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Sobre a obra de Kelsen: breves anotagées criticas NELSON SALDANHA Do Instituto Brasileiro de Filosofia; da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco SUMARIO Angulag6es € paraleios. Norma, ordenamento ¢ sistema, Rigorlsmo ¢ terminologis. A sistemética do aireto papiico. Diz-se, as vezes, que o sinal do éxito doutrinario de uma teoria se revela precisamente pelo grau das contestagdes que provoca e das resisténcias que encontra, tanto com (o que é mais Obvio) por suas influéncias e desdobra- mentos. A observacdo se aplica caracteristicamente ao caso do pensamento de HANS KELSEN: conforme anotacao de MICHEL VILLEY, a marca de seu sucesso se acharia na propria quantidade de ataques que recebeu. Entre o banco dos réus, por mao de adversdrios — marxistas, historicistas, jusnatu- ralistas —, e a entronizacéo correspondente ao entusiasmo dos logicistas e de toda a sorte de juspositivistas, a estrutura do pensamento kelseniano con- tinua a merecer respeito e estudo, embora j4 tenha adquirido a estas alturas, dentro do pensamento juridico europeu, uma significacdo sobretudo histé- Tica, uma vez que muitos dos problemas a que KELSEN tentou responder foram préprios de um periodo especifico da evolucao da cultura juridica do Ocidente. Poder-se-ia falar do “caso KELSEN”, um tanto como NIETZSCHE falou do “caso WAGNER”: uma ocorréncia cultural de alta monta, que, entretanto — por isso mesmo —, tem de ser compreendida num contexto historico. No caso de KELSEN, contexto bastante representativo, com as coordenadas do Jiberalismo maduro e em crise, 0 cosmopolitismo vienense e as sofistica- goes teoréticas da fenomenologia, do neokantismo e do neopositivismo (). Trabalhando dentro da linha germanica que vinha de SEYDEL e de GERBER, KELSEN objetivou basicamente o propésito de dar cunho “cientifico” as conceituagdes juridicas, e isto em suas mdos significou a escrupulosa sepa- ragao do saber juridico perante outros saberes sociais: pureza no método enquanto especifico e capaz de “construir” seu objeto, no sentido kantiano, e pureza no préprio objeto enquanto isolado de outros objetos limitrofes (0 que alias contém uma espécie de peti¢ao de principio que no sei se os criticos j4 analisaram adequadamente: 0 objeto é delimitado para que se utilize um método adequado, mas o método cria o objeto na medida em que seleciona e recorta uma por¢ao especifica do real). “RESON SALDANHA, “Situacdo histérica da teorla pura do direito”, em Anufrio ado em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Perampbuco, nitmero 1, Reelfe, 1977. legisl. Brasilia @. 1B n. 71 jul./eet. 1981 a7 Atuando basicamente nas décadas de 10, 20 e 30 do século (0 mais sao as reelaboragées que vieram até os anos 60), KELSEN assumiu com imensa capacidade sistematizadora temas e questées que estavam no ar desde o oitocentos. Disse VILLEY que a “teoria pura” confortava os juristas, geral- mente ciosos das fronteiras epistemoldgicas de sua ciéncia, dando a essas fronteiras um delineamento fundado em sdlidas formulagées; era como se KELSEN tivesse vindo realmente salvar e garantir o trabalho dos juristas de “infiltragdes” estranhas (2). Evidentemente todas estas coisas comportam consideragées criticas de diversas espécies, e a estimagao do vasto ¢ impressionante edificio kelseniano depende de angulacdes diferentes, que correspondem a implicagdes ideologi- cas, preferéncias doutrinarias, simpatias filos6ficas. 