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REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL - MUNICÍPIOS - IBAM GÊNERO E RAÇA

A gramática do
orçamento a partir
das perspectivas de 1

gênero e raça

Vict or Soares / ABr


Delaine Martins Costa
Coordenadora do Núcleo de Estudos Mulher e Políticas Públicas, IBAM

ma das principais especi- de redemocratização, levados a dos mecanismos de diálogo, de


ficidades dos estudos de cabo no Brasil nas duas últimas dé- controle social e de participação
gênero refere-se à pro- cadas, tenham ampliado o diálogo diversas iniciativas, governamentais
posta de modelos interpretativos entre o governo e a sociedade civil, e não governamentais, foram co-
que tragam à tona a condição dife- resultando, entre outros fatores, no locadas em prática no país visando
renciada de homens e mulheres na aumento de mecanismos de parti- ao controle da administração dos
sociedade, revelando assim a pre- cipação e representação feminina recursos públicos. É sob esse aspec-
missa de que os processos e as re- no âmbito governamental e não- to que o presente artigo pretende
lações sociais são estruturados a governamental. trazer contribuições e problemati-
partir das hierarquias entre os se- De acordo com Guzmán (s/d, zações preliminares a partir do de-
xos masculino e feminino. Diver- p. 20), a Reforma do Estado avan- senvolvimento de uma visão polí-
sos campos de conhecimento fo- çou principalmente nas suas dimen- tica sobre a administração dos re-
ram, sob essa perspectiva, subver- sões administrativas, econômicas e cursos públicos no que se refere à
tidos a partir desse pressuposto, o políticas e, em menor medida, na gramática orçamentária e sua arti-
qual conduziu pesquisadores e es- sua dimensão social. No trabalho culação com as perspectivas de gê-
tudiosos das ciências humanas a lan- desenvolvido pela autora, foram nero e raça.
çarem problematizações que inau- identificadas algumas dimensões da O objetivo é fornecer subsídios
guram disputas e rupturas no cam- Reforma do Estado durante a dé- ao debate sobre as iniciativas de gê-
po intelectual. cada de 1990. Dentre elas, confe- nero e orçamento em curso, consi-
Este também é o caso do de- riu-se especial atenção aos mecanis- derando-se as principais questões,
bate acerca da Reforma do Esta- mos de transparência da gestão problemas, desafios e metodologi-
do e da administração pública em pública, sendo que o Brasil desta- as empregadas2 . O tema de per si
que gênero, como uma categoria ca-se no que diz respeito à partici- requer um esforço de sensibilização
de análise, encontra-se apartado. pação cidadã. e tradução, uma vez que o campo
Isso ocorre ainda que os processos Juntamente com a ampliação do orçamento municipal apresen-
1 Uma versão ampliada do artigo foi apresentada no VIII Congresso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, realizado na
cidade do Panamá, no período de 28 a 31 de outubro de 2003, no painel “A Reforma do Estado e da Administração Pública sob a ótica do Desenvolvimento Local:
Novos Temas para Discussão?”, coordenado pela autora.
2 O artigo apoiou-se no estudo exploratório desenvolvido no âmbito do projeto “Gastos públicos e cidadania de homens e mulheres: uma comparação entre inten-
ções (o orçamento) e ações (o realizado) em municípios selecionados” realizado, no período de agosto de 2002 a março de 2003, pela equipe do Núcleo de Estudos
Mulher e Políticas Públicas, do IBAM, com o apoio do UNIFEM, do DFID e do Fundo Belga. Disponível em http:// www.ibam.org.br

