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Copyright © 2006 by Alicia Navarro de Souza e Jacqueline Pitanguy Ficha Catalogifica elaborada pela Divisio de Processamento Técnico ~ SIBI/UFRY eee $255 Sade, corpo e sociedade Jorg, Alicia Navarro de Souza & Jacqueline Pitanguy. ~ Rio de Jancis ‘UFRJ, 2006. 260 pu 140 x 210 mm, (Série Didacicos) 1, Saiide ~ aspectos sociais 2, Corpo ¢ mente. 3. Educagio médica ~ aspectos socias. L Souza, Alicia Navarro de (org). Il Pitenguy, Jacqueline (org.), TH CDP 338.09 pee eee one ISBN 85-7108-310- ISBN 978-85-7108-310-3 Coonvesocin on Ste Dinwices Cectlia Moceira Boicto oF Texto Cecilia Moreira Revsto Simone Brantes Carn Pnojsro Geanico Adriana Moreno Eorronsgio ELzmovca Marisa Araujo Universidade Federal do Rio de Janeiro Forum de Cigneia e Culrura Editora UFRJ ‘Av. Pasteur, 250/salas 100 ¢ 107 Praia Vermelha ~ Rio de Jancico CEP: 2290-902 (2) 2542-7646 e 2295-0346 1295-1595 ramais 124 a 127 fw edivora.ulej.br Apoio: Wc 50.244) 2009 Aas ertudantes, futuros profisionais de sade, eujos ideais transcendem a formasito thenica. Bewrtrom Bezerra Jn. O normal e o patolégico: uma; discussdo atual Normal e patoldgico sfo palavras cujo sentido parece dispensar maiores esclarocimentos. Como ocorre com muitas palavras de uso ccorrente, seu significado parece & primeira vista claro, inequivoco. Estio entre aqueles termos que néo suscitam dtividas na vida coti- diana porque partilhamos e reproduzimos, sem nos darmos conta, significados que assimilamos sem critica ou reflexio, Na vida comum do dia-a-dia, isso ndo causa problemas. Quando, porém, precisamos definir conceitualmente a fronteira entre o normal e 0 patolégico, ou quando sitwagGes insdlitas ou duvidosas exigem clareza quanto aos critétios que devemos usar para estabelecer essa distingéo (“esse com- portamento ¢ patoldgico ou apenas diferente?”), toda a complexi- dade do tema aparece de imediato. A vida social ¢ atravessada por Processos nos quais esta demarcagao é acionada: normal ¢ patolégico so categorias que distinguem, no plano social, o que é prescrito ou aceito daquilo queé proscrito ou recusado. Este fato cultural demons- ‘a, por si s6, 0 interesse geral do tema, mas, no campo da satide, sua importincia é crucial. A clinica é um campo ondea demarcagéo entre satide ¢ a doenca ¢ 0 ponto de partida ¢ a buissola que orien- ta a acéo terapeutica, e a referéncia em relacdo 4 qual os resultados terapéuticos sio avaliados. + BENILTON s2zZERRA JR, iia fronteira entre o normal ¢o portanto, estar no centro da reflexio clinica ¢ nna base da formacio dos profissionais de satide, Mas nfo é isto 0 que acontece. Desprovidos das ferramentas conceituais para pensar de forma critica este problema, os profissionais de satide acabam ocupan- do uma po: exemplo, os li da, hoje impulsionada tanto pela inovagio tecnoldgica acclerada, quanto por mudangas sociais que induzem a me forma generalizada, ultrapassando as fronteiras da doenga para se ecrigir em uma prética de aperfeigoamento ou correcio dos orgar ( subordinada no debate contemporineo sobre, por res éticos da intervensio biotecnolégica sobre a vi- na aincervir de mos.' Acabam por assimilar e reproduzir conceitos e pontos de vis- t2 sobre a satide e a patologia que refletem 0 imagindtio social ¢ te6rico vigente, transformando-se~ A sua revelia~ em agentes de um processo crescente de medicalizagio da existéncia ¢ patologizacéo do normal, Na chamada “sociedade do risco”? ¢ a prépria idéia de fronteita demarcando um campo da satide e um campo da patologia que vai se tornando nebulosa, Com o uso erescente de tecnologias de infor- magi e processamento de dados, muda consideravel da aso médica, que jé nao se restringe apenas & prevengio de algu- mas doengas ¢ ao tratamento das demais. E possivel caleular riscos atuais de eventos patoldgicos futures, ou seja, a medi encargo nao apenas doengas reais ou previsiveis, mas probabilidades de grau variado, 0 que torna mais inda estabelecer 0 adequado para a sua intervengio. Praticamente todos podemos, 0 ‘tempo todo, ser alocados em alguma faixa de tisco. A ideologia da sate de perfeita na cultura somatica atual vem produzindo, ainda, performance Fisica ¢ mental que transformam em patol jetite 0 escopo "CE Sibilia, P (2002), * CE Beck, U. (1993). camente tudo que impesa o individuo de atingir as suas exigencias, As nogées de disfuncao, transtomno ou déficit vem transformando nossa experiencia do pathos, que vai deixando de se revestir de uma aura vivencial owexistencial, para progressivamente serem conce- bidas e experimentadas como desvios de funcionamento, erros de programagao ou falhas de