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13 ITORA DESCONHECDA 7.560 Jorge a cavalo, sem dota ‘Acervo Cento de Pesquiso MASP IMAGENS DO ALEIJADINHO, O ALEIJADINHO IMAGINARIO RODRIGO MOURA © borroco ¢ ume mirogem Germain Bazin? Imagens do Alejjadinho & uma das exposicSes que abrem o programa do MASP em 2018, ano dedicado 4s Histérias afro-atlénticas, com expo- sigdes, seminérios, programas de mediago e publicages em torno das trocas culturais entre Africa, Europa e Américas. Essa é a primeira exposi- G0 monogréfica no museu dedicada 6 obra do artista Anténio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), e & um fato significative que ela ocorra no contexto desse eixo de programacao. Filho de um artifice portugués e de suc escrava,? alforriado pelo Poi, Aleijadinho inaugura um modelo de mulatismo e mesticagem que consiituiu um dos modos de compreenséo de contribuigo africane para «2 cultura brasileira—um modelo que, mesmo polémico, é fundamental para a histéria da arte brasileira a0 longo dos séculos. Profissionalmente tivo em Minas Gerais durante o ciclo do ouro, de meados do século 18 0 inicio do século 19, Lisboa é o autor de uma série de obras realizadas em igrejas mineiras a pedido de ordens terceiras e que formam um dos principais conjuntos de arte religiosa executados no Brasil. A principal referéncia da exegese da obra do Aleijadinho & luz da mestigagem & 0 ensaio de Mario de Andrade (1893-1945), “O Aleijadi- ho", publicado em livro em 1935 e republicado neste catélogo (paginas 17751). Na anélise de Mario, esse & um fenémeno cultural gerado pelo coletividade colonial (Os multos ndo eram nem melhores nem piores que brancos portugueses © 04 negros africanos. O que eles estavam era numa sitvagéo particular, ddesclossiicados por ndo terem raga mais. Nem eram negros sob baca thav escravocrata, nem brancos mandées e donos. Livres, dotados duma liberdade muito vazia, que néo tinha nenhuma espécie de educacao, nem Nao eram escravos mais, néio spoien pera 0 ocupet POT Shegawam o ser provlanioeer + escritores que construiram a i dos muitos seine ie ae sre Gbra desse artista ©.° lugar central que the confere io exlira constivem 2 Pedi fundamental em seu en- do ore sntexto das Histérios Gho-allanticas. Porém ndo consti- quadramento 0 rma, ditima palavre obre 0 enquadramento que se yam, de forme er | da cultura africana 1 Sbra do Aleijadinho e seu err Saree "A propria ideia de mesticagem contribui para contexto de ef Problematica do elemenn’ ® frieano em sua obra, posto ume vse um feremen tempo a enquadré-to como algo re- dere om ment preset do} pela influéncia europeia . Mario de An fama do Aleijadinho, Sua intorpretacdo do 0 local, ca (subjvao sidval ov sempre or no contexto colonial ; b Peeicanee jjadinho reane 36 escul r Irogen eo ficina por diferentes especialistas of Ja ao Aleijadinho ou © SUC red tas obres pettencem & acervoe de museus, igrejas ¢ ov pelo Na ‘Chama-se “escultura devocional” aquela estatué- colecdes parm eneragao direta do fel, om Contexto poblico ou priva- fa destinade Tso, no conjunto de obras 4 Aleiadinho, da escultura do, diferencinnee rada em pedra e inlegrade 3 conjunto arquiteténico monumental (execu) ‘das nos conjuntos de talha i imagens inser rrmento religioso) © 35 lt ° do rrventa (por exemplo, 0 7108 Soin retabulo, subordinados a um con- i soe gozam de relotiva autonomic funcional, Ce hee oe enon, Se sempre, a0 longo ‘do tempo, se perderam Um exemplo contundente & a imagem de s6o Jorge, conservada desde 1940 no Museu da Inconfidéncio, ‘em Ouro Preto, Minas Gerais, Sscecutada para set levada na procissao de Corpus Christ, com as pernos Grticuladas para montar um cavalo, © hoje ‘exibida no Museu ao lado de sua sela original (a imagem teria sido levada fem procissdio pela tiltima vez en 1886). ; ‘A producao do ‘Aleijadinho imaginario {termo que designe o escultor que faz imagens} oferece, em certa medida, uma possivel sintese da lingua- gem do escultor a0 condensar uma série de atributos formais convencional- mente associados 4 sua ‘obra e encontrados em frontdes, portadas, altares ‘e outros