0 balizamento, oferecido pela teoria pura, do espaco epistemol6gico correspondente a ciéncia do direi- to significou um esforco altamente meritério, mas ao mesmo tempo uma atitude artificial e sempre discutivel. Sobretudo, se se tém em conta as necessidades axiolégicas fortemente sentidas pela ciéncia jurfdica européia depois de 1945, e, também, se se considera como num paralelo o outro tipo de construgao juspublicistica representado na primeira metade deste século pela obra de CARL SCHMITT, comprometida em sua imagem por conta de adesées politico-partidarias assumidas por SCHMITT, mas altamente valiosa como modelo de integracdo de temas histérico-politicos do corpo doutrinario da teoria do Estado e da Teoria da Constituigao (*). Como todos sahem, um dos niicleos do pensamento de KELSEN consis- tiu no entendimento do direito como norma. Descartado o direito natural, KELSEN entendeu todo direito como direito positive e conceituou-0 como um sistema de normas. A andlise da norma (e das “proposi¢ées” juridicas) se tornou, sobretudo nos seguidores mais fascinados pelo lado logicista da teo- ria pura, ocupacdo teérica absorvente. O desdém, talvez um tanto arrogante, pela perspectiva histérica (como pelo jusnaturalismo) omitiu nas andlises kelsenianas o problema das relagées entre o conceito de norma e o movimen- to legalista (*). Aqui se estadeou o normativismo, posicio nao exclusiva de KELSEN, mas incluido em seu pensamento como peca essencial: reduzido 0 direito a um sistema de normas positivas, eorrobora-se a pureza metodold- gica e alicerea-se a configuragao do juridico como “forma”. Ao conceito de norma se conjuga ou se acrescenta, na teoria kelseniana, 9 conceito de ordenamento. Pouco preocupado com as trajetérias histéricas: do problema, KELSEN coloca a idéia de ordem juridica (dentro da “Din4mi- ca Juridica”) como estrutura escalonada (Stufenbau). Em KELSEN, as cono- “@) ‘MICHEL VILLEY, Legons d'Histoire de Ja Philosophie do. Droit aris, ed. Dallos, 1981), cap. XIK — “Lectures critiques”, pig. 339, @) Sobre SCHMITT, ¢ sobre o significado de sua obra como resposta no farmatismo, ‘mas ligados, sempre referides em eonjunto quando se pretende aludir aos dois especies prin- cipals da teoria, do séoulo XX. @) NELSON SALDANHA, Terallane ¢ Cloncia do Diralio, &, Polo, HA. atta, 1977 128 R. Inf. fegist. Brosilio @. 18 n. 77 jul./set. 1987 tagdes, por assim dizer, existenciais da nogdo de ordenamento, constantes da obra de SANTI-ROMANO (e que por sua vez provinham parcialmente de MAURICE HAURIOU e que foram magistralmente assimiladas por CARL SCHMITT), sio implicitamente postas de lado. A idéia de KELSEN, segundo a qual o direito regula sua propria criagao, foi instalada em seu sistema a troco de reforgar a especiosa conseqiiéncia de destinar ao jurista um papel meramente técnico e “intra-sistematico”, renunciando a toda atitude eritica em relacao a ordem juridica @), Outro aspecto muito relevante do pensamento kelseniano foi, por outro lado, a implantagdo de uma série de monismos. Qu, por outra, uma série de refutagées de dualismos, A repulsa de KELSEN aos dualismos provinha basi- camente de uma atitude filoséfica, afim ao monismo e exibida, inclusive, em ensaios sobre temas nae juridicos. Ensaios nos quais os dualismos se apre- sentam como cumplices dos totalitarismos, enquanto 0 monismo embasaria a democracia, Alias a valorizagéo do monismo, como se sabe, estava, em KELSEN, associada & valorizacao do relativismo (). (5) Em SANTI-ROMANO, 2s normas se compreendiam em funglo do ordenamento © nBo vice-versa (EI ordenamiento juridico, trad. esp, ed, Instituto de Estudios Politicos, Madrid, 1963). © acento dado ao todo evitava’a excessive valorizacio dos ‘componentes fonmais, enquanto permitia a incluséa, na noo de direlto, de outros Componentes como principios e valores, componentes revalorizados, aliés, na im- portante obra de JOSEF ESSER, Principio y Norma en la Elaboraciin jurispru- dencial del Derecho Privado, trad. esp, Ed. Bosch, Barcelona, 1961. Também 0 tridimensionalismo, como se sabe, tem procurado manter uma’ visio complexa € plurilateral do direito, adiclonando so aspecto normative uma dimensio fética @ outra axiolégica (ct. MIGUEL REALE, Filosofia do Direlto, 4* edigso, S40 Paulo, Saraiva, 1965, passim, ¢, com uma versho pessoal, BENIGNO MANTILLA PINEDA, Filosotia