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Uma Leitura Arendtiana de Plato André Duarte? Resumo O texto privilegia certos aspectos da interpretagio arendtiana de Platio, especialmente aqueles enunciados em seu Philosophy and Politics, de 1954, tomado estrategicamente como principal referéncia da comunicagio. Neste texto, surgem, embrionariamente, alguns temas que perpassariam e instiga- iam boa parte da reflexdo arendtiana ulterior, tais como a critica ao carater antidemocratico da filosofia politica platénica, elaborada em confronto com @ experiéncia politica da Atenas do século V, e 0 seu motivo de base, qual seja, a distorgao de certos « ensinamentos fundamentais de Sécrates » na propria elaboracéo da filosofia politica de Plato. Na primeira parte da ‘comunicacio aludimos, brevemente, as criticas de Arendt ao projeto platdni- co de abolir as indeterminagdes da politica, bem como as suas principais consequéncias e implicagSes, Na segunda parte, a mais extensa, discutimos © paradoxo e a ambigiiidade contidos no retrato que Hannah Arendt traca do assim chamado Sécrates histérico, em relagao ao Sécrates de Plato. Para Arendt, Sécrates concebe a sua atividade filosofica em estreita correlagdo com as praticas politicas dos atenienses; ele éa figura que intenta Conciliarfilosofia e politica em si mesmo. No entanto, este cidadao-fil6sofo, que nao foge a praca piiblica, a seus temas de discussao, ¢ que se sente verdadeiramente interessado pela leis da ciclade, é condenado a morte pelos inventores da democracia. Em sua andlise do caso Sécrates, que guarda algum parentesco e semelhangas com a andlise hegeliana, Hannah Arendt chega ao veredito de que se trata ai de um « mal-entendido ». Uma leitura 1 Mestre em Filosofia pela USP. 2 André Duarte atenta de seu texto revela que este « mal-entendido » nao diz respeito apenas 0s atenienses, que se enganaram ao condenar 0 fildsofo que se definia como © « moscardo » da cidade, sentido mais evidenciado por Arendt, mas, também, aplica-se ao proprio Sécrates. Das ambigiiidades da analise arendi: tana, aventamos a hipstese de que a conciliacao entre filosofia e politica leva Socrates & morte porque ele descuida de sua mediacdo, de sorte que a radicalidade da maiéutica socrética tende a prescindir do discernimento politico, o que justificaria a sua condenacao. I Participar de um col6quio sobre o platonismo expondo uma interpretacao arendtiana de Platao, me obriga a representar 0 papel do « advogado do diabo », implica algo como provocar o adversario em seu proprio terreno de atuagao — posicao ao mesmo tempo desconfortavel e estimulante. Os ouvintes terdo notado, jé no titulo desta comunicagao, que pretendo tio somente apresentar uma leitura dentre outras possiveis, com seus recortes & objetivos ja bem delimitados, uma leitura que ja nao se quer mais apenas expositiva, mas que privilegia e interroga aqueles aspectos que julga mais contundentes no modo mesmo como Hannah Arendt lé Platio. ‘A leitura arendtiana de Platio remete aos dilemas e implicacdes engendrados com a formulacdo da primeira filosofia politica do Ocidente, vale dizer, remete a tensio original entre filosofia e politica, tensdo esta tornada ela mesma o Amago da prépria reflexio da autora. Estamos, pois, em pleno terreno minado, no corago do conilito, e isto obviamente repercutird no carter freqientemente critico da leitura arendtiana de Platéo, Assim, parece oportuno considerar esta leitura critica a partir do ponto de intersecao entre as suas implicagdes mais propriamente politicas € aquelas mais propriamente filosoficas. Definido 0 viés da abordagem, um texto em particular revela-se especialmente estratégico : trata-se da conferéncia intitulada « Philosophy and Politics », de 19542 Neste texto, publicado apenas postumamente, Hannah Arendt delineia e discute, ainda que abreviadamente, tracos ¢ aspectos de sua critica a Plato, anunciando simultaneamente certos temas, problemas e ambigitidades que se torna- riam recorrentes e mesmo constitutivos de sua ulterior reflexdo. Sugiro, portanto, que