elementos de ‘ornamentagao de igrejas. Constituem, desse modo, a porgao de sua produgdo que mais se presta a ser deslocada—colecio- nada e mostrada—e, por isso, supde uma dissociagao de seus contextos originais de fruigdo e uso, ¢ uma relagao mais cerrada com o sistema de arte formado a partir do século 19, com base em nogdes de autoria, originlidade e unicidade estranhas aquelas que informaram 0 regime de produgao dessas obras no século 18 colonial brasileiro. Entre as esculturas devocionais legadas pelo Alejjadinho, que contam com autoria comprovada por recibos ou registros de pagamentos em livros de termo, esto apenas as imagens de sao Simo Stock @ sGo Jodo da Cruz {ambos 1779) dos altares laterais da igreja do Carmo de Sabaré e o acacha- ppante conjunto de 64 pecas distribuidos pelos seis Passos da Paixdo (1796-99), oe santuério do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas, onde tam- bém se encontram os doze profetas em pedra-sabéo (1800-05). No Carmo, © Aleijadinho assina ainda 0 coro e as imagens dos atlantes (exemplo de figura mitolégica na sua produc) que o sustentam, o grade da nave ¢ decoragéo da fachada, No arquivo dessa igreja, hé também um documento Conlempordneo ao artista, em que seu nome vem seguido da alcunha com que se tornou famoso. Todas as demais obras tém autoria atribuida pela tra- digo ov por laudos de especialistas mediante estudos hisléricos, da técnica urtilizada e andlise estilistica comparativa com obras documentadas. © Ultimo grande compéndio a compilar um grande némero de obras do artista 6 0 livro © Aleljadinho e sua oficina: catélogo das esculturas de- vocionais,> de Myriam Ribeiro Andrade de Oliveira, Olinto Rodrigues dos Santos Filho e Antonio Fernando Batista dos Santos, publicado em 2002, que retne 128 esculturas, entre elas as 64 pecas dos Passos de Congonhas. Essa publicacdo é fundamental para a pesquisa dessa vertente da obra do Alei- jedinho, e 21 obras nela publicadas estéo expostas em Imagens do Aleijadi- nho. Antes disso, o antigo Servico do Patriménio Hist6rico Artistico Nacional (Sphan, atval Iphan) tomou como uma de suas principais tarefas o inventrio da obra do Aleijadinho, tendo seu fundador Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969) 4 frente da empreitada, e publicou em 1951 um primeiro esbogo de catalogue raisonné. Em seguida, é 0 historiador francés da arte Germain Bazin (1901-1990) quem inclui um Catélogo racional da obra na sua monu- mental monografia de 1963, publicada no Brasil, em 1971.7 Recentemente, um. Cattilogo geral da obra foi publicado, com uma ampliagdo do corpo da obra Para 486 pesas, o que suscitou criticas por causa da inclusdo de obras de ‘auxiliares, contemporéneas ou executadas & maneira do artifice.” Entre essas publicagdes, ha um numero considerdvel de discordén- cias em relado és obras atribuidas a Anténio Francisco Lisboa. Uma ex- posigdo do Aleijadinho é, portanto, necessariamente polémica também na escolha de suas obras. Como a maior parte das alribuicées é feita por coracteristicas de eslilo, por vezes ndo hé consenso absoluto entre os es- pecialistas e, muitas vezes, os documentos histéricos—como descric&es de €poca ou comprovantes de transac&o econémica—sao falhos para ampa- rar a atribuicdo. Em Imagens do Aleijadinho, buscou-se entao trabalhar de maneira conservadora, sem tentar criar um novo consenso sobre a autoria de obras nem questionar atribuiges. Nos empréstimos de obras para esta exposi¢o, priorizamos traba- thos de colecdes piblicas e eclesidsticas, entre as quais se destacom aquelas do Museu da Inconfidncia, em Ouro Preto; do Museu Regional de Sé0 Jodo del-Rei, em Sao Jodo del-Rei; e Museu do Ouro, em Sabaré—todos eles criados no émbito do Iphan e hoje geridos pelo Instituto Brasileiro de Museus {Ibram). No entanto, o Museu da Inconfidéncia tem em sua prépria origem a disseminagdo da obra do Aleijadinho, conservando a mais importante cole- G0 de sua obra. Também devem ser mencionados os empréstimos da igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Caeté, onde o Aleijadinho frabalhou no inicio de sua carreira, e da