desempenho. Retomar a discussfo sobre 0s conceitos de normal e patolégico esté, assim, na ordem do | A medicina niéio é ciéncia Nesta discussio a obra de Georges Canguilhem é uma referencia obrigatéria, Ele a abordou em diversos escritos, mas éinegavelmen- te, em seu livro cldssico, O normal e o patolégizo, escrito em 1943,? que ele a desenvolve com maior profundidade, O ponto de partida fundamental de Canguilhem é a afirmacio de que a medicina nao pode ser considerada uma ciéncia, mas uma précis, “uma arte situada nna confluéncia de varias cigncias” (Canguilhem, 1982, p. 16). A me- dicina impulsiona a expansio dos conhecimentos das ciéncias da fa edas doengas, mas em si mesma néo é uma atividade cientifica, Ela é um conjunto de técnicas ¢ préticas realizacas por humanos vi- sando a outros seres humanos e cujo alvo ¢ 0 altvio ou eliminagéo do sofrimento, ea produgio de condigées para que a vida possa ser uusuftufda da maneira mais rica que cada individuo puder, seja no plano fisico, mental ou social. O essencial da medicina &a clinica e a terapéi stauragio e restauragio do normal, que ndo pode ser reduzida ao simples combecimento” (ibid.; grifo meu). Seu centro de gravidade € 0 pathos, e nfo o logos. Este é suscitado, convocado, rado, sempre que ha um softimento a ser tratado, € a este objetivo deve estar sempre refetido. “O pathos : ela € “uma técnica de » Ao texto escrito em 1943, uma rese de dourorado em medicina com o ttulo de Eusais ster quelques problomes concernant le normal et le parhologigne, foi acrescentada uma segunda parce com textos esritos entre 1963 ¢ 1965, chamada Novar reflectes bre 0 normal 0 pateligice, Reunidas, compoem o livro O normal eo patlégico + ONGRMAL £0 PaTOLOGICO + sennron gezenna ja precede o logos” diz Canguilhem (1982, p. 169), em uma de suas s afirmagoes aforismAticas, E isto significa que na todo conhecimento e de toda técnica est uma exper vivencia de softimento, um valor negativo que se impée &existéncia, Isto € verdade no sentido cronolégico (primeiro veio o softimento, depois a necessidade de conhecé-lo, para traté-lo € evité-lo) e no sentido ético (é em relagio ao softimento e nfo ao conhecimento sobre ele que se pode definir 0 horizonte ético e os limites da clinica), mentalmente, uma prética imp valores. Por mais que utilize dados, técnicas e protocolos cla estd sempre orientada no sentido de tornar a experiéncia da vi da ~ individual ou coletiva ~ a mais livre posstvel dos constrangi- mentos impostos pelos processos patoldgicos, ¢ esta liberdade em relagio aos constrangimentos vitais no pode sex medida de maneira estritamente objetiva, pois é a experiéncia ou a fr 10 da vida que std finalmente em jogo. Em outras palavras, em mediicina os elemen- tos epistémicos sto instrumentos para a obtengio de objetivos ¢ este é um ponto que tendemos a esquecet, mesmerizados pelo fascinio que a parafernilia tecnolégica produz, ¢ obcecados pela aura de importincia superior que nogbes como objetividade e cientificidade parecem conceder Aqueles que as reivindicam para qu: fazer. dos objetivos, estatisticamente mensurdveis, so titeis na nos dio uma visio importante do que podemos, de maneira gené- -onsiderar normal (constantes fisiolégicas, expectativas imento etc). Mas essa normalidade estatistica nao é a base de onde retiramos as normas da satide ou da doenga, Nem todo desvio'em relagao a esta normalidade implica docnga ~ é 0 caso de anomalias que infringem os padrées estatisticos, mas no possuem qualquer efeito de restrigéo das fiungGes vitais, como a dextrocardia 0u 0 situs inversus totalis inversio total dos érgaos internos, que é tama conclicfo rara, mas artamenteregistrada). Por outeo lado, estar dentro dos sempre é garantia de satide: a auséncia de desvios pode esconder na verdade uma incapacidade de fazer frente a exigencias da vida € ossibilidade de se expora elas (criangas mantidas ficiais sio um exemplo extremo desta condigio). $6 é ar de forma consistente a fronteira entre o normal ¢ © patoldgico quando se deixam de lado os critétios meramente ob- 1s ¢ se coloca no centro da reflexéo a mudanga de qualidade, a alteragio de valor vital que a doenga impee que 0 individuo reco- nhece como limitaggo & sua existéncia, |O principio de Broussais Para analisar essa fronteira, Canguilhem recua no tempo histérico analisa 0 pensamento médico do final do século XVIII, quando se consolidam concepgées do normal e do patoldgico que influfram hao 86 na clinica, mas também no pensamento sobre a vida social de todo o século XIX. Ble procura mostrar como o debate em torno esses termos refletia profundas modificagées em curso naquela épo-