Você está na página 1de 206
Eudoro de Sousa Filosofia grega LCE CoRR tele [ol oe g LETTE fo Gabriele Cornelli CEM Merl lea 3 Marcus Mota —e, hs el A) ci =] bs) Professor Eudoro de Sousa (Lisboa, 1911 - Brasilia, 1987) é um dos professores fundadores da CORNEUM CM SCC EMAL OM cor Brasilia em 1962, funda em 1965 0 Centro de Estudos Classicos, espago PSEC E VM ert OMe Me Cec OM pesquisadores de alto nivel na recepgao da Antiguidade. Entre as publicagdes Alster Choc Monee nic sco PINE CRB ai eR Par Ce diversas edigdes desde 1966; Dioniso em Creta e outros ensaios, em 1973; Pree Cer I OLE TIS (RP RMU SLA Lerc LC de Euripides, em 1974; Horizonte e ig CC ee fitologia, em 1980; Historia e mito, reba Pen hece emcee on ea POR eC ee! iicoeacter oy entre filologia e filosofia, a proposigao de uma antropologia filoséfica que correlacione estudos cultural realizados por investigadores Pen er occ CME MC CCL PPM eee MUM Cm Antiguidade, e uma nova énfase no teatro antigo como lugar de conver- géncias e experimentacao de tradigdes PSS oo Em todo caso, 0 humanismo, a erudigéo sio impulsionados por Uae Eudoro de Sousa Revisao da edigdo por Marcus Mota Gabriele Cornelli Com notas e comentarios de Marcus Mota XE) uns il 5028 UnB SUMARIO" PREFACIO COMPLEMENTARIEDADE PRECEDENTES MITICOS PRE-SOCRATICOS PLATAO ARISTOTELES ANEXO Esta seco constitul um sumério temético criado pelos comentaristas da obra, servindo de orientagao aos leitores acerca dos temas abordados, de modo que no hé correspondéncia com os titulos originals do livro. " 5 30 72 123 199 PREFACIO E com grande satisfacdo que apresentamos esta edicdo revisada e anotada da obra Filosofia grega do eminente helenista e professor da Universidade de Brasilia (UnB), Eudoro de Sousa. Eudoro foi um dos primeiros professores da Universidade de Brasilia, na qual contribuiu com a fundagao do Centro de Estudos Classicos (CEC) e tornou-se figura de referéncia para os estudos da Antiguidade no Brasil. Até hoje muitos pesquisadores e alunos da UnB se utilizam de sua vasta biblioteca particular, atualmente disponivel no acervo da Biblioteca Central dos Estudantes da UnB. Eudoro de Sousa é, desde entdo, modelo e inspiragao para os estudos classicos que se fazem em nossa universidade. Uma reedi¢ao desta obra fundamental de Eudoro nos pareceu a natural homenagem a uma das colunas de nosso trabalho. Ela foi possivel gragas a parceria entre a Catedra Unesco Archai (FIL/UnB), 0 Nucleo de Estudos Classicos (NEC-CEAM/UnB) e a Editora Universidade de Brasilia, que esperamos que possa continuar surtindo frutos tao belos e essenciais, em busca das origens do pensamento ocidental e do resgate daquela que ja pode ser considerada a tradicao dos estudos classicos em nossa universidade. Filosofia grega se divide em duas partes: na primeira temos trechos traduzidos de poetas (Homero, Hesiodo, entre Eudoro de Sousa | 7 outros), dos chamados fildsofos pré-socraticos (Anaximandro, Parménides, Heraclito, Xendfanes, Empédocles)ecomentaristas dos temas abordados. Na segunda, temos o encontro com essa metafisica primeira e sua reelaboracao por meio de textos de Platao e Aristoteles. Dessa forma, Filosofia grega se apresenta como notas de aulas das quais nao temos © texto principal. Hd urna forte dependéncia quanto ao livro Horizonte e complementariedade, com referéncia aos textos de la retomados. Em um primeiro momento, é como se fosse uma coletanea de Horizonte e complementariedade. Ou sua ampliagdo: pois agora sao apresentadas tradugées mais completas de pelo menos trés autores - Empédocles, Parménides e Herdclito. S6 a disponi- bilizacdo das traduc6es ja vale a publicagao de Filosofia grega. Assim, mais que uma argumentagao explicita sobre 2 complementaridade entre mito e filosofia, Filosofia grega, na selecdo e tradugdo de textos, propde-se como uma aprofundada discussao a partir de textos, notas e comentarios Para questdes que ultrapassam 0 arcabouco de um livro com unidade tematica. Cada texto traduzido e selecionado traz em si mesmo sua validade e amplitude. A preferéncia por um estilo que se manifesta como conjunto de fontes para um seminario motiva o leitor a nao fechar o horizonte de sua interpreta¢ao Para uma tese que organizaria o livro. Antes de tudo, fica a fruicgdo de cada texto. E certamente 0 caso de lembrar que este trabalho de traducao e disponibilizagdo das fontes para os estudos da Antiguidade é parte essencial do percurso intelectual de Eudoro de Sousa. Como demonstragdo disso, segue anexo © precioso documento Centro de Estudo das Linguas e Culturas Cldssicas, no qual se apresentam as diretrizes para 1 Horizonte e complementariedade. S3o Paulo: Editora Duas Cidades, 1975. 8 | Filosofia grega um centro interdisciplinar para acesso e problematizagéo da Antiguidade. A lucidez do texto escrito em 14 de maio de 1962 Projeta um debate atual sobre a inser¢ao da cultura classica na universidade, tanto nos modos de sua implementa¢ao, quanto na discussao conceitual que determina a¢6es concretas. Ainda ratificando tal dimensdao tradutéria e formativa, Eudoro publicou pela Revista Brasileira de Filosofia em 1954 dois artigos de referéncia, intitulados “Fontes da Historia da Filosofia Grega”, dos quais grande parte do material disponibilizado foi revisto em Horizonte e complementariedade e Filosofia grega. O que fica patente é que o empenho filolégico e educativo de antes possibilitou o vigor ensaistico posterior, pelo qual Eudoro ficou mais conhecido, em livros como Dioniso em Creta e outros ensaios e Mitologia | e Mitologia II. A detida anilise e traduc¢do das fontes, como se vé nos artigos de 1954, entre outros, calcados na edi¢ao de Diels-Kranz, foi o ponto de partida, o estimulo para as argumentacdes e exploracdes filos6ficas nas décadas seguintes. Ler Filosofia grega, portanto, € como espiar na mesa de trabalho de Eudoro de Sousa, em busca de sua arte e de suas ferramentas. Logo, munido de fontes, das bibliografias primarias e dos melhores comentaristas, Eudoro foi ampliando o espectro de suas atividades: de uma convergéncia e filtro de temas da cultura classica para se tornar um autor, em bibliografia mesmo. Ele chegou a esse passo ao debater as relagGes entre filologia e filosofia, entre leitura de textos e sua recep¢ao. Asegunda parte de Filosofiagrega evidenciaisso:aescolha dos textos traduzidos e seu comentario redimensionam as fontes. Ao se revisar historiografias tradicionais da filosofia que partem do trajeto linear “do mito para a filosofia”, perpetuando uma imagem de superacao do primeiro termo pelo segundo, Eudoro tanto evidencia que o estudo do texto Eudoro de Sousa | 9 precisa estar vinculado ao debate das ideias, quanto propde outras possibilidades de interpretacao. Assim, antes de tudo, é preciso voltar as fontes, interrogar os textos, analisd-los, desvendar sua organizagao, compard-los, compor o repertério de referéncia que impulsionara 0 pensamento e a expressao. Como tal, Filosofia grega acaba, portanto, por tornar-se um “manual deinstrugGes” sobre como trabalharcomos textos antigos: uma leitura proveitosa para jovens pesquisadores que desejam se aproximar deste excepcional e entusiasmante Ambito de pesquisa, mas que requer — e Eudoro de Sousa esta aqui para nos lembrar disso 0 tempo todo - muito cuidado filoldgico e histérico. Para esta nova edicao de Filosofia grega, consultamos o texto publicado em 1978, como um dos Cadernos da UnB, pela Editora Universidade de Brasilia, e o republicado no volume Horizonte e complementariedade/Sempre 0 mesmo acerca do mesmo, pela Imprensa Nacional — Casa da Moeda, em 2002. Brasilia, junho de 2012. Gabriele Cornelli e Marcus Mota 10 | Filosofia grega COMPLEMENTARIEDADE 1. COMPLEMENTARIEDADE (HC § 81)' Com referéncia a fisica: certo dispositivo experimental € uma pergunta (como a de qual seja a natureza do elétron), outro dispositivo experimental é outra pergunta dirigida a uma realidade que supomos ser a mesma; um dos dispositivos recebearesposta: “particula” (descontinuo), eo outrorecebea resposta: “onda” (continuo). Ora, na experiéncia e na légica do comum dos homens, em sua vida cotidiana, é claro que as duas respostas sao incompativeis e contraditérias, pois, uma coisa s6, nao pode ser, ao mesmo tempo, continua e descontinua. Trata-se, por conseguinte, de duas objetivagdes, a que certos fisicos chamaram de complementares, da mesma realidade. Isso acontece no estagio seguinte ao da fisica atémica, isto é, 1 Aabreviatura HC seguida de nimero de pardgrafo se refere a trecho da obra Horizonte e complementariedade, de Eudoro de Sousa (Sao Paulo: Duas Cidades, Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 1975). No caso, temos referéncia ao ultimo paragrafo deste livro, aproximando reflexao sobre a Histéria da Filosofia, especialmente o caso Herdclto, de conceitualizacao da fisica quantica. Tal proposta fora defendida no texto “Teismo, cosmobiologia e 0 principio de complementariedade”, apresentado ao Ill Congreso. Nacional de Filosofia (Séo Paulo, 1959). Ou seja, este texto de abertura de Filosofia grega negocia com outros textos, tanto de Eudoro, como de outros autores, conforme se vé no. texto seguinte: (Nota do Comentarista N.C.). Eudoro de Sousa | 11 © da fisica das particulas intranucleares. Conforme a energia de colisdo de uma particula com outra, em lugar da particula colidida, podem surgir duas ou mais particulas, cada uma delas satisfatoriamente individualizavel, por suas caracteristicas prdprias, sem que 0 fisico possa dizer que essas estivessem ja contidas naquela. Quer dizer: aquém de certa quantidade de energia de colisdo, uma particula é simples (ou “elementar”’); além dessa, a mesma particula é complexa. Portanto, se nao laboramos em erro grosseiro, a situagdo verificada na fisica atémica (complementariedade onda-particula), dé-se também na fisica nuclear (complementariedade simples-complexo). E certo que a primeira complementariedade (que a M. Planck se afigurava como inadmissivel irracionalidade), ja satisfaria, ao mesmo tempo, a Bohr e Planck, depois de inventada (ou, simplesmente, aplicada) a nova linguagem matemiatica, que da raz&o, sua “razdo”, ao que era aparentemente contraditdrio (equagao diferencial de Schrédinger, com a introdugao de operadores mateméaticos que fornecem valores e funcdes proprias, e as matrizes de Heisenberg). Mas nao me consta (talvez por falta de informacao recente, neste campo, que nao € o da minha lavra) que, até hoje, se tenha inventado a linguagem matemiatica apropriada a dar razio & complementariedade simples-complexo no dominio das energias bastante elevadas, uma vez que sao produzidas novas particulas 4 medida que a energia aumenta. Todavia, uma coisa é certa: a estrutura da logica comum, que é a da comum experiéncia humana, nao pode dar razdo, uma razdo pragmatica, a essas duas formas de complementariedade nema todas as demais que eventualmente se descubram. Outra, qualquer outra linguagem, descritiva ou explicativa, que a todas pretenda absorver pela “razdo”, ver-se-a perante esta situacao vexatoria: envolver e assimilar o “absurdo” que nem a imaginacao ainda pode alcangar no mais fantasioso de seus sonhos. 