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U. Dettmar / ABr
que racional-compreensivo em con-
traposição ao do planejamento ad-
vocacional3 .
Não cabe aqui aprofundar a dis-
cussão sobre os enfoques de plane-
jamento. É importante, contudo,
voltar a atenção para os processos
de planejamento e de gestão gover-
namentais, uma vez que é sobre eles
que incide a capacidade de conce-
ber e executar políticas públicas que
considerem a diversidade de agen-
tes sociais. É sob esse aspecto que
reside um dos principais desafios
para os mediadores de políticas pú-
blicas: apesar de imersos no mundo
técnico e político da burocracia go-
vernamental, viabilizar sistemas de
Falar de políticas de direitos da criança e do adolescente significa pensar tanto no impacto
diferenciado das políticas sobre meninos e meninas negros e brancos, quanto sobre a vida das informação, monitoramento, imple-
mulheres, e, especialmente, das que são chefes de família mentação e avaliação de políticas
públicas que pressuponham a diver-
ta-se com um conteúdo preponde- sos limita-se a investigações teóri- sidade e especificidades dos diferen-
rantemente normativo e herméti- cas produzidas em outros contex- tes grupos sociais, especialmente
co. Isso significa dizer que é essen- tos mas, ainda assim, passíveis de aqueles sobre os quais as desigual-
cial, inicialmente, compreender a transposição, considerando-se a dades sociais incidem com maior
gramática orçamentária e sua im- sociedade brasileira e as especifici- tenacidade. Nesse sentido, trata-se
bricação com os aportes de gêne- dades do orçamento municipal. não apenas de mudança de percep-
ro e raça. ções de todos aqueles, homens e
O orçamento público é o resul- DESIGUALDADES DE GÊNERO mulheres, envolvidos diretamente
tado de injunções políticas e nor- E RAÇA: UM DESAFIO NÃO com as políticas governamentais,
mativas, fazendo-se necessário, por SÓ PARA AS POLÍTICAS mas também de mudanças de pro-
esse motivo, a realização de estu- PÚBLICAS cedimentos que auxiliem a eclodir a
dos e o monitoramento de experi- diversidade para a qual as políticas
ências que permitam o acompanha- A despeito da diversidade de públicas poderiam ser concebidas.
mento in loco dos processos soci- abordagens subjacentes aos proces- Podemos afirmar que a catego-
ais subsumidos à sua elaboração e sos de implementação de políticas ria gênero – a despeito de suas dis-
implementação. Não há um mode- públicas voltadas para as mulheres tintas utilizações – tem viabilizado
lo a ser perseguido, cabendo, em ou, em alguns casos, para a redu- um maior reconhecimento do ide-
cada caso, e em função do com- ção das desigualdades de gênero, ário feminista, assim como das de-
promisso, disposição e disponibili- prevalece a existência de progra- sigualdades estruturais que afetam
dade dos governos municipais e da mas, projetos e ações pontuais, isto distintamente homens e mulheres,
sociedade civil, desenvolver uma é, desvinculadas de uma prática de contribuindo para inscrever, no
metodologia de trabalho a ser es- planejamento governamental que campo das políticas públicas, a per-
tabelecida em comum acordo. viabilize a implementação de polí- tinência do tema e da utilização do
A proposta de uma metodolo- ticas públicas com enfoque de gê- termo. O esforço empreendido na
gia ou de um savoir-faire para análi- nero. Via de regra, tende a prevale- construção de “políticas de gêne-
se e incidência políticas – marcadas cer, entre as múltiplas abordagens ro” tem resultado em políticas se-
pelos enfoque de gênero e raça – de planejamento, implícita ou ex- toriais que incorporam determina-
no processo de alocação de recur- plicitamente implantadas, o enfo- das demandas dos segmentos fe-
3 Entre outros artigos introdutórios e publicações, sugere-se: Levy, Caren. Which framework? Gender training: four current models. In: The Network Newsletter, The Bri-
tish Council. November, 1997, nº 14, p.4-5. Costa, Delaine Martins. Notas ao planejamento para o gênero. In: Rocha, Nilton Almeida (org.). Novas leituras de administra-
ção municipal. Rio de Janeiro: IBAM, 2002, p. 178-183. Moser, Caroline. Gender learning and development; theory, practice and training. London: Routledge, 1993.

