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O CASO KARINA C.

Karina entra em contato com você pois está respondendo a um inquérito


policial por homicídio culposo na direção de veiculo automotor. Ela lhe
conta que voltava da casa do namorado quando um motociclista veio pela
transversal, havendo a colisão. Após a colisão a motocicleta foi atirada para
um lado e o carro de Karina seguiu desgovernado para o outro, batendo
contra o muro de um restaurante. Karina permaneceu no local até o
socorro médico chegar. O motociclista Lucas foi socorrido com fratura
exposta na perda direita e levado ao hospital. Karina teve apenas
ferimentos leves. Na delegacia dois funcionários do restaurante disseram
que viram o carro de Karina em alta velocidade e desgovernado e um deles
disse que viu Karina ultrapassar o cruzando o farol vermelho.
O CASO KARINA C.

Após 45 dias internado Lucas faleceu. Houve aditamento da portaria para


constar homicídio culposo.

1. Que perguntas você faria a Karina na sua primeira entrevista com ela e
que lhe parecer pertinentes para o desenho da sua estratégia?
2. Que teses de defesa você acha viáveis de explorar nesse caso?
3. Que provas você poderia requerer ao delegado ou colher diretamente
para embasar as suas teses jurídicas?
O CASO RAFAEL Z.

Você é procurado por Rafael Z. que acabou de ser citado em um processo


no qual responde por homicídio culposo na direção de veículo automotor.
Rafael lhe conta que meses antes se envolvera em um acidente, tendo
colidido com um motociclista que, em suas palavras “surgiu do nada”. A
policia verificou através da leitura de um radar que Rafael imprimia, no
momento do acidente, 78km/h, quase o dobro da velocidade permitida
(40km/h). Além disso, na delegacia, foi feito teste de alcoolemia que
constatou que Rafael tinha 2.0 decigramas de álcool por litro de sangue. A
vitima, por sua vez, era um motociclista que trafegava na contramão. A
família de Rafael contratou Henrique, engenheiro com experiencia em
trânsito, para atuar como assistente técnico.
1. Quais as teses defensivas você considera que poderiam ser exploradas
no caso de Rafael?
2. Que indagações você faria à Henrique para obter os dados fáticos que
sustentaria a sua tese?
jusbrasil.com.br
31 de Julho de 2020

A imputação objetiva no Direito Penal brasileiro: teoria e


prática

Resumo: Neste ensaio - embora logo, mas penso interessante, pretendo


apresentar algumas considerações sobre a teoria da imputação objetiva em
relação ao Direito penal brasileiro. Como não há espaço para delinear
conceitos mais específicos, os comentários serão diretos. Para ilustrar a
exposição lançarei mão de alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça
que “enfrentaram” o assunto e farei as respectivas análises. Espero que ao
final ele seja útil aos meus poucos seguidores.

Palavras chaves: teoria do delito, imputação objetiva, direito penal.

Sumário. (1) Consideração inicial. (2) O Reinado da Teoria da Condição


versus o Primado da Teoria da Imputação Objetiva. (3) A Aplicabilidade da
Imputação Objetiva no Superior Tribunal de Justiça: estudo de casos
práticos. (4) Consideração Final. (5) Referências Bibliográficas.

(1) Damásio de Jesus, penalista brasileiro e nome constante nas decisões


dos Tribunais Superiores, a pouco mais de uma década apresentou os
postulados da teoria da imputação objetiva em uma obra. O resultado não
foi o mais adequado: ao invés de esclarecer, acabou por desorientar. Sorte
que outros autores se debruçaram no estudo da teoria. Luís Greco
certamente é o principal nome. Este penalista, orientado por Claus Roxin, o
próprio revigorador da teoria, busca constantemente minorar o estado de
temor gerado pelas imprecisões inaugurais. É com base em seus escritos e
de outros destacados autores que fundamento minhas considerações.
/
(2) Segundo oCódigo Penall brasileiro, “considera-se causa a ação ou a
omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Adota-se, assim, a
teoria da condição, “sendo que todas as causas de um resultado são
reciprocamente de igual valor” (Rudolphi) com a causalidade entre a
conduta e o resultado demonstrada por meio da fórmula da eliminação
mental hipotética, isto é, se, eliminando mentalmente a conduta o
resultado desaparecer, é porque a conduta deu causa ao resultado.
Exemplificando: Eliane, a minha mãe, praticaria uma conduta de matar se,
trinta e dois anos depois, eu, Leonardo, matasse alguém, pois, se ela não
tivesse dado a luz, a vítima não teria morrido em razão dos disparos
(exemplo próximo, com Greco). E o mesmo valeria para a minha avó,
bisavó e até para meus “antepassados desconhecidos” (Bacila).

Porém, a causalidade não é a única condição para a imputação do


resultado, mas apenas uma delas. Eis a pretensão da imputação objetiva:
impedir que qualquer acontecer causal seja considerado objetivamente
típico. Para tanto requer uma análise normativa entre a ação praticada e o
resultado verificado e essa conexão prescinde da análise conjunta da
finalidade, própria do finalismo, ainda bastante em voga em nossas nas
instâncias de controle.

Pela teoria da imputação objetiva seria desnecessário recorrer ao tipo


subjetivo para eliminar a tipicidade delitiva porque o tipo objetivo é
fortalecido pelas elementares da “criação de um risco não permitido e da
realização deste risco no resultado”. A criação do risco e a sua
desaprovação pelo direito configuram os elementos do “desvalor da ação” e
a realização do risco proibido no resultado, ao lado da causação do
resultado, representam os elementos do “desvalor do resultado”. A esses
dois estágios soma-se um terceiro: a verificação se o “resultado concreto
está dentro do alcance do tipo penal” (Roxin).

(3) A técnica da imputação objetiva representa, neste ensaio, o


instrumento de busca, sublinho a traço grosso, do indispensável diálogo
entre ciência penal e jurisprudência. E desde já esclareço que não pretendo
uma imposição de idéias, mas promover um debate recíproco. Minha
contribuição será oferecida com base na análise de alguns julgados do

/
Superior Tribunal de Justiça – e existem poucos – que destacaram a teoria
da imputação objetiva. Quiçá, depois, alguém fique estimulado a comentar
(criticando ou elogiando) estes simples comentários.

(3.1) Habeas corpus n. 68.871-PR, rel. Min. Og Fernandes, DJ


05/10/2009.

(3.1.1) Relatório. O agente, funcionário da Petrobrás responsável pelo


atendimento a acidentes envolvendo navios da Transpetro, pretende o
trancamento da ação penal na qual responde pelo crime de homicídio
culposo (art. 121, § 3º, CP), sob a alegação de ausência de nexo de
causalidade entre sua conduta e o resultado morte da vítima.

(3.1.2) Síntese dos fatos. Em 2001, um navio tanque de propriedade da


Transpetro, subsidiária da Petrobrás, colidiu com pedras submersas na
Baía de Paranaguá, Paraná, e nelas encalhou. Em razão do choque houve o
rompimento do casco do navio e o vazamento de substância química
altamente tóxica denominada Nafta. Cientificada, a empresa Transpetro
acionou o engenheiro naval, ora paciente, pois especialista em atendimento
de acidentes, para que coordenasse o socorro ao desastre. Esse funcionário
determinou a contratação de uma empresa de mergulhos para a urgente
realização de vistorias no casco do navio acidentado. Antes de chegar ao
local dos fatos, via telefone, entrou em contato com o mergulhador que
realizaria a diligência passando as coordenadas de trabalho e alertando
sobre os riscos da atividade em razão da carga tóxica. A vítima realizou um
mergulho muito rápido e depois emergiu a uma distância de quarenta
metros da embarcação. Depois submergiu novamente, mas apenas retornou
quando puxado pelos ajudantes que o retiraram desacordado da água,
soltando sangue dos olhos e espuma branca pelo nariz e boca. Os primeiros
socorros e o atendimento médico não lograram êxito em salvar a vida do
mergulhador. A causa da morte foi intoxicação aguda. A perícia constatou
que o equipamento utilizado pela vítima não era o adequado porque não
eliminava a possibilidade de inalação, absorção e ingestão de quaisquer
substâncias por ventura existentes no local dos fatos.

(3.1.3) Decisão do habeas corpus. Em voto vista – e vencedor – concedeu o


relator designado ordem para trancar a ação penal, por atipicidade da
conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e
/
de criação de um risco não permitido.

(3.1.4) Particulares considerações.

(a) Ao desvalor da ação, como acima destacaso, é acrescida a elementar


objetiva da criação de um risco não permitido. No caso, portanto, é
necessário, em primeiro lugar, precisar se o risco foi criado e, depois, em
caso de sua afirmação, se ele é ou não qualificado como não permitido. São
estes os primeiros passos a cumprir.

(a.1) Para precisar se o risco foi criado é necessário saber como uma pessoa
prudente a quem se relatam os fatos responderia à questão: a conduta
praticada gerou a possibilidade de considerável lesão ao objeto de ação?
Portanto, no contexto apresentado, qual seria a resposta de pessoa uma
prudente que saiba que o engenheiro naval determinou que um
mergulhador realizasse diligência de vistoria em navio encalhado em área
contaminada com produto químico altamente tóxico? Por meio de uma
perspectiva ex ante, resultado da aplicação da fórmula da prognóse
póstuma objetiva, alcança-se uma resposta no sentido de que a
possibilidade de lesão era real. Portanto, a criação de risco por parte do
agente (ora paciente) existiu.

(a.2) E o risco criado pelo engenheiro naval merece a desaprovação pelo


direito, isto é, ele pode ser considerado um risco não permitido? Qual
parâmetro poderia seguir o magistrado para alcançar essa concretização?

(a.2.1) Instrumento importante para desaprovação do risco é a análise das


normas técnicas de segurançaque regulam a atividade de mergulho que no
Brasil estão previstas na Portaria n.244/83 do Ministério do Trabalho.
Assim, necessário precisar se as condições de segurança foram observadas.
Houve uma comunicação verbal entre o engenheiro naval e o mergulhador
no tocante ao planejamento, preparação, execução e para definição dos
procedimentos de segurança na operação de mergulho que seria realizada
em condições perigosas, segundo se infere da denúncia. Literalmente: “[...]
informando-lhe dos fatos do acidente, da volatilidade do nafta, da
impossibilidade do uso de compressor para o mergulho visto o risco de
explosão e a possibilidade de intoxicação com os vapores da nafta
existentes no ar. Informou, então, que se fazia necessário o uso de cilindro
/
de oxigênio no mergulho [...]”. O fato de o engenheiro não verificar
pessoalmente a área na qual o mergulho seria realizado em nada altera a
situação, pois especialista em acidentes com navios e sabedor da toxicidade
da carga foi diligente em informar à vítima, também na conversa, “[...] para
que se dirigisse ao navio Norma, posicionando-se pelo lado de entrada do
vento (barlavento), para evitar o contato com nafta existência na
superfície da água [...]”. Há quem possa concluir de forma diferente, como
o fez a acusação, qualificando o risco como proibido porque o engenheiro
naval não orientou o mergulhador a contatar previamente o comandante do
navio, bem como o próprio engenheiro não contatou os funcionários da
empresa na cidade de Paranaguá para comunicar a pronta realização do
mergulho e os responsáveis pela segurança da área afetada. Primeiro
pergunto: mas em que o comandante do navio poderia contribuir na
operação? Além de navegador, seria ele supervisor de mergulho ou
especialista em acidentes? Ademais, pela denúncia vê-se que o engenheiro
naval, recorde-se, especialista em acidentes, foi acionado pelos próprios
funcionários da empresa Transpetro para que coordenasse o socorro. Logo,
é evidente que o mergulho seria realizado o mais rápido possível. E quanto
aos responsáveis pela segurança na área, um barco inflável da capitania dos
portos interceptou a equipe de mergulhadores, porém depois de conversa
entre o engenheiro naval e alguém da capitania, o mergulhador foi
autorizado. A meu ver, portanto, nada há de se opor as iniciativas do
engenheiro que seguiu uma boa prática para preservar a segurança da
vítima.

(a.2.2) Ademais, não se pode olvidar que a atividade de mergulho, por si só,
comporta riscos permitidos. Não foi outra a decisão do relator: “[...] à luz
da teoria da imputação objetiva, seria necessária a demonstração da
criação pelo paciente de uma situação de risco não permitido, não
ocorrente, na hipótese. [...] não há como asseverar, de forma efetiva, que o
engenheiro tenha contribuído de alguma forma para aumentar o risco já
existente (permitido) ou estabelecido situação que ultrapasse os limites
para os quais tal risco seria juridicamente tolerado. É sabido que o dano
jurídico ocorrido dentro dos limites do risco permitido exclui a imputação
objetiva, tornando o fato atípico [...]”. Com efeito, ainda que o risco tenha
sido criado, sendo este permitido, não se pode falar em desvalor da ação e,
por conseguinte, torna-se desnecessária a análise do desvalor do resultado.

/
(3.2) Recurso especial n. 822.517-DF, rel. Min. Gilson Dipp, DJ
29/06/2007.

(3.2.1) Relatório. O agente foi denunciado pelo delito de homicídio culposo


de trânsito (art. 302 da Lei n. 9.503/97) e posteriormente condenado à
pena de dois anos e seis meses de detenção e suspensão da carteira de
habilitação por um ano. Em sede de apelação, o Tribunal de Justiça do
Distrito Federal reduziu ambas as penas e manteve as demais cominações
impostas. Opostos embargos de declaração, os mesmos foram rejeitados.
No recurso especial a defesa argumentou a impossibilidade de se imputar a
responsabilidade penal apenas com base no art. 13 do Código Penal, pois a
imprudência cometida estaria dentro dos limites da doutrina do risco
permitido, uma vez que o agente transitava em via pública deserta, às três
horas da madrugada, em velocidade de apenas 10 km acima da permitido
ao local. E por fim argumentou que a vítima faleceu porque não estava
utilizando o cinto de segurança.

