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HVMANITAS — Vol. LIII (2001) HUMANISMO JESUITICO E IDENTIDADE DA EUROPA [MARGARIDA MIRANDA Universidade de Coimbra Abstract: In this article, the A. highlights the specific contribution that Fesuits gave to the shaping of Modera Europe. The A. argues tht, inthe creation process of the “European Identity”, the Jesuit contribution corresponds to the Hellenic, ‘Roman and Judeo-Christian paradiems which Jesuits adopted for their own for- ‘mation and mission ad gentes. This is why many Jesuits have been reckoned ‘among the greatest European humanists, pedagogues, poets, mathenaticians, scientists, astronomers, and architects. Above all, they should be remembered in History of Education as “masters of Europe” on account of the unparalleled network of Colleges they themselves founded all over Europe: in 1579 Jesuits ‘had founded 180, while in their apogee in 1710 the number of Colleges reached 517, ranging from Portugal to Russa, and including also the Provinces of lal, Belgium, France, Germany, Spain, and Easter Europe (Austria, Bohemia, Po- land and Lithuania). So wide a network of transnational Colleges was united through one only idiom, Latin, as well as a scholarly system which was an- chored in the anthropological and pedagogical foundations of the Society of Jesus’ Ratio Studiorum. 1. Introdugio Em 1999 completaram-se quatro séculos sobre a edigio definitiva da Ratio atque Institutio Studiorum Societatis lesu que representa o principal documento do sistema educativo da Companhia de Jesus. Nele os Jesuitas Constituiram o seu método e programa de estudos, para orientagdo estével, eficaz, 84 MARGARIDA MIRANDA, © completa da sua acgio pedagégica nos quatro cantos do mundo." Fruto de cerca de cinquenta anos de consultas, reunides, escritos, recolhas de experiéncias progressivamente transformadas em teorias ¢ de novo testadas em exercicios priticos, a redacgao de 1599 jé conhecera duas anteriores: a de 1586 e a de 1591. Esta porém, publicada em 8 de Janeiro de 1599 durante ‘mandato do Padre Geral Clatidio Acquaviva, com ligeiras alteragdes em 1616, tomar-se-ia o cinone de estudos obrigatério da vasta rede de colégios jesuiticos ‘que fonciouaiiam aif 1773 {ano da suprcasto da Companhia) nfo apcnas 08 Europa mas ainda na fndia e nas Américas, onde a cultura ocidental podia ‘confrontar-se com a local ¢ autodefinir-se. Deste modo, durante mais de duzentos anos, as letras eas Humanidades cléssicas tiveram nos Jesuitas os seus principais arautos, pois os autores da Ratio estavam convencidos de que a formagao intelectual juntamente com a formagao da virtude concorriam para a criagdo do ideal do homem completo da Paideia humanistica cris. Para os Jesuitas, pedagogos da Reforma Catélica, ‘como ads para os pedagogos da Reforma Protestante, os autores pagios tinbam por isso uma palavra a dizer. O Humanismo Cléssico podia e devia dar um enovado suporte ao novo ideal da Reforma crst ‘A imagem do ensino na Universidade de Pars, a Ratio Studiorum, nascida dos cfnones renascentistas no seio da experiéncia jesuitica, estava organizada em trés ciclos de formagao: liteéria, filoséfica teolbgica.? Mas onde 05 seus, * A mals receme edict erica da Ratio 68 de Ladislaus Lukses, Rao azque Instintlo StudioranSocietatis Tesu 1586 1591 1599) que coresponde 0 vol. V dos Monumenta Paedagogica Socitatislesu, Roma (Insttatum Historicum Socitats es, 1986). ass exo que me reporare, 1a versio definitiv,a de 1599, ‘Quanioa edstesilingues vale a pena referira de Busebio Gil (ed), El Sistema educative de ta Compania de Jesus. La «Ratio Stdioron-, Madd, Uaivesiéed Poatiica Comilas, 19, ‘com tadusdo