igreja matriz de Nossa Senhora da Conceig&o, em Raposos, de sua fase final, ambos cedidos pela arquidiocese de Belo Horizonte, e aqueles do Museu de Arte Sacra de Sao Jodo del-Rei? edo Museu de Arte Sacra de Sao Paulo. Além das publicacées e colegdes mencionadas, a pesquisa das obras recorreu a exposicdes organizadas anteriormente, entre elas encontra-se em primeiro lugar Aleijadinho,'° com curadoria de Lucio Costa (1902-1998), no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1978, em que buscamos pecas incluidas nesta mostra e de onde retiramos a ideia de ter uma vitrine exclusiva para obras de menor tamanho. © arquiteto modernista Lucio Costa foi um dos principais estudi de Alsicaicho, econtibuh para ftir o arcchougo ye se eee oe do artista. Em 2007, Aleijadinho e seu tempo: f6, engenho e artel teokeada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), com curadoria de Fabio Ma galhdes, foi a ditima grande mostra do Aleijadinho e também serviv come. importante elemento de pesquisa para nossa curadoria, be No entanto, realizar uma exposicéio como esta no desofion espectices, Embora tenho sido mencionado cml noe ee ane meira exposicao do Museu dedicada ao artifice mineira, no inicio de toa historia, em 1949, 0 MASP programou uma exposicdo do Aleijadinho em colaboragdo com 0 Sphan, que, até onde se pode opurar, acabou sendo cancelada. Umo das estratégias daquela exposicdo era a de incluir foto- grafias de obras monumentais, algo que retomamos nesta mostra, como veremos adiante.'? © Museu mantinha relacdes préximas com 0 Sphan, € © historiador e curador francés Germain Bazin contou com grande apoio de Assis Chateaubriand (1892-1968), fundador do MASP, e dos seus Didérios Asociados para fazer suas viagens de pesquisa no Brasil A arte religiosa brasileira compreendida como algo de valor endo apenas epigono da arte europeia, mas antes uma manifestagéo artistica avténtica, fazia parte da receita do ’museu sem adjetivos”"? de Lina Bo Bardi (1914-1992) e Pietro Maria Bardi (1900-1999), como se pode ver em diversas matérias na revista Habitat, érgGo oficioso do museu, e na passagem—ain- dal que ‘apressada eo esqvemética—ilustrada por imogens dos profetas de Congonhas, que Pietro Maria Bardi dedica a ela no livro The Ars in Brazil: Um dos elementos da tradig&io bresileira recente & 0 barroco, que foi intro- duzido pelos misses religiosas, especialmente benedilinas e jesuitos. Nos mos dos artesdos natives e negros solreu transformacées curiosas. Por sua habilidade técnica imperfeita e escassa resultou em formas estranhos @ im- pressionantes—obras de arte ingénuas em que o simbolo do cacho de wa se lornou © abacoxi, « garca lomou o lugar da pomba.!4 ‘Qutra passagem de Lina Bo Bardi, muitos anos depois, reformula essas ideias em outros termos, colocando o Aleljadinho no centro de um progra- ma de reviso da cultura brasileira: © reexame da historia recente do pais se impSe. O balance da civilizacéo brasileira “popular” & necessério, mesmo se pobre a luz da alta cultura. Este balango néo é o balango do folklore, sempre paternalisticamente om- parado pelo cultura elevade, 6 0 balanco visto do outro lado, 0 balango porticipante. £ o Aleijadinho e a cultura brasileira antes da Missdo France- sa. Eo nordestino do couro e das latas vazias, & o habitante das vilas, © negro € 0 indio, Uma massa que inventa, que traz uma contribuigSo indireta, seco, dura de digerir.!® A.arte do Aleijadinho, como se pode observar, escolhida como estandar- te para uma arte popular, contraria aos academicismos e elitismos. Assim, os desenhos para exposigdes do MASP criados por linc Bo Bardi vém ao auxilio para mostrar as Imagens do Aleijadinho e oferecem solugdes mais criticas para operar o deslocamento necessario dos objetos para o sala de exposicGo, O sistema desenhado pela Metro Arquitetos, em estreito didlogo com a curadoria e implantado na galeria do primeiro andar, £000 os cavaletes de vidro da pinacoteca do segundo andar ao criar unida. des expositoras auténomas para cada uma das obras ¢ que 880 dispostas numa grade regular que cria caminhos entre elas e olerece