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mininos da população. Não se tra- gênero. A produção de informa- possibilidade de uma identidade
ta apenas da implantação de políti-ções e de sistemas de informação fixa em contraposição a uma iden-
cas voltadas para o alívio da po- que operam com os dados desa- tidade mutante e fluída, tal como
breza, mas também para a melho- gregados permite, assim, uma aná- analisado por Woodward (2000).
ria da condição feminina. lise mais acurada tornando visível De acordo com a autora, importa
Ainda que tais políticas venhamo impacto diferenciado entre ho- discutir identidade e diferença uma
a atender majoritariamente às de- mens e mulheres. Não por acaso vez que: “só podemos compreen-
mandas ou necessidades dos mais os estudos de gênero têm investi- der os significados envolvidos nes-
pobres da população, elas também do em termos que reforçam as ca- ses sistemas [de representação] se
visam ao atendimento de proble- pacidades de percepção visual: tivermos alguma idéia sobre quais
mas que afetam diretamente a con- perspectiva de gênero, enfoque de posições-de-sujeito eles produzem
dição feminina, como no caso das gênero, invisibilidade, olhar femini- e como nós, como sujeitos, pode-
políticas de prevenção e combate à no, etc. mos ser posicionados em seu inte-
violência contra a mulher. Políticas Se, por um lado, os estudos de rior” (2001, p.17). Trata-se do po-
nas áreas de saúde, educação, sane-gênero têm contribuído para dar sicionamento do sujeito e o lugar a
amento, habitação, transporte tam- visibilidade à posição diferenciada partir do qual fala, isto é, dos dis-
entre homens cursos e dos sistemas de represen-
e mulheres e tação que constroem os lugares a
às especifici- partir dos quais os indivíduos po-
O campo das políticas públicas dades da con-
dição femini-
dem se posicionar e a partir dos
quais podem falar. Sob esse aspec-
tende a ser um espaço privilegiado na, por outro, to, não haveria por que pensar numa
o campo de identidade fixa, numa essência, se
para a produção de mudanças estudos tam- concordarmos que os significados
sociais, se considerarmos bém levou à são fluidos e não fixos. Contudo,
produção da uma das questões principais refe-
a consolidação da democracia crítica sobre o re-se às relações de poder subjacen-
em suas múltiplas formas de conceito de tes e às práticas de significação: tais
gênero e os li- relações de poder incluem o poder
expressão mites de sua para definir quem é incluído e quem
transposição, é excluído.
quando pen- Sob a perspectiva do desenvol-
sado no sen- vimento de políticas de direitos hu-
bém tendem a afetar mais as mu- tido de substituição do termo mu- manos, Crenshaw (2002) também
lheres, visto que as tarefas relacio- lher por gênero. Tratar exclusiva- chama a atenção para a incorpora-
nadas aos cuidados com a subsis- mente dessa discussão nos levaria ção da perspectiva de gênero a qual
tência da família permanecem para longe dos objetivos do pre- coloca em xeque a universalidade
como de sua responsabilidade, re- sente artigo, mas vale chamar a dos direitos. Nesse campo, diver-
sultado da divisão sexual do traba- atenção para o predomínio de sas instâncias normativas e políticas
lho. Por outro lado, a percepção perspectiva essencialista na qual o são agenciadas no sentido da incor-
predominante de que a sociedade termo mulher passa a ser evoca- poração da análise de gênero, ao
está dividida entre pobres e não do em nome de uma identidade passo que a dimensão racial ou da
pobres, influenciou a elaboração de comum e predominante a despei- discriminação racial tende a tornar-
muitos indicadores sociais cujos to das diferenças entre as próprias se secundária. Ao cunhar o termo
dados inviabilizavam apontar o mulheres4 . interseccionalidade, a autora pro-
impacto sobre homens e mulheres, A discussão sobre as perspecti- põe não apenas analisar as diferen-
tendo sido necessário proceder-se vas essencialista e não essencialista tes formas de incidência da subor-
à desagregação dos dados por sexo remete-nos às oposições binárias dinação, mas também, segundo suas
e à construção de indicadores de que estabelecem distinções entre a palavras: “como ações e políticas

4 Para argumentos a respeito da produção da “unidade” entre as mulheres, ver especialmente Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identi-
dade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Sujeito e História.

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específicas geram opressões que mental vigentes ten-


fluem ao longo de tais eixos [da dem a reproduzir
subordinação], constituindo aspec- práticas sociais que
tos dinâmicos ou ativos do desem- não consideram a
ponderamento” (2002, p.177). condição diferencia-
Estas questões são particular- da entre homens e
mente relevantes, tendo em vista mulheres, o mesmo
que estamos tentando tratar da di- raciocínio se aplica
versidade dos agentes sociais envol- quando pensamos as
vidos na implementação de políti- diferenças entre as
cas públicas e, por conseguinte, de mulheres e entre ho-
diretrizes para o desenvolvimento mens e entre negros
econômico e social. Diversos estu- e brancos. A mudan-
dos realizados no Brasil, na última ça de perspectiva a
década, têm contribuído para tor- ser agenciada diz res-
nar evidente que a pobreza não está peito não só aos
circunscrita a um problema de clas- agentes políticos e
se, sendo necessário incorporar a mediadores de polí-
esse debate as dimensões de gêne- ticas públicas, mas
ro e de raça. A explicitação do ra- também ao reconhe-
cismo como produtor da desigual- cimento do racismo
dade de oportunidades e de acesso como um traço es-
origina um conjunto de iniciativas truturante das rela-
que, se por um lado contribui para ções raciais no Bra-
dar visibilidade a esta diferença de sil, como apontado Políticas nas áreas de saúde, educação, saneamento, habitação e
transporte tendem a afetar mais as mulheres, visto que as tarefas
condição e de posição entre mu- por Bairros (2003). relacionadas aos cuidados com a subsistência da família permanecem
como de sua responsabilidade
lheres e homens e entre brancos e O campo das
negros, por outro, requer uma mu- políticas públicas tende a ser um es- dução de relações assimétricas mar-
dança de perspectiva sobre os paço privilegiado para a produção cadas pelo sexismo e racismo, além
processos sociais que operam na de mudanças sociais, se considerar- da classe social.
produção e reprodução das desi- mos a consolidação da democracia
gualdades. Como destacado por em suas múltiplas formas de ex- A GRAMÁTICA ORÇAMENTÁRIA
Bento: “negros e negras não são dis- pressão. Por um lado, cabe às insti- NO BRASIL: UMA BREVE
criminados porque são pobres, mas tuições democráticas serem dotadas DESCRIÇÃO
são pobres porque são discrimina- de sistemas de informação, moni-
dos” (2003. p.10). toramento, avaliação, entre outros Para compreender o campo no
No campo das políticas públi- aspectos, que subsidiem a concep- qual se insere o orçamento munici-
cas, os trabalhos existentes que tra- ção e a implementação de políticas pal, cabe destacar sucintamente os
tam da articulação entre as dimen- públicas que tornem visível o impac- aspectos normativos relacionados
sões de gênero e raça ainda são es- to diferenciado da ação governa- ao orçamento público no Brasil.
cassos5, destacando-se aquele reali- mental sobre a população masculi- Absolutamente, não se trata aqui de
zado por Carvalho e Ribeiro (2001) na e feminina, branca e negra, assim esgotar o assunto ou apontar ques-
que analisa ações implementadas como da alocação de recursos, tões pertinentes à sua “engenharia”,
pela gestão da Prefeitura de Santo como será visto mais adiante. Por pois muitos trabalhos têm sido ela-
André, incluindo-se aí o programa outro lado, distintas iniciativas gover- borados por especialistas das áreas
de modernização administrativa e namentais e não-governamentais de economia, finanças e adminis-
o orçamento participativo. têm sido somadas para ampliar a dis- tração e que abordam na densida-
Com efeito, assim como os cussão na arena política acerca das de requerida assuntos específicos
modelos de planejamento governa- práticas sociais que operam na pro- desse campo do conhecimento.