em castelhano e nots de A. Diez Escanciano, bem como a Ratio Sudiorum, Plan ‘risonné et nstintion des études dan la Compagnie de Jésus, om ado em frances de Léone ‘Albriex e Dolrés PralonJuliaenotas ¢comentirio de Marie Madeleine Compére, Pris, Belin, 1997 * Aescotha do modelo pedagsgico de Pari no fo ocasonal. A pati da cia do colegio de Messina os jesutasadevirm programatcamentsaquele model, Nums primeira fase de fundages ‘escolar, a responsabilidad da organiza didictica de uma nove escola era sempre confiada Agueles que, pela sua experiéncia de estudo e de ensino, tinham tido algum contacto com a Universidade de Paris ov com o modu Parisienti. Sobre o modus parisien eas rego 60, 1 pedagogia dos jsut, va. Gabriel Codina Mir, Au sources de la pédagogie des ous. Le ‘modus parsiesis Roma, Insttutum Historicum Societats lsu, 1968 e Aldo Scaglione, The Iberal arts andthe Jesuit College System, Amsterdam, 1986, entre oats. HUMANISMO JESUITICO E IDENTIDADE DA EUROPA 85 pressupostos pedagégicos encontram paralelo mais evidente€na obra de Erasmo de Lufs Vives, bem como na obra de Calvino, na Academia de Genebra,e de Jofio Sturm no Gindsio de Estrasburgo. Em todos aqueles programas de estudo, cera not6ria a importincia dada aos estudos literérios e humanisticos. Porém, a originalidade da Ratio jesuitica estava em estabelecer um sistema global e coerente de todos os seus métodos pedagSgicas erespectivas prticas didécticas, articulando internamente todos os niveis, graus, cursos e matérias, sem omitira eacsigao eaausiiva das propria au de alunos ~ 0s dois intervenientes no processo pedagégico. “Meesmo sem pretender ser um tratado cientifico de pedagogia, gracas & ampla actividade pedagégica dos jesuitas na Europa ¢ além-mar, a Ratio Studiorum acabatia por ser um texto fundador, aplicado também em colégios de outra natureza que se inspiravam largamente no modelo jesuitico” Todos os historiadores da educagio admitem, na verdade, a existéncia de um modelo pedagégico jesuitico. Se uns ocrticam, outros louvam-no sem reservas. Infelizmente, este texto que atrai o interesse de historiadores, de pedagogos e de especialistas da educagdo bem como de linguistas ¢ de homens 4e letras em geral, ainda nfo conhece em portugués uma edigfo moderna com tradugio actualizada.*E por detrés de alguns estudos extremamente actuzs ainda se sente a velha polémica antijesuftca que percorreu todo o séc. XVIII e XIX, segundo a qual a Conipanhia de Jesus sera responsével pelo atraso intelectual ‘em que mergulhara a Universidade portuguesa, logo apd as tentativas de Si eee epee mere gel » Os Jesuits trnaram-se na verdad oponto de referéncia de todas a nova experiéacias Aidetcas¢ «sua Ratio exerceu grande infhvcia na activigade de otras congregagteseordens religioeasdedicades nstrugdo, nomendamente os somascos (1540), os barnabitas (sé. XVI) © Inclusivamente ot seminrios dicesanoserados pelo Coaciio de Testo, bem como as escolas ‘municipais que dependiam do govern da cidader. Vd. Gin Paolo Brzz, “Lex ésuites et 'éole en tale (XVIE- XVILF sitces)”, in Luce Giard (et), Les Jesuits @ la Renaissance: sstme ‘edcatif et production du savor, Pais, PUR, 1995, p. 353, * Salente-se no entant, em Portugal, ao IV ceatenio da Ratio Sudionam, o volume rmonogrifico da Revista Pornguesa de Filosofia que the ¢exclusivameate dedicado ~ Ratio ‘Srudioram da Companhia de Jesus, LV (1999) ~ e que abeange temas como a relagio daquele documento oom os Exerc: Espiriuas de Inicio deLoyolae com as Const des da Companhia de Jess, aistria da sua edacgo ca respectva fundamentals, sntropolpica ceria, ‘bem como uma avalagdo da sua fecunddade, tendo em conta a diversidade de