muliplos acessos © leituras, diversos angulos de abordagem que operam a famote fransparén- cia (arquiteténic, pedagégica, ideolégica), to propalada quando o assunto 880 08 modos de expor de Lina, Esse partido de certa maneira leva d roiz 0 dessacralizagao dos objetos ¢ manifestamente desconsidera suas condices Originals de fruigé0—como sua adesdo centrifuga ds paredes do espaco e Sua adequacdo a nichos e altares que s6 permitem que se tenha deles uma vise frontal ou que sejam vistos de baixo para cima, levando o escultor o aplicar desproporgées propositadamente. O nosso portido insiste nessa dife- Fenoa e sabe que recriar essas condicdes originais seria impossivel e, mais, necessariamente falso. As esculturas esto todas voltadas para a entrada da sala e niveladas a altura dos olhos dos visitantes. Os materiais usados Go tentam emular uma aura “sacra” com forros de tecidos nobres e bases rebuscodas, mas, antes, tém um arpecto funcional e franco, quase industrial. Despojado, como muitas das igrejas mineiras, Oro, 08 edificios que 0 Aleljadinho concebsu © nos quais trabalhou, notadamente o Carmo de Sabaré, Séo Francisco de Assis de Ouro Prato e 08 Passos da Paixéo de Congonhas, sd0 espacos em que os elementos es- 180 sujeitos a uma ordem cénica total ligada a visdo do artista, oferecendo uma experiéncia espacial ao visitante. A igreja normalmente & considerada uma metafora do museu antigo, em tudo diferente dos partidos de Bardi e Lina para as exposicdes do MASP, que deveriam enggjar o visitante e ndo © envolver numa aura de culto. Emboro, de maneira diversionista, pudés- semos advogar um estatuto cénico diferente para as igrejas mineiras nos uais 0 Aleijadinho operou, mais arejado, calmo e luminoso do que aquele do barroce anterior a ele—algo em que ndo vamos nos deter neste texto — © que € trabalhado por Carlos Eduardo Riccioppo num dos textos desta publicagde (pp.22-33). Mas fica a tentadora anotacao para conexdes com @ arte da instalas&o: da arte do Aleljadinho & arte de Lina Bo Bardi. Uma das questées que se destacam na anélise historica mais agude da obra do Aleijadinho é justamente a quantidade de anacronismos que se empregam ao tratarmos dela hoje—algo que, embora inevitével, merece relevo. Assim, buscam-se sempre a certeza da autoria e a pureza da ginalidade, quando essas nogées simplesmente inexistem como cat 1S storicas no contexto de execusiio dessas obras. Assim é que, diante do fenémeno da hipertrofia da figura do artista, deve-se sempre relembrar da construgdo da imagem do Aleijadinho, que se poe em marcha a partir de meados do século 19 ¢ segue ao longo do século 20, pari passu, primei ‘com 0 romantismo e, depois, com o modemismo brasileiro. E bastante justo, ‘entéo, que, para alguns pesquisadores, seja menos controverso simples- mente ter como significante do termo Aleijadinho uma oficina, escola ou maneira caracteristicas do fim do século 18, em Minas Gerais, em termos da atribvigéo das obras—o que nao significa por em xeque a existéncia do artista, como frequentemente se tenta propor de maneira sensaciona- lista.'7 E, claro, 6 inegdvel o abismo que existe entre o artista e sua figura construida ao longo dos séculos—entre o Aleijadinho imagindrio e aquele artista que, de fato, criov essos obras. © estudo das condigdes do trabalho artistico no amplo contexto cultural chamado de barroce mineiro pode esclarecer 0 interesse pela imagem do Aleijadinho como a primeira grande cristalizacéo artistica au- téntica da cultura brasileira e, consequentemente, pelo mulatismo como fe- némeno cultural caracteristico do periodo. Em seu livro O barroco mineiro: artes e trabalho,'® o historiador Caio Boschi levanto alguns dos pontos mais importantes para delinear esse quadro. Em primeiro lugar, tem-se o con- texto geral da veloz urbanizagdo da regiéo mineradora, trazendo ampla gama de atividades culturais, diversificagdo produtiva e também relacces de trabalho pautadas fora do formato senhor-escravizado, entre elas as que regem profissionais liberais, artifices e artesdos. Acrescente-se a isso 0 fato de o colonizador branco nao ter superado