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Historia Oral: uma metodologia para o trabalho com fontes orais Mauricio da Silva Selau" Resumo (0 presente artigo se propde uma breve reflexio sobre a conveniéncia do uso do termo Hist6ria Oral; as prineipais eriticas e os respectivos argumentos a favor da mesma: ea divisio em ues vertentes dos praticantes desta metodologia: os que a entendem apenas como uma téenica, os que a entendem como uma disciplina e os que a entendem como ‘uma metodotogia, Palavras Chave: Historia Oral, Meméria, Metodotogia, Fontes Orais Abstract The present article has the purpose of promots a brief reflection about the convenience of the use of the Verbal History term; main critical and the respective ‘arguments in favor of the same one; and the division in three sources of the practitioners, of this methodology: the ones that understand it as one technique, the ones that understands it as one discipline and the ones that understand it as a methodology. Key Words: Verbal History, Memory, Methodology, Verbal Font. A Historia Oral conguistou, no Brasil, muitos adeptos nos tltimos 20 anos. Entretanto, ela nao significa uma uniformidade de sentido, coexistindo uma série de interpretagdes diferenciadas sobre a mesma, a comegar pelo proprio termo histéria oral. Garrido considera que 0 termo histéria oral nio & procedente, uma vez que nlo se configura como um produto historiogrifico diferenciado ¢ alternative a historia realizada cexclusivamente com fontes escrtas. Entretanto, chama a atengio para o fato de que @ utilizagdo de fontes orais permite construir um discurso de interpretagdo historia mais completo, mais rico © mais complexo', Para o autor, utilizar fontes orais possibilita desenvolver abordagens diferentes em historia, incorporando novos sujeitos ¢ ampliando as possibilidades de pesquisa, mas isto no significa que uma pesquisa realizada nestes ‘moldes resulte em um trabalho diferenciado do que vem sendo comumente apresentado pelos historiadores nos Gitimos anos, ou seja, apesar de utilizar fontes diferentes, continua ser um trabalho de historia, Philippe Joutard® argumenta que esta expressio nio é mais pertinente como fora hi alguns anos atris, Baseando-se em relatorios de sete pesquisadores, de diferentes paises, ‘expe que 4 maioria deles posiciona-se contra 0 uso do termo histéria oral para os trabalhos ‘que utilizam fontes orais. Entre 6s argumentos esti 0 de que é raro encontrar uma pesquisa, cm historia que se baseie em um nico tipo de fonte. Cita como exemplo o fato de muitos histortadores utilizarem as fontes orais de modo predominante mas no exclusivo, o que os faz reivindicar 0 uso de fontes orais na pesquisa historica e nio o termo historia oral, como se fosse uma disciplina diferente da ciéncia histérica, Nessa mesma perspectiva Garrido defende a idéia de incorporar as fontes orais como uma fonte documental a mais”. Joutard considera que “a expressio “Fontes orais” ¢ metodologicamente preferivel e que a expressio “historia oral” éterrivelmente ambigua, para nao dizer inexata™. REVISTA ESBOGOS N° 11 UESC Prefiro 0 uso do termo fontes orais, pois ndo acredito na existéncia de uma histria coral por exceléncia, ja que a entrevista (Fonte oral) no se constitui na historia em si, mas & ‘uma construgdo que o individuo faz de seu passado com base nas experiéneias ruardadas por sua meméria. O trabalho de analise ¢ reflexdo sobre a série documental de que dispde, seja com as fontes orais ou qualquer outro tipo de fonte, e a conseqiente critica interna © externa a essas fontes & que possibilita ao historiador construir seu trabalho historiogritico, ou seja é a atividade profissional do historiador que cria as condigies para a construgdo de uma historia com base nas fontes orais € ndo a fonte por si s6 como sugere ‘© termo historia oral. Jean-Pierre Wallot prope 0 uso da expresso historia oral para designar “método de pesquisa baseado no registro de depoimentos orais concedidos em entrevistas”™. Curiosamente, Joutard, que se coloca a favor da expresso fontes otais, propde que se ‘mantenha a expressio historia oral, de acordo com a definigio de Wallot, porque “ela & simples e tem a antigiidade a seu favor”. Daniele Voldman tem um posicionamento mais contundente ¢ argumenta que a expressio historia oral “se tornou inadequada e s6 deveri ser empregada a titulo histérico, para qualificar o periodo historiogritico dos anos SO a 80”. © argumento de Voldman & procedente quando nos deparamos com 0 desenvolvimento do uso de fontes orais apés sua reintrodusao no ambito da historia