(3.2.2) Síntese do decreto condenatório e da decisão no recurso de


apelação. O réu e a vítima estavam em uma boate e saíram juntos por volta
das três horas da madrugada. O réu fez uso de álcool como confessou no
interrogatório. No caminho o réu apenas se deu conta de um radar
eletrônico quando estava próximo de uma curva em ‘S’ e ao reduzir a alta
velocidade que empregava para evitar a “foto e multa” perdeu o controle
vindo a colidir na guia da calçada com conseqüente capotamento do qual
resultou a morte da vítima. Discordou o magistrado da velocidade apontada
no laudo pericial, julgando que o acidente decorreu pela impropriedade da
técnica de redução de velocidade empregada e pelo álcool ingerido pelo
agente. Afastou a culpa exclusiva da vítima informando que não houve
comprovação de que ela estava sem o cinto de segurança. O Tribunal de
Justiça do Distrito Federal manteve a condenação pelos fundamentos
apontados na sentença, afastando a possibilidade de aplicação da teoria da
imputação objetiva sob a fundamentação de que a relação causal não
decorreu do acréscimo de velocidade, contudo “da direção descuidada ou
inábil do apelante, vindo, em primeiro lugar, a colidir com a guia da
calçada ou da pista, e em seguida, desgovernando-se, fez com que o
veículo capotasse e, no capotamento, a passageira ao lado sofreu lesões
que lhe causaram a morte”.

/
(3.2.3) Decisão do recurso especial. Destacou o relator que as alegações
apresentadas pela defesa sobre o laudo não conclusivo da perícia e do
pequeno excesso de velocidade refoge ao âmbito do Tribunal Superior, na
medida em que seria necessário o reexame das provas, o que está vetado
por entendimento sumulado. Ademais, confirmou o afastamento da
aplicação do que a doutrina denomina de risco permitido.

(3.2.4) Particulares considerações.

(a) Segue-se o mesmo procedimento de análise realizado no primeiro


julgado. Logo, primeiramente é necessário precisar se o risco foi criado e,
depois, em caso de sua afirmação, se ele é ou não qualificado como não
permitido.

(a.1) Para precisar se o risco foi criado é necessário saber como uma pessoa
prudente a quem se relatam os fatos responderia a seguinte questão: a
conduta gerou a possibilidade de considerável lesão ao objeto de ação?
Assim, no contexto apresentado, qual seria a resposta de uma pessoa
prudente que saiba que a vítima estava em veículo conduzido por um
agente que havia previamente ingerido bebida alcoólica e depois conduzido
em velocidade acima da permitida para a via de trânsito? Por meio de uma
perspectiva ex ante, resultado da aplicação da fórmula da prognóse
póstuma objetiva, alcança-se uma resposta no sentido de que a
possibilidade de lesão era real. Portanto, a criação de risco por parte do
agente existiu.

(a.2) E o risco criado pelo agente merece a desaprovação pelo direito, ou


seja, ele pode ser considerado um risco não permitido? Na ponderação
entre o interesse de proteção do objeto de ação e o interesse de liberdade, o
principal fundamento da desaprovação, alguns parâmetros devem ser
utilizados pelos juízes para alcançar uma conclusão se a conduta é proibida.

(a.2.1) No caso em tela o relator se posicionou da seguinte maneira: “[...]


trata-se da ocorrência de um risco proibido, pois o recorrente agiu em
contrariedade com o ordenamento jurídico, ao dirigir após ingestão de
bebida alcoólica e trafegar em via pública empreendendo velocidade
acima da permitida. Tal conduta não é tolerável, mas proibida”. Como
chegou a essa conclusão? O Ministro, ao iniciar o estudo do mérito do
/
recurso, salientou que a análise do excesso de velocidade refoge ao âmbito
de sua alçada (reexame de prova), mas recorreu a esse fator para dizer que
o recorrente praticou uma ação proibida. Também se serviu de prova,
mormente o interrogatório do recorrente, no qual este confirmou a ingestão
de bebida, para desaprovar o risco pelo prévio consumo de álcool. Então
para fundamentar a decisão há somente um auxílio da prova e não o seu
reexame? Logo, vou me valer desta interpretação para posterior conclusão.

(a.2.2) Fez uso o relator das chamadas normas jurídicas de segurança


como fator de concretização do risco não permitido. Tais normas jurídicas
“ditam proibições de colocação em perigo abstrato cuja infração
fundamenta em geral a criação de um perigo proibido” (Roxin). “Em geral”,
como destacou o ilustre penalista, pois o que em abstrato é perigoso pode
não sê-lo no caso concreto. Logo, quem infringe o limite de velocidade ou
quem dirige embriagado acaba por apenas, indiciariamente, criar um risco
proibido. Eis porque a análise de todas as circunstâncias do caso concreto
deve ser realizada, mas assim não entendeu o relator. Destaco
textualmente: “[...] as circunstâncias que envolvem o fato em si não podem
ser utilizadas para atrair a incidência da teoria do risco permitido e
afastar a imputabilidade objetiva, se as condições de sua aplicação se
encontram presentes, isto é, se o agente agiu em desconformidade com as
regras de trânsito, causando o resultado jurídico que a norma visava
coibir com sua previsão original. O fato de transitar às três horas da
madrugada e em via deserta não pode servir de desculpa ao agente para
agir em desconformidade com a legislação de trânsito, como quer fazer
crer o recorrente. Isto não é risco permitido, mas atuação proibida [...]”.
Um setor da doutrina penal não entende desta forma. Há um “risco-base”
(Frisch) que acompanha a obediência à norma jurídica. Em resumo: ainda
que o agente atue seguindo todas as normas jurídicas de segurança ele
poderá criar uma situação de risco proibido e, mesmo que viole essas
mesmas regras, seu comportamento poderá ser permitido. Atente: “não há
superação do risco-base se, mesmo dirigindo em excesso de velocidade, o
condutor está numa rua completamente deserta” (Greco). Assim, afasto a
tese de que se o agente desrespeitou a norma jurídica automaticamente
deverá ser condenado pelo crime, bem como a recíproca, pois não é porque
o condutor respeitou todas as normas jurídicas que não poderá ser
responsabilizado penalmente pelo ocorrido.

/
(a.3.3) A ciência penal precisa da jurisprudência, contudo esta parece não
precisar daquela. Mas vou insistir no meu propósito: um diálogo. E para
isso nada melhor do que continuar a análise do recurso especial.
Subsidiariamente a defesa do motorista argumentou que a lesão ao bem
jurídico decorreu porque a respectiva titular para tanto contribuiu ao não
usar o cinto de segurança e, assim, implicitamente quebrou a confiança que
deve reger as relações interpessoais e, por esse motivo, a responsabilidade
penal deve ser afastada, pois o risco não seria proibido. Na sentença de
primeiro grau foi afastada a culpa exclusiva da vítima porque tal
circunstância não foi comprovada. Ademais, afirmou o juiz “[...] reconheço
que o réu agiu com culpa de não se ater ao cuidado objetivo de fiscalizar o
uso de cinto de segurança pela passageira/vítima”. Em segundo grau a
decisão foi integralmente aceita. Logo, a mesma conclusão. Depreende-se,
pelo menos a meu ver, que as instâncias ordinárias entenderam que o
condutor é garantidor do passageiro. Sendo isso verdadeiro, apenas será
possível falar em confiança negativa e o risco seria proibido. O dever de
agir, pelo Código Penal (art. 13, § 2.º, a), incumbe a quem tenha por lei
obrigação de proteção. Lei, em sentido estrito, ou seja, decorrente de um
processo legislativo. No caso, é o Código de Trânsito Brasileiro que, em
quatro preceitos aborda o tema “cinto de segurança” e em nenhum salienta
que o condutor deve fiscalizar se o passageiro o está usando. A meu ver,
portanto, poder-se-ia sim argumentar que a confiança foi quebrada pela
vítima. No recurso especial a defesa insistiu neste propósito, mas relator
salientou que, como se trata de matéria de prova, o seu reexame está
vedado (Súmula n. 7).

(a.3.4) Algumas conclusões parciais: o risco foi criado porque um homem


prudente considera real a possibilidade de dano ao objeto de ação quando a
vítima se encontra dentro de veículo conduzido por pessoa que previamente
ingeriu bebida alcoólica e que depois se coloca a dirigir em excesso de
velocidade. Há parâmetro para desaprovação do risco como proibido uma
vez que o agente desobedeceu às normas jurídicas de segurança. Assim, o
“desvalor da ação” está completo, devendo-se passar a análise do “desvalor
do resultado”.

(b) Também destaquei que o “desvalor do resultado” é enriquecido com a


teoria da imputação objetiva, pois este não se resume à relação de
causalidade, mas exige a realização do risco proibido no resultado. Eis a
/
segunda etapa de análise do injusto penal.

(b.1) Há nexo de causalidade entre a conduta do agente e a morte da vítima,


porque, pelo processo de eliminação hipotética, se o agente não estivesse na
boate, não conversasse com a mulher e não a convidasse para sair do local,
seja para comer um cachorro quente ou ir até o seu apartamento para
continuar a festa, ela não teria entrado no veículo que posteriormente veio
a capotar e, assim, estaria viva. Logo, o primeiro requisito está preenchido.

(b.2) Mas resta saber se o que ocorreu concretamente era o que a norma
jurídica de trânsito visava impedir em abstrato. No caso, a norma proibitiva
– dirigir sob o efeito de álcool ou em excesso de velocidade – visava evitar
que o bem jurídico – vida alheia, daquele que está na via de trânsito ou de
quem está ao lado do condutor – fosse afetado. Logo, numa comparação
entre o “que ex post ocorreu e o que ex ante justificava a proibição” (Greco)
há total harmonia e, assim, pode-se dizer que o risco foi realizado no
resultado. Também o segundo requisito do desvalor do resultado estaria
configurado.

(c) Resta, portanto, apenas uma última análise, qual seja, saber se o
resultado concreto está dentro do alcance do tipo penal e, neste âmbito, não
se pode esquecer que a tutela típica encontra barreira na
autoresponsabilidade da vítima, até porque uma das conquistas da teoria
da imputação objetiva foi a redescoberta do ofendido para fins de tipicidade
penal.

(c.1) A conduta da vítima já seria decisiva se o fato dela não usar o cinto de
segurança, por si só, fosse suficiente para comprovar a sua morte, mas, por
evidente, como ressaltou o Ministro, isso diz respeito à prova e não pode
ser novamente analisado. E se não se pode analisar a falta de cinto de
segurança porque haveria reexame de prova, penso que, da mesma forma
que interpretou o relator, isto é, valendo-se da prova apenas para
fundamentar o porquê de não se aplicar a imputação objetiva, é possível
analisar a conduta da vítima no sentido de ter aceito ou pedido uma carona
ao agente para alcançar uma resposta se esta teoria passaria a ter alguma
importância para aferição da responsabilidade penal do agente.

/
(c.2) O presente julgado relata um caso de heterocolocação em risco
consentido no qual a vítima “não ocupava a posição central na atividade
perigosa” (Greco). Não é possível excluir a responsabilidade do agente por
eventual consentimento da vítima porque o direito de disposição da vida é
absoluto só por parte de seu titular e, na hipótese, o fato decorreu de
conduta de pessoa estranha a essa titularidade. Assim, devem ser
analisados os requisitos da heterocolocação para saber se ainda é possível
falar em responsabilidade do agente.

(c.2.1) Em primeiro lugar “o comportamento da vítima não foi irracional”


(Puppe), porquanto para sair da boate e ir até o carro do agente,
independente do motivo, estava consciente, isto é, foi voluntariamente e
não coagida. Depois, não se exige que a vítima represente o risco da mesma
forma que o agente, o que seria inclusive impossível, pois se encontram em
posições diversas, mas tão-somente que ela “saiba o suficiente sobre os
riscos” (Puppe). O que ela sabia, e inclusive o relator mais de uma vez
destacou, é que o condutor havia ingerido álcool. Diante desta
circunstância, apenas resta precisar, como terceiro requisito, “se o dano foi
conseqüência direta desse risco assumido pela vítima ou se existiu algum
fator adicional” (Roxin).

(c.2.2) Para o Ministro relator dois fatores contribuíram ao evento morte: a


embriaguez do agente e o excesso de velocidade. Ocorre que este último
fator por dois motivos não poderia ser considerado. Primeiro, pois em
algum momento a Súmula n. 7 do Superior Tribunal de Justiça deve
favorecer ao agente. Explico: a perícia não concluiu que a causa do acidente
foi o emprego de velocidade acima do permitido e a consideração desse
fator pelo Ministro corresponde, sem qualquer dúvida, a reexame da prova.
Segundo, porque já em sede de apelação o Tribunal de Justiça do Distrito
Federal afastou esse critério como o responsável pelo acidente e, por não
haver recurso desta decisão pela acusação, este fator não poderia ser
“ressuscitado” no Tribunal Superior sob pena de prejuízo do agente, o que
de fato está mais do que evidente. Permanece só a embriaguez, isto é, o
exato fator que a própria vítima conhecia e do qual decorreu o dano.