5 Ver texto e anexos com quadros da literatura identificada e classificada em Hermann, Jacqueline. Políticas públicas de gênero e raça e sua articulação com a gra-
mática orçamentária. Disponível na homepage do IBAM.

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Por se tratar de uma área de co- seguintes: (a) elaboração da propos- tárias também são o resultado da
nhecimento que produz a norma- ta orçamentária, sob responsabili- vasta rede de mediações, articula-
tização de um conjunto de proce- dade do Poder Executivo, tendo o das em diferentes esferas, na qual
dimentos e de regras, subsumidas Legislativo autonomia para a ela- os agentes políticos dos governos
na arena política, muitas vezes, o seu boração de suas propostas; (b) dis- municipais produzem influências
entendimento é de difícil compre- cussão, votação e aprovação da lei sobre a alocação e a execução de
ensão o que, geralmente, inviabiliza do orçamento, isto é, a tramitação recursos públicos.
o diálogo entre a sociedade civil, da lei no Legislativo Municipal; (c) Cabe agora voltar a atenção para
mediadores de políticas públicas e execução orçamentária, ou seja, a dois tipos de iniciativas que, a partir
especialistas em finanças públicas. realização da receita (programação das metodologias produzidas, per-
Dado o hermetismo de seu con- financeira, lançamento fiscal, arre- mitiram uma melhor compreensão
teúdo associado às especificidades cadação e recolhimento) e da des- da gramática orçamentária e, por
dos termos e seus significados, tor- pesa (programação financeira, lici- conseqüência, ampliaram o contro-
na-se necessário apreender alguns tação, empenho, liquidação e paga- le social, são elas: o “Orçamento
dos procedimentos e normatiza- mento); (d) controle e avaliação da Participativo” (OP) e o “Orçamen-
ções subjacentes ao processo de ela- execução orçamentária. to Criança”. Apesar dessas experi-
boração e execução do orçamento Dentre os diferentes aspectos ências, via de regra, prescindirem das
público. Nesse sentido, cabe a to- passíveis de discussão no âmbito do discussões que articulam o enfoque
dos aqueles interessados no diálo- processo orçamentário, um deles é de gênero e raça, vale deter-se resu-
go circunscrito a esse campo, particularmente relevante: trata-se midamente sobre elas.
aprender a “gramática” na qual se das escolhas orçamentárias, confor- As experiências de OP têm se di-
inscreve a “linguagem” do orça- me analisado por Rezende e Cunha fundido pelo país em uma grande
mento, o que se viabiliza mediante (2002, p.64). Os mesmos autores diversidade de arranjos e modelos
o conhecimento e o exercício de também chamam a atenção para a institucionais, sendo que a experiên-
suas regras e princípios. importância do orçamento federal cia que inaugurou essa prática foi
O processo orçamentário, de de 2002, aprovado e discutido no realizada em Porto Alegre, na ges-
acordo com Silva, pode ser defini- Congresso Nacional, visto que se- tão de 1989-1992, quando represen-
do como: “contínuo, dinâmico e fle- guiu as novas regras constitucionais tante do Partido dos Trabalhadores
xível, por meio do qual se elabora, que regulam a edição de medidas foi eleito. Parte do desafio de siste-
aprova, executa, controla e avalia as provisórias. Segundo os autores: matização dessas experiências resi-
receitas e despesas do setor público. “esse novo regime dá aos parlamen- de na própria atribuição de signifi-
Compreende, assim, uma série de tares maior poder para fazer esco- cados ao termo participação e sua
atividades que vai desde a concep- lhas no âmbito do orçamento, as- imbricação com o orçamento.
ção do Orçamento Anual até a pres- sim como para influenciar a política Tomando como referência a pes-
tação de contas dos atos realizados econômica” (2003, p. 62). quisa realizada por Ribeiro e Grazia
a partir do mesmo” (2003, p.11). No entanto, vale lembrar a co- (2003), existem 140 municípios que
Para sua compreensão, é imprescin- nexão e a vasta rede de relações so- implementam experiências relaciona-
dível concebê-lo no âmbito do Sis- ciais existente entre os campos da das ao OP, sendo que as autoras iden-
tema de Planejamento Nacional, es- política federal, estadual e munici- tificaram e sistematizaram ações im-
tabelecido pela Constituição Fede- pal. Seria importante investigar em plementadas em 103 municípios do
ral de 1988, em seu art. 165, o qual é que proporção tais mudanças alte- país, no período de 1997 a 2000, o
formado por um conjunto de pla- raram as relações entre esses cam- que representa cerca de 2% do total
nos que orientam e autorizam a ação pos da política, já que, como sabe- de municípios então existentes. Das
do governo na produção de bens e mos, no Brasil, os municípios são experiências identificadas pelas auto-
serviços à sociedade, quais sejam: as bases eleitorais dos deputados ras, a grande maioria, cerca de 84%,
Plano Plurianual – PPA, Lei de Di- estaduais e federais, além de seus foi realizada em municípios das regi-
retrizes Orçamentárias – LDO e Lei agentes políticos desempenharem ões Sudeste e Sul e, especialmente, nos
de Orçamento Anual – LOA. papéis fundamentais nas disputas estados do Rio Grande do Sul e de
As etapas que compõem o ci- político-eleitorais6 . Segundo esse São Paulo, os quais reúnem, respecti-
clo orçamentário, no Brasil, são as ponto de vista, as escolhas orçamen- vamente, 20% e 21% do total das
6 Bezerra, Marco Otávio. Em nome das bases. Política, favor e clientelismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.

