Você está na página 1de 2
UMA HISTORIA DO FLUXUS PARA CRIANGAS. Dick Higgins Muito, muito tempo atrés, quando o mundo ainda era ove — isto é, ai por volta de 1958 — um grupo de artistas, compositores © outras pessoas que queriam fazer coisas bonitas comecaram olhar para o mundo ‘em volta de um jeito novo (para eles) Diziam: — Ell Uma xicara de café pode ser mals bonita que uma escultura grandiose, Um beljo de manha pode Ser mais teatral que 0 teatra de um afotedinho qual- quer. O barutho de meus pés nas botas encharcadas do gua pode ser mais bonito que uma imponente mdsica pare rgao. E quando viram essas coisas, ficaram mals ligados. E comecaram a fazer perguntas, Por exemplo: — Por que todas a coisas que eu vejo que sao bonitas, como xicarss, beljos e pés em botas encharcadas, tém de ser apenas transformadas em parte de algo mais bonito e mals grandioso? Por que no posso simplesmente usé: Jas como elas so? Ao fazerem perguntas desse tipo, estavam inventando © fluxus. Mas isso eles no sabiam, porque o fluxus era ‘como um bebé ainda sam nome porque os pals ndo chegavam a um acordo. Sabiam que estava ali, mas inds no tinham um nome. Bem. essas pessoas estavam espalhadas pela mundo isteiro. Nos Estados Unidos, havia George (George Brecht), Dick (Dick Higgins), LaMonte (LaMonte Young), Jackson (Jackson Mac Low) e muitos autros. Ne Alema: ‘she, Wolf (Wolf Vostell} e Ben ¢ Emmett (Ben Patterson Emmett Williams), norte-americanos em visita aquele pais. E também havia outro visitante na Alemanha, de lum pequeno pais do outro lado do mundo, a Corgia Seu nome era Nam June Paik. Oh, havia mais, lé © em Sutros paises também. Eles faziam “concertos da vida cotidiana, ¢ exposicées do que encontravam, © nessas ocasioos compertilhavam @s coisas de que mals gostavam com todo mundo que sparecesse. Todas as coisas eram elas mesmas, néo arte de algo maior ou mais bonito. E a gante sofisti cada no gostava, porque era tudo barato e simples, sem ccondicdes de dar muito dinheiro para ninguém. Acontece que essas pessoas estavam espalhadas pelo mundo inteiro. Em alguns casos recebiam noticias uns 608 outros, mas néo se viam muito. E falavam linguas diferentes e davam nomes diferentes para o que esta- ‘vam fazendo, apesar de estarem fazendo a mesma coisa Era uma grande confusao, Bem, LaMonte tinha um amigo — outro George, George Maciunas — que gostava de fazer livros. Entéo, disse LaMonto: — Vamos fazer um livro dessas coisas que a Gente faz. — E seu amigo Jackson também gostou da idéia. E fizerem o livro. LaMonte reuniu o material para 6 livro e George Maciunas colocou nas paginas e, pouco tempo depois, levaram tudo para ser Impresso. O nome do livro foi Uma Antologia, palavra engracada para uma colecao, Nao puseram um nome pomposo. Nada de “Antologia do Fluxus”, porque as colsas do fluxus ainda nao tinham nome. Apenas Uma Antologia. Era um livro * LaMonte Young, ed, An Anthology, 1970 (DIA Art Founde tion, 112 Franklin Street, New York, N., 10013) bonito, cue vocé ainda pode comprar, para ver as coisas simples e bonitas que esto nole * — idéias ¢ montes de palavras e maneiras de tomar sua propria vida mais maravilhosa. Acontece que fazer livros custa dinheiro, © se voce gasta seu dinheiro numa coisa, ndo pode gastar em utra. George Maciunas tinha slugado um salao grande bonito na zona mais fina de Nova York, e lé mantinhs luma galeria de arte onde as coisas do tipo fluxus eram apresentadas, comparti/hedas ou simplesmente aconte: lam. Mas quando no havia mals dinheiro para pagar tudo isso, e 0 livro ficou pronto, George Maciunas teve de desistir de sua AG Gallery, como ele a chamava, E resolveu ir para a Alemanha. Levou consigo umas grandes caixas abarrotadas de sobras do que LaMonte © 08 outros haviam coletado, mas que nao tinham entre: do na Antofogla, George Maclunas pretendia reunir-se com as pessoas que, na Alemanha, estavam fazendo as mesmas coisas, E também pretendia fazer