na década de 1930. Com @ advento da historia académica no século XIX ¢ sua obsessio por documentos eseritos, sem os quai, seria impossivel fazer histéria, os depoimentos orais, que até entZo eram aceitos, desde que as testemunhas fossem dignas de fé, foram colocados de lado. De acordo com Garrido, apés o final da II Guerra Mundial © a descolonizac2o da Africa, combinados com a ascensio ao poder de grupos que até entdo possuiam escassa ou nenhuma documentagdo eserita, é que as fontes orais voltaram a ser tilizadas e de modo massivo, ainda que no reconhecidas pela historia académica, o que provocou o inicio do debate contemporineo sobre a validade do uso dos testemunhos frais para a pesquisa historica’ ‘Joutard’ identifica quatto geragBes de historiadores trabalhando com histéria oral, apesar de frisar © cuidado com a expresso. O autor aponta dentro destas geragdes, a presenga de duas correntes, uma ligada a ciéncia politica ¢ outra mais proxima da ‘antropologia. A primeira se preocupa em gravar entrevistas com grandes personalidades para que as mesmas sirvam de complemento a outros documentos escritos, enquanto a segunda trata a entrevista como um documento em si e aborda temas que vlo desde as ‘minorias até a construgdo das identidades. A primeira geragio, surgiu nos Estados Unidos por volta dos anos $0 do século passado e estava ligada as ciéncias politicas. Ocupava-se ‘dos notives, das grandes personalidades politicas da época. O objetivo desta geragao era ‘conseguir materiais para os historiadores futuros e para aqueles que se ocupariam de ‘organizar biografias, ‘A segunda geraglo aparece na Ilia no final da década de 1960, Ligada a Antropologia ¢ a Sociologia, ocupa-se da cultura popular. Para esta geragio a histéria or rndo era considerada uma simples fonte complementar, mas sim uma “outra historia’ capaz de dar voz aos “povos sem historia”, os iletrados, vencidos, marginais e minorias. Caracterizou-se por uma historia militante, praticada também por no profissionais, persistente até os dias atuais, a margem do mundo universitirio, que a olha com reserva, ‘mesmo no presente, quando a discussio em torno do uso das fontes orais esté bem mais avangada, A contribuigdo que estas fontes representam para o estudlo de grupos até entio negligenciados nos documentos oficiais e por uma Logica de pesquisa que mio os levava tem consideragdo levou 0s historiadores que se interessavam pela historia das chamadas 218 HISTORIA ORAL: UMA METODOLOGIA PARA O TRABALHO COM FONTES ORAIS ‘minorias (imigrantes, trabalhadores, mulheres, criangas, idosos) a utilizar as fontes orais como uma possibilidade de reconstituigdo da trajetoria destes grupos. De um modo geral « hist6ria destes grupos humanos, principalmente quando abordava os trabalhadores ou populagdes marginalizadas, ficou conhecida como a historia dos vencidos. Este adjetivo levou muitos praticantes da historia oral a uma visio ingénua da construgdo do discurso historico. Acreditava-se que por intermédio da histéria oral, os pesquisadores abririam. mio do espago do cientista para que o outro falasse, redimindo assim os grupos até entdo cexcluidos, Janotti e Rosa lembram que apesar de alguns pesquisadores pensarem deste modo, “o historiador continua a comandar © processo do conhecimento ao selecionar ddepoentes, recortar temas, reescrever falas e construir a explicacZo histérica a partir do que generosamente Ihe foi oferecido™” A terceira geragio se constitui a partir de 1975 quando iniciam os primeiros cencontros sobre o tema Esta geragio caracteriza-se pelos projetos coletivos com o uso de fontes orais tanto na corrente politica quanto na antropoldgica, na América Latina, Europa Estados Unidos. Ha uma dinamizagio das discusses sobre historia oral neste periodo, sobretudo na década de 1980 quando comeam a ser realizados grandes encontros sobre 0 eflexio mais ampla sobre 0s problemas epistemoligicos © metodolégicos do trabalho com fontes orais. Foram fundadas revistas tematicas sobre 0 uso das fontes orais, © que associado aos encontros cientificos, oportunizou a constituigdo de uma comunidade de historiadores que trabalham com fontes oF ‘A quarta geragio surge de 1990 em diante, caracterizada pela presenga, entre os profissionais que trabalham com fontes orais, das pessoas nascidas na década de 1960, Segundo Joutard estas pessoas seriam influenciadas pela oralidade, provecando maior aceitagio das fontes orais associado ao dinamismo e modernizagdo das téenicas de trabalho, como a fita de video, entre outros. Esta geragdo esta em plena atividade e passa a exercer