situspesculturais ‘em que a Companhia fi fundando coégios ¢ Universidades, ou sinda até que pono ela pode ou ‘lo continuar ser font de nspiragio para process educative dos nosos das. A obra conts com ‘colsboragio de autores como Alfredo Dinis, Manvel Pereira Gomes, Carlos Vésquez Posads, anil Schafly, José del Rey Fajardo, Paul Shore e Esteban Ocampo Pérez, 86 MARGARIDA MIRANDA inovagio operadas pelos mestres de Paris em Coimbra, no século XVI? ‘A verdade porém & que se um dos factores de coesio da nogio de Europa 6.0 facto deter sido 0 espago do nascimento ¢ desenvolvimento do saber e das ciéncias, entio a Companhia de Jesus exerceu, ao longo de mais de dois séculos, ‘um papel preponderante no processo do fazer da Europa. E # Ratio Studiorum ue presidiu a organizacao escolar jesuitica foi um dos seus mais poderosos {nstrumentos.* 2. Os Jesuftas ea construgéo da Europa. 2.1. Construgio e desconstrugéo da Europa [Importa antes de mais recordar que a Europa no 6, pela sua configuragdo, ‘um continente geogréfico, nem o homem europeu se pode definir por uma rac (ou por uma lingua, A Europa s6 6 Europa por uma histéria espirtual comumn. Por isso alguns autores como Gonzague de Reynold’ e, na sua esteira, Bernard ‘Voyenne, véem na Europe “o continente do Espirito”, concluindo simultanea- mente que “a Europa € afinal uma ideia, ou se preferirmos, uma consciéncia”. A. Europa é assim, no dizer do humanista portugués, Manuel Antunes $.1: “o continente cultural por exceléncia: da cultura que no € simples repetigdo de usos e costumes mas criaglo e transformacio de ideias, de estilos ede formas. Da cultura que ndo 6 apenas conservagio de um alto patriménio adquirio (..) mas igualmente vontade intensa de invengio ce inovacio"? Ao lermos hoje este género de discurso sobre a Europa no podemos deixar de sentir um certo grau de insatisfagio com os ideais actualmente Como "Nota Hiséica™ com que abre 0 Prospecto da Universidade de Coimbra 1999 +2000 pablicad pela Ritri desta Universidade “Opinio semethant foi escrita por Jean-Marie Valet, Theatrum Catholic XVE- XVIE sitcles, PY. Nancy, 190, p. 1: “Bde de lettres dans second avec a eligion, delecai, ‘leganta, paldeia: ens ralint ws ts, vers 1380, Aces princes, les suites insrivirent Yar tion dans le processus, nauguré par humanism, de constition de Europe cull” * La Formation de Europe, Tomo |: Qu'et-ce que lEurope?,Friburg, 1941. * Histoire de idee européenne, Pais 1964, p. 13. * Manvel Antunes, ao artigo “Europa da Enciclopéda Luso-Brasileira de cular. HUMANISMO JESUITICO E IDENTIDADE DA EUROPA 87 incarados pelas geragdes europeias. Os velhos fundamentos esprituas da Europa parecem terse perdido. Apesar do duradoiro poder politico eeconémico dda Europa ela parece cada ver. mais condenada a decadéncia. Um vazio de ppensamento domina cada vez mais a vida publica. Na verdade, se a Affica © @ Asia buscam ainda a Europa como a terra prometida, buscam apenas o mundo ideal marcado pela t6eni tradigdesreligiosas da Asia levantam-se como energiasespirituais contra uma ¢ pelo seu bem estar, Por outro lado, as grandes supa que aide vs seus pasprios fam que formavam a sua identidade. Ser a cultura Europeia o triunfo a nivel mundial da civilizago da técnica edo comércio? Serd que a cultura Europeia se esvaziou por dentro? Teri chegado a hora dos isa, aqucies temas de valores de outros mundos, da América, do Islio e da mistica Asiatica? Estas e outras questdes foram recentemente equacionadas com grande clarividéncia e profundidade pelo Cardeal Joseph Ratzinger."” fhumanista ndo pode deixar de observar ainda até que ponto o tiltimo século © mesmo assistiu ao desmoronamento dos valores que construiram