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tendência do contam com OP, observa-se uma


Orçamento Par- maior variação, considerando a dis-
As experiências gestadas no ticipativo, Co- tribuição por grupos de habitantes.
ordenadoria do Por exemplo, nos municípios com
campo do orçamento Orçamento Par- população de 20 a 50 mil habitantes,
participativo têm contribuído ticipativo ou as despesas com investimentos atin-
Coordenadoria gem quase 17% do total da receita
significativamente para a Municipal de orçamentária, sendo que os menores
Relações Admi- percentuais são encontrados nos
discussão sobre a democracia nistrativas). municípios com mais de 500 mil ha-
representativa e participativa e os Em termos bitantes, seja nos municípios que pra-
de participação ticam OP, seja nos demais municípi-
respectivos modelos de gestão da população os do país. Em outras palavras, isso
e de planejamento ou segmentos significa dizer que a experiência de
organizados, o participação ou influência sobre as
mesmo estudo escolhas orçamentárias são, em geral,
experiências. Cabe notar que, no pe- identificou como principais recor- limitadas pela própria composição
ríodo de 1989-1992, foram identifi- rências os representantes de: associ- do orçamento municipal. Via de re-
cadas apenas não mais que dez expe- ações de moradores ou organizações gra, tal influência opera sobre o per-
riências de OP, todas elas em admi- comunitárias (77%); entidades reli- centual das despesas com investimen-
nistrações municipais das regiões Sul giosas (50%); entidades sindicais to, sendo que, em alguns casos, sabe-
e Sudeste, e que somente nos perío- (44%); movimento de saúde (34%) se que esse percentual representa 1%
dos de gestão subseqüentes ocorre a e movimento de educação (33%). de tais despesas.
sua difusão para governos locais de Dos temas predominantes, desta- No caso da pesquisa realizada
municípios situados em outros esta- cam-se: o encaminhamento de no- por Ribeiro e Grazia, as informa-
dos e regiões do Brasil. Distintos ar- vas necessidades em contraposição ções foram de difícil obtenção por
ranjos institucionais, no âmbito das às prioridades reconhecidas e não intermédio do questionário aplica-
administrações municipais, emergem atendidas de anos anteriores; os in- do. Contudo, as autoras identifica-
das experiências auto-intituladas OP. vestimentos estruturais e os investi- ram as seguintes situações relativas
Dentre eles, foram identificados os mentos em políticas sociais (2003, à participação na tomada de deci-
seguintes organismos responsáveis p. 58 e 79). são sobre o orçamento, quais se-
por coordenarem o OP (2003, p.42- Por último, cabe chamar a aten- jam: não deliberação de recursos,
43): (1) Conselho Municipal de OP, ção para a dinâmica do processo or- limitando-se o processo decisório
Coordenadoria do Conselho Popu- çamentário em face das injunções do à identificação de prioridades de in-
lar, Coordenadoria da Assembléia orçamento participativo. Como sa- vestimentos (cerca de 10% dos ca-
Municipal do Orçamento, incluindo- bemos, um dos principais nós gór- sos); não obtenção de dado relati-
se aí a participação da sociedade ci- dios do debate e da metodologia vo ao percentual do orçamento glo-
vil; (2) Secretaria Municipal de Plane- subjacentes ao OP diz respeito ao bal (37%); influência sobre até 10%
jamento, Diretoria de Planejamento percentual de recursos que, de fato, do orçamento municipal (54%).
ou Gabinete do Prefeito ou outros são disponibilizados para a tomada Para além da discussão sobre a
órgãos da administração municipal; de decisão ou influência orçamentá- real ingerência sobre o processo or-
(3) Assessorias e/ou equipes de es- ria. Em geral, as deliberações afetas çamentário, cabe ampliar os estudos
truturas já existentes na administração, ao OP dizem respeito às despesas e pesquisas que tratem da participa-
que foram destacadas para coorde- com investimento, as quais, por sua ção da população no OP, levando-
nar o OP (Assessoria de Participação vez, referem-se a um percentual so- se em consideração a diversidade de
Popular ou Comissões internas vari- bre o total da receita orçamentária. interesses e demandas entre homens
adas) e (4) órgãos novos que estão Geralmente, no Brasil, as despesas e mulheres, brancos e negros, ainda
vinculados ao poder decisório da ad- com investimento representam entre que no âmbito da reificada comu-
ministração (Coordenadoria de Re- 8 e 12% do total da receita orçamen- nidade. Geralmente, os estudos não
lações com a Comunidade, Superin- tária7 . No caso dos municípios que tendem a problematizar a diferenci-
7 Ver Bremaeker, François E. J. Avaliação da situação financeira dos municípios que praticaram o orçamento participativo no período 1997-2000. Mimeo. 2002.