(c.2.3) O resultado concreto, portanto, não está dentro do alcance do tipo


penal, pois a vítima abandonou por completo a segurança do seu bem
jurídico ao aceitar ou pedir carona, seja lá porque o fez, devendo-se, por
/
evidente, ao contrário do que entendeu o nobre relator, valorar o estado de
coisas criado por ela com seu ato irresponsável e intencional. Em outros
termos, a vítima lesionou pessoalmente o fim que se destina tutelar o tipo
penal e isso, a meu ver, seria suficiente para não gerar a responsabilidade
penal do condutor.

(3.3) Habeas corpus n. 46.525-MT, rel. Min. Arnaldo Esteves


Lima, DJ 21/03/2006.

(3.3.1) Relatório. O agente, denunciado por homicídio culposo (art. 121, §


3º, CP), pretende o trancamento da ação penal sob a alegação de falta de
justa causa para a instauração da ação penal, em face da ausência de nexo
de causalidade entre o resultado morte da vítima e uma conduta relevante
que a ele possa ser atribuída.

(3.3.2) Síntese dos fatos. Conjuntamente com outros integrantes de uma


comissão de formatura o agente organizou uma festa com presença de
aproximadamente setecentas pessoas, na qual a vítima faleceu após ter sido
jogada dentro da piscina por alguns colegas, não narrando a denúncia do
Ministério Público à participação direta do paciente no resultado. A perícia
concluiu que o afogamento decorreu em virtude da vítima ter ingerido
substâncias psicotrópicas.

(3.3.3) Decisão do habeas corpus. Concedeu o relator ordem para trancar


a ação penal pela atipicidade da conduta, em razão da ausência de
previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não
permitido.

(3.3.4) Particulares considerações.

(a) O procedimento de interpretação é idêntico; logo, imprescindível


demonstrar se o risco foi criado e, depois, em caso de sua afirmação, se ele
é qualificado como não permitido.

(a.1) Portanto, novamente questiono: a conduta praticada gerou a


possibilidade de considerável lesão ao objeto de ação? Um homem
prudente não tem, a princípio, por que supor que o simples fato de o agente
compor uma comissão de formatura e promover uma festa de
/
confraternização entre estudantes gere real possibilidade de lesionar o bem
jurídico. No entanto, a interpretação do homem prudente pode ser diversa
quando a ele for relatado que nessa festa houve distribuição imoderada de
álcool e drogas, o que tornava qualquer convidado mais vulnerável a um
perigo. Assim, com base nesses conhecimentos especiais ele poderia
admitir a criação do risco e, assim, a primeira condição estaria preenchida.

(a.2) E o risco seria desaprovado pelo direito, isto é, seria um risco


proibido? Quais os parâmetros que poderia seguir o magistrado para
alcançar eventual desaprovação?

(a.2.1) Por evidente não há normas jurídicas de como realizar uma


confraternização estudantil, mas algumas normas técnicas devem ser
respeitadas, como, por exemplo, a avaliação do projeto técnico – em
síntese, do local da festa e das medidas de segurança adotadas – pelos
bombeiros e conseqüente expedição de laudo positivo, pois com base neste
documento é que a prefeitura emitirá o alvará solicitado pelo organizador
do encontro, ou seja, a comissão de formatura. Esta diligência, segundo a
denúncia não foi cumprida: “[...] Outrossim, também não se preocuparam
em obter alvará de autorização, necessário nos casos de realização de
eventos de grande magnitude, visto que estavam presentes cerca de
setecentas pessoas [...]”. Como “ponto de partida” (Greco), o
descumprimento das normas técnicas é um parâmetro de concretização do
risco como não permitido, mas assim não entendeu o relator: “[...]
ademais, uma eventual falta de atendimento aos pressupostos necessários
para a organização da festa por parte da comissão de formatura está fora
dos limites do que se denomina de risco juridicamente relevante,
caracterizando um risco permitido, isto é, um risco geral de vida [...]”.

(a.2.2) Um segundo fator de desaprovação é o princípio da confiança, pois


aquele que descumpre o seu papel social não pode fazer com que o risco,
salvo nos casos de confiança proibida, seja qualificado como não permitido.
E sobre o citado princípio destacou o relator: “sustenta a doutrina que
vigora o princípio da confiança, as pessoas se comportarão em
conformidade com o direito, o que não ocorreu no caso, pois a vítima veio
a afogar-se, segundo narra a denúncia, em virtude de ter ingerido
substâncias psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária
aos padrões esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos
/
pacientes, diante da inexistência da previsibilidade do resultado,
acarretando a atipicidade da conduta [...]”. Em meu entendimento a
interpretação foi errônea: o comportamento que se espera adequado ao
padrão social é que nenhum dos participantes arremesse outros convidados
na piscina, mormente quando por parte destes há consumo prévio de
drogas. A circunstância de alguém consumir substância psicotrópica nada
se relaciona ao princípio da confiança, mas a autocolocação em risco, como
na seqüência irei trabalhar. Mas vou além: pergunto ao relator como
confiar em que não é mais digno de confiança, como um entorpecido?
Pessoalmente entendo que se trata de um clássico exemplo de confiança
negativa.

(a.2.3) Alcanço, portanto, conclusões em sentido diametralmente oposto:


não falo de princípio da confiança – assim destacou o relator – e afirmo que
foram descumpridas normas técnicas de segurança – assim não entendeu o
relator – e, por isso, entendo possível caracterizar o risco como proibido e,
assim, o desvalor da ação estaria completo, devendo-se passar à análise do
segundo elemento do injusto penal: o desvalor do resultado.

(b) Também destaquei que o “desvalor do resultado” é enriquecido com a


teoria da imputação objetiva, pois não se resume a relação de causalidade,
mas exige a realização do risco proibido no resultado. Inicio a análise desta
segunda etapa.

(b.1) A questão jurídica levantada na impetração do habeas corpus se situa


no âmbito da ausência de relação da causalidade. O que de fato existiu é
que uma ou várias pessoas jogaram a vítima na piscina, mas não se sabe
quem o fez, e a denúncia não aponta o paciente como o autor da proeza. A
narrativa da denúncia é genérica e, assim, por ausência de um requisito
processual se poderia falar no trancamento da ação penal. E mais, a festa
não deixaria de ser realizada pelo fato de o agente não pertencer à comissão
de formatura; logo, o resultado não desapareceria e, assim, a conduta do
agente não deu causa ao resultado. E esta conclusão é alcançada pelo
processo de eliminação hipotética. Ausente o primeiro requisito do desvalor
do resultado já não haveria motivos para se falar em punição.

/
(b.2) Entretanto, e somente para insistir no objetivo deste ensaio que,
recordo a todos, é aproximar a ciência da jurisprudência, e não havendo
dados suficientes apenas com a leitura deste acórdão para determinar uma
responsabilidade por omissão uma vez considerando a posição de
garantidor do paciente, considero automaticamente que há nexo de
causalidade entre a conduta do agente e o resultado, ou seja, passo a
entender que foi o agente quem jogou a vítima dentro da piscina e provocou
a sua morte. Necessário precisar, assim, o outro requisito do desvalor do
resultado, isto é, a materialização do risco proibido. Questiono: o que
ocorreu concretamente era o que a norma técnica visava impedir em
abstrato? O alvará era exigência necessária para fins de realização da festa,
mas não objetivava evitar que uma pessoa fosse arremessada na piscina e
desse ato viesse a falecer. Logo, entendo que não haveria congruência entre
o que ex post ocorreu e o que ex ante procurava proteger a norma técnica e,
assim, também o segundo requisito do desvalor do resultado não estaria
preenchido.

(b.3) Mas novamente apenas a título de argumentação, passo a entender


que o alvará foi expedido para que a festa transcorresse com total
segurança e, assim, qualquer curso causal que violasse essa finalidade,
afetando o bem jurídico, estaria abrangido pelo fim de proteção da norma
e, portanto, restaria preenchido o segundo requisito do desvalor do
resultado, bastando analisar se o resultado concreto estava dentro do
âmbito de proteção do tipo penal.

(c) Neste aspecto recordo que a tutela típica encontra limite na auto-
responsabilidade da vítima e, no presente caso, o relator fez questão de
abordar a autocolocação da vítima em risco nos seguintes termos: “[...] por
outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da
ingestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma
autocolocação em risco, excludente da responsabilidade criminal, ausente
o nexo causal [...]”. E poder-se-ia realmente falar em autocolocação em
risco? Por evidente que sim, mas apenas com relação aos desdobramentos
normais do consumo de drogas que, como qualquer pessoa sabe, não é
morrer afogado numa piscina se arremessado por seus colegas, pouco
importando se a piscina “dava pé ou não”. Portanto, uma vez mais
contrariando o ilustre relator, não vejo como essa autocolocação em risco
possa ganhar o destaque atribuído.
/
(d) Pelo exposto concluo: o trancamento da ação penal é correto por um
fundamento processual e outro penal: o primeiro diz respeito à
generalidade da peça exordial que impede o exercício da ampla defesa e do
contraditório pelo agente; o segundo se refere à ausência de nexo de
causalidade entre a conduta e o resultado, nos termos pelos quais o Código
Penal brasileiro aborda o assunto. Todavia, também recorreu o relator aos
postulados da teoria da imputação objetiva e resumiu seu pensamento nos
seguintes termos: “[...] ainda que se admita a existência da relação de
causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da
teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação
pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não ocorrente, na
hipótese, uma vez que é inviável exigir de uma comissão de formatura
rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes
da festa [...]” que, penso eu, não foram corretamente analisados, por tudo
que anteriormente foi exposto.

(4) Os mais atentos verificaram que os três julgados do Superior Tribunal


de Justiça analisados dizem respeito a crimes de homicídio culposo, mas
que o exemplo apresentado no início deste ensaio se refere a um crime de
homicídio doloso. Todavia, nada impede que os requisitos da imputação
objetiva – “que nada mais são do que os requisitos do delito culposo, mas
com outro alcance” (Greco) – sejam também estendidos aos delitos dolosos,
afastando a tipicidade penal sem recorrer efetivamente à análise do extrato
subjetivo. Basta, para tanto, seguir o mesmo caminho que destaquei na
análise dos julgados. Assim, pergunto: há por que um homem prudente
supor que o fruto de uma gestação de amor, trinta e dois anos depois (ou
seja, o Leonardo), gerará real possibilidade de lesão ao bem jurídico vida de
um terceiro? Vê-se que a responsabilidade penal da minha querida mãe
seria cortada já na raiz. Eu, contudo, não teria a mesma sorte, porque a
minha conduta criou um risco juridicamente desaprovado, houve a
realização deste risco e o resultado concreto está albergado pelo âmbito de
proteção do tipo penal de homicídio. “Cadeia nele”, diria o saudoso
Alborgheti.

Penso ter demonstrado, depois de percorrer este longo caminho que,


confesso, foi bastante árduo, que a teoria da imputação objetiva, quando
compreendida, apresenta capacidade de rendimento bastante interessante.

/
Cabe a quem estiver envolvido no julgamento decidir entre aplicá-la ou
não. Caso se decida por aplicar, que decida pela orientação de uma doutrina
penal qualificada.

(5) Obras de apoio e consultadas: Bacila, Carlos Roberto. Teoria da


Imputação Objetiva. Curitiba: Juruá, 2008; D’Ávila, Fábio Roberto. Crime
Culposo e Teoria da Imputação Objetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001; Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora,
2004; Greco, Luís. Um Panorama da Teoria da Imputação Objetiva. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007; Jesus, Damásio. Imputação Objetiva. São
Paulo: Saraiva, 2000; Reis, Marco Antonio Santos. “Novos Rumos da
Dogmática Jurídico-Penal: da superação do finalismo e de sua suposta
adoção pelo legislador brasileiro ao necessário esclarecimento
funcionalista”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 78. São Paulo:
RT, 2009; Roxin, Claus. Derecho Penal. Parte General. Trad. Diego Luzón
Peña, Díaz Colledo, Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997; Rudolphi,
Hans Joachim. Causalidad e Imputación Objetiva. Trad. Claudia López
Días. Colombia: Universidad Externado, 1998.