a Europa, Se por um. lado © Socialismo democritico nascido no século XIX secundou em parte a Doutrina Social da Tgreja na formagao de uma conseigneia social, o Socialismo totalitério, pelo contrétio, aliou-se a uma rigida filosofia da hist6ria, materialista cate, aliada a um dogmatismo intolerante. O espirito tornou-se enfim produto da matéria, ea moral um produto das circunstancias, ou um conjunto de principios a serem praticados e definides de acordo com os objectivos da sociedade. Segundo Ratzinger, este foi o ponto decisivo da inversio dos valores, Jara, 0 ponto de ruptura ‘com toda a tradigdo moral do conjunto da humanidade, pois na verdade também {que construfram o velho Continente, ou, de forma m: ‘pessoa humana acabava por tomar-se um meio. A Europa do Humanismo foi afinal bem longe no desprezo pela pessoa ‘humana, Esse & um pressuposto que devemos aceitar se conhecermas a realidade social do Ultimo século ~ com os genocidios em massa da ditadura nazi e da Apesr da preferéacia que Roma manifesta abertamente por esta Gramtic, em Ports- fl ela nfo conecen grande fortuna. Sobre sua génese co seu destino nas vrias partes do mundo, vd Emilio Springheti,S.l, “Stosia eFortna dela Grammatia di Emmanvele Alvares, 8.1." Humanitas 13-14 (1960-61) 283, += 304, Sobre a sua doutrna gramatial, vd. Manvel Matas Nie, “Aproximacién ala Sintaxis, Latins de Manuel Alvares", in Actas do T Coagresso Internacional Humanismo Novilatina € Pedagogia Gramitica Crags Maire Tear), Baga, Centro de Estados Clsscos da Pcaldade de Filowofia UCP, 1999, p, 237-249, ° Cipriano Scares S.L, De Arte Rhetoric Libr Tres ex Aristotele, Cicerone et Quintana pracipue deprompt, Conimivicae si) apud Tounnem Barcecium, 1562. 9 vols, Pais, Pia, 1890-1900 2 Lawrence J Flynn SL, The De Arte Rhetorca (1568) by Cyprian Soares Sa Trans- lation with ntrsucton and Noves, Unversity of Florida, 1555, p. 4, 104 MARGARIDA MIRANDA io se pense porém que naquele Manual se esgotavam todos os objectivos das classes de Humanidades e de Ret6rica. Na verdade, se as prescrigBes da Ratio tinham um carécter vinculativo, elas guardavam porém alguma flexibilidade, tendo em vista o respeito pela diversidade dos lugares, tempos e pessoas, como se afirma nas Regras para o Provincial: §38 Denique, ut totus hic Societatis labor ad maiorem Dei gloriam suas, quae ad rationem studiorum pertinent, regulas. §39 Et quoniam pro regionum, temporum ac personarum varietate in ondine et starutis horis studio tribuendis, in repetitionibus, disputationibus et aliis exercitationibus, itemque in vacationibus potest varietas accidere, si quid in sua provincia magis expedire ad maiorem in literis profectum existimabis, referat ad praepositum generalem, ut ea demum statuantur, quae ad omnia necessaria descendant; ita tamen ut ad communem ordinem studiorum rnostrorum maxime accedant. Permitindo portanto um certo grau de adaptagdo as circunstincias ‘concretas, a Ratio ndo deixa porém de preservar um significativo fundo comum, no apenas no que respeita a0 tipo de exercicios ¢ a frequéncia com que eram praticados, como ainda nos textos ¢ nos autores escolhidos. Eis o programa da classe de Humanidades: (0 seu principal objectivo ¢ “preparar o terreno para a eloquéncia” o que se alcanga por trés modos: pelo conhecimento da lingua, por uma certaerudigo © por uma breve informagdo sobre as regras da Ret6rica. De Cicero estudar-se- Bo todas as obras de ilosofia moral. Dos historiadores estudar-se-io pelo menos > trndupt: “438 Para que fodo este trabalho da Companhia sea pra a maior pléria de Deus, 0 ro- ‘inca dverd fazer com que todos, superiresesbitos,observem com perfigdo es suas ogres ‘specifica