a relevancia de « Filosofia e Politica », texto que decid tomar como referéncia para minha leitura, est no fato de apresentar, em germe, as questOes que mais instigaram Hannah Arendt em sua propria leitura de Platao, 2 Arendt, H,, « Philosophy and Politics», ed. post in : Social Reseurch, vol $7, m1, Spring, 1990, doravante FP, seguid da pagina de referencia Uma Leitura Arendtiana de Platio a8 Comecemos, entretanto, ressaltando a recusa arendtiana em designar-se filésofa [1 eu ndo pertengo 20 citeulo dos flésofos. Minha ocupacéo, expressando- me de maneira geral, & a teoria politica, Nao me sinto de modo algum filsofa, e nem creio que tenha sido reeebida no cireulo dos filsofos [+] }& ha muito tempo que eu me afastei definitivamente da filosofa, diz ela, peremptéria, a um entrevistador em 1964.° Pensemos o sentido desta recusa : tratar-se-ia af de um mero « mal-estar » subjetivo com a filosofia, ou ainda, de uma preferéncia metodologica antifiloséfica no trato dos temas politicos ? Que significa esta recusa numa autora em cujos livros transborda ‘© debate cerrado com os maiores representantes da filosofia ocidental ? Teria Arendt abandonado o projeto de uma « filosofia politica auténtica », « nao- académica », a qual somente adviria de um esforco filoséfico, endo da « revolta contra a propria filosofia » ? Se, por um lado, nada ha de retérico nesta recusa, que deve ser considerada a sério, por outro, é preciso estar atento aos problemas a que ela alude : trata-se af de identificar a hostilidade constitutiva da tradigéo filos6fica ocidental em relagéo a politica. Assim, a recusa arendtiana remete aos dilemas que estio na base da filosofia politica platénica, antidemocratica por exceléncia, e que marcariam decisivamente a postura do fildsofo ante o.dominio dos chamados negécios humanos. Para Arendt, a expressio « filosofia politica » esté por demais carregada pela tradi. Quando eu abordo estes problemas, [diz ela] ..] eu tomo sempre o cuidado de mencionar a tensdo que existe entre o homem enquanto ser que filosofa, ‘© 0 homem enquanto ser que age; uma tal tens ndo existe na filosofia da natureza : 0 filésofo posiciona-se frente & natureza ao mesmo titulo que todos os homens, e quando reflete sobre ela toma a palavra em nome de toda a humanidade. Mas ele no se posiciona de maneira neutra em face da Politica apés Platao, isto nao mais é possivel Configurado o problema, sigamos a arqueologia arendtiana, que nos conduz. ao fato crucial do julgamento e morte de Sécrates pelos atenienses, fato tomado assim o marco simbélico das hostilidades entre 0 filésofo e 0 politico, Filosofia e Politica se inicia com a seguinte afirmagio essencial para os 1n0ss0s propésitos : 3 «Seule demeure la langue maternele», entrevista 2 TV alema em 1964, trad. fr: em Espri, Paris, 42, jun. 1980, p19. ‘© Interesse pela Politica no PensamentoPoltico Contemporineo » trad. A. Abranches, C. Drucker eC. Almeida, in: gue ns fee pens, Rev. do Dpto. de Filosofia da PUC-RYp. 5 Arendt, H,, « Seule demeure ls langue materelle «op. cit, p. 20. my André Duarte Nossa tradicdo de pensamento politico iniciou-se quando a morte de Sécrates fez com que Platio perdesse as esperangas na vida da polis, , simultanea zmente, duvidasse de certos ensinamentos Fundamentais de Sécrates. (FP, 73) Bis aqui 0 ponto de intersegao a que nos referiamos enquanto eixo das criticas de Hannah Arendt filosofia politica platénica : a perda das esperan- gas na democracia apresenta-se indissociavelmente ligada a distorgao de certos ensinamentos basicos de Sécrates, questo a que dedicarei especial atencao. ‘A condenagao de Socrates, que nao fora capaz. de persuadir seus inquiri- dores e os atenienses, revelara a Plato as iniquiidades a que o culto 8 deusa Peithd, a deusa da persuasao, estava sujeito. A doxa dos cidadaos mostrara-se arbitréria e especialmente perigosa, condenara o mais sabio dentre os sAbios, © mais justo dentre os justos. Era preciso substitu-la por algum critério absoluto, que tornasse a cidade infensa a injustica; era preciso