Disponível em: https://leonardodebem.jusbrasil.com.br/artigos/121938092/a-imputacao-objetiva-no-


direito-penal-brasileiro-teoria-e-pratica

/
Superior Tribunal de Justiça
HABEAS CORPUS Nº 46.525 - MT (2005/0127885-1)

RELATOR : MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA


IMPETRANTE : DALILA DE OLIVEIRA MATOS
IMPETRADO : PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DO MATO GROSSO
PACIENTE : MARCELO ANDRÉ DE MATOS
EMENTA

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . HOMICÍDIO CULPOSO. MORTE POR


AFOGAMENTO NA PISCINA. COMISSÃO DE FORMATURA. INÉPCIA DA
DENÚNCIA. ACUSAÇÃO GENÉRICA. AUSÊNCIA DE PREVISIBILIDADE, DE NEXO
DE CAUSALIDADE E DA CRIAÇÃO DE UM RISCO NÃO PERMITIDO. PRINCÍPIO
DA CONFIANÇA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA
CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA.
1. Afirmar na denúncia que "a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como
tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito" não atende satisfatoriamente aos
requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo
legal, "A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas
circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a
classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".
2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individualização das
condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva, não existe respaldo jurisprudencial para
uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a
conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi
apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.
3. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da ingestão de
substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação em risco, excludente da
responsabilidade criminal, ausente o nexo causal.
4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a
morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação
pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, porquanto é
inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas
por todos os participantes de uma festa.
5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o princípio da
confiança, as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu in
casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias
psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando,
assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência de previsibilidade do resultado,
acarretando a atipicidade da conduta.
6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, em razão da ausência
de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido, em relação a
todos os denunciados, por força do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal.
ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade,
conceder a ordem, com extensão aos co-réus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os
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Srs. Ministros Felix Fischer, Gilson Dipp e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 21 de março de 2006 (Data do Julgamento)

MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA


Relator

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HABEAS CORPUS Nº 46.525 - MT (2005/0127885-1)

RELATÓRIO

MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA:


Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, com pedido de
liminar, impetrado em favor de MARCELO ANDRÉ DE MATOS – denunciado, juntamente
com outras pessoas integrantes da Comissão de Formatura do Curso de Medicina da
Universidade de Cuiabá (UNIC), pela suposta prática do delito tipificado no art. 121, § 3º, c/c o
art. 29, ambos do Código Penal –, impugnando acórdão da Primeira Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça do Estado do Mato Grosso, que denegou a ordem ali impetrada (HC 11.662/2005), nos
termos da seguinte ementa (fls. 427/428):

HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO EM CONCURSO DE


PESSOAS. AFOGAMENTO. PRETENDIDO TRANCAMENTO DA AÇÃO
PENAL POR AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. PRETEXTADO EXAME
APROFUNDADO DE PROVAS. INVIABILIDADE NA VIA ELEITA.
DENÚNCIA QUE PREENCHE OS REQUISITOS LEGAIS. AUSÊNCIA DE
JUSTA CAUSA INDEMONSTRADA. INDÍCIOS DE CULPA IN
OMITTENDO QUE AUTORIZAM O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO
PENAL E EXIGEM FARTA INSTRUÇÃO CRIMINAL, RESPEITADOS O
CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA.
Impossível a análise aprofundada de provas, no augusto âmbito do habeas
corpus , visando o trancamento de ação penal que apura a morte de jovem, por
afogamento, em circunstâncias não esclarecidas, em confraternização
realizada para número expressivo de pessoas, em que se atribui conduta
culposa dos pacientes, membros da comissão organizadora, pela falta dos
cuidados e medidas necessárias para festa de tamanha magnitude.
Se a denúncia preenche os requisitos legais, descrevendo os indícios da
existência de fato típico e antijurídico que possa ter decorrido de conduta
culposa dos pacientes, na forma omissiva, não há que se falar em falta de justa
causa para o prosseguimento da ação penal, indemonstrada, desde logo,
havendo necessidade de apuração dos fatos em instrução criminal segura,
observados os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Writ indeferido.

Sustenta a impetrante, inicialmente, falta de justa causa para a instauração da


ação penal, em face da ausência do nexo de causalidade entre a morte da vítima e alguma
omissão penalmente relevante que possa ser atribuída ao paciente, sendo os fatos narrados na
denúncia caluniosos e tendenciosos, pois alguns jamais ocorreram e outros não condizem com a
verdade.
Afirma, também, que "não houve quebra do dever de cuidado por parte do
paciente e de seus colegas, notadamente porque, diante das circunstâncias, o evento era
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imprevisível" (fl. 12), sendo que a profundidade da piscina não apresentava risco para qualquer
pessoa adulta, a vítima recebeu os primeiros socorros imediatamente, a dosagem alcoólica em
seu sangue não a impediria de ter reação para evitar o afogamento e ela entrou na piscina por
livre e espontânea vontade.
Assevera, ainda, que "a condição de simples membro da Comissão de Formatura
é insuficiente para impingir ao paciente a condição de acusado, pois seria o estabelecimento de
uma culpa em abstrato" (fl. 16), aduzindo que "não há ação imputável objetivamente ao paciente
(teoria da imputação objetiva), pois a festa realizada constitui um 'risco juridicamente irrelevante'
e, mais que isso, um 'risco permitido', que não tem qualquer nexo com o curso causal que levou
ao resultado" (fl. 22).
Alega, por outro lado, que a denúncia é inepta, pois não houve a individualização
da participação de cada denunciado, não atendendo, portanto, às exigências do art. 41 do Código
de Processo Penal.
Ao final, requer, em sede de liminar, a suspensão da Ação Penal nº 118/2004,
com as audiências para interrogatório marcadas para os dias 26 e 27 de setembro de 2005 e, no
mérito, o seu trancamento definitivo.
O pedido formulado em sede de cognição sumária foi por mim deferido para
suspender o andamento da ação penal em relação a todos os denunciados, membros da referida
comissão de formatura, até o julgamento do mérito da presente impetração, dispensadas as
informações (fls. 460/461).
O Ministério Público Federal, por meio de parecer exarado pelo
Subprocurador-Geral da República DURVAL TADEU GUIMARÃES, opinou pela denegação
da ordem (fls. 467/470).
É o relatório.

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EMENTA

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . HOMICÍDIO CULPOSO.


MORTE POR AFOGAMENTO NA PISCINA. COMISSÃO DE
FORMATURA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ACUSAÇÃO GENÉRICA.
AUSÊNCIA DE PREVISIBILIDADE, DE NEXO DE CAUSALIDADE
E DA CRIAÇÃO DE UM RISCO NÃO PERMITIDO. PRINCÍPIO DA
CONFIANÇA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE
DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA.
1. Afirmar na denúncia que "a vítima foi jogada dentro da piscina por seus
colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu
óbito" não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de
Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, "A
denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as
suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos
quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o
rol das testemunhas".
2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da
individualização das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva,
não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça
o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por
delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi
apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na
piscina.
3. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da
ingestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação
em risco, excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal.
4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a
conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação
objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma
situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, porquanto é
inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das
substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.
5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o
princípio da confiança, as pessoas se comportarão em conformidade com o
direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a
denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas,
comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados,
afastando, assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência de
previsibilidade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta.
6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta,
em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de
criação de um risco não permitido, em relação a todos os denunciados, por
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força do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal.

VOTO

MINISTRO ARNALDO ESTEVES LIMA(Relator):


Busca o Ministério Público a responsabilização criminal dos membros da
Comissão de Formatura mencionada no relatório, da qual faz parte o paciente, sob a alegação de
que não foram diligentes e não obedeceram às normas de segurança necessárias para a
realização da festa de confraternização do Curso de Medicina da Universidade de Cuiabá, onde
havia cerca de setecentas pessoas, concorrendo, assim, para o resultado morte da vítima.
Narra a denúncia que:

Há indícios nos autos que revelam que a vítima foi jogada dentro da
piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes,
ocasionando seu óbito.
Sabe-se também que os acusados disponibilizaram para os participantes
da festa grande quantidade de bebidas alcoólicas, sem o menor controle, assim
como substâncias ilícitas, entorpecentes e psicotrópicas, agindo com
imprudência e negligência.
Outrossim, também não se preocuparam em obter alvará de autorização,
necessário nos casos de realização de eventos de grande magnitude, visto que
estavam presentes na festa cerca de 700 pessoas.
O crime em comento deve ser enquadrado como crime de homicídio na
modalidade culposa, onde todos os representantes da comissão de realização
de eventos deram causa ao resultado por imprudência e negligência (art. 18,
II, CP).

Inicialmente, penso que a afirmação contida na denúncia de que "a vítima foi
jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes,
ocasionando seu óbito", não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de
Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, "A denúncia ou queixa conterá
a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou
esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário,
o rol das testemunhas".
Ainda que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individualização
das condutas, quando se trata de delitos de autoria coletiva, não existe respaldo jurisprudencial
para uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a
conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi

Documento: 614749 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJ: 10/04/2006 Página 6 de 13
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apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.
Nesse sentido são os seguintes precedentes deste Superior Tribunal:

HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. CRIMES


CONTRA O MEIO AMBIENTE. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
INÉPCIA DA DENÚNCIA E FALTA DE JUSTA CAUSA PARCIAIS.
OCORRÊNCIA.
1. A denúncia que, em parte, sobre desatender o artigo 41 do Código de
Processo Penal, não descrevendo a conduta de cada qual dos denunciados,
vem desacompanhada de um mínimo de prova que lhe assegure a viabilidade,
autoriza e mesmo determina o julgamento de falta de justa causa para a ação
penal.
2. Ordem parcialmente concedida. (HC 37.695/SP, Rel. Min.
HAMILTON CARVALHIDO, Sexta Turma, DJ de 26/9/2005, p. 464)

HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. NULIDADE.


INÉPCIA DA DENÚNCIA. CARACTERIZAÇÃO.
1. A denúncia, na letra do artigo 41 do Código de Processo Penal, deve
conter "a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a
qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo,
a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas."
2. Violado o estatuto legal de sua validade, pela imputação de participação
isolada, vaga e indefinida, incluidamente estranha às demais acusações
deduzidas, que impede o exercício do direito de defesa constitucionalmente
assegurado (Constituição da República, artigo 5º, inciso LV), é de se ter como
manifesto o vício que grava a denúncia, compromete o processo e obsta o
prosseguimento da ação penal.
3. Ordem concedida. (HC 17.877/PB, Rel. Min. HAMILTON
CARVALHIDO, Sexta Turma, DJ de 10/2/2003, p. 235)

CRIMINAL. HC. PECULATO E CORRUPÇÃO PASSIVA. INÉPCIA DA


DENÚNCIA. DEFICIÊNCIA EVIDENCIADA. LIAME ENTRE O PACIENTE
E AS CONDUTAS APONTADAS COMO ILÍCITAS NÃO APONTADO.
ORDEM CONCEDIDA.
Não obstante o entendimento de que, na hipótese de concurso de agentes,
é prescindível a exata individualização das condutas dos envolvidos, não se
pode aceitar acusação fundada, basicamente, na condição de delegado do
paciente, à época dos fatos apurados, sem a indicação de consistente liame
entre o paciente e as condutas apontadas como ilícitas.
Evidenciando-se o apontado prejuízo à defesa, que se sujeitava a vagas
acusações, deve ser reconhecida a inépcia da denúncia no que concerne ao
paciente.
Ordem concedida para trancar a ação penal em relação ao paciente, por
inépcia da denúncia. (HC 16.924/SP, Rel. Min. GILSON DIPP, Quinta
Turma, DJ de 22/10/2001, p. 340)

PENAL. PROCESSUAL. AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA.


INÉPCIA DA DENÚNCIA. "HABEAS CORPUS" CONCEDIDO PELA
ORIGEM. EXAME DE FATOS E PROVAS. RECURSO ESPECIAL.
Documento: 614749 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJ: 10/04/2006 Página 7 de 13
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1. É inepta a denúncia que, deixando de descrever a conduta do acusado,
bem como os fatos supostamente típicos a ele imputados, inviabiliza o pleno
exercício do direito constitucional da ampla defesa.
2. Pretensão de exame de provas estranha ao âmbito do Recurso Especial.
Incidência da Súmula 07/STJ.
3. Recurso Especial não conhecido. (REsp 201.259/SP, Rel. Min.
EDSON VIDIGAL, Quinta Turma, DJ de 27/8/2001, p. 367)

Por outro lado, nos termos do art. 13 do Código Penal, "o resultado, de que
depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa", entendendo-se esta
como a "ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido".
Desse modo, uma vez identificado o resultado, no caso, a morte da vítima, que
constitui elemento indispensável à formulação típica do homicídio culposo, é imprescindível
relacioná-lo com a ação realizada pelo agente, mediante um vínculo causal, cuja ausência
acarreta a impossibilidade de imputação.
Na hipótese dos autos, não restou demonstrada a presença do nexo de
causalidade na acusação feita pelo Ministério Público, no sentido de que os denunciados são
responsáveis pelo homicídio culposo ocorrido, por não terem sido diligentes, deixando
supostamente de obedecer às normas de segurança necessárias para a realização da festa.
A ausência do nexo causal se confirma na assertiva constante da própria
denúncia, ao dizer que, "considerando-se a profundidade, altura e o biotipo da vítima, a perícia
concluiu também que a piscina não apresentava riscos para uma pessoa em condições normais
independentemente de saber ou não nadar, assim como as condições apresentadas pela vítima
baseadas na dosagem alcoólica não impediriam a mesma de reagir para evitar o afogamento,
concluindo que a mesma afogou-se em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas" (fls.
65/66).
Portanto, infere-se da narração da peça inicial acusatória que houve
consentimento do ofendido na ingestão de substâncias psicotrópicas. Em casos tais, ocorre a
exclusão da responsabilidade, pois se trata de autocolocação em risco, consoante afirma
abalizada doutrina (D'ÁVILA, Fábio Roberto. Crime Culposo e a Teoria da Imputação
Objetiva . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 71).
Desse modo, o fato de a vítima ter vindo a óbito em razão da ingestão de
substâncias psicotrópicas não tem relação direta com a conduta dos acusados, o que afasta a
possibilidade de aplicação da teoria da imputação objetiva.
É oportuno ressaltar as palavras do 2º voto vogal integrante do acórdão (fl. 440):

Documento: 614749 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJ: 10/04/2006 Página 8 de 13
Superior Tribunal de Justiça

Portanto, nesse aspecto há que se dizer que se a vítima sofreu o acidente


porque estava drogada, infelizmente o fez spont própria , não havendo qualquer
elemento nos autos que pudesse incriminar ao menos um dos membros
daquela infeliz Comissão de Formatura! De se ressaltar ainda que nem mesmo
que a vítima estava drogada se pode afirmar, porque a perícia não realizou o
exame de urina necessário para se verificar se ela se utilizara ou não de drogas.
Eis o laudo pericial: "Em função da falta de um histórico clínico e da coleta de
urina (exame de uso de substância psicotrópica) da vítima, não foi possível
identificar a causa do afogamento nas condições existentes" (fls. 102). E a
culpa de tal exame não ser realizado não é dos pacientes. Nesse aspecto
também a conclusão é: se frasco de lança perfume foi encontrado no local,
que culpa teria a comissão? Será que se esperaria que os pacientes ficassem na
portaria fazendo revista nos convidados para apreender possíveis drogas? É
isso que se espera de uma Comissão de Formatura? Com todo o respeito a
resposta é não! Então, quem trouxe a droga? Se ao menos uma das
testemunhas ouvidas houvesse apontado um membro, pelo menos, da
comissão, ainda poderíamos falar de indícios. Mas isso não ocorreu. Então, se
a droga foi motivo da morte da vítima, e também isso não se sabe, que nexo
de causalidade haveria entre a conduta dos estudantes e o fato em si?
Nenhum...