respeitantes a “plano de estado. $99 Devidoaciversidade de lgaes, de tempo ede pessoas, pode have também diversidade ‘maordeme nas horas aribulda ao estdo,srepetipes, ds disputes ou a quaisquer outros exerccios, ‘bem como as féras; assim, se Provincial considera alguma media mas Gt 2 progesso dos ‘estudosliterrios na sva provincia, apreseati-la-é a Padre Geral para que seam tomadas todas as ecisbes necesséris, desde que elas se aproximem o mais possfel da organizardo comum dos ossosestdos.” HUMANISMO JESUTICO E IDENTIDADE DA EUROPA 105 César, Salistio, Tito Livio € Quinto Cércio. Entre os poetas privilegiar-se-6 Virgélio mas também haverd lugar para as Odes de Horécio, bem como elegias, ‘epigramas e outros versos de poetasilustres da Antiguidade. “Praticar-se-& a ‘erudigéo moderadamente, a fim de exercitar principalmente a inteligéncia e ‘io desviar a atengdo da propria lingua”, acrescenta a Ratio, No segundo semestre de Humanidades far-se-4 um breve resumo das regras da Retérica tiradas de Cipriano Soares. Nessa altura preferir-se-o 0s discursos de Cicero & € todos os outros discursos pronunciados diante de César (Regra 1 para 0 Pro- fessor de Humanidades). ‘A Gltima classe, a de Ret6rica, para a qual convergiam todas as outras, ‘lo & objecto de uma exposigdo tio pormenorizada uma vez que ela deve ‘conduzir, em suma, ad perfectam eloquentiam (Regra 1 para o professor de Retérica), a qual por sua vez compreende duas matérias essenciais: aescrita em ‘prosa e a escrita em poesia (mas entre as duas dar-se-4 sempre primazia a prosa). “Pode-se dizer também" continua a Rario “que a cloquéncia se reduz essencial- ‘mente a trés elementos: regras de expressdo oral, estilo e erudi¢do.” E se bem que tais regras sejam observaveis em qualquer texto, nas ligbes quotidianas hiio-de preferir-se as obras ret6ricas de Cicero, a Retdrica de Aristételes © eventualmente a sua Poética, O estilo tomar-se-& exclusivamente de Cicero. Quanto a erudicdo ela tirar-se-& da propria historia, dos costumes das nagdes, dos autores mais autorizados e de toda a ciéncia ~ mas gradualmente, de acordo ‘com as capacidades dos alunos. ‘Também no campo da filosofia é conhecida a dimensio europeia do Clebre curso Conimbricense e a sua importincia na restauragio da filosofia aristotélica-escoléstica na Europa. Aqueles tratados, redigidos por trés jesuftas, no Colégio das Artes de Coimbra desde 1592, foram divulgados em toda a Europa jesuftica mas também, possivelmente, nalguns centros de estudos de diversas confissfes da Reforma, ¢ conheceram, no seu conjunto, mais de uma Centena de ediges por toda a Europa.”* Na distribuigdo do tempo quer pelas prelecgSes quer pelas varias modalidades de exercicios ou pelo estudo pessoal ou mesmo pelo descanso, nada é deixado ao acaso. A obrigatoriedade de falar latim ¢ os diversos modos. * Amtindio Coxito, “O Curso Cominbricense”, in Pedro Calafafe (ed), Histéria do Pensamento Fiosifico Portugues, vo. TI: Renascimento e Contrs-Reforma, Camb, Lisboa, 2001, 503-543. 106 MARGARIDA MIRANDA de prelecedo; exercicios de memoria e exercicios de composigd0 em prosae em. ‘verso, bem como os respectivos métodos de correcgao; exercicios de repetig#o (alligdo do pr6prio dia, do dia anteriore de toda a semana), declamagies pablicas privadas, disputas didrias e semanais ~ entre pares de émulos ou entre classes inteiras — normas para os exames escritos, normas para concursos literérios nos diversos géneros e normas para a atribuigo dos prémios; modos de punigo; representagies dramaticas em classe ou nos solenes Actos Piblicos diante de ryiu © de waa cidade, amiss Ge uovus alunos... wiv foi vbjevio de cautelosa legislagao. A organizagio