del Derecho, Ed. Universidade de Antioquia, Medellin, Colémbia, 1961), — KELSEN tratou especificamente do problema da ordem juridica em um ensaio de 1958, inclufdo no volume Contribuciones a la Teoria Pura del Derecho, ed. Centro Editor de América Latina, Buenos Aires, 1969. Todavia,o livro mais influente sobre 0 assunlo, mas witimus duas décadas, vem seudo 0 de NORBERTO BOBBIO, Teoria delrOrdinamento Giuridico, Ed. Giappichelli, Turim, 1960. Quanto ao problema da “intra-sistematioidade” do trabalho do furista, com’ sua decorrente condenac&o a0 siléncio, en juriste, sobre os méritos ou deméritos do sistema, ef se encontra uma ‘das bases para os que scham que a teorla pura se presta &'defesa (implicita, a0 menos) de qualquer regime. MICHEL VILLEY chegs a dizer: “en fait la doctrine de KELSEN nous enrégimente au service de Yordre stabi” (Legons d'Histoire de In Philosophie du Droit, cit, pag. $45). — Num livro bastante sugestive sobre © Direito Natural, ERNST BLOCH criticow acervamente o formalisino da con- copgfo Kelseniana, observando que “nenhums norma fundamental tmpediré que, em lugar da representagio popular, um ditador constitua e origem da qual decorre sistema juridieo” (Droit Nature) et Dignité Humaine, trad. D. AUTHIER ¢ J. LA- COSTE, Paris, Payot, 1976, cap. 18, pSg. 153). (6) Por isso mesmo néo me parece inteiramente exata, se bem, certamente, digna de atencGo, a opinific de RECASIENS SICHES, segundo 4 qual nio existe maior conexio entre o “relativismo axiolégico” de KELSEN e 0 conteuido da teoria pura (Panorama del Pensamiento Juridico del Siglo XX, Ed. Porrua, México, 1963, volu- me I, pag. 189). A predilegio pelos monismas penetrou em varios pontos da teoria pura, € © préprio receio de interferéncias politicas era um modo de evitar opgoes materials, B bem verdade, par outro lado, que o absentefsmo recomendado pela teoria pura ao jurista (e mencionada & nota anterior) néo se compadece bastante com a valorizagéio do liberalismo e da democracia parlamentar, contida em certos ensaios filesdtico-politicos —- aliés, multo importantes — que KELSEN publicou. A coexisténcia Gos dois aspectos (0 KELSEN formalista e 0 KELSEN democrata) fol advertida, em termos criticas, por ERNST BLOCH, Droit Naturel, cit., pag. 154. Inf, legist, Bresitio «, 18 n, 71 jul./sot. 198) 129 Entre os dualismos rejeitados por KELSEN figuram o dualismo entre 0 direito e o Estado, o dualismo entre direito publico e direito privado e o dualismo entre direito objetivo e direito subjetive — além do dualismo entre © direito nacional e o internacional, “resolvido” em fungio do primado légico do segundo (nao discutirei aqui o problema, mas cabe anotar no inter- nacionalismo kelseniano uma ponta de utopia). Dando coeréncia a sua ten- tativa de “superar” o dualismo entre o direito e o Estado, KELSEN chegou a afirmar que o Estado, enquanto organizagio, é uma ordem juridica: des- politizando a figura do Estado, inclusive ao por de lado a idéia de coagao (*), © autor da teoria pura operou mais uma reducdo: redugdo da idéia de ordem aos componentes normativos do proprio (e prévio) conceito de direito. Desfa- zer-se dos dualismos pareceu a KELSEN necessério para desvencilhar a teo- tia juridica de “infiltragoes” metafisicas e ideolégicas, sendo mesmo misti- cas, e esta preocupacao pesou demais em suas conceituagées: pesou mais do que certas evidéncias objetivas, pois a realidade histérica pode mostrar em varios casos a irredutibilidade reciproca dos conceitos de direito e Estado. ‘Tanto o normativismo quanto a despolitizacio da idéia de Estado se rela- cionaram, no sistema kelseniano, com o formalismo. Ou seja, com a funda- mental identificagio do “juridico” com o “formal”, que j4 estava nos Hauptprobleme de 1911 e na Staatslehre de 1933 (*). Este ponto atraiu algu- mas das investidas mais 4speras de seus criticos, inclusive de HEINRICH TRIEPEL. Este, além de vislumbrar em KELSEN “hostilidade” para os pro- blemas politicos, encontrava na teoria pura um “intencional” esvaziamento de todo tipo de contetido, no concernente ao direito, além de referir-se a “unilateralidade” e a “empobrecimento” (°). & inegavel que o formalismo foi cultivado em larga escala por KELSEN © por seus companheiros de escola, e que funcionou como uma espécie de assepsia para a elaboragdo dos conceitos, que no pensamento kelseniano se articularam com admirdvel estruturagao. A questao posta por seus criticos se relaciona com a precariedade das relagdes entre aquela estruturacdo e os problemas vivos ¢ efetivos que 0 direito coloca, ou que assume, como regula- cdo da vida social de homens de carne e osso. eae Construido em uma conjuntura cultural caracteristica, 0 pensamento juridico de KELSEN assimilou, de algumas das coordenadas que compuse- () HANS KELSEN, Teoria Para do Direite, trad. de JOAO BATISTA MACHADO ‘gerundo 6 ediedo vienense de 1960), Ed. Arménfo Amado, Coimbra, 1962, vol. IZ, 178. (@) Teoria General del Estado, trad. LUIS LEGAZ LACAMBRA, Ed. Labor, 1984, Bar- celona (cap. IT, 2 8, pag. 3). Sobre o tema, LOURIVAL VILANOVA, As Estrutaras Légioas © 0 Sistema do Direlto Positive (S. Paulo, RT, 1977, pascim). (®) HEINRICH TRIEPEL, Derecho Pablieo y Potitiea, trad. J, LUIS CARRO, Eiiciones Civitas (Rev. de Occidente), Madrid, 1974, pags. 49 e segs. Cf, também SONTHEI- ‘MER, op, clt., pag. 26. 130 R. Inf, legisl. Brasilia o. 18 n. 71 jul-/set. 1987 ram aquela conjuntura, a tendéucia a evitar a metafisica e o substancialismo. Com isso consolidou o cunho formalista de seu sistema, e também o logicis- mo, mas, por outro lado, utilizou conceituagdes que freqiientemente supe- raram o pesado ontologismo (implicito, as vezes) das geragdes anteriores, ‘Assim encontramos, por exemplo, a idéia segundo a qual toda a problem&- tica do juridico se delimita em torno da nogao do dever-ser {Sollen), conside- rado como esfera inteiramente distinta da do ser (Sein). Parece-me exage- rada a afirmacao rotunda e inapelavel desta separagdo, como também, cor- relativamente, a redugdo da problematica juridica ao Sellen (*), Encontra- mos, porém, por outro lado, idéias muito sugestivas, como aquela que men- ciona a norma como “esquema de interpretacio”. KELSEN nao chegou a vincular a idéia de interpretagio a idéia de ordem, nem a relacionar as diversas formas culturais de interpretagio (como fez EMILIO BETTI), mas a consideragdo da norma como esquema é realmente fecunda. Conceitos como esquema, processo, método e relacéo entram largamente na terminologia kelseniana. Os conceitos de “érgio” e de “competéncia”, que no direito publico kelseniano assumem um relevo muito grande, depen: dem de certo modo daqueles outros conceitos para serem entendidos. A constante remissio dos problemas ao ordenamento, de cujas indicagdes nor- mativas dependem, oferece ao sistema um carter muito nitido de coeréneia (confortavel coeréncia formal que se ampara em certa medida na auséncia de opcdes materi © Estado, sem ser uma substincia, e sem ter uma qiididade metafisica — nem mesmo uma concretude hist6rico-politica —, se apresenta como um sistema formal que se identifica com 0 direito, e tudo se reduz, entao, a uma série de esquemas e de métodos ordenadores. 0 lado positivo deste estilo de pensar, que torna talvez mais “leve” e mais légica a construgao, tem seu contraponto naquilo que certos adversirios mais aze- dos chamaram de “escamoteacao” da realidade. © direito constitucional, sobretudo 0 do século XIX (penso particular- mente nos autores ingleses e franceses, nao tanto nos publicistas alemaes da linha de GERBER), se compunha de dois nucleos tematicos fundamentais: a questio dos poderes e a questdo dos direitos. Este bindmio provinha da época de SIEYES e das declaragées francesas. A questao dos poderes revelava (0) NELSON SALDANHA, Sociologia do Direito (2* edleSio, Revista dos