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ação e tensões inerentes aos movi- te significa pensar tanto no impac- mocracia, tanto sob o ponto de vis-
mentos populares, o que permitiria to diferenciado das políticas sobre ta do acompanhamento e influên-
aprofundar a discussão sobre assi- meninos e meninas negros e bran- cia direta ou indireta sobre as esco-
metrias de gênero e raça. cos, quanto sobre a vida das mu- lhas orçamentárias, quanto sob a
As experiências gestadas no cam- lheres, e, especialmente, das que são ótica da divulgação e difusão da
po do orçamento participativo têm chefes de família. Portanto, as inici- “leitura” dos gastos públicos. No
contribuído significativamente para a ativas de gênero e orçamento não caso dos governos municipais, o
discussão sobre a democracia repre- podem prescindir da investigação tema é particularmente relevante
sentativa e participativa e os respecti- das políticas voltadas para a infân- dada a possibilidade de ingerência
vos modelos de gestão e de planeja- cia e a juventude. e mediação dos diversos agentes
mento. Por conseguinte, trata-se me- Dentre as principais reivindica- sociais na arena política.
nos de uma discussão normativa acer- ções do movimento de mulheres e
ca do orçamento e sim da capacida- do movimento feminista, destaca- AS INICIATIVAS DE GÊNERO
de de influência sobre as políticas pú- se a do aumento do número de cre- E ORÇAMENTO
blicas e a avaliação de seus resulta- ches públicas pois, como sabemos,
dos, considerando-se, é claro, que não a mulher com filhos que não de- Nas duas últimas décadas, estu-
há efetivamente política pública sem tém recursos próprios, ou dispõe diosos de diversos países têm se de-
alocação e execução de recursos, se- de arranjos familiares, dificilmente dicado à discussão do orçamento
jam eles financeiros, econômicos ou poderá ingressar no mercado de público e à crítica de sua neutrali-
políticos. trabalho em igualdade de condições dade sob a ótica de gênero. O de-
O “orçamento criança” 8 , resul- junto a homens e mulheres. Na bate foi inaugurado na Austrália,
tado do trabalho desenvolvido pelo medida em que o Estado retrai a sendo este o primeiro país a desen-
INESC9 desde 1999, em parceria execução orçamentária, ou gasta volver, em 1984, uma metodolo-
com o UNICEF, está voltado para menos do que o previsto (no caso gia de intervenções, na esfera fede-
a análise da execução da política na- 57,16% em 2002), com o atendi- ral e estadual, visando à identifica-
cional de direitos para crianças e mento em creche, além de violar ção das despesas efetuadas com
adolescentes, desenvolvida pelos um direito da criança, também está mulheres e meninas, assim como
diversos ministérios, e divulgação acirrando as disputas para inserção aquelas voltadas para a igualdade de
dessas informações para os conse- das mulheres no mercado de tra- oportunidades, entre outros aspec-
lhos de direitos, conselheiros tute- balho. Outro exemplo a ser adicio- tos. Hoje, existem mais de 40 paí-
lares, membros de entidades não- nado, entre vários, refere-se aos ses em que tais iniciativas foram ou
governamentais e governamentais, gastos com o programa de aleita- estão sendo implantadas.
isto é, para todos os responsáveis mento materno, do Ministério da As iniciativas de gênero e orça-
por fazer cumprir o Estatuto da Saúde. Conforme análise desenvol- mento variam tanto em termos de
Criança e do Adolescente – ECA. vida pelo INESC, a execução do metodologias e de abordagens,
Não cabe aprofundar a discus- programa, em 2001, atingiu cerca quanto de propostas e arranjos ins-
são sobre a iniciativa do “orçamen- de 43% do total do valor autoriza- titucionais, existindo experiências
to criança”, mas sim, chamar a aten- do. Tal restrição produz conseqü- com distintos matizes. Com o ob-
ção para essa iniciativa, no sentido ências não só sobre os direitos hu- jetivo de traçar um sucinto panora-
de que opera com um recorte ge- manos fundamentais, mas também ma do campo em que tais iniciati-
racional, que não agrega as perspec- compromete o êxito da política vas são geradas, cabe voltar a aten-
tivas de gênero e raça. É consenso, nacional de saúde como estratégia ção especialmente para os trabalhos
contudo, que as responsabilidades de enfrentamento da pobreza desenvolvidos por Elson, uma das
sobre as crianças e adolescentes, via (maio 2002, p. 3). principais precursoras do debate, e
de regra, recaem sobre as mães e, Iniciativas como o orçamento por Bundlender, Sharp e Allen que,
por conseguinte, sobre as mulhe- participativo e o orçamento crian- juntos, desenvolveram um manual
res. Portanto, falar de políticas de ça são distintamente exemplares no que tem subsidiado muitas das ini-
direitos da criança e do adolescen- processo de consolidação da de- ciativas em curso.
8 Termo utilizado para definir o total de recursos públicos investidos nas crianças e adolescentes brasileiros. Ver o Guia de Direitos Humanos. Ver http://
www.guiadh.org/glossario Capturado em 3/02/03
9 Para consulta, ver o Boletim Orçamento e Política da criança e do adolescente, publicado pelo INESC, assim como a homepage do Instituto: http://
www.inesc.org.br.