conceber uma cidade em que os governantes conhecessem a esséncia da justica, tema capital da Repiibliea de Platao, Para Arendt, (© espeticulo em que Sécrates submetex a sua propria dexa as opinioes irresponsiveis dos atenienses, e a viu derrotada pela maioria, fez com que Platdo desprezasse a opiniao e almejasse critérios absolutos. Tais critérios, por meio dos quais os feitos humanos poderiam ser julgados e em fungio dos quais o pensamento humano poderia alcancar alguma medida de credibilidade, tornaram-se, dai por diante, 0 primeiro impulso de sua filosofia politica, e influenciaram decisivamente mesmo a doutrina pura mente filoséfica das idéias. (FP, 74) Em A Condigio Humana,’ quatro anos mais tarde, em 1958, Hannah Arendt avaliard a filosofia politica de Plato enquanto um audacioso projeto para escapar & politica, tal como praticada pelos atenienses do século V, isto 6, fandada na ago conjunta e na troca de opinides, donde a sua imprevisibili- dade e incertezas essenciais. Segundo Arendt, a proposicao platénica de que 108 filésofos devem ser reis exprime a intengao de conferir estabilidade aos, negécios humanos, o que implicava aniquilar 0 espaco ptiblico democratico ea « pluralidade » dos agentes envolvidos. Na Reptiblica, 0 homem justo deixa de ser 0 cidadao dotado de discernimento e perspicécia para tornar-se um « sbio », aquele em cuja alma governa a parte racional, e que, portanto, esta apto a governar segundo a contemplacio da idéia do Bem, tornada a idéia das idéias na perspectiva da filosofia politica Para Arendt, a filosofia politica platonica é a primeira a sistematizar a concepcao de que a vida politica depende de governantes ¢ governados, proclamando a distingao hierdrquica entre aqueles que sabem e ordenam & 6 Arendt, H., A Condigéo Humans, trad, R Raposo, RJ, Forense Universitaria, 1981, ‘expeciaimente no cap. V, = A Agio Una Leitura Arendtiana de Platdo 5 aqueles que nao sabem e obedecem, o que significava adequar a politica as regras entio vigentes no espaco privado, proprias da relagao entre o senhor eoescravo. Na cidade em que 0s fildsofos sao reais, redefine-se a nocio grega de acao, néo mais compreendida enquanto inicio e realizagdo de algo novo por muitos, mas como execugio das ordens proferidas por um s6. 0 Retomemos o fio da meada:: segundo a autora, a filosofia politica de Plato esta em desacordo com certos ensinamentos socraticos. Em oposicao aos grandes comentadores do platonismo de sua época, Hannah Arendt reflete a partir do pressuposto da distingdo entre o Sécrates « histérico » e o Sécrates « matreiro », segundo a fina ironia de Gérard Lebrun, aquele dos dialogos nao-aporéticos. O fundamento filoséfico desta distingao pode ser encontrado numa outra distingdo, estabelecida posteriormente em A Condigio Human, entre o que e 0 quem de uma pessoa : 'S6 podemos saber quem um homem foi se conhecermos a histéria da qual «ele €0 her6i —em outras palavras,a sua biografia; tudo o mais que sabemos ‘seu respeito, inclusive a obra que ele possa ter produzido e deixado atrés desi diz-nos apenas oque ele 6ou foi. Assim, embora estejamos muito menos {informados a respeito de Socrates, que jamais escreveu uma linha sequer nem deixou obra alguma para a posteridade, que acerca de Platao e Arist6- tees, sabemos muito melhor e mais intimamente quem foi Séerates, por Ihe conhecermos a histéria (J. (CH, 199) Distinguindo entre 0 que e 0 quem de uma pessoa, Arendt visa captar aquilo que singulariza e especifica o homem Sécrates em relagio aos outros, a sua « esséncia viva » revelada em seus atos e palavras. Apoian- do-se na Apologia e no Criton, Arendt esboca-nos de Sécrates um retrato bastante peculiar, em nitida oposigao ao Sécrates platénico da Repiblica, que substitui a persuasio pela dialética, a opiniao pela verdade, o belo pelo bem, e que postula a entrega do governo aqueles capazes de suportar-Ihe o brilho radiante na contemplagao, O personagem vislumbra- do por Hannah Arendt néo despreza a democracia, e nao concebe a sua atividade questionadora em oposigao as leis da