em Minas Gerais a ibérica avers8o pelo trabalho manual, afitude que, se por ‘um lado abv espaco para a atvacao de mesticos, mais precisamente de rmulatos, por outro gerou a valorizage social do trobalho produtivo de oficias mecénicos, especialmente de artesdos e de artfces.!? Lembrando que a miscigenacéio néo significava igualdade racial nem as- ‘censo social, mas que © trabalho artistico conferia um estatuto diferente 0 mestico. Prossegue Boschi: E pelo vio do exercicio de atividades manuais e arfisticas que © mulato se imporé no quadro social de entdo. E pela desireza, habilidade, fino senso estétco que ele rivalizaré com o branco e, dependendo da dtica, o suplan- foré na sociedade mineradora 2° As nogdes de artista, artifice e artesGo se sobrepdem nesse contexto, assim ‘como se sobrep3em as tarefas mecénicas empreendidas por eles. Caropinas, carpinteiros, marceneiros, entalhadores, escultores, imaginarios e santeiros 880 categorias que se confundem, e um mesmo oficial pode exercer mais de um desses offcios, e os trabalhos manual e criativo se equivalendo. Em ‘Minas, ao contrério do litoral onde hé a presenca das escolas de artes e coficios das ordens religiosas, a formacdo dos artislas 6 exercida na pratica.?" Oficiais brasileiros e portugueses migram entre oficinas e as dezenas de cobras civis e religiosas que sdo erigidas ao mesmo tempo, se influenciando mutvomente. Segundo Boschi, “a politica restritiva e proibitiva em relacdo a fixago dos clérigos na capitania contribuiu decisivamente para o floresci- mento de expressdes artistico-culturais e artesanais proprias”. Um conjunto de solucées estélicas e materiais para 0 exercicio da arte surge da impossibilidade de seguir os padres vigentes. Os azulejos que vicejam no litorel quebrom nas viagens de lombo de burro morro acima ‘¢ sGo substitvidos pelas pinturas em painéis de madeira nas capelas-mor. ‘As portadas de lioz so substtvides por aquelas de esteatito [pedra-sabao} ¢ de ifacolomito, que ladeiam e encimam as entradas das igrejas como se fossem vomitadas desde sev interior decorado, chamando 0 fiel e contras- tando com as empenas alvissimas que sempre decepcionavam o viajante europeu em relasdo 4 arquitetura religiosa mineira, Nesta arte 0 Aleija- dinho é © mestre maior, com as impressionantes portadas do Carmo de a Preto, & Sao Joo del-Rei e de Sao Francisco de Assis das mesmas lades atribuidas o sua lavra. Os modelos europeus so redimensionados @ incorporam valores e visadas nati c is \ativas, abrindo espaco para a pujan criativa dos artistas, in ior Aliés, af esta: a arte religiosa colonial mineira 6 obra essenciolmente de Artistas leigos. Mais: 6 encomendade ou consumida por leigos, consequen- temente livres da rigidez, do formolismo ¢ do hieratismo da orte produzida pelos congregacées religiosas.2? Esse proceso de efervescéncia da vido urbana se intensifica no perio- do de declinic da produgdo aurifera’? e a presenga do trabalho livre signifi: aa possibilidade de mobilidade social para o negro forro.24 A presenga da populacéo negra e mestica & massiva. Em 1776, dos 319.769 habitontes da capitania, 70.769 eram brancos, 82 mil, pardos, e 167 mil, negros, eo popu- lagdo ndo branca somaya 77,9% do total.5 A circulagdo de objetos culturais de origem africana, como joias, tecidos e amuletos, é significativa, embora também o sejam as proibicdes violentas aos cultos tradicionais.26 A miscige- nagdo é um elemento fundamental e as formas religiosas do cristianismo sd0 marcadas pela manifestacéo popular, com modos sincréticos afro-catélicos, criando ume relacdo diclética entre a religido oficial pés-tridentina e a popu- lor, O culto aos santos assume caracteristicas afetivas, humanizando o divino As irmandades do Rosario dos Pretos permitem e estimulam o reisado. Ha ainda o fluxo de escravizades e artesdos livres ou cativos da Bahia, centro receptor da heranca cultural africana, direcionado o outras partes da colé- nia pelo trafico interno escravista, entre elas, Minas Gerais (© africanista Marianno Carneiro da Cunha, em texto aqui republicado (pp. 194-98), em verdade excerto de seu