influéncia no debate metodolégico em prol da aceitagdo das fontes orais, que apesar de ter avangos reconhecidos ainda enfrenta resisténcias por parte de um’bom -mimero de profissionais AAs criticas a0 uso das fontes orais so feitas principalmente pelos adeptos da idéia de que a historia s6 se faz.com documentos escritos e seus principais argumentos baseiam- se_ma fragilidade da meméria humana, na divida sobre 0 sujeito que testemunha colocando em cheque a credibilidade ¢ a definigio de uma fonte provocada por seu usuario imediato, no caso pesquisador, ¢ os efeitos de sua constituigao para o objeto de pesquisa, uma vez que este tipo de fonte é inventada para atender a necessidades preestabelecidas do pesquisador". Para os criticos do uso das fontes orais, os documentos fescrifos possuem um cariter de exterioridade, marcado pelo distanciamento e sua conseqilente objetivagio. O documento escrito tem ainda, na visio destes criticas, 0 rmérito de estar disponivel para referéncia, verificagao e retormo, ow ainda para contradicio, 0 contririo das fontes orais que raramente esto em um local pibli Permitindo 0 acesso a todos 0s usuarios. Os criticos das fontes orais colocavam como clas para aceiti-las a acessibilidade © a possibilidade de uso como prova pela comunidade cientifica. Segundo Voldman, a invengao do gravador permitiu atender estas exigéncias na medida em que os depoimentos passaram a ficar registrados em fitas, garantindo a oportunidade de ser utiizada como prova. O problema continua, em grande medida, relacionado com o acesso as fontes orais, pois muitas pesquisas no disponibilizam suas entrevistas, ou seja, no as confiam a uma instituigdo piblica que se ‘ocupe de sua conservagio ¢ posterior disponibilizacao ao piiblico interessado, tema, propiciando uma ‘em nivel mundial 219 REVISTA ESHOGOS N' 11 UFSC © conjumo de erticas que se faz a0 uso de fontes orais na pesquisa em histéria contibwis para que os profisionais que raalham com estas fonts ampliassem o debate sobre o desenvolvimento de um metodo que garantiase um carter de confabilidade aos depoimentos, envolvendo as discusses sobre a questio da‘ memera e a importincia da constituigdo de arquivos que garantam a guarda, conservagio e disponibilizagao desta Fontes para o pblicointeressad, tanto especialstas como usuarios em ger Com relagio a problemitica da memiria, Michael Pollak argumenta que a memeria € formada por tés elementos constiitivos: acontecimentos. personagens & lugares. O autor trabalha com estes elementos de forma individual coletiva pots seu esquema de explicagio orgaiza-se em experiéncas vivides pela propria pessoa ou pelo gripe 20 qual esia pessoa pertence, ainda que no tenha envolvimento direto com determinada experigncia. Assim, os acontecimentos vividos pela pessoa entrevista estao em primeiro lugar. Em segundo estdo os acontecimentos vividos pelo grupo ot pela coletvidade & qual a pessoa se sentepertener, dos guais ela nem sempre paricipos, mas ajie no imagindrio tomram tamanbo relevo gue € quase impossivel cle dstinguie se Participow ou nfo, Em tercciro lugar, os acontecimentos fora do espago-tempo de um upo, que por meio da socalizagio politica ehistrica, um fendmeno de projeio ou de "dentiieagio com determinado ponsado, 0 faga ser incorporado por este grupo, podendo~ se falar em uma memviria herds. As personagens também sho entenddas dest form existindo as que foram encontradas pessoalmente, as que foram conhecidas iniretamente, mas que tomaramse quase que conhecidas e ainda as que ndo perteneram a0 espago- tempo da pessoa. Por timo os lugares. Existem lugares da memoria, ugaresligados a uma lembansa, que pode ser pessoal ot no Ter apoio no tempo eronoldgico, Na memeria mais piblica, nos aspectos mais piblicos da pessoa, pode haver lugares. de apoio da memiria, que Sto Tupares de comemoragio, Locais muito onginguos fora do spaso- tempo da vida de uma pessoa, podem constitu lugar importante para a meméria do rupo,¢ por conseguinte da propria pesoa, sea po tabel, sea por pertencimento a este ripe! Assoviado a esses elementos constiutvos, a menviria também & intereruzada pelos fendmenos da transferéneia e da projecio, onde @ meméria de um determinado grupo cntraem conflto com a memiria oficial de seu pas, escolhendo acontecimentos datas Glifeentes para as suas comemoragoes, Oultas vezes pode-se comemorar os mesmos acontecimentos, mas de modos diferenciados ou até em datas diferentes, O que define fas comemoragdes, o melhor a importincia concedida és mesmas pelos grupos humanos ¢ a experiéncia vivida pelos respectivos grupos em relagio