cidade. O Sécrates de Hannah Arendt €, portanto, concebido enquanto expressio da cortcifiacto entre filosofia e politica, alguém empenkado na tentativa da adequacao entre pensamento e politica, entre questionamento filoséfico e vivéncia do espirito puiblico ateniense. Para Arendt, Socrates era verdadeiramente sincero quando postulava nada saber, quando inquiria seus interlocutores tio somente pelo gosto do pensamento, atividade que ele julgava antes benéfica do que prejudicial & 46 André Duarte cidade : 0 Sécrates da Apologia define-se enquanto « moscardo », aquele que no tem uma verdade absoluta para ensinar aos atenienses, mas que lhes quer despertar a atengao para o que dizem e pensam. Para Arendt, Sécrates 6 tido como o mais sabio dentre os homens, porque nao intenta substituir as opinides de seus interlocutores por uma verdade essencial, que ele mesmo ‘no possui. Sécrates ¢ fildsofo, ¢ amigo da verdade, e nio 0 seu proprietatio, no se concebe como um sibio. Nas Kant Lectures, anos mais tarde, Arendt reafirmaria estas mesmas idéias Sécrates nada ensinou; ele nunca soube as respostas para suas perguntas Ele inquiria pelo cuidado da propria inquirigdo, no pelo conhecimento. Tivesse ele sabido o que eram a coragem, a justica, a piedade, etc, ., nio ‘mais teria a necessidade de examind-las, de pensar a seu respeito. A especi ficidade de Sécrates esta em sua concentracdo no pensamento em si mesmo, 1 despeito dos resultados? Face ao caréter lacénico do ensinamento dos sophoi, dos sabios que 0 precederam, concernides apenas com a busca da arché, do principio de tunidade e otigem do kosmos, contrasta a eloguéncia da filosofia socrattica, que nao foge a praca piiblica e a seus temas de discussio, e nem se entrincheira em seitas, um pensamento que responde por suas implicagdes em sentido ample. ‘Assim, 0 « conhece-te a ti mesmo » do ordculo de Delphos, é, na versio arendtiana, a expressao de que apenas conhecendo 0 que aparece para mim [.] posso eu de algum modo, compreender a verdade. (FP, 84) ‘Algo como uma « verdade absoluta », que pudesse pairar por sobre 0 mundo dos homens, por sobre o conflito de suas opiniOes, esta completamen- te fora do alcance dos « mortais ». « Conhece-te a ti mesmo » significa, portanto, conhece com os instrumentos que te foram dados, ousa saber dentro dos limites de tuas possibilidades cognoscitivas ; nao & portanto casual que Arendt associe, nas Kant Lectures, a figura de Socrates & de Kant, sob o designio comum de « pensamento eritico » © pensamento ertico, de acordo com Kant e Sdcrates, expoe-se asi mesmo a's teste do exame livre eaberto »,e isto significa que quanto mais pessoas dle participem, melhor. (KPP, 39) A maiutica socratica é, deste modo, uma « atividade politica » (FV, 81), 7 Arend Hi, Lectures on Kans Pola! Philsophy, ed. R. Beiner, Univers. Press, Chicago, 1982, p.37_—doravante KPP seguido da pagina Uma Leitura Arendtiana de Platio ” almeja téo somente trazer a luz do mundo piblico a veracidade de uma opiniao, cenxergar em cada doxa a verdade e dizé-la de tal modo que a verdade de uma opiniao revele-se para sie para os outros. (FP, 4-85) Aqui, pensar nao significa entrar em contradigéo com a Atenas democré- tica, mas passear a interrogagéo em plena praca publica, exercitar o didlogo na troca de opiniges = ‘que Sécrates realmente fez, quando trouxe a filasofia dos céus para a ter fe comegou a examinar opinides acerca do que ocorria entre os homens, foi extrair de cada afirmagio suas implicagies ocultas ou latentes; era com isto que sua maiutica importava-se. (KPP, 41) E, entretanto, este Sécrates amigo da verdade e da polis, este cidadao-pen- sador como nenhum outro houvera sido até entao, foi condenado a morte. O descobridor dos poderes do « sopro do pensamento », como Arendt o caracterizaria em The Life of the Mind, veio a ser condenado pelos inventores da democracia. Ressurge, aqui, a tensao original entre o pensador € 0 politico, entre filosofia e politica. Uma estratégia para desvelar o significado deste paradoxo, segundo a versdo arendtiana, talvez