Segundo leciona Damásio de Jesus, "A imputação objetiva requer uma relação
direta entre a conduta e o resultado, e que a afetação jurídica se encontre em posição de
homogeneidade com o comportamento primitivo, inexistindo quando aquele (evento) vem a ser
causado, em fase posterior, pelo próprio sujeito passivo, terceiro ou força da natureza (resultado
tardio)" (O risco de tomar uma sopa. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, nº
16, out-nov/2002, p. 11).
No mesmo sentido:

...é necessário precisar se há uma relação de risco entre a conduta e o


resultado produzido, i. e., há que se determinar, sob o aspecto normativo, se o
risco criado pelo sujeito é o mesmo que se realizou na produção do resultado,
ou, em outros termos, se o evento pode ser explicado pela violação da norma
de cuidado, uma vez que, se a norma infringida não guarda relação com o
resultado, este não é imputável. Se não existe a relação risco-resultado, a
questão se resolve em termos de tentativa ou atipicidade. Com outras palavras,
é indeclinável a verificação ex post facto se o fim de proteção da norma
incriminadora violada tinha realmente a destinação de impedir a produção de
um resultado normativo como o provocado pelo agente. O evento jurídico
deve ser plasmado pelo risco causado pelo autor. Se produzido por outros
riscos, como pela conduta de um terceiro, pela própria vítima ou por força da
natureza, há exclusão da imputação objetiva" (DÍAZ, CLAUDIA LÓPEZ.
Introducion a la imputación objetiva . Bogotá: Centro de Investigaciones de
Derecho Penal y Filosofia del Derecho, Universidad Externado de Colombia,
1996, p. 49 e 174. Apud JESUS, Damásio de. O risco de tomar uma sopa.
Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, nº 16, out-nov/2002, p.
Documento: 614749 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJ: 10/04/2006 Página 9 de 13
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11)

Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos


acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração
da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, uma
vez que é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das
substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.
Ademais, uma eventual falta de atendimento aos pressupostos necessários para a
organização da festa por parte da Comissão de Formatura está fora dos limites do que a doutrina
denomina de risco juridicamente relevante, caracterizando um risco permitido, isto é, um risco
geral da vida, pois, conforme registrado no primeiro voto vogal, "é fato corriqueiro, de todos
sabido, que há uso e abuso de substâncias entorpecentes nas festas promovidas por jovens,
inclusive e principalmente no âmbito universitário, em todo o país" (fl. 447).
Portanto, de acordo com Selma Pereira de Santana:

... a tradicional observação da relação causal naturalística passa a


constituir o primeiro momento na apuração da imputação objetiva. Uma vez
constatado o vínculo causal, o passo seguinte será a verificação da existência
de critérios de natureza normativa, consistentes eles na criação ou incremento
de um perigo não permitido, que se materializa na lesão a um bem
juridicamente tutelado, dentro do alcance do tipo, uma vez que as normas só
podem coibir condutas que gerem ou aumentem riscos não permitidos a bens
juridicamente tutelados (Atualidades do delito culposo . Boletim IBCCrim, São
Paulo, vol. 10, n. 114, p. 6, maio 2002. Apud JESUS, Damásio de. Momento
de verificação da presença da imputação objetiva . In Revista do Tribunal
Regional Federal da 1ª Região, nº 02, ano 16, fev./2004, p. 37).

Ainda como ensina Claus Roxin:

...a imputação ao tipo objetivo pressupõe que no resultado se tenha


realizado precisamente o risco proibido criado pelo autor. Por isso, está
excluída a imputação objetiva, em primeiro lugar, se, ainda que o autor tenha
criado um perigo para o bem jurídico protegido, o resultado normativo
produziu-se, não como efeito desse perigo, mas sim em conexão casual com o
mesmo. (Derecho Penal: Parte Geral, v. I, p. 373. Apud JESUS, Damásio de.
O risco de tomar uma sopa. Revista Síntese de Direito Penal e Processual
Penal, nº 16, out-nov/2002, p. 11)

Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta também a doutrina que vigora


o princípio da confiança, segundo o qual as pessoas se comportarão em conformidade com o
direito, enquanto não existirem pontos de apoio concretos em sentido contrário, os quais não

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seriam de afirmar-se diante de uma aparência suspeita (pois se trata de um critério vago, passível
de aleatórias interpretações), mas só diante de uma reconhecível inclinação para o fato. (ROXIN,
Claus. Teoria da Imputação Objetiva . In Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano nº 9,
abril-junho de 2002, Ed. Revista dos Tribunais, pp. 11-31, p. 14)
Desse modo, no caso concreto, não poderia a Comissão de Formatura prever o
comportamento da vítima, que, conforme consta da própria denúncia, somente veio a afogar-se
acidentalmente em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se de forma
contrária ao direito, inexistindo indicação na denúncia de que aparentemente isso pudesse ser
antevisto.
De outro ângulo, vale destacar a doutrina do já citado professor Claus Roxin, o
qual sustenta que só é imputável aquele resultado que pode ser finalmente previsto e dirigido pela
vontade. Logo, os resultados que não forem previsíveis ou dirigíveis pela vontade não são típicos.
"Equipara-se a possibilidade de domínio através da vontade humana (finalidade objetiva) à
criação de um risco juridicamente relevante de lesão típica de um bem jurídico. Esse aspecto é
independente e anterior à aferição do dolo ou da culpa". (Apud PRADO, Luiz Regis. Teoria da
Imputação Objetiva do Resultado: Uma Abordagem Crítica . Revista dos Tribunais, ano 91,
vol. 798, abril de 2002, pp. 447/448).
Assim, à luz da citada doutrina, antes e independentemente de se aferir a culpa
dos denunciados, constata-se a inexistência de previsibilidade do resultado, o que acarreta a
atipicidade da conduta e o conseqüente trancamento da ação penal.
A matéria já foi tratada por esta Corte em caso semelhante, assim ementado:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO.


AFOGAMENTO. CULPA PRESUMIDA E RESPONSABILIDADE PENAL
OBJETIVA. INEXISTÊNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
RECURSO PROVIDO.
A responsabilidade penal é de caráter subjetivo, impedindo o brocardo
nullun crimen sine culpa que se atribua prática de crime a presidente de clube
social e esportivo pela morte, por afogamento, de menor que participava de
festa privada de associada e mergulhou em piscina funda com outros colegas
e com pessoas adultas por perto. Inobservância de eventual disposição
regulamentar que não se traduz em causa, mas ocasião do evento lesivo.
Recurso provido. (RHC 11.397/SP, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA
FONSECA, Quinta Turma, DJ de 29/10/2001, p. 219)

Pelo exposto, concedo a ordem impetrada para trancar a ação penal em relação
a todos os denunciados, com base no art. 580 do Código de Processo Penal, em razão da inépcia
da denúncia, por fazer acusação sem um mínimo de individualização das condutas dos acusados,
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bem como em razão da atipicidade da conduta narrada, pela ausência de previsibilidade, de nexo
de causalidade e de criação pelos pacientes de um risco não permitido.
É como voto.

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CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUINTA TURMA

Número Registro: 2005/0127885-1 HC 46525 / MT


MATÉRIA CRIMINAL
Números Origem: 11662 1182004

EM MESA JULGADO: 21/03/2006

Relator
Exmo. Sr. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA
Presidenta da Sessão
Exma. Sra. Ministra LAURITA VAZ
Subprocuradora-Geral da República
Exma. Sra. Dra. ÁUREA MARIA ETELVINA N. LUSTOSA PIERRE
Secretário
Bel. LAURO ROCHA REIS

AUTUAÇÃO
IMPETRANTE : DALILA DE OLIVEIRA MATOS
IMPETRADO : PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO
DO MATO GROSSO
PACIENTE : MARCELO ANDRÉ DE MATOS

ASSUNTO: Penal - Crimes contra a Pessoa (art.121 a 154) - Crimes contra a vida - Homicídio ( art. 121 ) -
Culposo

CERTIDÃO
Certifico que a egrégia QUINTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão
realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
"A Turma, por unanimidade, concedeu a ordem, com extensão aos co-réus, nos termos
do voto do Sr. Ministro Relator."
Os Srs. Ministros Felix Fischer, Gilson Dipp e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro
Relator.

Brasília, 21 de março de 2006

LAURO ROCHA REIS


Secretário

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Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul
23 de abril de 2019

2ª Câmara Criminal

Apelação - Nº 0011675-59.2014.8.12.0001 - Campo Grande


Relator – Exmo. Sr. Des. Ruy Celso Barbosa Florence
Apelante : Ministério Público Estadual
Prom. Justiça : Pedro Arthur de Figueiredo
Apelado : Sandro Gomes Caceres
DPGE - 1ª Inst. : Lucienne Borin Lima (OAB: 7161/MS)
Interessado : Osmar Alves Coco

E M E N T A – APELAÇÃO CRIMINAL MINISTERIAL –


CONDENAÇÃO POR HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO NA DIREÇÃO DE
VEÍCULO AUTOMOTOR – ABSOLVIÇÃO MANTIDA – TEORIA DA
IMPUTAÇÃO OBJETIVA – AUTOCOLOCAÇÃO DA VÍTIMA EM RISCO –
RECURSO IMPROVIDO.
De acordo com a Teoria da Imputação Objetiva o resultado não pode
ser imputado ao agente quando decorrer da prática de um risco permitido. Assim,
tratando-se de hipótese de autocolocação em risco por pessoa maior e capaz, sendo o
perigo provocado pela própria vítima e proveniente de sua vontade, mesmo conhecendo
o risco existente em sua ação, há exclusão da imputação por parte do acusado.
Contra o parecer, recurso improvido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os juízes da 2ª


Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, na conformidade da ata de julgamentos, negar
provimento unânime. Com ressalvas do 1º Vogal. Decisão com o parecer.

Campo Grande, 23 de abril de 2019.

Des. Ruy Celso Barbosa Florence - Relator


Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul
R E L A T Ó R I O
O Sr. Des. Ruy Celso Barbosa Florence.
Trata-se de apelação criminal interposta pelo Ministério Público
Estadual contra sentença proferida pelo Juiz de Direito da 2.ª Vara Criminal da
Comarca de Campo Grande (f. 300 – 306), que absolveu Sandro Gomes Cáceres do
crime tipificado no art. 302, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, nos termos do art.
386, III, do Código de Processo Penal.
Requer, em síntese, a condenação de Sandro Gomes Cáceres nas
penas do art. 302, caput, do Código de Trânsito Brasileiro (f. 313 – 323).
Contrarrazões pelo não provimento (f. 325 – 332).
A Procuradoria de Justiça opinou pelo conhecimento e provimento
do recurso ministerial (f. 342 – 347).