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Elson nos convida a examinar o contabilizada pelos grandes mercados conceitual e estatísticas econômicas
modo como o Orçamento Federal (1999, p.4). O trabalho das mulheres, nacionais “sensíveis ao gênero”, isto
é formulado, isto é, ignoram-se as que a autora toma como referência, é, que possam revelar conexões e
diferentes e socialmente determina- constitui a “economia do cuidado não resultados entre as relações econô-
das responsabilidades e capacidades remunerado” o qual, por sua vez, é micas e os efeitos macroeconômi-
de homens e mulheres. Tais diferen- vital para o desenvolvimento e a ma- cos. Como proposta em face des-
ças são geralmente estruturadas de nutenção da saúde e da força de tra- se desafio, a autora sugere: (a) a cri-
tal maneira que levam às mulheres a balho, assim como para o senso de ação e a implementação de meto-
ocuparem uma posição desigual em comunidade, de responsabilidade cí- dologias que permitam medir a
relação aos homens e, por conse- vica, para as normas e valores que sus- contribuição das mulheres à econo-
guinte, com menos poder econômi- tentam a confiança e a ordem social. mia; (b) a incorporação da ótica de
co, social e político. Se tal perspecti- As atividades desenvolvidas pelas mu- gênero aos modelos macroeconô-
va dificulta produzir impactos posi- lheres são percebidas pela sociedade micos e (c) a criação de estratégias
de gênero para o orçamento.
Uma das principais estratégias
destacadas diz respeito a proposta
do “orçamento sensível ao gênero”
ou “orçamento de gênero” ou “or-
çamento mulher”. Desde já é im-
portante sublinhar que independen-
temente da nomenclatura ou abor-
dagem utilizada, tais iniciativas não
significam orçamentos separados
para homens e para mulheres. Como
destacado por Bundlender, Sharp e
Allen: “São tentativas de destrinchar
as diretrizes do orçamento gover-
namental de acordo com seu impac-
to sobre homens e mulheres e so-
bre diferentes grupos de homens e
mulheres, a partir do reconhecimen-
to de que a sociedade produz as re-
lações de gênero (1998, p. 5).
A execução do programa de aleitamento materno, do Ministério da Saúde, atingiu, em 2001, apenas
43% do total do valor autorizado
As experiências apresentadas re-
ferem-se a uma variedade de pro-
cessos e ferramentas que objetivam
tivos sobre o crescimento econômi- como uma doação ou como inerente apreender o impacto de gênero do
co e o desenvolvimento humano, ao papel social a ser desempenhado orçamento governamental, e, se-
outros fatores contribuem para re- pelo segmento feminino da popula- gundo as autoras, com o desenvol-
forçar o bias inerente à concepção ção, não sendo, portanto, levadas em vimento desse exercício, o foco tem
do orçamento, entre os quais desta- consideração na discussão sobre a po- sido sobre a auditoria do orçamen-
ca-se a medição da contribuição das lítica econômica. Para a autora, tais ati- to governamental e seu impacto
mulheres à economia. vidades tendem a ser vistas como so- sobre mulheres e meninas.
Segundo a autora, o trabalho das ciais em vez de econômicas, embora Se há consenso sobre o fato de
mulheres (produção de subsistência, sejam econômicas, uma vez que pro- que toda política pública produz im-
emprego no setor informal, trabalho vêem insumos vitais para os setores pacto diferenciado sobre homens e
doméstico ou reprodutivo, trabalho públicos e privados da economia mulheres, podemos afirmar que
voluntário ou comunitário) mais do (1999, p.6). todo orçamento, explicitamente ou
que o dos homens, não é incluído nas Um dos principais desafios para não, viabilizará políticas que incidem
estatísticas econômicas nacionais por- a macroeconomia refere-se ao de- distintamente sobre segmentos da
que grande parte desse trabalho não é senvolvimento de um arcabouço parcela feminina e masculina da po-