12 | Filosofia grega 2. A COMPLEMENTARIEDADE, SEGUNDO F. GONSETH (DIANOIA, 1948) Versdo parafraseada. “Imaginemos dois horizontes sucessivos de realidade, um horizonte aparente e um horizonte profundo. O primeiro, que Gonseth também denomina mundo préprio (do homem), Para nao incorrer nos extremos idealista ‘mundo’ compensa o idealismo extremo) e realista (‘préprio’ compensa o realismo extremo), poderia identificar-se com o horizonte do senso comum ou, por exemplo, com o da ‘metafisica natural do espirito humano’ (Bergson). Enquanto ndo se nos depare qualquer fenédmeno que transgrida a ordem natural em que progressivamente se organizaram as experiéncias e nocdes dadas no horizonte aparente (era 0 caso da fisica, até cerca de 1900), nenhum motivo nos leva a suspeitar da existéncia de um horizonte profundo. Mas, seja qual for o acontecimento que uma vez se atribua ao horizonte profundo, jamais viremos a conhecé-lo sendo pelos vestigios da sua emergéncia no horizonte aparente [...]. Sem excluir a eventualidade de um acontecimento ‘profundo’ poder emergir na ‘aparéncia’, de forma que seus vestigios sejam de uma tinica espécie (V), pode dar-se, e efetivamente se da, 0 caso de certos acontecimentos do horizonte profundo deixarem vestigios de diversas espécies (V’, V”...), e tais que nenhuma construcao intelectual permita integra-los na ‘natureza’, como realidades simultaneamente 2 Reelaboragao de artigo Remarque sur la idée de complémentarité, publicado originaimente ‘em niimero da revista Dialética, Revue internationale de Philosophie de la Connaissance (Dialética, 1. 2, p. 413-420, 1948). A revista foi fundada por Gaston Bachelard, Paul Bemays e o proprio Ferdinand Gonseth em 1947. Neste numero de 1948, editado por Wolfgang Pauli, colaboraram nada menos que Albert Einstein, Werner Heisenberg, Niels Bohr e Louis de Broglie. Paraa revista, v. . Sobre Fernand Gonseth, v. . Esta pardfrase do artigo de F. Gonseth encontra-se ainda no texto Teismo, Cosmobiologia eo principio da complementariedade, tese|programa apresentado ao Ill Congresso Nacional de Filosofia, 1959, (Anais, p. 491-498): (N.C.). Eudoro de Sousa | 13 compativeis com os principios que regem a prépria estrutura do horizonte aparente. Quando nao sejam de considerar senao duas espécies de vestigios ‘aparentes’ de um acontecimento “profundo’, esses vestigios dizem-se complementares. E evidente que, nestes termos, o enunciado de Gonseth descreve a situagao atual das teorias fisicas; basta substituir ‘horizonte aparente’ por ‘horizonte classico’ e ‘horizonte profundo’ por ‘horizonte quantico’ e dizer que 0 vestigio V’ é, por exemplo, ‘onda’, e © vestigio V”, ‘particula’. A emergéncia do acontecimento profundo no horizonte aparente € 0 fenémeno [...] verificado em uma aparelhagem, cujo funcionamento obedece rigorosamente as leis ‘classicas’ e racionalmente conformado as categorias ontoldgicas de substancia e causalidade. Em outros termos, os ‘vestigios’ podem ser entendidos como ‘proje¢6es’, e dizemos que, analogamente ao que se da na geometria, em que as propriedades invariantes das figuras sé nos sao dadas por certas funcdes das coordenadas (diversas de sistema para sistema), também cada fendémeno fisico podera ser considerado uma projecao da realidade, no campo experimental (M. Born). Mas tao evidente é que o mesmo enunciado se presta a uma transposigao prenhe de insuspeitadas consequéncias filosdficas. Com efeito, ‘o ser humano, no que diz respeito as suas relagGes com o exterior, pode ser comparado a uma aparelhagem experimental’ e ‘neste sentido, todos os elementos do nosso horizonte natural [...] se tornam assimilaveis a vestigios de um universo mais finamente estruturado’. Quer dizer: a passagem do horizonte aparente ao horizonte profundo [...] ascende a dignidade de uma operacao filosofica fundamental. Gonseth conclui pela afirmagao de que a complementariedade ‘toma o aspecto de uma experiéncia metafisica, na qual, por mudanga de perspectiva, uma oposigao polar se transformou em oposicao complementar, e que esta nica experiéncia (refere-se a da fisica quantica) basta para que tenhamos perdido 0 direito a pretender que qualquer outro par 14 | Filosofia grega de nogées polares nao possa vir a sofrer semelhante mutacao. E aduz: nao ha razao tedrica para pensar que duas nocdes quaisquer, opostas por polaridade, nao possam aparecer um dia, como dois aspectos de uma unica realidade de outro horizonte’. 3. GUTHRIE, W.K.C. THE RELIGION AND PHILOSOPHY, OF THE GREEKS (HC § 24)? “Parece ter sido um trago comum das primitivas crengas cosmogénicas dos gregos, compartilhadas com as do Oriente Préximo e de outros lugares, que no principio tudo estava fundido em uma massa indiferenciada. O ato inicial, quer o imaginem como criativo, ou como evolutivo, foi uma separacao. No mito hebraico da criacao, relatado no Génesis, ‘Deus dividiu a luz das trevas’ [...] ‘e as Aguas que estavam sob o firmamento das aguas que estavam sobre o firmamento’, e assim por diante. Diodoro comega o seu relato acerca da origem do mundo, que parece ascender a um original do século V, dizendo que, no principio, o Céu e a Terra tinham uma forma s6, porque suas naturezas eram mistas, e cita, em apoio, um verso de Euripides (cf. § 7).4 A mesma ideia aparece no monismo dos primeiros fildsofos da Jénia, e Anaxagoras declara que ‘todas as coisas eram juntas’, até que o Espirito sobre elas impés uma ordem. As teogonias atribuidas a Orfeu e Museu expressavam o mesmo que os fildsofos monistas, dizendo que ‘todas as coisas vieram a ser, de um’ e encorporaram-no em um mito de sua prdépria fabrica. A ubiquidade desta concepcdo, no pensamento grego, justifica-nos a tomar literalmente as palavras 3 Este item é uma tradugdo de trecho do supracitado livro de W. Gunthrie (Cambridge University Press, 1961, p 35-36). Ao mesmo tempo, o item se refere a Horizonte e complementariedade, reforcando, como estamos vendo, a pratica de estabelecer conexées com outros textos. Aqui, como no item anterior, Filosofia grega funciona como uma contextualizagao de temas e ideias de Horizonte e complementariedade: (N.C.) 4 A referéncia a pardgrafo remete-se a Horizonte e complementariedade. © texto de Euripides sera apresentado logo a seguir, no item 5. (N.C). Eudoro de Sousa | 15 que abrem 0 relato hesiddico: ‘primeiro que tudo, o abismo veio a ser’ (em nota: O caos era 0 espaco entre o céu e a terra, cf. Aristoph. Aves 192).° O primeiro ato da geragao do mundo tem de ser a separacdo dos elementos misturados em uma fusdo primaria, em que, particularmente, céu e terra eram um. Esta primeira parte da Teogonia, se bem que retenha a imagem do nascimento, esta bem no caminho que vai do mito a filosofia. Uma vez que o abismo veio a ser, a terra aparece e, com ela, o Eros; enquanto se mantenha a ideia de procriagao, o poder do amor sexual tinha de existir, desde o principio. Este, comumente, tem seu habitat entre o céu e a terra, como no Symposium de Platéo, e em uma versdo da teogonia 6rfica, em que surge de um ovo do qual, as duas metades, dividindo- se, foram respectivamente a terra e 0 céu. Quando o mito vem a ser concebido como veiculo demasiado rude para a comunicagao da verdade (um estagio que nao se encontra muito adiante destes antigos versos de Hesiodo), este poder mediador é€ facilmente racionalizado, como chuva que cai do céu e fertiliza a terra, ou, mais geralmente, como o ‘elemento umido’, em que os fildsofos viram a origem da vida.” 4. CONCLUSOES, RESUMIDAS, DE W. STAUDACHER (HC § 21) O mito da separagao das duas grandes regiGes cosmicas é universal: Staudacher (1942) descreveu as variantes 5 Mais propriamente, “no meio entre a terra (e 0 céu) esta o ar (arjp)”. Mantivemos as abreviaturas de autores e obras da Antiguidade citadas no texto. (N.C). 6 Trecho inteiro retirado de Horizonte e complementariedade. A obra de W. Staudacher referida no trecho € sua tese Die Trennung von Himmel und Erde. Ein vorgriechischer Schopfungsmythos bei Hesiod und den Vorsokratikem.(Tubingem, 1942), cujo titulo tradu> se por “A separacao do céu e da terra. Um mito de criagdo pré-grego de Hesiodo aos Pre- socraticos”, a qual fol reeditada em 1968 (Darmstadt: Wissenschaftlich Buchgesellshatt, 1968). Neste contexto, como se verd nos itens adiante, Eudoro se esforga por incluir textos pré-helénicos ou nao helénicos em sua discussio sobre o mito, aproximando-se das tendéncias orientalizantes no estudo de mitologias comparadas, tendéncia reatualizada hoje pelas obras W. Burkert e de M. L. West. (N.C. 16 | Filosofia grega disseminadas pelo mundo inteiro - tribos africanas, Egito Antigo, Grécia Moderna, literatura babilénica e judaica, hurritas e fenicios, na {ndia, Sibéria, Asia Oriental, Indonésia, Melanésia, Australia, Nova Zelandia, Polinésia e no Continente Americano. A todos os mitos de separacao é comum a ideia de que o céu, antes do comeco da ordem atual das coisas, estava muito mais proximo da terra, criando uma situa¢ao muito desvantajosa para os homens, que s6 podiam deslocar- se rastejando e, nao podendo desenvolver-se até sua estatura normal, se encurvavam lentamente. Falta a vegetacdo e os homens definham de fome; as nuvens que preenchem o estreito espaco entre os dois amolecem a terra, e a chuva devasta os campos de caga. Cita-se mesmo um caso em que o céu chega a devorar os homens, correndo todos o perigo de serem exterminados. Quando o sol ja existe, sua forgada imobilidade acarreta imensas desgracas. Refere-se que um trago especialmente caracteristico do estaégio anterior a separacao é 0 da obscuridade perpétua e impenetravel. Por seu lado, também 0 sentimento do céu e da terra 6 o de quea uniao os prende e oprime: separarem-se é a solu¢ao. Mobil principal do ato decisivo, parece que seja a “conquista da luz”. Antes de cometé-lo, os homens retinem-se em concilio. Primeiro, ninguém se acorda sobre o modo de proceder, ninguém ousa cumprir o grande trabalho; sao muitas as tentativas que falham, até que, finalmente, um o consegue, aplicando todas as suas forgas. Quando o céu se afasta, obedecendo a uma ordem, é necessario 0 repetido pronunciamento da palavra de comando. Umas vezes, a separacao resulta do arremesso de pedras, de tiros de flecha, ou por meio de varas ou de estacas; outras, o céu € repelido por grande fumaga, uma queimada, ou pelas artes de um feiticeiro. Todavia, o mais frequente é que a separacao se efetive por intervencdo de um “ser”, que pode dispor ou necessitar do auxilio de plantas, animais, homens Eudoro de Sousa | 17 ou deuses. A pessoa do proprio “separador” apresenta-se sob diferentes aspectos: o sol representa muitas vezes esse papel (Marduk é uma divindade solar). Em numerosos casos, a separacao opera-se pelo corte do membro que, até entao, ligava o céu e a terra (tubo, monte, arvore, liana, corrente, escada, arco-iris, menhir, cordao umbilical).? Também esse ato é caracterizado como enormemente dificil, por todos os meios de que dispée a arte narrativa dos “primitivos”. Céu e terra podem estar ligados no corpo de um ser vivente, monstruoso (dragao, polvo), que o herdi-separador tera de matar. Também nfo é raro que o céu e a terra sintam a separacao como aniquilamento e pegam misericérdia a pessoa que intenta separd-los. Caso unico é aquele em que o céu deseja © préprio aniquilamento, no interesse dos homens; poucos, aqueles em que 0 céu e a terra se apartam espontaneamente e sem alheio auxilio, mas, aqui, sempre precede uma querela entre ambos. Ou o céu se separa da terra, indignado com a ingratidao e a pecaminosidade dos homens, ou foge, sabendo de seus planos insidiosos. Terminado o drama da separac¢ao, removidos foram todos os males que antes pesavam sobre os homens: os habitantes da terra obtém sua liberdade e poderdo, dai por diante, desenvolver-se sem entraves; a terra devém frutifera, nasce nova vida vegetal e animal; cessa a fome e a chuva mortifera. Porém, o mais importante, é o surgimento da luz e do sol, que separa o dia e a noite. Em algumas verses, a separacao associa-se 0 motivo do paraiso: a proximidade do céu também apresenta suas vantagens, e os tracos positivos da existéncia anterior a separagao resumem-se em uma vida de delicias, em completa ociosidade. Neste caso, é claro que sao inteiramente negativas as consequéncias da separagao e 0 7 Menrir, ou menir, ver do gaélico: men (pedra) + hir (longa). Trata-se de uma pedra alongada colocada em pé coma base cravadano chio. Tal monumento megalitico tem ainda em portugues ‘outro vocabulo: perafita, do latim Petra ficta (pedra fincada, fixa, assentada). (N.C.). 