V O T O
O Sr. Des. Ruy Celso Barbosa Florence. (Relator)
Trata-se de apelação criminal interposta pelo Ministério Público
Estadual contra sentença proferida pelo Juiz de Direito da 2.ª Vara Criminal da
Comarca de Campo Grande (f. 300 – 306), que absolveu Sandro Gomes Cáceres do
crime tipificado no art. 302, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, nos termos do art.
386, III, do Código de Processo Penal.
Requer, em síntese, a condenação de Sandro Gomes Cáceres nas
penas do art. 302, caput, do Código de Trânsito Brasileiro (f. 313 – 323).
Contrarrazões pelo não provimento (f. 325 – 332).
A Procuradoria de Justiça opinou pelo conhecimento e provimento
do recurso ministerial (f. 342 – 347).
Narra a denúncia que:
"(...) No dia 20 de outubro de 2013, por volta das 14h40min, na
Avenida Sólon Padilha (BR 262 – prolongamento da Avenida Duque de
Caxias), após o pontilhão, entre 50m e 200m antes da lombada eletrônica,
nesta Capital, o denunciado SANDRO, agindo com imprudência ao
trafegar em velocidade superior à máxima permitida para a via, praticou
homicídio culposo conduzindo o veículo Renault/Kangoo, cor branca,
placas HTQ-3654, tendo como vítima NICO MENDES DA COSTA, que
conduzia uma bicicleta Monark, barraforte, cor vermelha.
Apurou-se que o denunciado SANDRO, até então funcionário da
empresa "Feijão com Arroz", conduzia o veículo da empresa para fazer
uma entrega, bem como a vítima fatal retornava para o almoço, quando
esta, ao tentar cruzar a referida via, sofreu a colisão com o denunciado
SANDRO, batendo com a cabeça no para-brisa e sendo arremessada por
cima do veículo Renault/Kangoo, vindo a falecer. (...)"
O juízo de primeiro grau absolveu o apelado por atipicidade da
conduta pelos seguintes argumentos:
"(...) O nexo fático é indiscutível, porquanto o óbito da vítima Nico
Mendes da Costa deu-se em decorrência de acidente de trânsito
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envolvendo o veículo conduzido pelo acusado; não se tem, contudo, o nexo
normativo, uma vez que o resultado jurídico não decorreu do risco
incrementado pelo acusado, mas sim da autocolocação em perigo pelo
ofendido.
Vejamos. A Avenida Duque de Caxias é uma das principais desta
Capital, com tráfego intenso durante todo o dia, em especial em sua parte
final, em que se inicia a Rodovia BR 262, tal qual a hipótese dos autos.
A vítima e o réu seguiam em direção a Indubrasil.
Em circunstâncias como estas, a travessia da via pública pelo
ciclista deve ser feita com todas as cautelas possíveis.
É inconteste que a vítima Nico não se valeu dos cuidados que lhe
eram exigidos e atravessou inadequadamente a faixa de rolamento em que
transitava o acusado - fora do local específico para tanto e seu observar o
procedimento adequado.
Compulsando os autos, constata-se que a vítima Nico Mendes da
Costa cruzou a via que conta com 03 (três) faixas de rolamento, início de
rodovia, aparentando que desejava realizar o retorno (fl. 37).
Ocorre que, ao trafegar em local com veículos automotores, embora
o ciclista conte com preferência, deve se comportar de mesmo modo que
os demais ou realizar a travessia em local adequado ao pedestre.
Desta forma, se pretendia realizar o retorno, por estar na faixa da
direita, deveria ter antecipadamente sinalizado que ingressaria à
esquerda e, em movimento, sentido Indubrasil, transposto as 03 (três)
faixas como um carro o faz; não pode cruzar a via perpendicularmente.
Ao contrário, poderia ter seguido até o redutor de velocidade e,
então, cruzado a via na perpendicular.
O condutor de bicicleta deverá sempre comportar-se como se
pedestre o fosse; acaso não queira, impõe-se que observe o procedimento
estabelecido para os veículos maiores.
A velocidade em que trafegava o réu é irrelevante, haja vista que o
acidente não teria acontecido, acaso a vítima realizasse a travessia da via
de maneira adequada.
Permitir eventual responsabilização penal do réu Sandro Gomes
Cáceres, desconsiderando-se completamente a imprudência da vítima,
implicaria em violação ao princípio da confiança, que conta com especial
aplicação no âmbito dos crimes de trânsito.
(...)
No mesmo sentido, com relação ao estado de conservação dos
pneus dianteiros, é inconteste que o acusado Sandro Gomes Cáceres era
empregado de Osmar Alves Coco no estabelecimento "Feijão com Arroz",
e conduzia o veículo "da empresa", não sendo responsabilidade sua, mas
sim de Osmar, realizar as devidas manutenções.
Logo, demonstrada a culpa exclusiva da vítima Nico Mendes da
Costa e a negligência apenas de Osmar Alves Coco, impõe-se a
absolvição do acusado Sandro Gomes Cáceres pela prática do crime
tipificado no art. 302, caput, da Lei n. 9.503/97. (...)"
O recurso deve ser improvido.
É que, não restou devidamente comprovado que o réu descurou do
dever objetivo de cuidado e teria criado risco não permitido, sendo certo que de acordo
com a Teoria da Imputação Objetiva o resultado não pode ser imputado ao agente
quando decorrer da prática de um risco permitido.
Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul
Já tive a oportunidade de refletir sobre o tema da exclusão da
tipicidade em casos desse jaez e compartilho com os Pares as minhas conclusões,
lançadas na obra “Teoria da Imputação Objetiva: sua aplicação aos delitos omissivos no
direito penal brasileiro”:
“4.3.1.3. Incremento ou falta de aumento do risco permitido.
Não haverá igualmente imputação quando o agir estiver dentro de
uma situação em que se verifique um risco permitido, entendido como
aqueles perigos decorrentes de condutas toleradas, social e juridicamente,
tanto em razão da importância que têm para a sociedade quanto de sua
costumeira aceitação por todos, por serem inerentes à vida moderna.
(...)
Claus Roxin menciona os riscos permitidos resultantes do trânsito
(...).Sendo sempre importante assinalar que a exclusão da imputação só se
dará nos casos em que advierem resultados danosos dessas práticas, se
tiverem sido observadas as regras a elas inerentes ou, ocorrendo o
desrespeito a alguma dessas normas, não seja este fato relevante para o
resultado.
Exemplo sempre lembrado é o do condutor de veículo que,
obedecendo rigorosamente às regras de trânsito, vem a causar a morte de
alguém por atropelamento. Como o dirigir veículo envolve um risco
permitido, e o condutor, cumprindo as normas de trânsito, não aumentou
esse risco, não há imputação objetiva, tratando-se de situação atípica.
(...)
4.3.1.8. Autocolocação em risco
Outra hipótese em que pode ocorrer a exclusão da imputação dá-se
quando o perigo é provocado pela vítima e proveniente de sua vontade,
mesmo conhecendo o risco existente em sua ação.
A razão da exclusão da imputação, nos casos em que a vítima se
autocoloca em situação de perigo, assim como se dá quando ela consente
com a agressão ao bem jurídico de que é titular, reside na linha político-
criminal assumida pela teoria da imputação objetiva, focada em uma
visão do Direito Penal que deve agir como ultima ratio, analisando os
tipos penais de acordo com sua finalidade dentro do contexto social em
que atuam.
Por isso, em regra, a vítima, com capacidade de discernimento,
conhecendo o perigo da posição em que se autocoloca, age diante do
direito por risco próprio, ainda que a sua decisão tenha, por exemplo,
origem em instigação de terceiro.
(...)
O grande número de casos possíveis de autocolocação da vítima em
situação de risco ou perigo, aliado ao fato de se tratar de um critério de
origem político-criminal, impede a construção de regras gerais que
possam servir indiscriminadamente a todas as situações.
Claus Roxin comenta algumas decisões do Tribunal Superior
Federal alemão sobre hipóteses de autocolocação em perigo pela vítima.
Um caso refere-se a uma aposta de corrida de motocicletas entre A e B,
em que ambos estavam embriagados, mas completamente imputáveis. Em
virtude de erro cometido por ele mesmo, B falece em razão de acidente . O
Tribunal condenou A por entender ter ele "causado de modo contrário ao
dever um resultado previsível e evitável". Quanto a essa decisão, Claus
Roxin entende que, como B ainda se encontrava plenamente imputável, e
Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul
por isso vislumbrava por completo o resultado, este não poderia ser
imputado a A, por não se compreender no âmbito de alcance do tipo.
(...)
Como já salientado, as possibilidades práticas são muitas e o
importante é o alcance dessa construção doutrinária, que leva em
consideração o homem e seu direito à autodeterminação, como parte
integrante de sua dignidade." (SP. Pillares, p. 132. Ed. 2010, p. 123-124,
129-130).
Nesse sentido, a jurisprudência já decidiu:
APELAÇÃO CRIME. HOMÍCÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE
VEÍCULO AUTOMOTOR. AUSÊNCIA DE PROVA DE VIOLAÇÃO DO
DEVER OBJETIVO DE CUIDADO. INEXISTÊNCIA DE CULPA NO
AGIR DO RÉU. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA. AUTOCOLOCAÇÃO DA
VÍTIMA EM PERIGO. ABSOLVIÇÃO. Motorista de caminhão que
atropelou a vítima em cima da calçada, supostamente agindo de forma
imprudente. A prova dos autos aponta que a vítima autocolocou-se em
situação de perigo, pois passou por trás do caminhão, ignorando o fato de
que o condutor deste já avançava por sobre a calçada, realizando
manobra plenamente sinalizada. Concorreu a vítima, pois, para o
acidente, quebrando o princípio da confiança, segundo o qual todo aquele
que atende adequadamente ao cuidado exigido pode confiar que os demais
coparticipantes da mesma atividade também operem cuidadosamente.
Nesse caso, exclui-se a responsabilidade do agente quanto a fatos que
ultrapassem o seu dever de agir com cuidado. Não há, nos autos, elemento
capaz de provar que a conduta do réu foi imprudente, uma vez que o
mesmo disse ter observado os dois espelhos ao iniciar a manobra e
constatado que não havia transeuntes passando no momento em que
ingressou no passeio, além de ter ligado o pisca-alerta e sinalizado
sonoramente. Assim, somadas as circunstâncias do fato, em face da
conduta da vítima, decisiva para o evento, e não demonstrada violação a
dever objetivo de cuidado pelo réu, impositiva a sua absolvição.
RECURSO PROVIDO. POR MAIORIA. (Apelação Crime Nº
70064658578, Primeira... Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 15/07/2015).
Compulsando-se o autos, percebe-se que o recorrido estava
conduzindo o veículo normalmente pela via, quando a vítima, andando em sua bicicleta
do lado direito da rodovia, abruptamente atravessou transversalmente a via, sem tomar
as devidas cautelas para tanto, veja-se:
O recorrido disse que estava conduzindo o veículo do lado esquerdo
da via e quando chegou na curva, deparou-se com a vítima atravessando a via, momento
em que iniciou a frenagem, mas não conseguiu evitar a colisão. Afirmou que viu a
vítima logo após a curva e não antes (p. 281).
A testemunha Renato Raimundo Teixeira de Souza disse que
atendeu a ocorrência e que não houve imprudência por parte do recorrido e sim uma
fatalidade. Afirmou, ainda, que o recorrido lhe disse que a vítima atravessou a via de
forma repentina. Declarou que o recorrido poderia estar conduzindo o veículo acima da
velocidade permitida, como também poderia estar no limite da velocidade, tendo em
vista que os pneus dianteiros estavam gastos, de sorte que mesmo se estivesse
conduzindo na velocidade da via, o veículo não iria parar. Disse que de onde o recorrido
estava, não tinha como ele ver a vítima atravessando a via porque ali é o início de uma
Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul
curva, sendo pego de surpresa e que naquele local é difícil a visualização, inclusive já
atendeu várias ocorrências ali, pois muitas pessoas atravessam a via de forma
descuidada. Que não sabe dizer se a vitima prestou atenção ou não ao atravessar a pista
(p. 281).
Ora, o art. 34 do Código de Trânsito Brasileiro dispõe que "o
condutor que queira executar uma manobra deverá certificar-se de que pode executá-la
sem perigo para os demais usuários da via que o seguem, precedem ou vão cruzar com
ele, considerando sua posição, sua direção e sua velocidade".
No caso dos autos, percebe-se que a vítima autocolocou-se em risco,
pois cruzou a via sem certificar-se de que poderia fazê-la com segurança, de sorte que, a
velocidade em que o recorrido trafegava é irrelevante,tendo em vista que o acidente não
teria acontecido, acaso a vítima realizasse a travessia da via de maneira adequada.
Ademais, ainda que o recorrido estivesse conduzindo o veículo com
velocidade superior a permitida pela via, não há provas se foi esse fato que deu causa ao
acidente ou a forma imprudente de travessia da vítima, razão pela qual a absolvição
deve ser mantida.
Ante o exposto, contra o parecer, encaminho voto no sentido de
negar provimento ao recurso ministerial.

O Sr. Des. Luiz Gonzaga Mendes Marques. (1º Vogal).

Trata-se de recurso de Apelação Criminal interposto pelo


Ministério Público Estadual contra a sentença de fls. 264-266 do Juiz de Direito da 2ª
Vara Criminal da Comarca de Campo Grande/MS que absolveu o condenado da
imputação pela prática do crime de homicídio culposo, previsto no art. 302, do Código
Penal.
O Relator, Des. Ruy Celso Barbosa Florence, negou provimento
ao recurso ministerial, mantendo a sentença absolutória.
Examinando os autos, verifica-se que as provas são insuficientes
para a condenação.
O croqui de fl. 37 não é esclarecedor quanto a real dinâmica do
acidente.
Conforme se verifica do croqui, existe um seta indicativa iniciando
no lado direito da pista indo para a margem esquerda da pista, referindo uma frenagem.
No entanto, conforme as demais provas produzidas, consistente no
depoimento do próprio acusado e policiais condutores da diligência, o acidente teria
ocorrido do lado esquerdo, próximo ao canteiro central, ou seja, distante da seta
mencionada
Não se pode afirmar ainda do referido croqui, onde teria sido o ponto
de impacto da colisão, já que não é nada esclarecedor neste aspecto, tanto que o
Magistrado da origem indagou os policiais testemunhas nesse sentido, mas não ficou
devidamente esclarecido.
Além disso, o testemunho dos policiais condutores das diligências
também não são esclarecedores quanto a real dinâmica do acidente, levando em
consideração o croqui acima referido.
Por demais, consta do laudo pericial de fls. 45-57, como dinâmica do
acidente que: “Trafegava o veículo Renault/Kangoo (V1), na Rua Solon Padilha, no
Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul
sentido norte/sul, na faixa esquerda, junto ao canteiro central, quando colidiu o setor
frontal contra o setor lateral do veículo bicicleta (V2), que travegava transversalmente
a pista de rolamento, no sentido oeste/leste. Após o impacto, o corpo do condutor de V2
foi arremessado por sobre o capô e vidro para-brisas de V, o que provocou o
traumatismo crânio-encefálico e a consequente morte da vítima ali mesmo.”
Ora, pelo que se observa do laudo pericial acima, a bicicleta teria
atravessado transversalmente a pista de rolamento, no sentido oste/leste, enquanto o
veículo vinha no sentido norte/sul, quando teria ocorrido a colisão.
No entanto, não ficou esclarecido quem efetivamente deu causa ao
impacto, se a vítima que adentrou repentinamente na pista, tentando atravessá-la na
frente do automóvel, ou se por eventual excesso de velocidade do apelante.
Portanto, de todos os elementos contidos no processo, não se pode
concluir a real dinâmica do acidente objeto do presente processo nem que o apelante foi
quem deu causa ao acidente, inexistindo provas concretas e esclarecedoras, pelo que a
dúvida sobre essas questões essenciais conduz à absolvição.

