Você está na página 1de 9
EpucacAo Maes semresposta criam projecto educativo para Criancas ejovens autistas EXcLUSIVO Sem solugao educativa para as filhas, duas maes juntaram-se para criar 0 Unidiversa, projecto “{inico no pais” pensado para criangas e jovens neurodiversos. Pedidos para replicar resposta nao param. Teresa Pacheco Miranda (fotografia) Oferecer artigo « 28 de Janeiro de 2024, 6:51 © Ouga este artigo 00:00 1040 diagnéstico da filha pés Nadia Ferreira em frente ao abismo. Carolina, de dois anos, era autista. E, para os pais, a palavra pronunciada pelo neuropediatra soava a sentenga: “Foi um choque tremendo. Ficamos completamente perdidos.” Nadia entrou em negagdo. Agarrava-se aos primeiros 18 meses da filha, com um desenvolvimento padrao, abragava tudo o que a afastava do espectro. “Sinceramente, era isso”, confessa, antes de declarar a pacificagao posterior: “Pensavamos que era o fim do mundo, mas era apenas uma forma diferente de estar nele. E desafiante, mas nao é nenhuma tragédia.” Nesse tempo, ja de coracdo serenado, Nadia Ferreira ainda nao sabia, no entanto, que a batalha maior nao viria do diagnéstico de Carolina, mas da condigao do pais: com respostas insuficientes para quem foge do padrao. “Nao sio as criangas que so desafiantes, é a violéncia com que temos de lidar. Violéncia institucional, com os servi¢os, com a escola, com a satide. £ esgotante.” 0 desabafo é de Filipa Costa. E é parte es com duas filhas autistas (https://www.publico.pt/2015/04/05/sociedade/noticia/quando-os-bebes-sem- sorriso-se-tornam-adultos-1691071): “Decidimos criar uma escola para elas.” da justificagao da “pequena grande loucura” que uniu estas duas 0 Unidiversa, em Matosinhos, é um projecto educativo “tinico no pais”, pensado para criangas e jovens neurodiversos. Com resposta de pré-escolar, comunidade de aprendizagem para 0 1.° ciclo e ATL (dos 4 aos 18 anos), “quer ser um modelo de boas praticas na area da educa¢do de criancas neurodivergentes”, termo que abrange individuos com um desenvolvimento neurolégico atipico, como autistas arg publico.pt/autismo), hiperactivos, disléxicos, entre outros. Além de scope oe - cee aoa. Ofergcer asinatura t6dosiMS que queiram inscrever-se (criangas neurotipicas incluidas), as fundadoras querem “dar formagao a professores, pais e terapeutas”. E ajudar, assim, a correr atras do prejuizo: “Estamos 30 anos atrasados”, lamenta Filipa Costa, antropéloga e coordenadora pedagégica da Unidiversa. Unidiversa fica em Matosinhos e tem recebido pedidos de pais de todo o pais para que conceito seja replicado noutras cidades TERESA PACHECO MIRANDA, Acaixa de email, redes sociais e teleméveis, chegam-Ihes, nos tiltimos meses, dezenas de mensagens de mies e pais, esperancados numa replica¢ao do projecto noutras geografias. “Ainda hoje falei com uma mie de Lisboa”, conta Nadia Ferreira, formada na area de contabilidade. 0 caminho nao é simples. A escola sonhada por elas, com 0 respeito pela individualidade e os interesses da crianga como regras basilares, exige recursos. Os apoios estatais, uma vez que formalmente s4o uma empresa, s4o inexistentes. E isso torna a resposta elitista? Nao mais do que outras solugGes privadas de ensino: para o pré-escolar, 350 euros mensais; para 0 1.° ciclo, 450; para ATL, também. 350 (para cinco dias) ou 200 (para trés). “Todos os registos so possiveis. Um dia, so manhis. Trabalhamos de acordo com as necessidades das familias.” Ainda com poucas criangas inscritas, 0 espaco est a funcionar com a presenga das fundadoras, duas profissionais a tempo inteiro, muito voluntariado (incluindo duas avés com egpariéncia nascida do afecto) e consultoras em varias Areas (psicologia, pedago &) Oferecer assinatura Uma delas é Eva Marques. “Tenho 50 anos, sou empresaria, autista, mae de dois autistas”, apresenta-se a consultora de marketing da Unidiversa e apoio essencial do projecto. Lia, como todos lhe chamam, empatizou com a “loucura” de Filipa e Nadia. “Duas maes com necessidade de outra resposta para as filhas, tal como eu tive com os meus. Quando conheci