18 | Filosofia grega distanciamento do céu e da terra aparece com efeito de algum equivoco ou transgressdo; digamos, de um pecado original. 5. EURIPIDES (HC § 7)° O mito nao é meu; vem de minha mae: Céu e terra eram uma forma so. De vez que separados foram em dois, Geraram todas as coisas e as deram a luz: Arvores, passaros, animais da terra, aqueles que o mar sustenta. Ea estirpe dos mortais... 6. ENUMA ELISH (INICIO) (HC, IBID.)° Quando em cima o céu ainda nao fora nomeado, Embaixo a terra firme ainda nao tinha nome, Nada (havia) sendo o primordial Apsu, que a todos procriou, E Mummu-Tiamat, que a todos gerou, Suas Aguas misturando em um corpo s6. 7. TEOLOGIA DE HERMOPOLIS (HC, IBID.) “Num € o nome divino das aguas primevas: ja era, antes que o mundo dele emergisse, antes, mesmo, de existirem os 8 Fragmento 848 (Nauck). 49 Titulo do relato babildnico da criagdo. As primeiras silabas no original dao o titulo 4 obra Esta traducSo de Eudoro foi possivelmente feita a partir da traducao inglesa de E. Speiser para a ANET (Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament), editada por J Pritchard (Princeton University Press). No acervo do Centro de Estudos Classicos, fundado por Eudoro, ha uma edicao de 1955 desta obra. A traducao de E. Speiser assim se express When on high the heaven had not been named,| Firm ground below had not been called by name,/ Naught but primordial Apsu, their begether,/ (and) Mummu:Tiamat, she who bore them all” (p. 61). (N.C.). 10 Trecho de Anfangliches Fragen. Studien zur fruhen griechischen Philosophie, de U. Holscher. (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1968), titulo traduzivel como “Questdes primordiais. Estudos sobre o inicio da flosofia grega”. (N.C). Eudoro de Sousa | 19 deuses. Procria oito divindades (a ‘ogddéade’ de Hermépoilis, II milénio a.C.), associadas duas a duas: so quatro pares, dos quais, surpreendentemente, o primeiro é constituido pelo prdprio Nun (‘Aguas primordiais’, identificado por Herddoto, Diodoro e Plutarco com 0 Oceano grego), com sua esposa Naunet; em seguida (?) vém Huh, 0 ilimitado, com Hauet; Kuk, 0 obscuro, e Kauket, a treva; e finalmente Amon, 0 oculto e invisivel, com Amaunet. Os participes femininos sao femininos gramaticais; porém, 0 que mais espanta é a intencdo especulativa, em tao remota era: em sua pluralidade, parecem expressar menos um numero de principios separados, do que qualidades distintivas do estagio primitivo, e a duplicagéo em pares nao significa nenhuma dualidade, mas sim a forga genesiaca.” 8. ILIADA, XIV (HC § 4)" 200 Pois apresso-me air ver os limites da terra nutriz, O Oceano, génese dos deuses, e a mae Tétis, que em suas moradas tao carinhosos me criaram, das maos de Reia recebida, quando Zeus, que ao longe ribomba, precipitou Crono para debaixo da terra e do mar estéril. 205 Vou a vé-los e a pdr fim sua imoderada discérdia. Que ja durante alongado tempo se abstém de seu leito de amor, desde que a ira entrou em seus corag6es. 243 Hera, veneranda deusa, filha do grande Crono, algum outro de entre os deuses eternos facilmente eu adormeceria, mesmo as correntes do rio Oceano, génese que é de todas as coisas. 11 Trechos traduridos do canto 14 de A tada, de Homero. A notacao lateral diz respeito & numerago dos versos. (N.C) 20 | Filosofia grega 9. FRAGMENTO DE “REALEZA NO CEU” Em velhos dias de outrora, Alalu era reino céu. Enquanto Alalu ficou sentado em seu trono, Anu, primeiro entre os deuses, permanecia em pé, diante dele. Ele prostrar-se-ia a seus pés e em suas maos deporia a taca para beber. Nove em numero foram os anos em que Alalu foi rei no céu. No nono ano, Anu deu combate a Alalu e venceu Alalu, que fugiu diante dele e desceu a terra escura. Em baixo ele foi para a terra escura, mas Anu se sentou em (seu) trono. (Enquanto) Anu ficou sentado no trono, o poderoso Kumarbi Ihe daria seu alimento. Prostrar-se-ia a seus pés e Ihe deporia nas maos a taca para beber. Nove em ntimero foram os anos que Anu reinou no céu. No nono ano, Anu deu combate a Kumarbi e como Alalu, Kumarbi deu combate a Anu. (Quando) ele ndo mais resistia ao olhar de Kumarbi, (ele) Anu, ele se esforgou por fugir as maos de Kumarbi. Ele fugiu, ele, Anu; (como) um passaro, voou para o céu. Atras dele Kumarbi se arremessou, apresou(-o) Anu, por seus pés, e do céu 0 arrastou para baixo. Kumarbi mordeu os joelhos (eufemismo!) de Anu e a virilidade deste penetrou nas entranhas de Kumarbi. Quando ali estava alojada, (e) quando Kumarbi havia devorado a virilidade de Anu, ele se regozijou e riu. Anu voltou-se para ele, (e) para Kumarbi comegou a falar: “Ndo te regoziges com tuas entranhas! Em teu interior eu plantei um pesado fardo. Primeiro, emprenhei-te do nobre deus-tempestade (Teshub); segundo, emprenhei-te do rio Aranzahas (Tigre), que nao é possivel suportar. Terceiro, emprenhei-te do nobre Tasmisus (servidor do ‘deus-tempestade’). Trés pavorosos deuses plantei em teu ventre, como semente.” 12 Trecho de poema hitita traduzido para o inglés por A. Goetze. Novamente Eudoro se vale dos materiais da ANET, citados na nota ao item 6. (N. C.). Eudoro de Sousa | 2! 10. EURIPIDES, HIPOLITO (HC § 10) 732 Ah, mergulhasse eu nas inacessiveis profundezas da terra ou, como ave alada, um deus me ajuntasse aos bandos que voam! Pudesse eu livremente erguer-me para as alturas, por sobre as marinhas ondas, até a beira do Adriatico e as dguas do Eridano, ou la onde, nas correntes marulhantes (de seu pai?) gota a gota vertem, chorando, as miseras donzelas, por Faéton apiedadas, lucilantes lagrimas de ambar. Pudesse eu chegar a meu destino (anysaimi)"*, 4 costa extrema, onde brotam os pomos das melifluas Hespérides, onde osoberano domartenebroso veda o caminho aos navegantes e firma 0 venerando término do céu, que Atlas sustém, onde fontes de ambrosia escorrem, junto ao talamo de Zeus, para que a terra santa, dispensadora de vida, dilate a beatitude dos deuses! 11. FRAGMENTOS DE MIMNERMO E ESTESICORO (HC § 16) (a) Strab. | 46 (= Mimn. frg. 7 Bergk)'> “...a cidade de Eétes, onde os raios de Hélio veloz estao deitados em talamo de ouro, a beira do Oceano” (lit. “junto aos labios do Oceano”); (b) Athen. p. 469 F (= Mimn. frg. 8 Bergk) “pois de Hélio, a 13. Trecho do segundo estdsimo (performance coral) da pe¢a Hipélito, comentado nos pardgrafos 10 e 11 de Horizonte e complementariedade, mais a traducdo, que ora se disponibiliza. O trecho apresenta a imagem de uma catabase, variagdo do existencialismo dos limites, comum a geografia mitica e & filosofia. Eudoro dedicou um semindrio inteiro as catdbases, perflando materiais miticos e autores como Camées e Fernando Pessoa. Os textos do seminario, ainda inéditos, foram preservados por Fernando Bastos. (N. C.). 14 A énfase no original grego do termo assim € comentada por Eudoro em Horizonte e complementariedade: “no verso 743, anysaimi (completar sua jomnada, atingir seu destino) deve ter sido mui deliberadamente eleito para nos advertir contra uma confusao fatal: nem 0 Eridano, um de entre os inumerdveis ros da Terra, 6 0 rio Oceano, que circunda a terra, para ld de seus limites, nem a inepta corrida de Faéton é o curso transcendent de Hélio”. (N. C.)- 15, Citagdo de fragmentos de Mimnermo e Estesicoro a partir de suas fontes e edicdes. (N.C). 22 | Filosofia grega sorte que Ihe coube é o labor de cada dia; nem jamais existe repouso, ou para ele ou para seus cavalos, quando a Aurora de dedos rosados deixa 0 Oceano para subir ao céu, pois, levado sobre as ondas, em amavel leito, por mos de Hefesto forjado em ouro precioso, oco e alado, la vai, mergulhado em grato sono, na superficie das aguas, da terra das Hespérides a dos Etiopes, onde os cavalos e o carro veloz o esperam, até que aparece a Aurora, cedo nascida; entao, o filho de Hipérion sobe em seu carro”; (c) Ibidem 469 E (= Stesich, frg. 185 Page) “entdo desceu Hélio, filho de Hipérion, em sua taca de ouro, para cruzar 0 Oceano e chegar as profundas da Noite sagrada e tenebrosa, onde o acolhem mae, esposa e filhos; e o filho de Zéus (Héracles) veio por seu pé até o bosque ensombrado de loureiros”. 12. HESIODO, TEOGONIA (HC §§ 18 E SS.)'* 116 Entao, primeiro do que tudo nasceu (“foi” ou “veio a ser”: (e) génet(o)) 0 caos, e depois/a terra... 126 Ea terra pariu (egeineto), antes de tudo, igual (em grandeza) a ela mesma,/ 0 céu estrelado, para que a encobrisse (Kalyptoi) inteiramente. 123 E do caos nasceram (egénonto) Erebo e a negra noite. Depois, da noite, éter e (a luz do) dia. 16 Tradugdo de trechos da Teogonia, de Hesfodo, os quais negociam com comentarios que se estendem do pardgrafo 18 ao pardgrafo 30 de Horizonte e complementariedade. interessante que muitos destes trechos ou estdo ausentes nos pardgrafos aludidos ou foram retraduzidos, demonstrando 0 continuo processo eudoriano de reelaborac3o de textos e fontes. Nos trechos aqui disponibilizados, Eudoro insere alguns comentarios ou arcades que enfatizam a relacdo com 0 original grego. O trecho entre os versos 736 & 774 descreve o Tartaro. (N.C.). Eudoro de Sousa | 23 713, Aqueles, nas filas dianteiras, despertam a ardente batalha Coto, Briareu e Gies, de guerra insaciaveis. 715 Trezentas pedras, com suas mos vigorosas, despediam, sem cessar, e ensombraram com tais golpes os Tits; impeliram-nos para sob a terra de vastos caminhos e os agrilhoaram ai, com dolorosas cadeias, os orgulhosos que suas maos venceram. 720 Tao longe abaixo da terra, quanto acima dela, o céu. Pois tao distante da terra esta o Tartaro sombrio: Nove dias e (nove) noites necessdrios seriam para que uma brénzea bigorna do céu caindo, no décimo, chegasse a terra; nove noites e (nove) dias necessdrios seriam para que uma brénzea bigorna 725 da terra caindo, no décimo, chegasse ao Tartaro. Em redor deste, se prolonga um muro de bronze, e noite emtrés camadas foi vertida a volta do seu colo (estreito); depois por cima brotaram as raizes da terra e do mar estéril. Ai é que os deuses-Titas, na obscuridade nevoenta 730 foram escondidos por deliberado propésito de Zeus © amontoador de nuvens, nesse lugar brumoso, no extremo da monstruosa terra. Saida nao ha; Poseidon fechou-lhes as portas de bronze, ea muralha corre toda em volta. 