Diante do exposto, com essas ponderações, ACOMPANHO O


RELATOR para negar provimento ao recurso ministerial.

O Sr. Des. Jonas Hass Silva Júnior. (2º Vogal).

Acompanho o voto do relator.

D E C I S Ã O
Como consta na ata, a decisão foi a seguinte:

NEGARAM PROVIMENTO UNÂNIME. COM RESSALVAS DO


1º VOGAL. DECISÃO COM O PARECER.

Presidência do Exmo. Sr. Des. Ruy Celso Barbosa Florence


Relator, o Exmo. Sr. Des. Ruy Celso Barbosa Florence.
Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Des. Ruy Celso
Barbosa Florence, Des. Luiz Gonzaga Mendes Marques e Des. Jonas Hass Silva Júnior.

Campo Grande, 23 de abril de 2019.

aq
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Número do 1.0474.12.002076-0/001 Númeração 0020760-


Relator: Des.(a) Marcílio Eustáquio Santos
Relator do Acordão: Des.(a) Marcílio Eustáquio Santos
Data do Julgamento: 06/02/2019
Data da Publicação: 15/02/2019

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO CULPOSO NA CONDUÇÃO


DE VEÍCULO AUTOMOTOR. CRIME DE CIRCULAÇÃO. ABSOLVIÇÃO.
NECESSIDADE. TIPICIDADE OBJETIVA. DÚVIDA. TEORIA DA
IMPUTAÇÃO OBJETIVA. AUTOCOLOCAÇÃO EM RISCO PELA VÍTIMA.
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA. INABILITAÇÃO DO RÉU. IRRELEVÂNCIA.
RISCO NÃO PERMITIDO CRIADO NÃO REALIZADO NO RESULTADO
DANOSO. 1. Pela teoria da imputação objetiva, afasta-se a tipicidade
objetiva da conduta em casos de autocolocação em risco pela vítima, tais
como a hipótese em que o motorista, na condução de seu veículo, é
surpreendido pela vítima que, de inopino, se lança com sua bicicleta à frente
do automóvel, militando em favor do acusado, neste caso, ainda, o princípio
da confiança. 2. Não se pode reconhecer a tipicidade da conduta pelo fato de
o motorista não ser habilitado ou estar em velocidade acima da permitida se,
no caso concreto, esse risco não permitido por ele criado não tiver se
realizado no resultado danoso, o qual teria se dado independentemente
dessa circunstância, pelo que, pela própria teoria da "conditio sine qua non",
tais fatores não podem ser tidos como causa do crime.

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0474.12.002076-0/001 - COMARCA DE


PARAOPEBA - APELANTE(S): MARCOS LOPES DE ARAÚJO -
APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS -
VÍTIMA: R.N.M.

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 7ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de


Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos,
em DAR PROVIMENTO AO RECURSO.

1
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

DES. MARCÍLIO EUSTÁQUIO SANTOS

RELATOR.

DES. MARCÍLIO EUSTÁQUIO SANTOS (RELATOR)

VOTO

Perante o Juízo da Vara Única da Comarca de Paraopeba, MARCOS


LOPES DE ARAÚJO, devidamente qualificado, foi denunciado pela prática
do crime previsto no artigo 302, parágrafo único, I, do Código de Trânsito
Brasileiro.

Quanto aos fatos, narra a denúncia que no dia 09 de maio de 2012, na


Rodovia MG 231, km 42, no perímetro urbano de Cordisburgo/MG, o ora
apelante praticou homicídio culposo na direção de veículo automotor.

Segundo consta, Marcos Lopes de Araújo, agindo por imprudência


consistente em transitar em velocidade acima do permitido para aquela via,
acabou por abalroar a vítima, que vinha conduzindo sua bicicleta junto ao
canteiro central da via, causando-lhe os ferimentos que a levaram à morte.

2
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Após instrução, sobreveio a r. sentença de fls. 116/119, julgando


procedente a denúncia para condenar o ora apelante a 02 (dois) anos e 08
(oito) meses de detenção, em regime aberto, e a 02 (dois) meses e 20 (vinte)
dias de proibição de obtenção da habilitação para dirigir, pela prática do
crime previsto no artigo 302, parágrafo único, I, da Lei 9.503/97.

Inconformado com a r. sentença condenatória, o réu recorreu, fl. 121,


buscando, em suas razões recursais de fls. 121/125, a absolvição.

O Ministério Público, em suas contrarrazões de fls. 129/132, manifesta-se


pelo não provimento do recurso.

A denúncia foi recebida no dia 24 de setembro de 2012, fl. 41, e a


sentença publicada em mãos do escrivão no dia 13 de outubro de 2017.

O réu foi intimado da sentença à fl. 127.

A d. Procuradoria-Geral de Justiça opinou, fls. 136/141, pelo não


provimento do recurso.

É, no essencial, o relatório.

3
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Decido.

Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.

Não foram arguidas preliminares. Outrossim, não vislumbro qualquer


nulidade a ser declarada de ofício, razão pela qual passo ao exame do
mérito.

Analisei atentamente as razões recursais defensivas, as contrarrazões


acusatórias, o parecer da d. Procuradoria-Geral de Justiça e, sempre atento
às provas dos autos, entendo deva ser dado provimento ao recurso, pelos
motivos que passo a expor:

Inicialmente destaco que a existência do delito encontra-se


suficientemente demonstrada pelo relatório de necropsia, de fls. 19/21, laudo
pericial do veículo automotor, de fls. 21/23, laudo pericial da bicicleta, de fls.
24/26, e laudo realizado no local do acidente, de fls. 30/36.

No tocante à autoria, igualmente não verifico qualquer dúvida, tendo o


acusado confirmado que conduzia o veículo automotor, vindo a colidir com a
bicicleta conduzida pela vítima.

4
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Vejamos seu interrogatório judicial:

(...) que são verdadeiros os fatos narrados na denúncia; que, no momento


dos fatos, trafegava pela via principal de chegada a Cordisburgo, estava
chegando àquele Município; que estava se deslocando para seu trabalho;
que passava por aquela via todos os dias, mas não era o declarante o
condutor, ia em veículo trabalhar em veículo da firma; que, na data dos fatos,
o declarante conduzia seu veículo para o trabalho, mesmo sem ter carteira
de habilitação, pois o carro da empresa tinha estragado; que estavam no
veículo o declarante e seu filho; que a vítima adentrou na via e tornou-se
visível ao declarante quando estava há aproximadamente seis metros de
distância do declarante; que o declarante quase bateu em um poste de
iluminação para tentar se desviar da vítima; que não obstante, houve a
colisão; que não se recorda a velocidade na qual trafegava, mas era baixa,
cerca de 40, 45km/h; que as condições de visibilidade da via eram boas, não
chovia; que a colisão ocorreu na parte frontal do veículo do declarante,
próximo ao farol esquerdo; (...)

Diante disto, resta esclarecer o caráter criminoso da conduta praticada


pelo réu, vez ser inegável que esta foi causa da morte da vítima, devendo-se
saber se essa causação mecânica e natural do evento verificado se deu com
culpa ou não.

Neste ponto, cumpre destacar o depoimento prestado por Ronaldo


Mendes da Costa, primo do ofendido, que se encontrava próximo ao local
dos fatos e que visualizou o acidente, sendo capaz de indicar que a vítima
colocou-se em situação de risco, adentrando a via subitamente e
inviabilizando qualquer reação do acusado. Vejamos:

5
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

(...) nesta manhã estava na entrada de Cordisburgo quando presenciou o


atropelamento de seu primo R.N. por um veículo conduzido por Marcos; que
pôde notar que R.N., na condução de sua bicicleta, repentinamente, entrou
na via e foi atropelado; que não atribui o incidente ao motorista do veículo
automotor e sim a R.; que o veículo estava em baixa velocidade; que o
motorista ainda frenou, contudo, a manobra do ciclista foi muito rápida e não
permitiu evitar a colisão; que o motorista parou e, com a ajuda do depoente,
socorreu R. ao hospital municipal de Cordisburgo; (...) (fls. 16/17 - grifei)

Em Juízo (fl. 97), a versão acima foi confirmada, acrescentando-se que


havia, de fato, uma árvore ao lado da via que atrapalhava bastante a visão e
que depois foi retirada.

No mesmo sentido é o depoimento de Leonardo Ribeiro Araújo,


informante não compromissada por ser filho do réu. Segundo ele (fl. 95), o
veículo trafegava em baixa velocidade e somente colidiu com o ofendido
porque a vítima entrou na frente do veículo, que não parou a tempo de evitar
o acidente.

Acrescente-se, por fim, que também foi ouvido o policial militar Marcos
Antônio Messias dos Santos, que não presenciou o acidente, não sabendo
precisar detalhes de sua dinâmica.

Diante do exposto, a realidade que se abstrai das provas é que o


apelante, inabilitado e conduzindo o veículo em velocidade superior à
permitida no local do acidente, colidiu com a bicicleta conduzida pelo

6
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

ofendido que, de maneira inesperada, adentrou a faixa de rolamento,


colocando-se em situação de risco.

Diante desses elementos, não entendo comprovada a prática, pelo ora


apelante, de uma conduta penalmente típica, à luz da teoria da imputação
objetiva.

Isso porque, por essa construção teórica, a qual, em termos bastante


simplistas (não sendo este o espaço adequado a uma profunda imersão em
toda a imbricada rede de conceitos e postulados da teoria da imputação
objetiva, distintos, inclusive, de acordo com a corrente doutrinária que se
adote), busca corrigir falhas da causalidade natural, introduzindo, no juízo de
tipicidade objetiva, aspectos normativos, tem-se que a responsabilidade
penal é excluída, mediante afastamento da tipicidade objetiva da conduta,
em casos de autocolocação em risco por parte da vítima.

Quanto a esse ponto, trago as pertinentes lições de Fernando Galvão:

Em alguns casos, muito difundidos na doutrina, a vítima empresta


contribuição essencial para a produção do resultado lesivo por ela mesma
sofrido, e não se pode atribuir responsabilidade a terceiros. É o que ocorre
quando a vítima inesperadamente lança-se na frente da composição férrea
ou de automóvel. Os casos em que a própria vítima coloca-se em situação
de perigo, a princípio, não trazem responsabilidade a terceiros. No entanto,
quando o terceiro cria a situação de risco que vem a lesionar a vítima, há
responsabilidade penal para ele. (ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Direito
penal: parte

7
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

geral. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 258).

É exatamente o que as provas dos autos permitem concluir quanto ao


presente caso.

Ora, ao que consta, a vítima adentrou a via subitamente, tendo o réu, na


direção de seu veículo, se deparado com ela em plena pista de rolamento,
após, não tendo tido chances reais de evitar a colisão.

É o que dizem o apelante e um ocupante do veículo, em consonância,


frise-se, com o que a testemunha presencial dos fatos narrou, inclusive em
Juízo, como exposto acima.

Assim, vê-se que o risco foi integralmente criado pela vítima, não se
tendo comprovado qualquer criação de risco não permitido, ou mesmo
incremento de risco pré-existente ou causado por terceiro, por parte do
apelante.

Apesar de a perícia ter constatado que o réu transitava em velocidade


superior à permitida, em momento algum concluiu-se que isto deu causa ou
aumentou o risco do acidente, tampouco havendo informação de que, caso
transitasse em velocidade menor, seria possível evitar a colisão.

8
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

A situação se resolve, igualmente, mediante aplicação do princípio da


confiança, ainda sob a ótica da teoria da imputação objetiva.

Mais uma vez, valho-me das lições de Fernando Galvão, quando


esclarece:

O princípio da confiança foi elaborado para melhor delimitar a ideia da


atuação nos limites do risco permitido, sendo, inicialmente, desenvolvido
para aplicação nos delitos de trânsito. (...)

Segundo tal princípio, apesar de saber que outras pessoas cometem erros,
aquele que se comporta adequadamente pode confiar que os demais
também o façam, desde que não existam motivos para acreditar no contrário.
(...) A consequência da aplicação do princípio é a impossibilidade de
responsabilizar aquele que atua conforme o cuidado objetivamente exigido.

(...)

A mesma solução dá-se ao caso em que o motorista que conduz com


excesso de velocidade é colhido por outro que não respeita a preferência no
cruzamento. A condução em excesso de velocidade, por si só, já produz
risco desaprovado, independente da atuação dos demais. Para a imputação
objetiva, entretanto, deve-se apurar qual das duas condutas arriscadas
realizou o resultado lesivo. No caso, o excesso de velocidade não
determinou o resultado, mas o desrespeito à preferência. A diminuição da
velocidade de um dos motoristas evitaria a colisão, da mesma forma que o
aumento da velocidade do outro. O que determina a colisão é o desrespeito à
preferência da passagem no cruzamento, e não o excesso de velocidade.
(Ibid, p. 250 e 252).

9
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Poder-se-ia suscitar, em oposição ao que aqui dito, a inabilitação do


acusado para condução de veículo automotor.

Entretanto, o risco por ele criado não se realizou no resultado lesivo,


posto que, fosse ele habilitado ou não, teria este ocorrido da mesma forma,
já que não se demonstrou que seria possível, a uma pessoa habilitada
(presumindo-se a maior perícia desta) seria capaz de evitar o acidente.