capitulo sobre “Arte afro-brasileira” na Historia geral da arte no Brasil, organizada por Walter Zanini (1925-2013), teivindica um estatuto africano para as obras do Aleijadinho, avangando no caminho aberto por Mério de Andrade. Porém, nao é a condigéio mestica do artista que ele considera decisiva, mas sim as coractersticas das obras. Citando nomeadamente as esculturas da fase final do artifice, em que se feria influenciado pelos escravos que lhe serviam de assistentes, ele oproxima pe- gas como 0 So Jorge de Ouro Preto das méscaras geledés, com seus olhos rasgados e pendor sinttico, Também 0 musedlogo Orlandino Seitas Fernan- des,2” especialista na obra do Aleijadinho e autor de uma série de laudos de atribuigéo de autoria de suas imagens devocionais, dizia que elas tém algo de fetiche africano. Germain Bazin apostava no fator atavico da origem africana do artista, que teria herdado “seu dom plastico de seus ancestrais negros"28 mas ndo ha divida de que preponders sobre este 0 universo cul ral do meio em que viveu 0 artista e das mentalidades com que ele conviveu. ,agens que circulam em torno do ar jjadinho so também a: pen See presentam, substtuem e apresen- i fom sua figura imaginéria ere pee om ind una espéci do imogindro do Aliadinho, reunido errcedo aul para ser exbido com cs imagens devaconas © vi do ex saxigdo edqure um dupo sentid: mogens geram imagens, ccomponhon.¢ Posie int” e formam um repetéro que tani & pate de sv recepcoo “Anteio Francisco era pardo excuro, tira vor forte, fale arrebotada, @ 0 Ggénio ogastade: 0 estatura ora bax, o cOrP° cheio e mal configurado, 0 Fosto @ a cabeca redondos, @ esta volumoso, © ‘cabelo preto e anelado, rose ive otra » boo, atste larga, © nariz regular ¢ algun tanto Pon: tiagudo, os beicos grossos, 08 ‘orelhas grandes, @ 0 pescoco cutto. do Aleijadinho é este feito por seu bidgrafo Ro- {1814-1866}, no texto de 1858 que & republicado nte da formacao do seu mito.” Este pode- fia ser um possivel ponto de partida da narrative desta seg0 iconografica ‘ou, numa ordem cronolégica mais estrita, os mapas sediciosos do militar portugués José Joaquim da Rocha (17371807), contempordneos do Alei- rvido de subsidio para o levante da Inconfidéncia jadinho e que teriam se 0 Mineiro, revelando os pontos exatos dos ndcleos urbonos @ suas relas de acesso. Esses so preciosos documentos da sitvagao geogréfica da capi- tonia das Minas, mas so também delicadas iluminuras.%° Duas aquarelas ori tora identificada, pertencentes co fundo Yonn de Almeida Prado do Instituto de Estudos Brasileiros (IE), registram os atividades de extracdo de ouro e a antiga feigéo da praga principal de Villa Rica. As imagens de Johann Moritz Rugendos (1802-1858) e Thomas Ender (1793-1875) fazem parte da iconografia dos vigjantes, que teve inicio com a abertura do Brasil Ee missdes cientficas, e registram os modos de vida e a paisagem mineira 'A fotografia da fazenda da Jaguara foi feita por Augusto Riedel (1836-1877) durante a viagem do duque de Saxe (1845-1907) e faz parte de um élbum que & dos mais importantes documentos fotogréficos Brasileiros do século 19, Foi ali um dos famosos locais onde trabalhou o Aleijadinho, Grande ¢ decoragao da igreja da fazenda, que, posteriormente, teve seus ‘ltares remontados na igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Nova Lima (Minas Gerais). A imagem da Jaguara é justaposta a um fragmento de talha que fambém teria pertencido a sua igreje. ‘A imagem da Jaguara da inicio « uma série de imagens fotograficas, ‘@ comecar por duas ampliagées de Marc Ferrez (1788-1850), que registram ‘o mercado em frente da igreja de So Francisco de Assis, em Ouro Preto, ‘© 08 Passos da Paixdio de Congonhas. O folgrafo modernista argentino Horacio Coppola (1906-2012) esteve em Minas Gerais em 1945 e, com seu olhar clinico, captou alguns dos mais interessantes aspectos da escultura do Aleijadinho.2) Dele, mostramos uma imagem de um anjo da portada da Igreja do Carmo de Sabard e um detalhe da méo da imagem de sao Simo Stock da mesma igreja. Sobre as fotogratias de Coppola, pode-se pensar que elas tém o poder de