a0 objeto. de comemoragdo. Portanto, a memria que im grupo constoi esti intimamente ligada com as Sas viveneias eo proprio grupo selecionao que julga digno de eomemoragio ot nto, Neste ponto chegamos ao que Pollak destaca como uma das caratersticas da memara, ou Seja que ela € seleiva, Nem tudo Fiea gravado, nem tido fica registrado. O cariter seletivo da memoria € reforgado pela nogo de pertencimento afetivo'” ao grupo ao 4qual_ um determinado individ pertenee, pois 0 sentimento de continuidade presente naquele que se lembra & 0 que faz com que uma dada memoria perman, Assim, studs vividas a se tnsformam em meméria se aquele que se kembra sentir aetvament gato 40 grupo ao qual pence. Als, ao ql erence, ois ss fa parte de um ‘ruporo pasado se se continua aftvumentes fcr pare dele mo presen HISTORIA ORAL: UMA METODOLOGIA PARA O TRABALHIO COM FONTES ORAIS ‘A memoria, apesar de parecer algo estritamente individual, tem por suporte um ‘gtupo social, com © qual a mesma € compartithada, sem realizar uma ruptura entre © passado ¢ 0 presente porque s0 retém do passado aquilo que ainda é capaz de viver na consciéncia do grupo que a mantém, Mas ao mesmo tempo em que essa meméria & seletiva © mantida por um determinado grupo, ela também é uma construeo, na medida fem que esti sujeita a flutuagdes, transformagdes ¢ mudangas constantes, mediadas pelo presente em que o grupo vive, de modo que a meméria é também uma construsio do passado e est aberta ¢ em constante evolugio!™ Assim, as pessoas que fazem parte de um determinado grupo mantém suas lembrangas, que so pessoais € go mesmo tempo coletivas, pois como explicou Pollak com base nos elementos constitutivos da meméria, esta seria composta por acontecimentos, personagens ¢ lugares, ¢ que 0s individuos tem experiéncias pessoais, das ‘quais participam diretamente e experiéncias do grupo, com as quais tem contato ¢ que hem sempre participa, mas que marcam de tal forma uma coletividade que ganham destaque e passama ser incorporados nas narrativas dos que compdem o grupo. De acordo com Pierre Nora hi uma distingo entre a historia-objeto, que seria a historia vivida e a hist6ria-conhecimento, operagio intelectual que a torna inteligivel. Esta historia-conhecimento € o contraponto 4 meméria que por ser vivida € um fendmeno sempre atual. A historia reconhece a existéncia do passado, mas ela no é uma vivencia © sim uma representagao deste passado, razao pela qual utiliza a memoria para construir esta representagio. "A meméria, por seus lagos afetivos e de pertencimento, ¢ aberta e em permanente evolugao e ligase a repetigio e 4 tradigo, sacralizando o vivid do grupo social”. Por tratar-se de uma operagio intelectual, a historia permite o distanciamento, a critica ¢ a reflexdo sobre as memérias. Para tanto, dispde de determinado conjunto de procedimentos metodolégicos. A hist6ria oral pode ser entendida como uma metodologia capaz de contribuir para cesta atividade de andlise das memérias por intermédio das entrevistas realizadas com ‘pessoas de um determinado grupo, envolvido com temas de interesse para a pesquisa em desenvolvimento pelo profissional em historia. Garrido destaca que [Um dos spostos mais ntressates do uso de fontes ors & que no apenas se chegn a. um concierto dos fos man tandem & forma como o grupo os vivencon ¢ perce. Ede Inortincia capital resgatar a subjetnidade, mas umn grave ero pasar a ontunda com fos ‘objetivos. Esta aproxiagdo extn a estemunho eal consequese mediante dois procedimentos ‘after itratvo: um, com a documento excita existent, eto, com 0 resto do cops de Shocamenios ras: Dat a importincs dese estabelcer uma rela dilticaente os dveron tipo de A ulilizagdo de fontes orais requer o respeito a regras metodolégicas que garantam © rigor cientitico e metodologico da pesquisa. A critica as fontes & algo que deve ser rotineiro a0 trabalho do historiador, portanto, para qualquer tipo de fonte, deve se estabelecer a conseqlente critica das informagdes encontradas, seja no documento escrito, seja em uma fonte oral. No caso especifico das fontes orais, Garrido aponta a conveniéncia de se procedet ‘uma analise tendo por base o corpus de depoimentos que compdem a amostra da pesquisa © também com a documentagio escrita, de modo a atingit um conhecimento dos acontecimentos vividos por um determinado grupo, Esta atividade consistiria em contrapor as informagdes obtidas no conjunto de entrevistas procurando evidenciar estes ‘acontecimentos encontrados nas mesmas ¢ também perceber as representagdes que os

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