interna de cada classe em magistraturas ‘© em dectirias recompensava ainda os mais estudiosos e estabelecia entre os alunos uma emulaglo sempre activa. Creio porém que o aspecto mais caracteristico da formagio intelectual da Ratio € a excepcional importincia dada & continua actividade do aluno € & adaptagao do ensino as capacidades dos discipulos, elementos tio significativos para a pedagogia modema, Durante mais de dois séculos, no comego da Europa Moderna, foi este za verdade 0 cnone de estudos que constituiu a educagao elementar do homem ‘europeu, oc&inone de estudos que constitu o protétipo do que seriam na Europa dos séculos XIX ¢ XX os estudos secundérios, o gymnasium ou o Liceu,assente numa sélida cultura geral, com uma forte componente latina de matriz ‘humanistica. Foi durante muito tempo, como sintetizou Carmen Labrador “uma formagdo preferentemente humanistica ¢ cldssica em Letras, mais do que de ‘ampla informagao geral ou de maior extensdo no campo das ciéncias”.”” 4.2. A nctividade cientifica ‘Mesmo assim seria errado pensar que os Jesuftas, em nome do “amor das letras e da virtude”, negligenciaram o estudo verdadeiro das ciéncias. Ultimamente sto numerosos os estudos que demonstram a importincia do Sobre a espacificidade de cada uma dss prticas pedagogica vd. o meu artigo “Uma Paideia Humanfstice: a importincia dos estudos lierrios na pedagogiaJsufca do séulo XVI" Humanitas XLVI (1996) 223-286, marine p. 230-256. Busébio Gil (Ed), Carmen Labrador, Jost Menéader de la Escalera, Ambrosio Diez Fscanciano, E Sistema Educaivo de la Compania de Jesus. La «Ratio Stadion, Universidad Pootificia Comillas, Madd, 1982, p46 HUMANISMO JESUITICO E IDENTIDADE DA EUROPA 107 contributo da Companhia de Jesus para o desenvolvimento das ciéncias, provando que os jesuftas do Renascimento foram também responséveis por ‘uma certa continuidade cientfica.™ O espfrito audacioso que animou a Companhia de Jesus no século XVI~ aquele que foi na opinido de Luce Giard,o seu periodo mais livre e mais criativo —tomou-se, segundo o mesmo autor, cbjecto de interesse aexaminar por todos 0s. historiadores que se destacaram das polémicas anticlericais dos séculos XIX.” \Vejam-se por exemplo as numerosascolunas que C. Sommer-vogel” reserva para autores da Companhia que produziram obras cientificas, na érea das mateméticas, da fisica, da biologia, da quimica, da miisica, entre outras Ou recordemos, por exemplo, o estudo que em 1999 Antonella Romano publicou sobre um fendmeno a que chamou “cultura matemética jesuitica no Renascimento”* Naquela, obra na verdade, a autora esclarece-nos sobre os vrios mecanismos através dos quais a Companhia consttuiu e difundiu uma cultura matemética jesuftica, estabelecendo entre o centro de Roma ¢ as provincias periféricas, um didlogo permanente sobre a dupla questo do ensino da Matemética e da respectiva reflexdo epistemolégica, fazendo disso parte infegrante do seu combate intelectual no século da Contra-Reforma, Lembremos também a obra intelectual de um enciclopedista incansével ‘como o alemio Athanasius Kircher S..®, que reuniu os desenvolvimentos mais, Steven J Haris, Jesul Ideology and Jesuit Science: Scientific Activ ofthe Society of Jesus 1540 1773, PhD, Univ. of Wisconsin, 1984, Idem, "Transposng the Merton Their: Apot- tole Spirituality andthe Establishment ofthe Jesuit Sienifi Tradition”, Science in Comet, 3/1 (1989) 29-65. Va, do mesmo autor o cap 1] de Luce Gia (ed) Op. cit Mais recentemente ate bs, a Revista Poruguesa de Filosofia dedicou 90 meso tema umn nimero monogrfic, com 0 tial Os Jesutias ea Cidncia (Se. XVI- XVI) LIN (1998). bide, p.XXIII- XXIV." ce ques dj sisponible dans én