isto, quis logo ajudar.” Nadia Ferreira, Filipa Costa e Eva Marques na Escola Unidiversa TERESA PACHECO MIRANDA Alei é clara quanto a ilegalidade de discriminar. Mas, na pratica, é isso que acontece: “Criangas rejeitadas com a justificagao de nao haver vagas, recusa por usarem fralda, criticas implicitas”, exemplifica. “As escolas nao tém culpa, o Estado nao da apoio.” Quando Lia comegou a divulgar o projecto nas redes sociais, os pedidos chegaram de todo o pais. “Nao ha respostas destas. E, se formos para o interior, é ainda pior.” A consultora “colecciona cursos”. Engenharia zootécnica, medicina veterinaria, pés- graduagées em gestio de seguranga alimentar, gest ambiental, técnica superior de higiene e seguranca no trabalho, “uma tonelada” de pequenas formacées. “Sou inquieta”, graceja Eva Marques. Também membro da Associa¢ao Portuguesa Voz do Autista, quis levar A Unidiversa um “lado empresarial”, desejando que o projecto vingue: é boa e necessaria.” Serquemseé Mas, afinal, o que diferencia a Unidiversa de outro projectos educativos? Desde logo, a liberdade e flexibilidade, tanto kiidica como pedagégica. “Aqui, todos podem ser quem sio”, resume Eva Marques. Os planos curriculares so definidos individualmente, a partir dos interesses da crianga, com flexibilidade de horarios ¢ incentivo a integrago da familia. No caso do apoio ao ensino doméstico, a crianga deve estar matriculada num agrupamento escolar e o trabalho faz-se em contacto com os encarregados de educa¢ao. Além disso, 0 dia-a-dia e a terapia “nao so compartimentados”, acrescenta Filipa Costa. “A nossa ideia é que as terapias, quer em termos de comunicagao quer em termos de integrago sensorial, se processem num contexto natural”, diz, acrescentando que ha sempre comunica¢ao da equipa com os terapeutas de cada crianga. A fundadora da o exemplo da filha Salomé, de sete anos. “Ela nao fica mais de 15 minutos a fazer a mesma coisa. E n4o tem de ficar. Aqui ha oportunidade de movimento constante. Vai ao trampolim, da vinte saltos e volta.” Ha outras escolas com este tipo de equipamentos, ressalva, a diferenga tem que ver com a acessibilidade: “Geralmente, nao so de livre acesso. E a regulacao sensorial, tao importante para estas criangas, é dada como recompensa.” Espaco est equipa com materiais para fazer integracao sensorial TERESA PACHECO MIRANDA Qespai rior esta sempre disponivel para as criangas brincarem e se regularem sensorialmente TERESA FRCHECAIAIRANDA ferecer assinatura O espaco, no ntimero 829 da Avenida da Reptiblica, em Matosinhos, esta equipado com “todo o tipo de materiais para fazer integraco sensorial”, apresenta varias op¢des para estar sentado (puffs, cadeiras, tabuas de balango). E tem um generoso espa¢o exterior, com trampolins, tendas para proporcionar um espa¢o de maior isolamento e estimulo visual, um baloigo. E planos para fazer uma parede de escalada e uma pequena horta. Por ali, fazem-se também playdates (o préximo é a 28 de Janeiro, por cinco euros para menores de quatro, e dez euros para os restantes) e ha abertura para arrendar 0 espa¢o para festas de aniversario. A Comunidade de Autistas do Norte também encontrou casa para fazer os seus encontros. A ideia destas maes foi desenhar uma “comunidade”. Com foco na educa¢ao, mas onde tudo é possivel. Incluindo o apoio a pais e outros familiares: “Quando recebemos um diagndstico, s6 queremos alguém em quem confiar, alguém que nos dé algo certo e valido. E isso raramente acontece”, diz Filipa Costa. “As pessoas ficam muito perdidas durante muito tempo. Nao sabem sequer a que apoios tém direito na Seguran¢a Social, quanto mais como educar aquela crian¢a que eles ainda nado entendem como funciona.” Estigma eignorancia Antropéloga com pouco conhecimento sobre o autismo, Filipa Costa fez dele uma “grande obsessao” quando recebeu o diagndstico de Salomé, na altura com dois anos. E tanto aprendeu - e continua a aprender - sobre a condi¢4o que abriu portas ao diagnéstico do filho mais velho, na altura ja com dez anos. “Depois de percebermos 0 que era o autismo, foi