736 Ai est&o da negra terra e do nevoento tartaro e do mar estéril e do céu estrelado, por sua ordem, de todas as coisas, as fontes e os limites, lugar terrivel e Umido, odiado até pelos deuses, 740 0 grande abismo (khasma meg(a)). Nem um ano inteiro decorrido, se lhe atingiria 0 fundo, uma vez as portas passadas. N&o; por todos os lados, levar-vos-iam tormentas apos tormentas 24 | Filosofia grega terrivelmente; que enorme e pavoroso, mesmo para os deuses imortais é esse prodigio. Ali se ergue, terrificante, da noite 745 a morada oculta em nuvens tenebrosas, Diante desta, o filho de Japeto sustém 0 vasto. céu, com sua cabega e maos infatigaveis, firmemente, la onde a noite e o dia se encontram e se sadam, ¢ alternados a vasta e br6nzea soleira 750 transp6em; entdo desce uma e 0 outro sobe, e nunca a (grande) morada a ambos envolve dentro; sempre um abandonou a casa e viaja pela terra em fora; a outra, que dentro ficou, espera a hora do seu caminho, até que ele chegue. 755 O dia traz infinda luz aos mortais filhos da terra; mas a noite mantém em suas mos 0 Sono, irmao da Morte, ela, a noite perniciosa, envolta em brumosas nuvens. Ali também suas moradas tém os filhos da Noite nascidos, Sono e Morte, os grandes e pavorosos deuses, e nunca 760 o sol os contempla com seus raios ardentes, nem quando sobe ao céu, nem quando do céu abaixa. De ambos, um so percorre de lés a lés 0 vasto dorso do mar, ea terra, para os homens cuidadosa e benévola. Mas a outra tem um cora¢ao de ferro, uma brénzea 765 alma em seu peito; e cada homem que pegou, para sempre o retém; odiada é pelos deuses imortais. Ali em frente estéo também as ecoantes moradas do deus- khthoniou,” do poderoso Hades e da terrivel deusa Persefoneia; porta vigila, um temivel cdo, 17. Divindade ctdnica, relativo 8 terra, ou do mundo subterraneo. (N. C.) Eudoro de Sousa | 25 770 cruel e cheio de malas-artes, e a quem quer que entre, ele abana a cauda e amistosamente espeta as orelhas, mas, depois, ninguém pode voltar a sair: de emboscada espera e devora a presa que queira transpor a porta. 13. ODISSEIA XI (HC § 23)" Por todo o dia o mar singrou a velas pandas, e pds-se 0 sol e as sendas todas se entrevaram. E chegou aos confins do Oceano de funda corrente onde o povo ea cidade dos homens Cimérios sob brumas e nuvens envolvidos, nao os jamais mirou o sol resplandecente com seus raios, nem quando sobe e vai para o céu estrelado nem quando deste de novo volta para a terra; e uma funesta noite cobre os miseros mortais. 14. GILGAMESH NA LITERATURA DAS CATABASES (HC § 12) Complexa codificagéo do mistério, para o qual aponta aquele momento da grande viagem em que superada parece a mais contraditéria das contradi¢Ges, é a que se nos depara na literatura das catdbases. Propriamente, “catabase” quer dizer “descida”; usa-se, porém, com o significado mais restrito de “descida aos infernos”, acesso ao reino dos mortos, situado nas profundezas da terra, miraculosamente aberto a alguns viventes. No inicio da tradigéo, a espantosa aventura € privilégio dos deuses: no Oriente, quem primeiro desce aos infernos é Inanna-Ishtar e, na Grécia, Core-Perséfone. Depois vém os semideuses, como o Gilgamesh babildnico, “dois tercos deus e um terco homem’”, e o Héracles grego, filho 16 Versos traduzidos por J. Xavier de Mello Carneiro. (N. C.) 26 | Filosofia grega de Zeus e de uma mulher mortal; por fim, incerto numero de herdis, entre os quais avultam, por mais divulgado exemplo, Ulisses e Eneias. A tradi¢ao literaria, para aquém-fronteiras da Antiguidade, reemerge gloriosamente na Divina Comédia; e se, COMO NOs parece, a area semantica da palavra tem de ser ampliada até que atinja o mais alto sentido de “transposicao de todos os limites da experiéncia comum”, também os dois Uultimos cantos de Os Lusiadas reproduzem de modo inédito 0 modelo antigo de uma catabase"’ A mais antiga viagem ao Pais dos Mortos é, sem duvida, uma catdbase stricto sensu! Inanna, “4 do grande em cima pés os olhos no grande em baixo”. As ambiguidades topograficas acerca do além, sé comecam a entrever-se na Ultima versio do poema de Gilgamesh: o teor da parte final pressupde um verdadeiro “inferno”, o mundo subterraneo de onde Enkidu irrompe “como uma lufada de vento”; antes, porém, ja o herdi da epopeia babilénica empreendera a inaudita jornada em busca do segredo da vida, e essa, decerto que nao termina no “grande em baixo”. Gilgamesh segue o caminho do sol, a superficie da terra, até o horizonte a oeste. Apds haver cruzado defesos mares, atravessa a montanha que “diariamente guarda o levante e o poente,/ cujos picos chegam & abdboda do céu/ e cujos seios, em baixo, atingem os infernos”. O tunel tenebroso que trespassa o prdprio corpo da montanha, abre-se, do outro lado, para o deslumbramento de um jardim plantado com 4rvores de maravilha: “A cornalina da seus frutos,/ dela pendem cachos belos de contemplar,/ de lapis lazuli brota folhagem,/ também este da frutos vicosos, belos de olhar”. O jardim deve marginar 0 oceano, pois, no presseguimento da epopeia, a versdo assiria menciona pela primeira vez a divina copeira, Siduri, “que habita junto da solidao do mar” 39 V. do autor, “ Os dois tltimos cantos de Os Lusfadas 8 luz da tradicdo classica”, em Cultura 8, 1972, p. 66-69. (N.C) Eudoro de Sousa | 27 (Scott), ou “junto ao mar profundo” (Speiser) e, ao apelo de Gilgamesh, para que Ihe descubra onde se encontra a morada de Utnapishtim, de quem o herdi espera a revelacdo do segredo da vida, ela responde: “Nunca houve, Gilgamesh, uma travessia/ e ninguém, vindo desde o comego dos dias, poderia transpor o mar./ S6 0 intrépido Shamash (0 Sol) atravessa o mar;/ outro, que nao Shamash, quem poderia cruza-lo?/ Arduo é o lugar da travessia,/ muito dificil o caminho para l4,/ e no meio correm as Aguas da Morte, vedando-lhe o acesso”.”° Gilgamesh persiste em seu propdsito, consegue atravessar as Aguas da Morte e chegar a presenga de Utnapishtim, o Unico, mortal nascido, que, por incomparavel mercé dos deuses, obteve a imortalidade, mas s6 para reconhecer que, afinal, a morte é inevitavel. 15. ODISSEIA XXIV (SEGUNDA NEKYIA) (HC § 14)” Os pretendentes mortos 41 Passaram as correntes do oceano e a rocha Léucade, as portas de Hélio e o povo dos sonhos e logo chegaram a pradaria de asfédelos, onde habitam as almas, imagens dos que morreram. 204 Assim estes uns aos outros tais palavras diziam, de pé, nas moradas de Hades, nos rec6nditos da terra. 20 Scott e Speiser referem'se, respectivamente a A. Scott, que teve sua tradugao da épica de Gilgamesh revista e atualizada, por W. von Soden, formando a popular obra Das Gilgamesch-Epos (Stutgart, 1958), e E. A. Espeiser, que traduziu para a ANET as aventuras de Gilgamesh. (N.C.) 21 0 termo nekyia atualiza o ritual de invocagso dos mortos, para os interrogar sobre o futuro, necromancia. Ainda 0 termo se associa a catdbase, ou viagem ao além-vida, 20 “(que est fora do alcance da experiéncia comum”, nas palavras de Eudoro de Sousa. Os versos aqui traduzidos da Odisseia de Homero refazem a traducdo presente em Horizonte e complementariedade. (N. C.) 28 | Filosofia grega ODISSEIA, XII (INICIO) (HC § 15) Mas quando a nau deixou a corrente do rio oceano e sobre as ondas do mar, de mui vastos caminhos, arribou a ilha Eéa, onde se acham da aurora cedo nascida, os coros ea morada, assim como o lugar donde se ergue o sol... 16. ARISTOTELES, METAFISICA, | 3, 983 B 6 (HC § 34)” A filosofia, na Grécia, tem por certidao de nascimento um texto de Aristételes repetidamente citado e minuciosamente comentado (Met. | 3, 983 b 6 ess.): “...a maioria dos primeiros filésofos, acreditaram que os Unicos principios (arkhds) de todas as coisas (hdpanta ta énta) sao os de indole material: pois aquilo de que constam todos os entes e éa primeira origem de sua geracdo e término de sua corrup¢ao, permanecendo a substancia, mudando, todavia, as determinagdes acidentais, é, conforme dizem, o elemento e o principio dos entes. Por isso creem que nada se gera e nada se destrdi, pensando que tal natureza (physeds) se conserva sempre [...]. Mas quanto ao numero e a espécie desses principios, nem todos dizem o mesmo. Tales, que deu inicio a tal filosofia, afirma que é a agua (por isso, também, declarou que a terra jaz sobre a agua); e talvez (isds) concebesse esta opiniao, observando que 0 32 O trecho marca a mudanca de foco dos textos disponibilizados: até aqui tivemos materiais da imaginac3o mitopoética. A partir deste ponto, entramos em contato com textos dos chamados fildsofos pré-socraticos. A abreviagao no titulo do item refere-se ao modo como as obras de Aristételes so citadas, de acordo com a numeragio de |. Bekker, a partir da ordenac3o de Andrénico de Rodes. Assim temos livro, parte, pagina, coluna, linha. Traduzindo: Metéfisica livro primeiro, pagina 983, coluna B, linha seis. A diviso do livro em. partes é método medieval tomista que se agrega ao dos nuimeros de Bekker, dai o numero marcando o capitulo trés do livro primeiro de A Metafisica. (N. C.) 23 Na transliteraco de palavras gregas, mantenho as opcdes de Eudoro de Sousa em seu texto. A fonte para os textos dos pensadores pré-socraticos foi a obra de Diels-Kranz (Die Fragmente der Vorsokratieker). No acervo do CEC temos duas edigdes da obras: a 6", de 1952, € a 8*, de 1957. A numeragao dos fragmentos traduzidos dos pensadores pré- socraticos aqui citados segue a ordem disposta por Diels-Kranz. (N.C.) Eudoro de Sousa | 29 alimento é sempre Umido e que até o calor nasce da umidade e dela vive (e aquilo de que as coisas nascem € o principio de todas elas). Por isso, talvez haja concebido esta opinido; e também porque as sementes tém sempre uma natureza umida e por sera Agua, para as coisas umidas, 0 principio de sua natureza. Segundo alguns, também os primeiros autores de teogonias (protous theologésantes) muito antigos e anteriores ands, tinham amesma opiniao acerca da natureza. Com efeito, fizeram do oceano e de Tétis, pais da geracdo (tés gennéseds patéras)...”. 17. ANAXIMANDRO (HC § 37)"* Dos que admitem um so principio movente e indiferenciado, Anaximandro ... diz que o indiferenciado é 0 elemento e o principio primordial, tendo sido ele o primeiro que introduziu a palavra | “arkhé”? “apeiron”? |.?5 E afirma que nao é este principio a 4gua ou qualquer outro dos que nds denominamos “elementos”, mas certa natureza indiferenciada, diferente (dos elementos), da qual teriam nascido todos os céus e todos os cosmos neles contidos: |frg. 1] Mas donde provém todos os entes, ai se corrompem também, segundo a necessidade, pois pagam uns aos outros expiaco e castigo, em conformidade com a ordem, do tempo Jou: segundo a sentenca proferida pelo tempo]. Como ele diz em sua pottica linguagem.° YE claro que Anaximandro, porque observou a transformagao reciproca dos quatro elementos, ndo julgou conveniente 24 Trecho da Fisica, de Simplicio (Phys. 24, 13-23), que apresenta interpretac3o de Teofrasto sobre Anaximandro. (N. .) 25, Eudoro intervém no texto com cortes e comentarios. No original grego esté 4peiron. (N.C). 26 O trecho € 0 fragmento 1 de Anaximandro. (N. C.) 27, Aqui retoma’se o comentario de Simplicio, a partir de Teofrasto, sobre Anaximandro. (N. C.) 30 | Filosofia grega tomar um deles como substrato (hypokheimenon), mas algo diverso. E nao atribui ele a geracao a alteracao (alloiouménou), mas a separacao (apokrinoménén) dos contrdrios, por virtude do movimento eterno. 