas também para a democracia (Esta-
do representativo). Em fórmula sintética va- WEBER, M. (MWG I/17). Wissenschaft als Beruf
leria dizer: trata-se de uma ampla e comple- 1917/1919 / Politik als Beruf 1919. Wolfgang J.
ta sociologia do Estado Democrático (Admi- Mommsen, Wolfgang Schluchter e Birgitt Morgen-
brod (Orgs.). Tübingen: Mohr Siebeck, 1992.
nistrativo) de Direito.
WEBER, M. (MWG I/19). Die Wirtschaftsethik der
Referências Weltreligionen. Konfuzianismus und Taoismus.
Schriften 1915–1920. Helwig Schmidt-Glintzer
AVRITZER, L. A moralidade da democracia: en- e Petra Kolonko (Orgs.). Tübingen: Mohr Siebeck,
saios em teoria habermasiana e teoria democrática. 1989.
São Paulo/Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1995. WEBER, M. (MWG I/22-4). Wirtschaft und Gesell-
BREUER, S. Legitime Herrschaft. Max Webers schaft. Herrschaft. Edith Hanke e Thomas Kroll
tragische Soziologie: Aspekte und Perspektiven. (Orgs.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2005.
Tübingen: Mohr Siebeck, 2006. WEBER, M. (MWGI/23). Wirtschaft und Gesell-
HANKE, E. Max Webers Herrschaftssoziologie: schaft. Soziologie. Unvollendet. 1919–1920. Knut
Studien zu Entstehung und Wirkung.Tübingen: Borchardt, Edith Hanke e Wolfgang Schluchter
Mohr Siebeck, 2001. (Orgs.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2013.

HELD, D. Modelos de democracia. Belo Horizonte: WINCKELMANN, J. Legitimität und Legalität in


Paidéia, 1987. Max Webers Herrschaftssoziologie. Tübingen:
Mohr Siebeck, 1952.
LUHMANN, N. Legitimation durch Verfahren.
Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1969.

Burocracia com democracia: a administração burocrática-colegiada-partilhada com 23


sistema de representação-livre segundo Max Weber
RESUMO ABSTRACT
O artigo analisa os dois tipos ideais de bu- The article analyzes the two ideal types of
rocracia em Max Weber, a “administração bureaucracy in Max Weber, the “monocra-
burocrática monocrática” e a “administra- tic bureaucratic administration” and the
ção burocrática colegiada com representa- “collegiate bureaucratic administration
ção livre”. Ambos os tipos são apresenta- with free representation. Both types are
dos por Max Weber em lugares separados presented by Max Weber in separate pla-
do capítulo sobre a dominação, redigido ces from the chapter on domination writ-
na fase tardia de Economia e Sociedade. A ten in the late phase of Economics and So-
análise comparativo-sistemática dessas ciety. The comparative-systematic analy-
duas variantes da administração burocrá- sis of these two variants of bureaucratic
tica demonstra que, do ponto de vista his- administration demonstrates that, from a
tórico-exegético, Max Weber buscava in- historical-exegetical point of view, Max
tegrar analiticamente o tema da democra- Weber sought to analytically integrate the
cia no contexto de sua sociologia da domi- theme of democracy into the context of his
nação. A partir de tal constatação sugere- sociology of domination. Based on this
-se uma leitura diferenciada de sua teoria observation, a differentiated reading of
política que explora, além das tensões e his political theory is suggested, which
contradições, também os nexos estrutu- explores, in addition to the tensions and
rais existentes entre a forma racional de contradictions, also the existing structu-
dominação e a democracia. ral links between the rational form of do-
mination and the democracy.

PALAVRAS-CHAVE KEY WORDS


Max Weber. Dominação. Burocracia. Re- Max Weber. Domination. Bureaucracy.
presentação. Conselhos. Democracia. Representation. Councils. Democracy.

Recebido em: 23/09/2019


Aprovado em: 03/11/2020

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