des MONUMENTA HISTORIC SOCIETATIS TESU (.. sufi a aiserentevoir la rchesse du materia eta peri ence que! éude de cet Ordre pet avoir hor i dine de hse eligiese, pour comprendre ‘comment a Renaissance eagendr,uolen nolens, la moder es savoir. p. xi, “Val nota 32 “Antonella Romano, La Contre Réforme Mathématique. Constinion et Difason d'une Culture Mashématique Jésute 21a Renaissance (1560-1640), Jerome Millon, Greacle, 199. ‘Ars Magna Sctendi, In XI Libros Digesta qua noua et uniuersali methodo, Per arifciosum Combinationun cones de omni re propostaplurimiset prope inf rationibus sisputar. omniungue summmara quacdam cognito comparar potest, Amselodam, MDCLXIX. ‘Sobre a obracientifica de Kircher wd J. Godwin, Athanaus Kircher A Renaissance man and the quest for lst knowledge, London, 1979, ou de forma mais sumisia, Cesare Vaso Gent eT Encilopedismo seicentesco” in Les suites panmis les hommes aux XVI et XVI sidles (Actes du Colloque de Clermont-Ferrand Avril 1985), 1987, 491-507 108 MARGARIDA MIRANDA. importantes das cincias contemporaneas, o que Ihe valeu o titulo de doctor Centum artium, acentuando as suas inimeras contribuigdes histricas e cientificas ccenaltecendo as suas qualidades de auténticoinvestigador. Sobre os seus estudos ‘ge0l6gicos podtamos mencionar o Mundus subterraneus (Roma, 1665), € sobre Gptica a Ars magna lucis et umbrae (Roma, 1645). Sobre a misica, a sua Musurgia Universalis (1650) tornou-se um dos grandes repositrios de ciéncias musicais do século XVI ‘que os europeus granjearam a admiragio da China do século XVI: 0s Elementos de Euclides, a Astronomia de Ptolomeu, ea Cartografia, no campo das ciéncias; ‘no campo da técnica, os transportes fluviais, 0 rel6gio, as fontes ¢ os jactos de gua so exemplos, entre outros, de que o saber humanistico dos padres jesuitas ‘nko desprezava o saber téenico e cientifico. Antes era um caminho a percomer para o alcangar. ‘Também no podemos deixar de recordar o bom éxito alcangado pelo manual de geometria do P. Clavius, um dos maiores mateméticos jesustas, conhecido como “o Euctides da época”. Ele mesmo foi o autor principal da reforma do calendétio de Greg6rio XII Os Euclidis Elementorum Libri XVI foram publicados até 1717 e conheceram uma tradugio chinesa logo em 1604. ‘Quando em 1860 a China modema se deu conta de que precisava de conhecer 4s cincias europeias para poder responder as necessidades contempordneas, foi precisamente por uma reedigdo deste manual que ela comegou. No Oriente, portanto, a obra do, Clavius tomou-se uma chave indispensével para ainiciago ‘4 muitas outras ciéncias, uma espécie de introdugdo a toda uma mentalidade ‘entio desconhecida, apoiada na mentalidade aristotélica do pensamento grego.® Blogftimo avaliar as érvores pelos seus frutos. Para nfo falarmos apenas dos préprios membros da Companhia, lembremos finalmente 0 mimero dos ‘randes homens formados pela Ratio Studiorum jesuftica, que se distinguiram em todas 28 partes do munda e nos mais variados campos das ciéncing eda arte. De um modo diferente mas ndo menos significative, também eles foram certamente grandes “mestres da Europa”: os poetas ¢ dramaturgos Pedro Calderén de la Barca, Torquato Tasso, Moliére (chamado Jean-Baptiste Poguelin), Carios Goldoni, Pedro Comeille; 0s adores sacros Bossuet e Anténio © Henri Bernaré-Maite, $1, “Humanisme Jesite et Humanisme de ' Orient" Analecta Greporiana LXX (1954) 187-192, HUMANISMO JESUITICO E IDENTIDADE DA EUROPA 109 ‘Vieira, jesuita este sitimo; investigadores e sébios como Galileo Galilei, Jorge Luis Leclerc de Buffon; o fil6sofo e fisico Descartes; homens de estado como 0

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