18. SOBRE A TRADUGAO DE “APEIRON” POR “INDIFERENCIADO” Cremos que nem tao grande tenha sido a alteracao semaéantica da palavra, que invalideainterpretacao de Cleve (The Giants of pre-sophistic Greek Philosophy 11 352-353) da mesma palavra no frg. 28 de Empédocles:* “The only meaningful interpretation of pampan apeiron is here ‘completely without limitations, without any borders’ - inside the Sphairos: if that ball were stratified into land, sea, air, and sky, then it have borders within itself. But this sphere is completely without borders, without peirata, which is to say, it is completely homogeneous. The elements are so equally and intimately mixed that inside de ball there is no border possible between one body and another body. The meaning, therefore, is not: ‘the Sphairos extends into infinity’, but: ‘the Sphairos has no interior articulation” (p. 353)- 19. XENOFANES (HC §§ 42-44) 10. Ja que todos, desde o principio, aprenderam com Homero... Je Eudoro refere-se a Felix M. Cleve, autor de The Giants of Pre-Sophistic Philosophy. An ‘Attempt to Reconstruct their Thoughts. 2 v. Haia: Nihoff,1965. (N.C) 2g Nesta sec3o sobre os pensadores pré-socraticos, Eudoro adota mais a forma de uma antologia de fragmentos para os quais se faz necessério o comentario presente em Horizonte © complementariedade. Os pardgrafos referidos desta obra apresentam dliscussio de interpretacdes dos fragmentos, demonstrando a habilidade filolégica de Eudoro em expressar sua perspectiva a partir de uma negociagao com texto e seus comentaristas, tanto os mais fundamentals, quanto os de posicdes mais relevantes a época de redacdo de Horizonte e complementarledade. Novamente, a numeragao dos fragmentos segue Diels-Kranz. (N: C:) Eudoro de Sousa | 31 1. 14. 15. 16. 23. 24. 25. 26. 20. Homero e Hesfodo imputaram aos deuses tudo quanto entre os homens é indecoroso e censurdvel: roubos, adultérios e enganos reciprocos. Mas creem os mortais que os deuses nasceram e que, tal como eles, tem figura, vestudrio e voz. Se mos tivessem os bois, os cavalos e os lees, e se pudessem com as mos pintar ou produzir obras de arte, como se homens fossem, entdo os cavalos pintariam, semelhantes a cavalos, e os bois, semelhantes a bois, as figuras dos deuses, e esculpiriam os corpos deles, cada um em conformidade com o préprio aspecto. De pele negra e nariz achatado, aos Etiopes se afiguram os deuses, mas aos Tracios de olhos azuis e cabelos louros. Um sé deus, 0 supremo entre homens e deuses, diferente dos mortais, na forma como no pensamento. Todo ele vé, todo ele pensa, todo ele ouve. E sem custo tudo move por for¢a do préprio pensamento. Ele sempre se mantém no mesmo lugar, sem mover-se - nem convém a sua natureza, que se mova para ca e para la. PARMENIDES (HC §§ 50-59)" a) Proémio 1. “As éguas que me tiram téo longe quanto o desejo alcance, escoltavam-me, guiando elas, quando me enviaram | puseram na via | no celebrado caminho da 30 Arist. Rhet. Il 23, 1399 B 5: “Tao impios so os que asseveram que os deuses nascem, quanto os que afirmam que eles morrem”. (N. C.) 31. Aqui como em Empédocles, Eudoro opta por traduzir o original em versos metrificados (hexametros datilos) por prosa. (N.C.) 32 | Filosofia grega divindade | 0 caminho que a divindade percorre |, que Por (sobre) todas as cidades conduz 0 homem vidente (sapiente). Por ele me conduziam, por ele me levavam 0s habilissimos corcéis, tirando 0 carro, e donzelas a frente iam mostrando 0 caminho. O eixo, deflagrando Nos cubos, despedia o som estridulo da siringe - pois, de ambos os lados era movido pelo turbilhdo das rodas - enquanto as filhas do sol se apressavam em (nos) conduzir, tendo deixado, direito 4 luz, as moradas da noite, e com as maos da cabeca removendo seus véus. Ali se encontram os portais dos caminhos do dia e da noite; em cima e em baixo sdo mantidos por um lintel e um umbral de pedra; eles prdprios, os etéreos portais, estado cobertos de batentes, dos quais a Diké vingadora possui as chaves cambiantes. Com brandas palavras, as donzelas persuadiram-na que velozmente dos portais removesse a tranca aferrolhada, e a fauce escancarada dos batentes de stibito se abriu, quando os brénzeos pilares, guarnecidos de cavilhas e chavetas, nos mancais giram, um apos outro. Por meio dela e pela estrada ampla, as donzelas conduziram carro e corcéis. Propicia, a deusa me acolheu; e tomando, na sua, a minha mao direita, assim falou, dizendo: “Jovem, que em companhia das auriges imortais e trazido por esses corcéis, a nossa morada chegaste, eu te satido! Pois nao foi a sorte ruim que por este caminho te enviou ~ que bem longe esta ele das sendas humanas -, mas Diké (Justiga) e Thémis (Lei Divina). E preciso que tudo conhecas, tanto o intrépido coracao da verdade bem rotunda, quanto a opiniao dos mortais, em que ndo ha seguranca verdadeira. E, no entanto, também isto aprenderds: como as aparéncias, que permeiam todas as coisas, tinham de ser aceitaveis.” Eudoro de Sousa | 33 b) O ser eaverdade 2. —“Pois bem; vou dizer - e tu acolhe as minhas palavras depois de as escutar - quais sao os caminhos da inquirigdo, os Unicos pensdveis. Um caminho: ‘que é’ e nao é possivel nao ser. Esta é a via da persuasao (e a persuasao acompanha a verdade). Outro caminho: ‘que nao é’ e necessariamente (existe) o nao ser. Por esta via, digo-to eu, nada se pode aprender, pois nem poderias tu conhecer o nao ente (porque nao é possivel) nem dizé-lo.” 3. “..pois o que existe para pensar e ser, 6 0 mesmo.” 4. “Todavia considera como pelo pensamento o ausente te é firme presente. Pois (pensando) nao cortards 0 que é da sua conexao com o que é, nem ordenadamente por toda a parte se dispersando, nem se aglomerando.” 5. “Igual (indiferente) é para mim 0 por onde quer que eu comece, pois ld hei de sempre voltar.”” 6. “Eis o que se deve dizer e pensar: o ‘que é’. Pois 0 ‘que é’, 6, e nao ser nao é. Considera bem isto que eu te digo. Que deste caminho da inquiricao (i. e: pensar o nao ser) te apartes, mas, depois, também daquele por onde erram os ignorantes mortais ~ 0s bicéfalos. Porque a inépcia é que governa, em seus peitos, © errante pensamento. E assim vao e vém, surdos e cegos, embrutecidos, turbas de julgamento destitufdas, para as quais, ser endo ser, o mesmo é e nao 6, supondo que para tudo haja uma reversa via.” 7. “Que ‘0 que nao é’ seja, jamais sera demonstrado. Mas tu, afasta teu pensamento desta via, e ndo consintas que o muito experimentado costume te induza por tal caminho, teus olhos sem fito, teu ouvido ecoante e tua lingua. Nao, decide tu mesmo, pelo proprio pensamento, a tao discutida prova que eu te propus. 34 | Filosofia grega “So resta falar de um caminho da inquiricao: ‘o que 6’. Neste ha muitos sinais de que ‘o que é” ndo foi gerado nem hé de perecer, Pois af esta como um todo, tinico, inabalavel, completo. Nunca ele foi nem serd, porque é agora todo ele, um s6, continuo. Pois que origem querias que ele houvesse tido? Como, donde teria ele crescido? Nem consinto que digas ou penses que originado ele foi do que nao é, pois nem pensar nem dizer se Pode que ‘o que nao é’, é. Demais, originado que fosse o ser do nao ser, que necessidade o teria feito comecar depois, e nao, antes? Assim, ou ele é todo ele, ou nao é. Nunca a forca da persuasdao consentira que ao lado do nao ser outra coisa nasca (sendo o nao ser). Eis porque jamais a Diké redimiu os vinculos da geracao e da corrupcao, e tao firmes os mantém. E sé nisto recai 0 juizo: o (ente) é ou nao é. Condenado necessariamente resulta um dos caminhos, porque impensdvel e inefavel pois nao é esse o verdadeiro - e, eleito, o outro, o unico caminho da verdade. Como poderia ‘o que é’ vir a deixar de ser? Ecomo poderia ele ter chegado a ser? Se foi, nao é; nem &, se vier a ser. Portanto, extinta esta a geracao, e abolida, a corrup¢ao. E indivisivel 6 (‘o que €’), pois todo ele é idéntico. Nao ha aqui um ser mais forte ou ali um ser mais fraco, - 0 que romperia a coeso do todo. Nao, tudo esta repleto do mesmo (ser). Por isso, todo ele é continuo, pois ‘o que é’ é contiguo a ‘o que é’. E imovel; inalteravel dentro dos limites de poderosos vinculos, sem principio nem fim. Porque a geracao e a corrup¢ao para muito longe foram banidas pela verdade persuasiva. Como 0 mesmo, no mesmo persistindo, ele jaz em si (mesmo), sempre no mesmo lugar permanecendo. A poderosa Ananké o mantém nas vigorosas cadeias que o circundam. E é por isso que nao pode ‘o que @’ ser infinito, pois de nada carece. Infinito que fosse, de tudo careceria. O mesmo é 0 pensar e aquilo por virtude do que o pensamento é; porque, apartado do ser, no qual o pensamento se expressa, nunca encontrards o pensar. Eudoro de Sousa | 35 E nao ha nem jamais haverd o quer que seja, fora de ‘o que é’, porque a Moira o agrilhoou de modo que permanecesse inteiro e imével. Eis porque (simples) nome serd O que os mortais em sua linguagem fixaram, persuadidos de que era verdadeiro: gerac3o e corrup¢do, ser e ndo ser, mudanca de lugar e cambio de brilhantes cores. Mas havendo limites ultimos, completo é (‘o que é’), de todos e por todos os lados comparavel a bem arredondada bola, igualmente equi brada do centro para toda a periferia. E impossivel, entao, que algo seja, aqui ou ali, maior ou mais fraco. Pois nem € o nao ser, que obste a igual extensao | do ser |, nem ‘o que é’ pode ser mais aqui e menos ali - inviolavel que todo ele é. Igual a si mesmo de todos e por todos os lados, igualmente vai tocar os préprios limites. Assim termino este fidedigno discorrer e pensar acerca da verdade. Doravante aprende a conhecer as opiniGes dos mortais, escutando 0 ilusdrio arranjo de minhas palavras. Pois convieram os mortais em nomear duas formas, das quais nao é permitido nomear uma sé - no que andam errados - € estabelecer opostas figuras, as caracteristicas apartando, de cada uma: de um lado o etério fogo, doce, sutil, a si mesmo sempre igual, mas a outra nao idéntica; e a outra nado é senao a contraria: a sombria noite, figura grave e espessa. Tal a ordem que te anunci , de todo verossimil, para que jamais te ultrapasse alguma opiniao dos mortais.” c) A opiniao e 0 verossimi “Porém, como todas as coisas de luz e de noite denominadas foram, e conforme suas virtudes os nomes receberam, repleto ficou 0 todo de luz e noite sem luz, das duas igualmente, pois nenhuma das duas participa de nada.” 36 | Filosofia grega to. “Conheceras a natureza do éter e os signos (que estao) no éter, e do claro facho do sol o efeito ardente, e de onde provém, a circunvaga acao da redonda lua e sua natureza; e conhecerds também 0 céu que tudo cinge, donde nasceu e como a reinante Ananké dos astros 0 sujeitou a manter os limites.” 1. “(E agora vou dizer-te) como a terra e 0 sol e a lua, 0 éter a todos comum, a celeste galaxia e 0 olimpo extremo, ea ardente forga das estrelas entraram de existir.” 12. “Foram as mais angustas (coroas) preenchidas de fogo puro, e as seguintes de noite; por entre elas se precipitou a ignea parte. No meio reside a Deusa que tudo governa. Pois a Divindade & nascida e ao parto doloroso chama, impelindo para o macho a fémea e para a fémea o macho...” 13. “Antes de todos os deuses, ela (a Deusa da geracao e do amor) meditou 0 Eros.” 14. “(Alua é) alheia luz que ilumina a noite, circunvagando a Terra.” 16. “Qual a mistura dos membros errantes (luz e noite) tal se apresenta a mente (ndos) dos homens. Pois a mesma natureza é 0 que pensa em todos e em cada um: 0 pleno (ou “o que prevalece”?) é pensamento (nééma).” 