serem talvez mais reais que as préprics magens que elas representam, simulacros que sGo uma espécie de repeti Go reiterativa ov mimese da mimese. E dele ainda a impressionante ima- gem do medolhdo do frontispicio da igreja de Sao Francisco de Ouro Preto, que representa o santo recebendo as chagas, exibida em justaposic&o com tela da mesma iconografia de E| Greco (1541-1614), da colegao de pin- tura europeia do MASP. Marce! Gautherot (1910-1996) deve ser 0 fotégrafo que mais registrou a obra do Aleijadinho, a servigo do Patriménio,3? e encontra-se aqui representado por uma imagem da colecéo MASP Pirelli que documenta a concentra¢do dos romeiros no jubileu do santudrio de Congonhas, uma fotorreportagem que humaniza o monumento e ressalta seu cardter popular. O primeiro retrato drigo José Ferreira Bretas neste volume (pp. 168-76), seme A pequena pintura de Euclasio Penna Ventura, doada ao Arquivo PO- blico Mineiro em 1941, constitui um dos mais interessantes retratos imagina- rios do escultor, que parece nao ter sido retratado em vida. Para uma ideia ce excessivo soins od sobre os temas do Aleijadinho, mencione- “se que essa pintura 1 ido por igi se aus esta pintra 6, desde 1972 reconhecida por lei como a efigie Q pintor Henrique Bernardelli (1858-1936) também criou uma visio construida do Aleijadinho no século 19, na pintura que representa o escul- tor no momento em que finaliza os trabalhos de decora¢do no interior da igreja franciscana de Ouro Preto. A relagéo do século 19 com Aleijadinho € 0 tema do ensaio inédito de Ricardo Giannetti neste volume (pp. 58-69), tendo a pintura de Bernardelli e sua passagem por Ouro Preto como pon- tos de partida A paisagem montanhosa mineira tem sido apontada como uma das influéncias da arte barroca das cidades histéricas.?4 O tracado das ruas sinuosas e ingremes confere movimento ds cidades, que é indissociavel da experiéncia de fruigGo das igrejas, confluindo paisagem e monumento. A compreensdo desse espaco estd na origem das obras de Tarsila do Amaral (1886-1973), que participou com Mario de Andrade da chamada “caravana modernista”, que entrou para a historia da arte oficial como aquela que “des- cobriv” atte religiosa de Minas Gerais, e de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), cuja obra se confunde com a paisagem mineira. José Pancetti (1902-1958) passou temporadas em Séo Jodo del-Rei, numo das quais reali- z0U um impressionante "retrato” da igreja de Sao Francisco de Assis daquela cidade, templo que tem o risco original do Aleijadinho. Uma vocagao construtiva insuspelta emerge da montagem da Carte- ‘ma Congonhas—Jesus carragando a cruz—Aleijadinho (circa 1973}, de Aloi- sio Magalhées, 0 encontro da cruz criando formas geométricas repetitivas, imagens do Aleijadinho ad infinitum. Talvez aqui valha fazer uma pausa na descrig¢do da montagem para remeter ao projeto que me trouxe até este, comissionamento ao pintor venezuelano Juan Araujo para que trabalhasse na ‘exposigéo Mineiriana, no Insltuto Inhotim em 2013, a partir de varias referén- cias imagéticas mineiras, tendo o Aleijadinho como uma das fontes principais. O didlogo com Araujo partiv do pressuposto de que 0 barroco mineiro infor- mava toda uma visvalidade ao longo do século 20, que se disseminou pelos meios de reprodugéo mecénicas em livros, cartSes-postais e reportagens de re- visto, servindo inclusive como produto de exportagéo da cultura brasileira. Na mostra do MASP, as obras de Araujo pontuam a montagem criando diélogos com temas e lugares—entre as paisagens mineiras, com a pintura Os inconft- dentes (2013), feita a partir de um frame do filme homénimo de Joaquim Pedro de Andrade (1972} e com o desenho O adro e os passos (2013) eo poliptico Reconquista de Congonhas {2012}, evocando © magnifico conjunto escultérico que também é o tema do ensaio de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira repu- blicado neste volume (pp. 199-207). Ao lado da Cartema de Magalhées, ain- da num viés construtivista, uma pintura de Araujo constitui como o simulacro do capa do nimero 2 da revista Barroco, editada pelo poeta Affonso