seja a de confronté-lo aquela Proposta por Hegel. Ainda que o interpretassem distintamente, ambos Partiram da mesma premissa quando trataram de pensar o significado do caso Sécrates, e, portanto, chegaram a conclusdes que, ao menos em parte, assemelham-se O Sécrates hegeliano é o signo da fissura da « bela eticidade » grega, é 0 sintoma de que af a « efetividade & uma existéncia Gea, sem espirito e sem consistencia »* Para Hegel, 0 « conhece-te a ti mesmo » exprime a invencdo da reflexividade do pensamento sobre si mesmo, engendrando a consciéncia, movimento que cinde a « espontaneidade » da vida ética grega e efetiva uma « tragédia » que é compreendida como « destino ». Para Hegel, Sécrates € infelizmente culpado, pois introduziu a duivida onde antes reinava a adesio imediata, Aquele que declara nada saber, declara que tudo deve ser questio- nado, aponta para a disparidade de contetidos entre « consciéncia ¢ ser », tornando-se a medida de todas as coisas. Fm suma, Sécrates sobrepde & Sittlichkeit grega, principio de uma Moralitat fundada e legitimada pela propria razio. A partir de entio, jd nao basta que estejamos de acordo com 0 ethos reconhecido, mas, principalmente, que nos saibamos morais, 0 que coloca Sécrates em choque com o mundo de seu tempo. Observe-se a sutileza do veredito hegeliano : Sécrates é visto nfo como 8 Hegel, G. W., Prin 184, trad. Derathe, et phitsophie du droit ow droit naturel science de tat en abr in, Paris, 1988, 48 André Duarte aquele que descobre o poder dissolutor da mera subjetividade, mas como aquele em quem se manifesta a fratura do mundo grego. Sécrates nao é um sofista, ¢, portanto, 0 « retirar-se da efetividade para adentrar-se na sua vida interior » nao implica o desejo maligno de tudo volatizar, de dissolver 0 que 6, mas sim 0 esforgo por identificar o que ha de substancial no pensamento — 0 que nao impedir4, contudo, que ele entre em confronto radical com 0 mundo ético grego. Sécrates é simultaneamente simbolo e agente da desa- gregacdo deste mundo, e o elemento tragico na morte de Socrates esta em que sua condena¢ao exprime a contraposicao de « dois poderes igualmente legitimos e morais » Hannah Arendt também enxergaré as marcas de uma « tragédia » na morte de Sécrates, mas, para ela, esta se deve antes a um « mal-entendido ». (FP. 77) Para desvendar as sutilezas e ambigiiidades deste « mal-entendido », pois Hannah Arendt da a entender que ele sé aplica tanto aos atenienses quanto ao préprio Sécrates, cabe explorar agora em que sentido o pensamer to socritico € simultaneamente relevante e perigoso para a cidade, a ponto de leva Sécrates ajulgamento ea morte. Arendt certamente estaria de acordo com Hegel, quando ele afirma que a condenagao e morte do filésofo provocadas pela cidade relacionam-se com a sua descoberta da autoridade de foro intimo na tomada das decisoes. Nao por acaso, jé em Filosofia e Polticn, ‘Arendt vale-se da afirmacio socratica de que « é melhor estar em desacorda com 0 mundo do que, sendo um, estar em desacordo consigo mesmo » (Gorgias, 482), lema que se tornaria fundamental em The Life of the Mind. Cabe, entretanto, precisar em que sentido Arendt percebe, nesta afirmagio de Sécrates, uma pista para a compreensio do paradoxo instaurado com a condenagio do fildsofo-democrata, jé que sua interpretagio nao segue exa- tamente os passos dados por Hegel. Segundo Arendt, Sécrates descobrira que o critério supremo do pensa- mento é o de manter-se em acordo consigo mesmo, o de nao contradizer-s. Sécrates, a0 descobrit 0 pensamento enquanto atividade do eu consigo mesmo, ao descobrir que somos dois quando a sés tentamos refletit, 20 perceber que trazemos dentro de nés um amigo com quem convivemos, e que nos solicita quando pensamos, descobrira também a importincia pratica € politica da nao-contradigdo. Apenas aquele que preza o amigo que traz dentro de si pode prezar a amizade de seus concidadaos, pode com eles conviver num mesmo « mundo comum », donde a estreita relagio entre pensamento e politica. Ou seja, estar de acordo com a