algo como um livro e algo como uma revista — que seria impressa de vez em ‘quando, ¢ que sempre mudaria, sempro seria diferente, ‘sempre seria ela realmente. A’revista precisava de um nome. Entao George Maciunas escolheu uma palavea bem encracada quo significa mudanga — fluxus. E co- mecou a levar as coisas do fluxus para as tipografias alemas, para fazer sua revista. E para Informar as pes- ‘s0a8 sobre esse tipa de livro, resolveu realizar alguns ‘concertos fluxus naquele pais, para que 08 jornais escre. vvessem sobre eles @ as pessoas pudessem ficar sabendo sabre os livros. ‘Assim, em setembro de 1962 ocorreu_o primelro con. certo fluxus, na pequena cidade onde George Maciunas vivia, Wiesbaden. Dick também compareceu, vindo de Nova York com Alison (Alison Knowles), sua mulher ‘também artista, levando muitas pecas de outros norte- americanos que vinham descobrindo ¢ compartilhando ‘objetos fluxus. E como os jornais escreveram sobre os concertos! Eles apareceram até na tolovisdo. Coitada da mae de George Maciunas! Era uma senhora antiquada, e quando a tele. viséo mostrou todas aquelas coisas malticas que seu filho estava fazondo nos concertos fluxus, ela ficou tao desconcertada que no saiu de casa durante duas seme. nas, com vergonha do que os vizinhos iam dizer. Bem, @ de se esperar uma reacao assim. Mas a verdade é que alguns vizinhos realmente gostavam dos concertos fluxus. 0 porteiro do museu onde se realizavam 08 com- certos, por exomplo, gostava tanto que comparecia todas as apresentacdes com a mulher @ os filhos. Pouco tempo depois, outros museus e lugares piblicos também passaram a querer concertos fluxus. Assim, em segulda os concertos ecorreram na Inglaterra, na Dina. marca e na Franea. E as pessoas continuavam encon- frando ou fazendo novos objetos — mandavam coisas do Japdo, da Holanda, de todos os lugares. O fluxus ficou famaso. E entéo comecaram a copier o fluxus. As pessoas sofis. ticadas comecaram a coplar as coisas e as idélas do fluxus, Mas tentavam fazer colsas bonitas eom os obje- 408 fluxus — e isso 08 alterava. Quando algumas xicaras de ché ram substituidas por miles de xicaras de ché, 220 deixavam de ser simples @, portanto, nfo eram mals fiuxus. Essa era sompre a diferenga: os abjetos deixa vam de fazer parte da vida. Era sempre fécil distinguir as verdadeiras coisas do fluxus deg c sas falsas, por que as verdedeiras continuavam simples, @ as felsas ‘tinham nomes. pomposos. Com a fama, George Meciunas © todo 0 pessoal do luxus tiveram de imaginar o que fazer om sequida, para © fluxus continuer gostoso para todo mundo. George gostava de ser o chefe. Mas ele era inteligente e sabia que néo dava para sor o chefe e ensinar o que 03 artis- tas do fluxus tinham que fazer. Se ele egisse assim, 0 pessoal ia desistir ©, em geral, eram artistas melhores ue ele. Entao ele se tornou presidente. Isso significava que ele no podia mandar em ninguem: nao podia dizer ‘9 que 0 outros tinham de fazer, nem o que néo podiam fazer, para continuarom participando do fiuxus. © que George podia fazer era dizer para todas as pessoas o que era o fluxus, e com Isso quem quisesse fazer 9 ‘mesma coisa soria fluxus também. Fol uma boa idéia, porque com esse presidente 0 pessoal do fluxus néo se dividia em grupos discordantes, camo sempre costu ‘mava ocorrer com grupos de artistas. O pessoal se unia fem torno das coisas do fluxus, mesmo se estivessem fazendo outras coisas ao mesmo tempo. George Maclunas esqueceu Isso duas vezes. Uma vez. no inverno de 1963, Dick e Alison foram para a Suécia € deram concertos fiuxus. Mas néo havia dinheiro para comprar passagens para George Maciunas, Ben ¢ Emmett irem também. Entéo Dick (eu) e Alison deram {98 concertos junto com novo pessoal sueco do Fluxus, George ficou muito bravo e disse para Dick © Alison ‘que eles ndo podiam mais ser fluxus. Mas no aconte. cceu nada, porque ninguém deu importéncia aquilo. Dick @ Alison estavam