Tribunals, 8. Paulo, 1980, csp. III, pag. 43). Bm 1970, 0 Archiv Fuer Rechts-und Sozialphilo- sophie (Wiesbaden) dedicou um volume especial aos trabslhos que, no Congreso ‘Mundial de Filosofia do Direito, mantido em Gardone Riviera, em 1967, se referiram ao tema. Destacaria, do volume, o artigo de N. BOBBIC e o de ILMAR TAMMELO, — Um aspecto interessante foi observado por BLOCH (op, elt, pp. 152-153), a0 anotar que o racionalismo Kelseniano, todo voltado para a el ‘dos. com: Ponentes empiricos, termina por colocar tora do sistema especificamente Juridica R. Inf. fegisl. Brasilia a. 18 m. 71 jul./eet. 1981 a1 um tema de suma relevancia: no Estado constitucional, o poder se transfigu- tava, se juridicizava, se dividia, A questao dos direitos correspondia a re- gulamentagao de uma convivéncia necessaria e dificil: a convivéncia entre 0 Estado, com seus poderes, e os individuos, com suas pretensdes, suas prerro- gativas e sua dimensio existencial. Na geragao de HAURIOU ainda se dizia que o proprio Direito Constitucional tinha por finalidade organizar as garan- tias, isto é, 08 asseguramentos daquela convivéncia, e isto envolvia implica- gGes de ordem politica (basicamente politica), filosdfica e ética, além, evi- dentemente, dos aspectos técnico-juridicos especificos. A tendéncia da linha kelseniana veio, no entanto, no sentido de eliminar as conotagées filoséfico-politicas e toda a sorte de questées materiais. Com isso se cancelariam os contetidos mais concretos (e mais humanos) da ques- tao dos poderes. Um kelseniano nao falaria facilmente em poderes. Como ndo o fez CARRE DE MALBERG, nio propriamente um kelseniano, mas igualmente formalista, que preferiu falar em fungdes do Estado (). No caso dos direitos, 0 tema foi de certo modo descartado pela negagio kelseniana dos direitos subjetivos (feita em termos tao diferentes dos de DUGUIT), além de atingido pela radical negacdo dos direitos naturais. No lugar do tema dos poderes, veio a tendéncia — nos discipulos mais rigorosos — a enfatizar o tema dos érgaos de Estado, sobre o qual KELSEN deixou extensas (e ine- gavelmente brilhantes) paginas. © tema dos érgaos e o das competéncias, estas consideradas como fundadoras da propria existéncia formal daqueles. Ao concentrar-se a visdo do direito publico sobre o problema dos 6rgaos, afastando-se o elenco de problemas carregado pelos constitucionalistas tra- dicionais, correr-se-ia, porém, o risco de apagar 0 proprio conceito do Direito Constitucional. A preocupagao de KELSEN com 0 conceito de constituigao nao se alimentou da problemAtica especifica da ciéncia constitucional: ele se preocupou em situd-lo em relagéo com o conceito de “norma fundamental” e em relacdo, também, com o do ordenamento. Os problemas existenciais carregados pelo pensamento constitucional desde os séculos XVII e XIX se esvaziaram, na teoria pura e na teoria kelseniana do Estado, em prol de con- ceituagées preferentemente formais. 0 risco, mencionado acima, seria, entdo, o de uma transformacao do Direito Constitucional em Direito Administrativo, dada a centralidade assumida pela teoria dos orgies, sem embargo do inte- resse basilar de KELSEN pela norma e de seus importantes trechos sobre a aplicagao do direito (”). QD R. CARRE DE MALBERG, Contribution & la ‘Théorie Générale de Etat, 2 yolu- mes, Ed, Sirey, Paris, 1922 (reimpressio fotomecdnica pelo CNRS, 1962). (12) Na énfase kelseniana sobre a noc&o de érgtio, n6o se dé, evidentemente, o sentido dinBmico que tal noc&o teve em JELLINEK ¢ em ORLANDO, apesar de haver na teoria pura uma “ do direito”. O problema dos érgios se valoriza, facultar um tratamento formal, Numa teoria elaborada em senti formalista nfo terfio lugar, ou néo se acharéio em nossos dias, © que na ConstitaigSo alem& figuram, como se sabe, em lugar primacial. 132 R. Inf. lagisl, Brasilia . 18 m. 71 jul./set. 1987

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