muito facil perceber que o mais velho também era.” Com a Salomé, assumiu uma penosa busca por um lugar onde a filha estivesse “segura”. E deparou-se com um cenério familiar para pais de criangas neurodiversas, como Lia ja descreveu: vagas desaparecidas no momento em que se comunica ser para uma crianca autista, instituigdes com a “quota” preenchida, constantes comparagées entre criangas, recusa por usar fralda, criticas pela selectividade alimentar. Nadia Ferreira também conheceu a sensa¢ao de discrimina¢ao. “A minha experiéncia no ensino publico foi péssima. As pessoas é que fazem as casas, mas a falta de recursos é transversal.” Numa escola privada de Fanzeres, em Gondomar, encontrou uma resposta “inspiradora”. Mas apenas para o pré-escolar, “Fez-me acreditar que era possivel que a minha filha estivesse feliz, fosse respeitada e cumprisse com o que era suposto: estar regulada e feliz. S6 se trabalha a partir dai.” O Unidiversa é a alternativa a um “sistema educativo em faléncia” e a um pais desatento. “Sobre o autismo, em Portugal, reina estigma e ignorancia”, critica Filipa. “Seja a nivel de escolas, seja a nivel terapéutico e médico.” E é ai que é urgente mexer: “Falta educacao, formacao. Em Inglaterra, as escolas tém workshops sobre neurodiversidade abertos a associagées de pais. £ uma palavra comum. Aqui nem entrou no vocabulario.” Eva Marques abana consciéncias sempre que pode. Ha tempos, aproveitando a “moda de apoiar neurodivergentes”, foi a uma entrevista de emprego numa empresa que abrira uma vaga especifica para pessoas autistas. “Normalmente, sao trabalhos como ser 0 macaquinho na entrada, fazer reposicées, limpar 0 chao”, denuncia. Ao entrevistador, propés-lhe ficar com o cargo dele, ja que tinha um curriculo muito melhor. “E preciso acabar com este esteredtipo de que a pessoa com deficiéncia nao serve para nada.” Também como formadora tenta fazer caminho. Se encontra alguém com éculos, desafia- aa partilhar algo sobre a sua deficiéncia. E quando a pessoa, geralmente espantada, Tecusa essa condicao, ela convida-a a retirar os 6culos e a ler sem eles. “Tem uma deficiéncia invisual, precisa de uma adaptaciio. Por causa disso nao devia ser contratada, nao acha?” Oferecer assinatura Em Portugal, lamenta, “ainda ha muito capacitismo”. E uma carga excessiva sobre 0 autismo: “E preciso trazer leveza, acabar com o discurso da tragédia”, pede Filipa Costa. “Nao temos pena dos nossos filhos. Quando alguém recebe o diagnéstico, nés damos os parabéns.” E acolhem. “Nos nossos playdates nao tivemos um tnico meltdown [crise]. Prova que, com tolerancia, aceitagao e conhecimento, ha espago para todos”, aponta Filipa Costa. E para essa inclusao (https://www.publico.pt/2019/05/13/impar/opiniao/educacao-inclusiva-falamos-afinal- 1872461), nao ha beneficios em ter criancas neurodiversas e neurotipicas juntas? Filipa Costa vira a pergunta do avesso com uma “ideia provocadora”: “Podemos pensar ao contrario. Venham integrar-se connosco. Aceitamos todos. Mas notamos que dificilmente algum pai inscreve aqui uma crianga que ndo seja neurodiversa. £ interessante sociologicamente.” SUBSCREVA A NOSSA NEWSLETTER DESPERTADOR DE SEGUNDA A SEXTA Todas as manhas, a newsletter fundamental para estar informado. Subscrever Tomei conhecimento que as newsletter editoriais ’ poderdo conter publicidade. OBRIGATORIO. Abrir portas onde se erguem muros Siga-nos Sobre = Newsletters Provedor do Leitor © Alertas Ficha técnica f Facebook Autores xx Contactos © Instagram Estatuto editorial in Linkedin Livro de estilo © Youtube Publicidade » RSS Ajuda Assinaturas Aplicagdes Edigdo impressa Loja Jogos Meteorologia Newsletters exclusivas Imobiliario Estante P Opinio Assinar Informagio legal Principais fluxos financeiros Estrutura accionista Regulamento de Comunicagao de infraccées Politica para a prevengao da corrupgao e infracgdes conexas Plano de Prevencao de Riscos de Corrupgao. Gerir cookies Ajuda Termos e condigées Politica de privacidade ewan wanvenine ror QD e-goi © 2024 PUBLICO Comunicagio Social SA

Você também pode gostar