Esse argumento se afasta, em verdade, pela própria e vetusta teoria da


conditio sine qua non, já que, suprimida mentalmente a inabilitação da cadeia
de fatos, o resultado teria se dado da mesma forma, pelo que não pode ela
ser tida como causa do crime.

Em conclusão, vê-se que a presente hipótese, ao menos pelo que


exsurge das provas amealhadas, é de autocolocação em risco pela própria
vítima, estando o réu protegido pelo princípio da confiança, sendo, portanto,
imperioso o reconhecimento da atipicidade objetiva de sua conduta, a qual
não criou ou incrementou qualquer risco não permitido, sendo certo, ainda,
que o risco criado pela condução inabilitada não se realizou no resultado
danoso.

Por todo o exposto, DOU PROVIMENTO AO RECURSO para absolver o


réu, nos termos do art. 386, VII, do CPP.

Custas "ex lege".

10
Tribunal de Justiça de Minas Gerais

É como voto.

DES. AGOSTINHO GOMES DE AZEVEDO - De acordo com o(a) Relator(a).

DES. SÁLVIO CHAVES - De acordo com o(a) Relator(a).

SÚMULA: "DERAM PROVIMENTO AO RECURSO."

11
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2014.0000196309

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº


0003295-28.2010.8.26.0638, da Comarca de Tupi Paulista, em que é apelante
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, é apelado ANTONIO ILARIO
DA SILVA JUNIOR.

ACORDAM, em 10ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de


Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Por maioria de votos,
negaram provimento ao recurso, vencido o Relator que dava provimento ao
apelo e fará declaração de voto. Ficará com o acórdão o Revisor.", de
conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmo. Desembargadores


RACHID VAZ DE ALMEIDA (Presidente sem voto), FRANCISCO BRUNO, vencedor,
FÁBIO GOUVÊA, vencido e NUEVO CAMPOS.

São Paulo, 24 de março de 2014.

FRANCISCO BRUNO
RELATOR DESIGNADO
Assinatura Eletrônica
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Apelação n.° 0003295-28.2010 – 1.ª Vara de Tupi Paulista

Apelante: Ministério Público


Apelado: Antônio Ilário da Silva Júnior

Relator sorteado: Des. Fábio Gouvêa (voto n.° 28.205)

Relator designado: Francisco Bruno

Voto n.° 15.301

Apelação. Homicídio culposo. Sentença absolutória,


recurso do Ministério Público. Culpa do réu que
decorreria do excesso de velocidade. Inexistência de
nexo de causalidade normativa entre a conduta e o
resultado. Conduta, ademais, não atingida pelo âmbito de
abrangência da norma. Aplicação da teoria da imputação
objetiva. Decisão correta. Recurso não provido.

Ouso divergir do eminente relator sorteado, cujo relatório


adoto; a meu ver, a r. sentença proferida pelo culto magistrado Marcel
Peres Rodrigues não merece reparo.
De início, ressalto o excelente trabalho da digna defensora,
advogada Elisângela da Cruz da Silva, que mostrou combatividade e
técnica jurídica exemplares. Dito isto, passo ao mérito.
Está bem comprovado que o apelado, dirigindo um GM Astra,
colidiu frontalmente com a vítima, que vinha de bicicleta, na contramão de
direção. Não há dúvida de que vinha, o apelado, em excesso de
velocidade, 78,2km/h; praticamente o dobro da legalmente permitida
(40km/h), embora não se possa deixar de registrar que o local (há foto
nos autos) é daqueles que não exigem velocidade máxima tão baixa. O

Apelação nº 0003295-28.2010.8.26.0638 - 1ª. Vara Judicial - Tupi Paulista - 15301


2
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

resultado e isto sem dúvida contribuiu para a decisão do digno juiz de


direito, que por certo o conhece é idêntico ao que ocorre nos postos de
fiscalização de polícia rodoviária, onde a velocidade máxima permitida (30
km/h) não é respeitada por ninguém; todos passam, no mínimo, a 50 ou
60km/h.
De qualquer sorte, a meu ver não há dúvida de que a vítima
contribuiu de maneira decisiva para o acidente; entendem e Ministério
Público e o douto relator, porém, que ele poderia ter sido evitado, se o
apelado tivesse mantido a velocidade permitida. O digno magistrado (fls.
224 e ss.), porém e a meu ver corretamente , julgou não haver prova
de que o excesso contribuiu de forma juridicamente relevante para a
morte da vítima, que teria ocorrido de qualquer forma, ainda que o
apelado tivesse respeito o limite.

O culto juiz de direito sentenciante, não custa ressaltar,

acompanhou conscientemente ou não jurisprudência consagrada na

Alemanha, já desde o Tribunal Supremo do Reich. É dizer: verificou o

digno magistrado não haver prova segura de que a conduta não causou

incremento de risco juridicamente relevante. Como diz Günther Jakobs,

mencionando a “decisão fundamental” do Tribunal Supremo da Alemanha,

em caso semelhante (não idêntico: no processo ali citado, o ciclista estava

bêbado, e o motorista o veículo não mantinha a distância legal exigida),

“puede quesea probable que las cosas sucediesen de outro modo, pero no

está probado” (La Imputación Objetiva em Derecho Penal, trad. Manuel

Cancio Meliá, Madri: Editorial Civitas, S.A., 1.ª ed., 1996, pág. 193).

A tese é, hoje, pacífica na Alemanha; e, creio, já é tempo


seja adotada aqui. Na verdade, foi posta em destaque com a recente

Apelação nº 0003295-28.2010.8.26.0638 - 1ª. Vara Judicial - Tupi Paulista - 15301


3
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

introdução, no Brasil, da teoria da imputação objetiva, hoje aceita de


maneira quase pacífica na Alemanha.1
Não se trata de aderir a cada novidade que nos vem dos
influentes juristas germânicos; na verdade, há críticos severos (como
deixei registrado na nota) que colocam em dúvida, com sólidos
argumentos, a real utilidade dessa teoria. No Brasil, porém – assim como,
ressalto, na Alemanha –, ela no mínimo tem o mérito de chamar à aten
cuida-se, isto sim, de aperfeiçoar cada vez mais, do ponto de vista da
justiça, a aplicação de pena criminal. A meu ver, poucos lugares-comuns
causaram tantas injustiças quanto “em direito penal, culpas não se
compensam”. Afirmação, é claro, verdadeira; muito mais importante,
porém – e necessário para saber se o princípio se aplica –, é verificar se a
conduta culposa do réu contribuiu de alguma forma para o resultado; e, se
contribuiu, se lhe era previsível, na forma concreta como ocorreu. O
que é evidente, por exemplo, no caso de a culpa ser apenas o não ter
1
Faço as observações a seguir em nota de pé de página, pois não dizem elas respeito à questão fática ora em
julgamento; porém, creio-as necessárias para evitar confusões metodológicas.
Não desconheço ter a teoria da imputação objetiva, ainda hoje, adversários de peso (principalmente os finalistas
ortodoxos) na Alemanha. Entendem-na desnecessária; as soluções que apresenta já eram possível de obter sem
dificuldade. Assim resume Hans Joachim Hirsch sua crítica: “No mais, não se deve perder de vista que se trata, por
certo, de uma concepção interessante do ponto de vista teórico e que ademais foi apresentada por Roxin, como também
por Lenckner, de um modo cientificamente extraordinário e impressionantemente cativante. Mas seu significado prático é
mínimo, tendo em vista que os aspectos essenciais da dogmática da imprudência encontraram já há bastante tempo
soluções adequadas à realidade das coisas sem necessidade dela” (“Acerca de la Teoría de la Imputación Objetiva”, em
Derecho Penal Obras Completas, tomo I, Buenos Aires/Santa Fe: Rubinzal-Culzoni Editores, s/d., págs. 63/4; a
tradução do espanhol é minha). Mesmo Hirsch, porém, reconhece-lhe o mérito de ter chamado à atenção certas
insuficiências da teoria tradicional e, no Brasil, o mérito, se outro não é, é também este, como se verá na continuação
do voto. Pois, aqui, o fato incontestável de que no campo penal não se compensam culpas serviu para obstar à
discussão da eficiência real da conduta do réu para o resultado, não obstante a remansosa doutrina, já desde o
causalismo, acerca disto. (Cf., por todos, Aníbal Bruno, Direito Penal Parte Geral, tomo 2.º, Rio de Janeiro: Forense, 3.ª
ed., 1967, pág. 91: “O resultado deve estar preso ao atuar do agente por um nexo de causalidade necessária e este
nexo de causalidade deve ser previsível ao agente”. O destaque é meu, em face do que segue, no voto.)
Observo, mais, não desconhecer que, nos países europeus a começar da própria Alemanha , a teoria da imputação
objetiva já foi submetida a revisões, afastada a pretensão inicial de formular, por si só, uma teoria completa do tipo penal.
Mas nem por isto se deve desconhecer ter ela trazido sensível contribuição à relação de causalidade que, mais que
naturalística, há de ser normativa. Falhou como sistema englobante do tipo de injusto; todavia, consagrou-se,
corretamente a meu ver, como forma justa e razoável de corrigir distorções que ocorriam (como, creio, neste caso) com a
aplicação muitas vezes descuidada e automática da teoria, eminentemente naturalística, da causalidade adequada.
(Que, todavia frise-se , continua, e creio sempre será, indispensável nos delitos comissivos de resultado.)
Ademais, a teoria da imputação objetiva ajudou muito, na Alemanha e em outros países onde o direito penal alemão é o
mais influente, no acolhimento de soluções como as citadas no voto, explicando-as cientificamente. A complementação
e, às vezes, a substituição da causalidade material pela causalidade normativa revelou-se um avanço enorme, ainda que
a teoria da imputação objetiva (como, aliás, costuma acontecer v.,, por exemplo, o finalismo) não tenha obtido sucesso
na pretensão totalizante inicial.

Apelação nº 0003295-28.2010.8.26.0638 - 1ª. Vara Judicial - Tupi Paulista - 15301


4
PODER JUDICIÁRIO
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habilitação; neste caso, sempre se faz a pergunta óbvia: se o agente fosse


habilitado, haveria alguma mudança no resultado?. Nas palavras de
Wolfgang Frisch, para que se impute o resultado ao autor é preciso que
nele “… se haya materializado precisamente el riesgo en virtud del cual
está prohibido el comportamiento; la producción del resultado deve
presentarse, en este sentido, como realización del riesgo desaprobado”
(Comportamiento Típico e Imputación del Resultado, trad. Joaquín Cuello
Contreras e José Luís Serrano González de Murillo, Madrid/Barcelona:
Marcial Pons, 2004, pág. 70).
Eis o que diz, por exemplo, Urs Kindhäuser acerca de
situações como esta: “… en la relación del riesgo que fundamenta la
imputación se trata de la relación entre un sucesso fáctico, el acidente no
evitado, y uma hipótesis contrafáctica que se expressa en uma frase
condicional irreal, es decir, si el autor hubiera podido evitar el acidente. La
pregunta acerca de la imputación sería aproximadamente la siguiente:
habría podido el autor evitar el acidente, si en lugar de la velocidad
(prohibida) de 80km/h hubiese conduzido a uma velocidad (permitida) de
50km/h? … Mientras existan dudas relevantes procesalmente respecto a la
evitabilidad de la realización del tipo penal, no se puede exigir al autor
responsabilidad por la realización del tipo penal …” (Derecho Penal de la
Culpabilidad y Conducta Peligrosa, trad. Claudia López Díaz, Bogotá:
Universidad Externado de Colombia, 1.ª ed., 1996, págs. 134/6; os grifos
são meus).
Pois bem: a meu ver, neste caso há dúvida mais do que
razoável de que, ainda estivesse o apelante na velocidade permitida, seria
possível evitar o acidente e a morte; mesmo a 40km/h o choque (estando
a vítima em sentido contrário e em movimento por certo rápido, pois ia na
contramão, quase que certamente tentando atravessar a pista se não,
por que estaria na contramão?), mesmo a 40km/h, eu dizia, o choque
seria muito forte. A morte foi causada por “afundamento em região

Apelação nº 0003295-28.2010.8.26.0638 - 1ª. Vara Judicial - Tupi Paulista - 15301


5
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

occipital” (fls. 8; as demais lesões não seriam fatais); a foto do carro


mostra que a vítima, projetada por cima do capô, bateu a cabeça no vidro
para-brisa, o que teria, é quase certo, acontecido estivesse o apelado na
velocidade permitida. É dizer: a aplicação ao caso concreto do “âmbito de
proteção da norma” (cf. Claus Roxin, “Infracción del deber y resultado en
los delitos imprudentes” e “Sobre el fin de protección de la norma em los
delitos imprudentes”, em Problemas Básicos del Derecho Penal, Madrid:
Reus S/A., 1976, págs. 149ss. e 181ss., respectivamente); essa aplicação,
eu dizia, originalmente idealizada pelo grande penalista espanhol Enrique
Gimbernat Ordeig, mostra com segurança, a meu ver, a inexistência de
responsabilidade do apelado
Pois é claro que a velocidade máxima de 40dkm/h naquele
local não visa a evitar situações como a de um ciclista vindo na
contramão de direção. Ou, para usar as palavras de Frisch, o resultado
que se materializou não foi “el riesgo en virtud del cual está prohibido el
comportamento”; a morte, lamentável mas creio não imputável ao
apelado, não ocorreu como “realización del riesgo desaprobado”.

Irrepreensível, portanto, segundo creio, a r. sentença.

Ante o exposto, meu voto nega provimento ao recurso.

FRANCISCO BRUNO
Relator designado

Apelação nº 0003295-28.2010.8.26.0638 - 1ª. Vara Judicial - Tupi Paulista - 15301


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