Avila (1928-2012) em 1970. No desenho grético original do pintor abstracionisia- -geométrico Eduardo de Paula, havia um encontro entre temas do barroco e a esiética concretista, algo presente também na poesia de Avila, Rochelle Costi renova a tradicdo dos artistas fotografos que registra- ram os obras de Congonhas, com imagens a contrapelo dos Passos. Numa delas, vemos a mao negra da escultora Loud Ouro Preto, que segura um pedago de ped encia de uma tradicdo escultérica afro-mine! ‘est em curso uma liturgia em negro, re- Jeonografia—Missa preta (2017), velando um corpo afticano no process como auséncia e sacramento. Por fim, cria 01 n de dois elementos: a primeira edicéo publi- ‘de Andrade sobre 0 Aleijadinho (1935) e (leituras, 2018) se apropriando cada em livro do texto de Mario uma réplica encomendada a um imagin Siméo terpretagdo fundante do mulatismo @ toca- metafora do escultor. soborense, Aqui, 0 ensaio de in do pelo corpo mutlado da escultur, Seja pela andlise formal de sua obra, de sva produgdo ou ainda pela maneira cor " plas as leituras dos histérias afro-ailanticas em dela, como se vé sao molt torno das imagens do Aleijadinho. linha, ativa hoje na regido de ‘a-sabao, representando a resis- ira, Na obra de Antonio Obé, 10 étnico-espiritual brasileiro, pintado Thiago Honério cria uma montagem \ario da mao do sGo Simao Stock seja pela andlise do contexto mo hoje se pode apropriar Rodrigo Moura, curador adjunio de arte brasileira, MASP 1. Ena exposigio se benefciou da interlocugdo ‘com divers: individos em muitos estgios do projeto, 20s quais ogradero: Adriano Pedrosa, Adrian Ramos, Angelo Oswaldo de ‘raj Santos, Cads Rccioppe, Cectia Rocha de Siquera, Eione Mart Teixeira Lopes, Fabio Magalhdes, José Bouzas, Luiz Marcio Ferreira de Carvalho Fiho, Morcelo Aratjo, ‘Max Pecingeiro, Pedro Corréa do Lago, Ricardo Gionnet Thiogo Honério. Agrodeco tombém ds biblictecérias da Colesbo. Mineiviane, do Biblioteca Piblica Estodval luz de tata, Belo Horizon BAZIN, Germain. A crqutetroreigioso ‘barraca no Brasil. Rio de Joneiro: Record, 1956, p 9 3, "Filo natural de Manvel Francisco da ‘Costa Lisboo, distnto arquiteo portugués, eve por mée uma aicana ov erieul, de nome kabel, e escrava do mesmo lisboo, ‘gue olbertou por ocasibo de fozé-o batizar” Ver BRETAS, Rodrigo José Ferreiro, Traros biogtéhicosrelfivos co finado Anténio Francisco lisboa. Belo Horizonte: Editor PMG, 2013, pp. 3738, 4 ANDLADE, Maro de. “O Aleodinb, in MOURA, Rodrigo (org). Imagens do Aleijadinho. So ‘Museu de Arte 1 Soo Foo Asis Chateaubriand, 2016, 8 45, OLVEIRA, Myriom Andrade Ribeiro de; ‘SANTOS FILHO, Olino Rodrigues dos; Suits, alo fended og) sscuhiras devoconos So Povo: Cop 2002. Ee edie do MASP se bovece ‘numa série de parametios de O Ale ache, eve os, «dogo {6 Dretoria do Pawriménio Histrico Nacional Aniénio Francisco Lisboa. Publicado n. 15, Rio de Janeiro, Ministério da Educagdo e ‘aide, 1951, Para os textos de Rodrigo Melo Franco de Andrade sobre 0 Aleijadinho, ver 'ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e seus tempos. Rio de Janeiro: Fundacao Nacional Pré-Meméria, 1986. 7. BAZIN, Germain. O Aleijadinho e a ‘cols boroct io Bros Ro de enor Record, 1971. No capitulo 3 do Catélogo rocional, dedicado as Imagens, encontra-se tia lista de 27 obras, que “lambram o estilo. do Aleijadinho e sua execugdo” e cinco “obras atribuidas ao Aleijadinho e estranhas 00 seu estilo”. BYARD Marcio; PINTO, Herbert Sarin ‘COIMBRA, Marcelo, © Aleljadinho: catélogo gerol da obra: inventério das colendes poblicas e particulares. itu: Igil, 2011 9, Reproduzido na capa deste catslogo, © Cristo da flagelasao ou da coluna [imgs. 85, 86] do acervo do Museu de Arte Sacro de ‘Sao Jodo del-Rei foi restaurado pelo MASP no inicio. a cate aye et documentagéo ‘encontrada na pasta do Aleijadinho no arquivo ijaclinho, Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 1978. Curadoria de Licio Costa, Cardlogo de exposigiio, Nesse mesmo ce pet cones ‘© roteiro de um me hombnino, gle por lagu Pedro de Ancrade (19521988) «nawtock pele

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