19. “Assim - opinam - as coisas surgiram, assim elas so agora, assim hdo de ser depois, e assim hao de acabar. E cada uma os homens designaram por certo nome.” 21. PITAGORAS E O DUALISMO PSICOFISICO (HC §§ 45-48) Pitagoras nada escreveu; 0 que tanto mais nos solicita a que sobre ele escrevamos nos, sempre com 0 perigo a vista, de tomar a “sombra” pelo “fildsofo”. No estado atual dos nossos conhecimentos, e dos preceitos, ou antes, dos preconceitos Eudoro de Sousa | 37 mais ou menos ocultos, que marcam o rumo da pesquisa, parece desesperada a empresa de situar 0 filésofo na linha que tem inicio em Anaximandro e sem esforgo se prolonga até Xendfanes, para terminar em Platao. No entanto, apesar de nascido em Samo, visto que ja em adulta idade e em grau de amadurecido pensamento, demandou as colénias ocidentais, para ai fundar sua escola, mais verossimil do que provavel se torna a hipdtese de uma influéncia de Pitagoras sobre Parménides, mais direta que a de Xendfanes, por muito que a historiografia filosdfica da Antiguidade insista na pretensao de que foi este o primeiro dos Eleatas. As ultimas linhas do paragrafo precedente mostraram até que ponto nos conduz, e em que é forcoso que se detenha, um rastreamento do eleatismo de Xen6fanes. Em todo 0 caso, é certo que nao ha sorte de “prestidigitagao” logica ou paraldgica que converta o Deus-Uno do frg. 23 no Ser de Parménides, mas como também ndo vemos que ponte possa lig4-lo diretamente ao Indiferenciado de Anaximandro, se ndo quisermos renunciar 2 alguma mediacao historica, s6 Pitagoras nos resta, como ultimo recurso. A sombra de Pitagoras prolonga-se pelos dez ou onze séculos que vao da insegura data do seu nascimento até o convencional inicio da Idade Média, e ao longo de todo esse milénio, a unica verdade persistente é a da Lenda Pitagorica, circunscrita a dois pontos, cuja historicidade retine os sufragios da maioria dos pesquisadores responsdaveis: o primeiro esta no centro de uma aritmologia geométrica e fisica, ou de uma fisica e de uma geometria aritmoldgica; o segundo, resume- se no teorema, com todos seus corolarios, expressando, pela primeira vez, no mundo classico, o que em termos de cultura moderna, se poderia designar por “dualismo psicofisico”. Desde a primeira edi¢ao da Psique de Erwin Rohde, reina entre fildlogos e historiadores da filosofia um acordo quase unanime acerca da origem nao grega deste segundo “momento” do 38 | Filosofia grega Primitivo pitagorismo.” Corpo e alma, no homem e em todos Os seres viventes; matéria e espirito, em toda a amplitude do cosmo, inequivocamente distintos e separados, ninguém achara, sem 0 extremado intuito de revoluir a ordem dos tempos, em fidedigno testemunho do pensamento, poética ou prosaicamente expresso, anterior a data mais provavel em que se teriam difundido as ideias pitagéricas. Como as pesquisas de Rohde acerca das concepgGes gregas da imortalidade da alma tinham por fundamento antropoldgico o pré-animismo de Tylor, ndo se nos afigura despropositado que, em confronto, citemos algumas das mais significativas passagens de um livro de outro antropdlogo, incidentes no mesmo tema, mas que gozam da inapreciavel vantagem de mostrar que, nao obstante a insegura base da sua construcao verdadeiramente monumental, é ainda para o mesmo lado que se procuram as origens do pitagorismo, pelo menos, no respeitante ao mencionado dualismo psicofisico, s6 que a concordancia entre os dados da antropologia e da filologia se alinham, agora, em um paralelismo quase perfeito.* “Nas paginas seguintes, ocupar-nos-4 a questéo de averiguar o papel que a alma tem desempenhado nas ideias acerca da existéncia apds a morte.** Procuraremos mostrar que, da variedade dos relatos colhidos pelos etndlogos, se destacam dois circulos de representacdes, cada um dos quais reflete um conceito fundamental, inteiramente diverso do outro. Em primeiro lugar, hé que apercebermo-nos da 32 Olivro referido é Psyche: Seelencult und Unsterbblichkeitsglaube Der Grieche (dois volumes. Primeira edigdo: Leipzig 18901894; segunda edicSo: Leipzig 1988), cujo titulo pode ser traduzido como Psique: Culto de almas e Crenca no imortalidade da alma entre os gregos. No acervo do CEC, temos dois exemplares desta obra. (N. C.) 33 Referéncias ao antropdlogo Edward Burnett Tylor (1832-1917) e seu livro Primitive Culture. Researches into the Development of Mythology, Philosophy, Religion, Art, and Custom (J Murray, 1981). (N. C.) 34 Todo este trecho, que corresponde ao pardgrafo 46 de Horizonte e complementariedade, é uma longa citagSo de paginas do livro Mythos und Kult bei Naturvolkern,de A. E. Jensen (Stuttgart: F. Steiner, 1969), titulo traduzivel como Mito e culto entre os povos primitivos. (N.C.) Eudoro de Sousa | 39 unidade de todas as representagdes do chamado ‘Reino dos Mortos’. As narrativas sobre viagens a esse reino ndo deixam subsistir a menor duvida de que é 0 homem inteiro, e nao, apenas, uma parte dele, que empreende a jornada, - o homem inteiro [...] mas sem seu corpo terrestre. No entanto, se é certo que, sobre a concepcao da existéncia apds a morte, o material etnoldgico nos aponta para a ideia de uma alma que, propriamente, nao se pode designar como tal, visto que, no fundo, ela é todo o homem, também é certo que ha outros testemunhos que efetivamente depdem sobre aquela alma que por ocasiao da morte se separa do individuo. Foi, talvez, Kruijt quem primeiro, opondo-se a teoria de Tylor, chamou a nossa atencao para o fato de a ‘substancia animica’, entre muitos povos da Indonésia, néo ser, em absoluto, idéntica & alma que depois da morte abandona o corpo. Pelo contrario, segundo Kruijt, esta alma, a que ele chama o ‘espirito do morto’, que nao existe enquanto o individuo permanece vivendo, s6 aparece depois da morte; ao passo que a primeira, aquela que propriamente constitui a forga vital do homem, terd, apds a morte, um destino completamente diverso [...]. Consideremos de relance os diversos destinos destas duas entidades [...]. Sobre a ‘alma de vida’ sabemos [...] que, depois da morte do individuo, ela regressara ao lugar donde partiu, 0 que significa, na grande maioria dos casos, que regressaré a0 céu e a divindade, junto da qual, por ocasido do nascimento, teve sua origem [...]. Conforme outras ideias igualmente difundidas, a ‘alma de vida’ permanece, depois da morte, nas proximidades da sepultura e, ndo raramente, em forma de Passaro ou de outro animal alado, para reingressar no corpo de algum recém-nascido, ou de qualquer animal, e, por morte deste, recomegar outra existéncia humana [...]. Esta ideia, que € a de um dualismo psicofisico, em que a alma é, no homem, aquilo que especialmente o liga a divindade, ndo necessitava, 40 | Filosofia grega em absoluto, daquela outra representacao, que é a do ‘Reino dos Mortos’, em que o homem individual prossegue sua existéncia [... Em oposicao a esta ideia da ‘substancia animica’ ou ‘alma de vida’, depara-se-nos, por conseguinte, aquela outra ideia, monistica: a do ‘espirito do morto’, preeminentemente difundida entre os plantadores primitivos, em conformidade com a qual, entendido como uma unidade fisico-espiritual, € concebido como se derivasse diretamente da divindade, isto é, por descendéncia bioldgica. A este ultimo circulo de representagdes é que pertenceria, primariamente, a ideia de um ‘Reino dos Mortos’, reino em que o homem continua a sua propria existéncia individual [...]. Em suma, desde as mais remotas épocas, encontrar-se-iam, ao lado uma da outra, duas concepcées acerca da vida [...] uma das quais chama a nossa atencao para as entidades espirituais, situando-as, em obediéncia a uma perspectiva dualistica, como fenémenos paralelos, ao lado das entidades materiais; enquanto a outra concebia a vida como uma unidade e descobria o milagre divino nos processos bioldégicos da prépria vida. Mas, comuma ambos os circulos, é a ideia de que o homem néo € concebivel sem a divindade. Segundo a concep¢ao dualistica, o homem recebe da divindade a sua alma; na concep¢do monistica, descende dela, diretamente, isto é, biologicamente [...]. O dualismo psicofisico deu origem 4 representagao de uma ‘substancia animica’ especial. E esta representacao prescinde daquela outra, de um ‘Reino dos Mortos’, a qual, assim o cremos, pertenceria a concep¢ao monistica. Porém, os dois circulos, tocando-se, fizeram surgir a ideia de que uma ‘alma de vida-especial, regressa a divindade, apds a morte, enquanto outra ‘alma’ (‘espirito do morto’) empreende sua jornada para 0 Reino dos Mortos” (Jensen, p. 347 € ss.). A “situagdo” etnoldgica, tao claramente descrita por Jensen, é a que os Antigos, na sua maioria, se resignaram a Eudoro de Sousa | 41 verificar: “in tria hominem dividit, animam quae in coelum abit, umbram quae ad inferos, corpus qu(od traditur) sepulturae” (Schol. Veron. ad Aen. V8, v. Ill, p- 432 Thilo). Evidentemente, no escoliasta de Virgilio, anima é a “alma de vida” ou a “‘substancia vital”, e umbra é 0 “espirito” ou “alma do morto”. Mas 0 fato cultural permaneceria intato e intangivel até o momento em que a ciéncia da antiguidade classica se apercebesse de que a anima “quae in coelum abit” é elemento “de um novo padrao de cultura”, a expressao de “uma nova perspectiva da natureza e do destino do homem, estranha aos mais antigos escritores gregos” (Dodds, p. 135). O “Regius Professor of Greek” da Universidade de Oxford, neste capitulo de seu livro excitante, depende, em grande parte, de Karl Meuli, o pesquisador suico que, em um estudo importantissimo (Scythica, em Hermes, 70, 1935) desenvolve convincente argumentagdo da seguinte tese: no século VII, na Citia, e provavelmente na Tracia, os gregos entraram em contato com a cultura xamanista, “ainda existente na Sibéria, e que deixou vestigios da sua passada existéncia em uma vastissima area, que se estende ao longo de um imenso arco, que parte da Escandinavia e, por meio do macico Eurasiatico, atinge a Indonésia” (Dodds, 140). De expor as caracteristicas do shamanismo original, podemos prescindir: basta aludir as do xamanismo grego, e este é o que transparece, por exemplo, em um fragmento de Pindaro (131 Sandys, Trenos): “O corpo de cada homem segue o apelo da morte onipotente, mas resta ainda uma imagem da vida (aidnos eiddlon), pois s6 essa provém dos deuses. Dorme ela, enquanto os membros se agitam, mas quando 0 homem dorme, frequentemente mostra em sonhos um pressagio de alegria ou de adversidade vindoura”. Xenofonte (Kyropaidéa VIII 7, 21) explica: “E no sono que a alma ostenta sua natureza 35 Referéncia ao livro The Greeks and the Irrational (University of California Press, 1956), de E R. Dodds. (N. C.) 42 | Filosofia grega divina; 6 no sono que ela frui de certa penetra¢ao do futuro, o que, evidentemente, se da por ser mais livre durante 0 sono”. Donde se segue 0 podermos esperar que, na morte, ainda mais livre venha a ser a alma, jd que o sono, para todos os viventes, é a mais aproximada experiéncia da morte. Escusado lembrar como, no século IV, Platao langa aos quatro ventos esta ideia que, em seu tempo, ja nao é nova. Todavia, 0 mais importante é notar que a alma que até ent&o nunca fora uma “relutante prisioneira do corpo”’, mas, como sua prépria vida, dele indistinta e inseparavel, sob o impulso do novo padrao de ideias religiosas, passando a se Ihe opor, “introduz na cultura europeia uma nova interpretacéo da existéncia humana” (Dodds p. 139). Antes de Platao, alistam-se muitos nomes, uns provavelmente lendarios, outros certamente historicos, dos que acolheram o “evangelho” xamanista: Abaris, Aristeas, Hermotimo, Zalmoxis, Orfeu, Epiménides e Empédocles. Abaris, “medicine-man” da Citia, provém, segundo a lenda grega, da regiao do Hiperboreos, pelo que se denunciam os vinculos tradicionais, com Apolo e Pitagoras; cavalgando uma flecha, voa pelos ares até onde quer. Os testemunhos gregos vdo de Pindaro a Celso, passando por Herddoto (IV 36) e Platao (Charm. 