prépria consciéncia, antes de constituir um obsticulo para a integragao de si no mundo, é a sua propria condicao de possibilidade. E neste sentido que, para Arendt, 03 cidadaos estavam enganados ao condenar Sécrates. Disséramos, contudo, 9 Hegel, G.W. F, Lacions sabre a Historia de le Filosofia, trad. W. Roces, F.C. E, Méico, 1955, pes Uma Leitura Arendtiana de Platdo 9 que a andlise arendtiana retinha sutilezas e ambighidades, e que o « mal-en- tendido » poderia ser de mao-dupla. © segundo sentido em que a condenacéo de Sécrates constitui um «mal-entendido », aponta para a reinstituicao da tensao entre pensamento € politica na figura do proprio Sécrates. Segundo Arendt, Sécrates nko percebera [que] a busca da verdade na doxa pode levar ao resultado catastréfico de que a doxa seja simultaneamente destruida {..] (FP, 90), pois que nenhuma outra opiniao mais verdadeira era encontrada para substituir a precedente. Ainda que ele nao o desejasse, a maiéutica socrética, em vez de aparecer as vistas dos atenienses como 0 modo de tornar as opinides humanas mais e mais verdadeiras, poderia aparecer-Ihes como uma arte de destruicao de opiniges, meio através do qual os homens expressam-se em assuntos politicos. Diz ainda a autora Como quer que seja, no obstante todos as seus protestos, segundo os quais ele nio possuia nenhuma verdade especial que pudesse ser ensinada, Séerates deve ter aparecido como um expert em verdade. (FP, 91) Nao seria, portanto, compreensivel, que Sécrates fosse tomado como « sé- bio », como alguém absolutamente clesinteressado das coisas da cidade, ocu- pado apenas com alguma verdade eterna , assim, como alguém que era intl € mesmo perigoso para a polis? Afinal, pensemos nés : de que poderia valer a radicalidade da maigutica socratica se ela acaba por prescindir do discern mento politico ? De que vale saber que nao sabemos quando decisées concer- nentes ao destino da comunidade precisam ser tomadas com urgéncia ? Ao fim das contas, Sécrates foi condenado néo por querer exercer qualquer papel politico, mas por querer tornar a filosofia relevante para a polis. (FP, 91) Ou seja, 0 abismo entre a verdade e a opiniso, que dai por diante separaria 0 filésofo de todos 0s outros homens, ainda nao se houvera aberto, mas jé estava indicado, ou melhor, vislumbrado, na figura daquele homem que, onde quer ue fosse, tentava tornar todos & sua volta, ¢ principalmente ele proprio, ‘mais verdadeiros. (FP, 91) Entretanto, assim procedendo, Socrates acabava por recusar-se a formar e sustentar opinives, visto que as submetia freqiientemente a diivida, Hannah Arendt ndo chega a nos oferecer uma resposta mais conclusiva 50 André Duarte a0 impasse criado, ao menos nao neste seu texto. Podemos, contudo, por conta propria, levantar algumas hipéteses. Em que medida Sécrates nao foi condenado por ter ressaltado, como poucos, 0 cardter essencialmente critico do pensamento, sem ter se dado conta de que o pensamento critico sempre ‘raz consigo « implicagées politicas », como Arendt o aponta nas Kant Lectures ? Tentando conciliar em si mesmo filosofia e politica, $ porventura ndo se teria esquecido de medié-las através do jus Sécrates ndo se dé conta de que a Atenas democratica vislumbra, e talvez com razao, a liybris, ali onde ele enxerga a sua propria humildade, o seu ndo-saber radical Se, para Arendt, os cidadaos enganam-se quando acusam de impiedade aquele que mais respeita as leis da cidade — pois, mesmo podendo fugir, Sécrates acata a punicao fixada —, também Sécrates engana-se em sua intengao de conciliar duas experiéncias fundamentalmente distintas, sem cuidar de sua delicada mediagdo. Aventada esta hipotese, que a autora nao chega a esbocar, mas que creio estar em acordo com a disposigdo fundamental (a Grundgesinnun jasperiana) do pensamento arendtiano, gostaria de concluir com a seguinte interrogacao : em que medida a sua interpretagio do caso Socrates nao estabelece liames sutis com a sua posterior reflexdo acerca da faculdade de julgar ?

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