dando concertos fluxus da mesma mancira que Ben e Emmett © George (Brecht) © Bob (Watts) © os japoneses e outros. Era gostoso © era Fluxus, © isso 6 que importava Em 1963, George Maciunas voltou para os Estados Uni: dos. Abriu uma loja fluxus ¢ realizou festivais fluxus, © pessoal do fluxus alemao fol visitar, da mesma ma neira que outros grupos de artistas ja tinham feito antes. Continuavam fazendo coisas do fluxus. Comecs. am a chegar convites de lugares sofisticados — museus © faculdades. Mas 0 possoal do fluxus era esperto ¢ ‘nfo se meteu com eles. Terlam perdido a liberdade Entéo os museus ¢ as faculdades reuniram as pessoas © a8 coisas falsas, que ndo eram fluxus (e até hoje ‘continuam fazendo’ Isso, em grande parte). Mas dava ara notar que eram felsos, porque nao eram eles mes- mos. Dava para notar pelos nomos famosos. As coises verdadeiras eram bem mals baratas, © Isso confundia pessoal sofisticado. Enfim. Em 1965, algumas das proprias pessoas que faziam fluxus comecaram a ficar famosas. Issa néo precisava ser um problema, mas George Maciunes néo sabia mais lidar com essas pessoas, Continuava tentando sero In: 17a Bienal de Sao Paulo - Interarte Catalogo Geral. Sao Paulo, Fundagdo Bienal, 1983. cchefe. Ficou muito bravo quando um grupo de pessoas que faziam fluxus resolveu juntar-se com um grupo de artistas que nao faziam fluxus numa grande apresenta- 20 que era uma espécie de circo — o Originale. Maciu- fas © seu amigo Henry Flynt tenteram convencer 0 pessoal do fluxus a fazer uma manifestacio do lado de fora do circo, carregando cartazes brancos que diziam que 0 Originale era ruim. E procuravam dizer que 0 Pessoal do fluxus que se encontrava no circo nao era ‘mais fluxus. Fol uma bobagem, porque provecou uma divisdo. Eu achel engracado, de modo que, no comeco, Participel da manifestagio junto com Maciunas e Henry, carregando um cartaz, € depois entrei no circo © part cipel também Ié dentro. Os dois grupos ficaram bravos ‘comigo. Bem, algumas pessoas dizem que o fluxus mor- reu naquele dia — também jé cheguel acreditar nisso — mas no 6 verdade. Por que no é verdade? Porque as coisas do fluxus ainda recisam ser feitas © porque o pessoal do fluxus conti- hua fazendo essas coisas. Maciunes continuau. impri- mindo material do fluxus — cartes, jogos, idéias — colocando tudo numas caixinhas do materia pléstics mais divertidas que a maloria dos livros. Eu mesmo fiz uns livrinhos que eram realmente fluxus, embora nao tivessem 0 nome escrito. E sempre havia concertos fluxus, E ainda ha. ‘Agora ja passou muito tempo. Jé é quase 1980 quando estou escrevenco esta historia. Georgo Maciunas mor Feu no ano passado, depois de sofrer muito tempo com uma doenca horrivel. Mas antes de marrer soube que ‘seu erro tinha sido perdoado, e que todo © pessoal de fluxus estava junto de novo — eles se reuniam em concertos, em festas de Ano Novo e muites coisas assim. E quando Maciunas estava morrondo, reuniram-se em sua casa para ajudé-lo a terminar um monte de caixas e trabalhos do tipo fluxus. Quando Maciunas fot para o hospital pela ultima vez, os médicos disseram — A gente nao sabe como esse homem alnda est Vivo — Mes 0 pessoal do fluxus sabia, Ter amigos © compar tilhar coisas simples pode ser muito importante. E agora o fluxus jé tem quase vinte anos de idade — ‘ou mals, dependendo de quando voce acha que comecou = mas’ muita gente ainda estd chegando © se unindo ‘20 grupo, Por qué? Porque o fluxus tem vida propria, Independente das pessoas velhas dontro dele. So as coisas simples, tomadas por si mesmas, ndo apense ‘como partes de coisas maiores. € alga que muitos de 'n6s precisamos fazer, a0 menos durante uma parte 60 tempo. Assim, o fluxus esté dentro de voe8, parte do seu jeito. Nao ¢ s6 um monte de coisas e represent: {GOes, mas 6 uma parte do jelto quo voce vive. Esté além as palavras, \Voc8 quer tomar parte do fluxus quando orescer? Eu quero.

Você também pode gostar