158 B). O mais notdvel, descontada a fantasia dos pormenores, é um perdido didlogo de Heraclides POntico (fr. 73-75 Wehrli). Aristeas do Proconeso, poeta épico do século VI, passava por discipulo de Apolo e teria sido agraciado também pelo dom de remeter sua alma, separada do corpo, aonde quer que o desejasse. O nome de Aristeas ainda esta mais estreitamente ligado com os legendarios Hiperbdreos, pois teria escrito uma epopeia em trés livros (de que sé restam fragmentos) acerca dos Arimaspos, espécie de ciclopes, em luta incessante contra os grifos, guardides do ouro (Herod. III 116, IV 13 e 27; Aisch. Prom. 802 e ss.). De Hermotimo de Clazémenas também se conta que sua alma Eudoro de Sousa | 43 viajou por terras estranhas, enquanto seu corpo permanecia em casa, inanimado (todas as referéncias em Rohde, Psyche, 2? ed., v. Il, p. 94 ess.) Zalmdxis, ou Salméxis, que, sem duivida foi divindade tracia, humaniza-se nas fontes gregas (a principal é Herod. IV 94-96), a ponto de o converterem em escravo de Pitagoras, que lhe ensinou a doutrina da transmigragao das almas, depois, por ele transmitida a seus conterraneos. A imortalidade, pretendeu ele prova-la por um engenhoso ardil: de tempos a tempo escondia-se durante trés anos em uma camara subterranea e fazia que se propagasse a noticia de sua morte; findado esse lapso de tempo, reaparecia em publico, “reencarnado”. Orfeu é uma figura que, por demais conhecida, podemos omitir nesta sequéncia. Alids, € bem notorio o processo, mediante o qual, a moderna historiografia filosdéfica veio a concluir pelo compromisso designado por “orfeo-pitagorismo”. Epiménides de Creta dormiu durante cinquenta e sete anos em uma gruta sagrada da ilha, talvez aquela mesma em que Zeus nascera. Do Suda (s. v., cf. Diels- Kranz 3 A2)consta que despedia sua alma tantas vezes quantas desejasse, e outras tantas a readmitia em seu corpo, e que, apos sua morte, se observou que a pele dele estava coberta de tatuagens. Sobre este ultimo trago da lenda, Dodds anota que entre os gregos a tatuagem sé era usada para marcar escravos e, portanto, deparamo-nos aqui com um sinal da sua consagra¢ao como servus dei, mas o fato também aponta para a Tracia, onde as melhores das gentes eram tatuadas. Outro, que nao comentariamos se Dodds o néo mencionasse, é 0 fato, testemunhado por Didgenes Laércio (1114) de que Epiménides se alimentava exclusivamente de um preparado vegetal (de “vegetal” nao vemos qualquer vestigio em Didgenes Laércio) que “recebera das Ninfas e guardava em um casco de boi” - Dodds intercala por sua conta, que o depésito de alimento em um casco de boi tem raz6es s6 por Epiménides conhecidas. 44 | Filosofia grega Mas, ao que nos parece, é por ai que se revela 0 segredo do preparado: a relagdo mistica, que liga geneticamente as abelhas ao cadaver de um boi (v. Verg. Georg. VI), de provavel origem cretense, aponta para o mel, alimento de imortalidade. Finalmente Empédocles, pelo qual entramos em épocas mais esclarecidas pela investigacao historica - esse teria sido o ultimo, e ja extemporaneo, xaman grego. Alguns fragmentos dos Katharmoi (“Purificag6es”) ai estao para testemunha-lo (pela ordem numérica da edigao de Diels-Kranz): 112, 115, 117-121, 125-129, 146-147. Na lista dos xamans gregos, entre Epiménides e Empédocles, intercala-se naturalmente o nome de Pitagoras. Alias, € ao Crotoniata que se refere o frg. 129, cujo sentido se define pela convergéncia de todos os demais. A imagem que resulta, é com efeito, a de um complexo mental, inédito no mundo grego: se a imortalidade da alma e a transmigracao, jamais separadas do nticleo original do pitagorismo, se conformam com a maioria das concepgdes expressas por esses fragmentos de Empédocles, nao pode incidir sombra de duvida sobre os contornos bem nitidos de uma doutrina, na qual a parte do homem, remanescente e permanecente fora do corpo, “nao é um resto miseravel (como a “psykhe” no Hades homérico), mas o que dele é verdadeiramente vivo” (Gigon 1945 p. 133)° E podemos concluir este paragrafo que ja vai longo, citando umas poucas linhas deste autor, entremeadas com um breve aceno prospectivo: “A alma cai em uma radical oposicao ao corpo: ela é 0 perfeito, e ele, o vulgar”. Certo é que a oposicao alma-corpo produziu muitos e bem amargos frutos, em todo o curso do pensamento filosofico e do desenvolvimento da consciéncia religiosa, mas nado menos certo é que desencadeou, na investiga¢ao racional, 36 Referéncia & obra Der Ursprung der Griechischen Philosophie von Hesiod bis Parmenides (Schwabe, 1946), de O. Gigon, titulo traduzivel como As origens da filosofia grega, de Heslodo a Parménides. (N. C.) Eudoro de Sousa | 45 o despertar do drama especulativo que abre com a oposi¢ao paralela, entre espirito e matéria. Também esta teve infelizes consequéncias: algumas perduram, e néo cessam enquanto no surgem, na intencéo de sand-las, uma razao dialética ou uma perspectiva de complementariedade. Em Pitagoras “esta © ponto de arranque de todos os esforcos antigos, em direcao ao conceito de espirito, como algo claramente oposto a todaa realidade material. O espirito apresenta-se, antes de mais, como a negacao sistematica de toda a corporalidade, e s6 porque o espirito se Ihe opée, a matéria aparece como absolutamente ‘material’. A preocupacao religiosa faz surgir 0 conceito de alma como objeto de inquietude humana e desemboca no conceito de espirito absolutamente incorpdreo, em oposicao & matéria sem espirito. A filosofia janica acha-se muito mais para aquém de semelhante oposigao”. (op. cit. p. 132-133).3” 22. EMPEDOCLES (HC §§ 60-62) 1. O poema fisico 1. Ouve-me tu, Pausanias, filho do sabio Anquitas! 2. Restritos poderes por seus membros estdo difusos e muitos males os acometem que Ihes embotam o engenho. Da vida, em sua vida, pequena parte descortinaram. Votados 4 morte Proxima, como fumaca se evolam e desvanecem, cada um se persuadindo somente do que, errante, por acaso logrou atingir. E entretanto apregoam todos toda a verdade haver achado! Tao pouco, porém, o homem a entende pela vista ou pelo ouvido, ou pela mente a pode cingir. Mas tu saberas - tu, que (dessa gente) te afastaste: nao mais, todavia, do que 2 humana inteligéncia é dado saber, 37 Ou seja, a obra de O. Gigon. (N.C.) 46 | Filosofia grega 13. 15. Mas vos, 6 deuses, para longe de minha boca afastai a insania (deles) e de meus labios santificados deixai que brote uma fonte Pura. Ea ti, 6 Musa, virgem memoriosa, dos cndidos bracos, eu te suplico, traze, guiando-o até mim, da piedade o carro décil (da cangao) e dela me concede ouvir 0 que é justo que ougam os efémeros mortais! Nem cobica das flores da inclita fama, entre os homens colhidas, te hao de forgar a dizer mais do que a Piedade consente, para, entao, subir ao trono da suma sabedoria. Eia pois! Com todos os teus poderes nas varias coisas atenta, do lado por que cada uma é manifesta. Nao confies mais nos olhos que nas orelhas, nem esquegas pela sonoridade dos ouvidos a clara sensagao do gosto; nem a fé recuses a qualquer dos outros membros, por quanto te encaminhem no conhecimento, mas tudo aprende em quanto se manifesta. Aprende primeiro que quatro sao as raizes de todas as coisas: Zeus cintilante, e Hera vivificante, assim como Aidoneu, e Néstis, que por suas lagrimas se esparge das fontes mortais. Ingénitos (os elementos). E outra coisa te direi: nascimento nao ha um Unico de entre todos os entes mortais, nem fim pela morte infausta, mas sO mistura e permuta das (substancias) misturadas - eis 0 que os homens denominam nascimento. Quando, mistos (os elementos) vém a luz etérea, sob aspecto de homem ou de besta fera, ou de planta ou de ave, dizem que isso é nascer, mas quando, depois, uns dos outros se apartam, falam entdo de infausta morte. N&o dizem como justo seria dizer, mas, obedecendo ao costume, assim o direi também. De vazio ou excessivo, no todo nada ha. Nunca em seu coraco um homem sabio diria que, por quanto tempo vivam os mortais a vida que chamam vida, s6 por tanto Eudoro de Sousa | 47 16. 17. tempo existam e 0 bem e o mal Ihes acontega, e que nada sejam antes de formados e depois dissolutos. Pois, em verdade, eles (amor e ddio) eram antes, e depois hao de ser; e nunca, assim 0 creio, ermo de ambos sera 0 tempo sem fim. Dois (discursos) proferirei: como, de uma vez vem um a ser, de muitos que eram, e de outra vez, de um que era, muitos vém a ser. Portanto, dupla sendo a génese dos mortais, dupla também é sua perda, pois uma coisa nasce e outra perece, pela conjuncao de todas, e outra, uma vez gerada, se extingue, quando de novo todas se apartam. E nao cessa a continua mutagao: ora entram de congregar-se todas em um todo, pela atragao do amor, ora de desagregar-se cada uma para seu lado, pela repulsdo do édio. Assim, porquanto o um nasce dos muitos, e depois, dissolvendo-se um, muitos dele renascem, Pportanto sao gerados os entes e eternamente nao duram, mas porquanto nao cessa a continua muta¢ao, portanto imdveis no ciclo perduram. (v. 14) Pois bem; escuta as minhas palavras, que o aprender te fortalecera a inteligéncia! Jd disse, quando expus 0 alvo da minha mensagem, que dois (discursos) proferirei: como, de uma vez, vem um a ser de muitos que eram, e de outra vez, de um que era muitos vém a ser, - fogo e agua e terra, e do ara imensa altura e a parte o édio funesto, em torno deles equilibrado, e no meio o amor, igual em comprimento e largura. Contempla-o com a mente, e nao fiques af sentado, com olhos escancarados de espanto, pois também creem os mortais que implantado esta o amor em todos os seus membros, que por ele amigas coisas se pensam e obras de amizade se cumprem, e como quer que o chamem, pelo nome de alegria ou de Afrodite. Mas, se bem que em circulo se mova com eles, nenhum mortal o conhece ainda. Segue tu o veridico caminho da minha mensagem! Sao estes (os quatro elementos e as duas forgas) todos iguais, e igualmente ancestrais, mas 48 | Filosofia grega 20. 21. 22. tem cada um sua dignidade e cada um sua indole, e todos, um apés outro, prevalecem no curso do tempo. Nada mais vem a ser e nada mais deixou de ser, Pois se até final perecessem, j nao seriam. Mas, que viria entao acrescer 0 todo? £ donde viria 0 acréscimo? E como havia de perecer, se ermo deles nada existe? No! Sé eles existem. E perpassando uns pelos outros, so eles que devém isto ou aquilo; permanecendo, contudo, sempre os mesmos. Este (conflito entre as duas forcas) bem visivelmente se manifesta na massa dos membros mortais. Pois ora se juntam em um S6, pelo amor, todos os membros que por sorte haviam de formar um corpo, no apice da vida florente, ora apartados pelo ddio funesto, cada um vai errante pelos escolhos da vida. Omesmo se da com as arvores e os peixes que habitam as 4guas e as feras que dormem nos montes e as aves que cruzam os ares. Vamos, considera estes testemunhos das minhas palavras, das que ja foram ditas; vé se alguma falta, que nao tenha dito, quanto a forma (dos elementos). Contempla o sol esplendoroso de olhar, t40 quente todo ele; e quantos (corpos) imortais (hd no céu), banhados de chamas ardentes, e a chuva escura e fria; e vé como da terra irrompe quanto é firme e sdlido fundamento. Todos pelo ddio se apartam e de outras formas se revestem; todos pelo amor se unem e uns aos outros se desejam. E que de todos eles (os elementos) provém tudo o que foi, tudo o que 6 e ser - as rvores, os vardes como as mulheres, as feras e os passaros, os peixes que as aguas nutrem, e os deuses que de longa vida desfrutam e de bastas honras. Sdo esses (os elementos), pois, os que sdo, e que uns por meio dos outros passando, varios se tornam de aspecto. Tao grande mudanca, da mistura resultou! Pois concordes sao todos estes - sol, terra, céu e mar -, em todas suas partes que disseminadas se encontram, longe, Eudoro de Sousa | 49 pelos entes mortais. E assim, de quantos hoje mais propensos a conjugar-se, esses se assemelham e por Afrodite se retinem, Inimigos, ao invés, séo quantos entre si diferem - pela origem, mistura e formas impressas - de todo desabituados a unir-se e contristados bastante pelo conflito do édio que Ihes ha dado origem. 23. Quando os pintores pintam quadros votivos - homens mui peritos na sua arte, que séo - tomando com suas mios matérias de variadas cores, harmoniosamente as misturam, mais de uma, menos de outra, e com elas produzem figuras semelhantes as coisas que existem: arvores, var6es assim como mulheres, feras e passaros, peixes que as 4guas nutrem, e deuses que a longa vida desfrutam e de bastas honras. - Pois n&o consintas que 0 erro se aposse de ti: nado creias que outra seja a origem das coisas mortais - de tantas quantas te sao manifestas. Conhece-o claramente, pois a prdpria palavra de uma divindade tu escutaste! 26. Alternadamente prevalecem (elementos e forgas) no decurso do ciclo, Desaparecem uns nos outros e crescem cada um por sua vez segundo a sorte que lhes é destinada. Sao estes, pois, os elementos que sao. Mas passando uns por meio dos outros, revestem-se do aspecto de homens ou de outras espécies ferinas, ora, conjuntos pelo amor, formando uma sé harmonia, ora, disjuntos pelo ddio, se apartando, até que a precedente harmonia de todo se desvanece. E assim, porquanto vem um a ser, de muitos que eram, e de um que era, muitos vém a ser, portanto sao gerados os entes e eternamente nao duram, mas, nao cessando a continua mutagao, imdveis no ciclo perduram. 27. La,nemse distinguem os rapidos membros do sol, nem da terra a hirsuta forga, nem se vé o mar. Firme reside o rotundo Esfero nas densas moradas da harmonia, gozoso de sua envolvente solid3o (ou “quietude”?). 50 | Filosofia grega 27a. 28. 29. 30. 31. 35- 36. Nem a discérdia, nem a infausta querela, nos seus membros... Por todos os lados igual, completamente indiferenciado, © rotundo Esfero, gozoso de sua envolvente solidao (ou “quietude”?). Que no dorso nao Ihe nascem dois ramos, nem pés, nem joelhos rapidos, nem membros genitais. Esférico ele 6, e de todos os lados igual a si mesmo. Mas quando o ddio em seus membros cresceu, e a gléria se quis erguer, chegado que foi o tempo que a ambos (amor e 6dio), alternados, por juramento foi prescrito... ..todos, um apés outro, os membros da divindade abalados foram... E agora tomo a passar por aquela senda do meu canto, que antes percorri, e das palavras que ja disse outras hei de tirar. Quando para o fundo abismo do turbilhdo o ddio retrocedeu, e o amor chegou ao centro do vortice, todas as coisas ai se juntaram para uma so virem a ser. Nao de uma vez todas, mas cada uma de seu lado vinha chegando. E assim que se misturaram, inumeras estirpes mortais por toda a parte se difundiram. Muitas, im-mistas, sobejam, entre aquelas que se misturam: todas as que o 6dio mantinha suspensas, pois nao se retirara de todo, até os derradeiros extremos do circulo, e fora de uns e dentro de outros membros do todo, permanecia ele ainda. Porém, mal se retraia 0 ddio, assim progredia o doce influxo do imaculado amor, e logo em mortais se misturavam as coisas outrora imortais, e em mistas as que 0 nao eram, trocando seus caminhos. E assim que se misturavam, intimeras estirpes mortais nasciam, com toda a espécie de formas, maravilhosas de contemplar. E enquanto se uniam os elementos, aos extremos se retraia 0 6dio. Eudoro de Sousa | 51 37- 38. 39- 57- 58. 59- 60. 61. 62. 52 (O fogo aumenta pelo fogo), acresce a terra o prdprio corpo e o éter (aumenta) o éter. E agora dir-te-ei a primeira origem do sol, e donde manifestas surgiram todas estas coisas que ora vemos: a terra e o mar das ondas imensas, e 0 Eter-Titd que tudo em circulo abraga. Se, em verdade, as profundas da terra infindas fossem, e o vasto éter - va palavra que pronunciada foi, da boca de tantos que do todo tao pouco viram. Muitas cabecas germinavam (da terra?), sem pescoco; separado dos ombros, bragos nus andavam errantes, e olhos vagueavam, das frontes apartados. S6s, vagueavam os membros isolados, procurando juntarem- se uns aos outros. Mas depois que um deus e outro deus (amor e édio) As maos vieram, estes (membros) se reuniram a sorte dos encontros, e outros iam nascendo, que aos demais se juntavam. (Nasceram criaturas bovinas) que os pés arrastam, e de maos (sem conto). Muitos nasciam com duas faces e dois troncos; bois de fronte viril ou, pelo contrario, uma progénie de humanos com a face bovina; mistas criaturas, andréginas, de sexos umbrosos. E agora escuta como foi que, ao segregar-se, o fogo trouxe a luz ‘os noturnos ramuinculos dos homens e das mulheres de copiosos prantos. Ouve, que nem vas nem estultas sdo minhas palavras. Primeiro, inteirigas formas brotaram da terra, comparticipes da agua e do fogo. Essas, 0 fogo as fez surgir, pois ansiava ele por juntar-se ao semelhante fogo do céu (mas nao mostravam ainda) as formas primigénias 0 amavel aspecto dos membros - ndo tinham voz nem o membro (genital) que é proprio do homem. Filosofia grega ~“ sy o 110. m1. Se acaso mal firmada a tua crenga ficou, acerca desta doutrina como da agua e da terra, do ar e do fogo, conjuntos, as formas surgiram, e as cores, de quantos mortais agora nascem, por Afrodite harmonizados... .€OMO as altas arvores e os peixes que vivern nas salsas ondas (nasceram)... .também entao a Cipria, a terra umedecendo de chuva, entrou de formar (os entes), € a0 fogo rapido os confiou para que hes consolidasse as formas. . Nas ondas do sangue borbulhante se alimenta (0 coracdo?), e ai reside (mais do que em qualquer outro lugar) o que pensamento entre os mortais se diz, pois 0 sangue que em volta do coragdo circunflui, para os homens é pensamento. Pois se em teu firme pensamento asseguradas, com piedade e puras inteng6es as contemplas (as doutrinas do mestre?), todas em todo o tempo te serao presentes; e muitas adquirirds ainda, porque, de per si, uma a uma se acrescem no intimo coracao dos homens, segundo a natureza de cada um. Mas se outras coisas desejas, as quais entre os homens por mirfades se contam, tristes, que Ihes obtundem o engenho, aquelas te abandonargéo em breve, no decorrer do tempo ansiosas por tornar a estirpe sua. Que tudo - saberas - é consciente e do pensamento participe. Conheceras todos os remédios que da velhice nos defendem contra os males, pois sé por ti tudo isso cumprir eu quero. O impeto aplacaras dos ventos infatigaveis, que sobre a terra se arremessam e os campos devastam; e se quiseres, a teu chamado atrds tornarao, reparadores. Depois, da nebulosa chuva a oportuna estiagem para os homens restabeleceras, e depois a ardente seca de novo mudaras nas chuvas nutrizes das arvores, escorrendo do céu. E do Hades has de trazer a vida de um homem defunto. Eudoro de Sousa | 53 Ns 13. 114. 15. 116. 54] Il - Poema lustral Amigos, que a grande urbe debrucada sobre o fluxo Acragas habitais, ld na cidade alta; vds, que aos nobres trabalhos vos dirigieis solicitos e, ignorantes de perfidias, honrosa seguranca guardais aos forasteiros, salve! Eu vos digo que, deus imortal, e j4 nao homem mortal, por entre vés andando vou, por todos venerando como digno vos pareco, cingido de faixas e coroado de verdes grinaldas. E as vossas cidades florescentes, quando chegado, eis que homens e mulheres honras me prestam; e, seguindo meus passos, vém, turba sem conta, desejosos de aprender a via do lucro; uns me pedem ordculos; outros, das doengas inumeras - que de tantas sofrem as dores cruéis -, o verbo salvador querem escutar. Mas, para que me deter aqui, como se mérito grande houvesse, em exceder os homens atormentados de penas sem fim? Amigos, eu sei que a verdade reside nas palavras que vou dizer; muito ardua, porém, ela é para os homens, e sé apesar deles o impeto da fé encontra o caminho da alma. Ordculo do destino, dos deuses remoto decreto, sempiterno, e por amplos juramentos selado: se algum seus membros maculou de sangue homicida ou, perjuro, 0 édio seguiu - algum dos a quem longa vida em sorte coube - trés vezes dez mil estacdes andara errante, dos beatos apartado; e renascera pelo tempo em fora sob todas as espécies de formas mortais, uma por outra trocando as tormentosas sendas da vida. Que o ter potente do mar o precipita, e o mar o joga na terra arida, e a terra, para o sol esplendente, que de novo o arremessa para os turbilhdes do éter. Cada um de outro 0 recebe, mas todos o repelem. Um desses eu sou também, por Deus banido, e errante, que confiado fui no édio insano. graca aborrece 0 intoleravel destino. Filosofia grega 17. 118. 119. 120. 121. 122. 123. 124. 126. 127. 146. Pois mancebo e donzela, arbusto, passaro e mudo peixe do mar outrora eu fui. (Ao nascer) chorei e gemi, olhando a terra insdlita. De que alta dignidade, de que magna felicidade (eu cai, para errante andar na terra!) (No poema de Empédocles, as poténcias divinas que conduzem as almas, dizem assim:) Aqui chegamos, em baixo, neste antro... .. Terra sem alegria, onde morte e desavenca e turbas de outros males, aridas moléstias, gangrena e dissolucdo, tenebrosas vagueiam pelo prado da desventura. La estava a senhora terra e a senhora luz do sol da larga vista, a sangrenta discérdia e a harmonia de olhar austero e tranquilo, | senhora | bela e | senhora | feia, | senhora | pressa e (senhora) Tarda, a amavel veracidade e a confusdo (?) de olhos negros... E (as formas?) da nascida e morte, do sono e da vigilia, do movimento e do repouso, da majestade ricamente coroada e da baixeza, do siléncio e da palavra... Ai de ti, 6 misera raga dos mortais, tao angustiada, que de pugnas e gemidos tantos nascida fost ...(Nascimento: feminino) demnénio que (as almas) reveste de alheias tunicas de carne. (Na transmigracao das almas, os homens) preferem, de entre as feras, em leGes tornarem-se, que as montanhas habitam, a terra tendo por leito; e em loureiros, de entre as arvores de opulenta folhagem. ..Mas, por fim, em vates, poetas e médicos, eles se tornam, e principes entre os terrigenos, donde a deuses se elevam, em dignidade, os supremos. Eudoro de Sousa | 55

Você também pode gostar