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GÊNERO E RAÇA
pulação, independente da expectati- e são importantes para entender a sociedade brasileira, as discussões acer-
va de gastos estar diretamente rela- “distância” ou a “proximidade” en- ca das desigualdades sociais conver-
cionada a estes segmentos. Segundo tre a intenção e a ação no âmbito das gem para a articulação entre o racis-
esse ponto de vista, ambos os ter- políticas públicas. Em outras palavras, mo e a pobreza, assim como para as
mos anteriormente destacados pa- cabe melhor compreender o proces- questões de gênero e classe social. Por
recem limitados. Quando se trata do so decisório de modo a identificar outro lado, há que se destacar que a
“orçamento mulher”, isso não sig- em que medida a linguagem técnica matriz teórica dos estudos de macro-
nifica circunscrever a análise aos gas- subjacente ao orçamento facilita que economia e gênero partem da divisão
tos com a população feminina ou sejam antecipados compromissos sexual do trabalho e do trabalho re-
com grupos de interesses especiais, públicos que não necessariamente se- produtivo como um dos principais
mas sim incorporar o enfoque de rão cumpridos, reforçando, assim, fatores explicativos do trabalho invisí-
gênero às políticas nacionais. Ao fa- ambigüidades presentes no discurso vel realizado pelas mulheres que, por
larmos de “orçamento sensível ao e a prática dos agentes políticos e to- conseguinte, não é contabilizado pelas
gênero”, as autoras também não madores de decisão. contas públicas e pela sociedade. Ain-
parecem pretender apenas focar as da que as mulheres brancas e da elite
mulheres, operando assim com a • através dos balanços financeiro, detenham condições econômicas para
substituição de um termo por ou- orçamentário e patrimonial, pode- delegar a outras mulheres (em geral,
tro, mas sim examinar o orçamento mos tentar extrair indicadores da exe- negras) os trabalhos realizados na es-
como um todo. Portanto, em am- cução orçamentária, e, até mesmo, fera reprodutiva, ambas compartilham
bos os casos, trata-se de tentativas comparar com o proposto na LOA; a divisão sexual do trabalho como um
de desenvolver metodologias e ins- traço estruturante da condição e da
trumentos de trabalho que permi- • não podemos nos limitar ao identidade femininas. Nesse sentido,
tam guiar a análise do orçamento orçamento, se a intenção é identifi- toda vez que o Estado retrai os gastos
integralmente e não partes desse or- car tudo que este reserva para as em políticas sociais os impactos reca-
çamento. mulheres e para os diferentes gru- em diretamente sobre as mulheres das
pos raciais; camadas populares e pobres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Se concordamos que a análise do
LIMITES E POSSIBILIDADES • a qualidade das informações orçamento e as intervenções sobre
DE TRANSPOSIÇÃO disponíveis requer a identificação o processo orçamentário são ele-
plena do que efetivamente é realiza- mentos imprescindíveis para o en-
Para efeitos da análise de gêne- do em cada órgão, assim como a tendimento da alocação e execução
ro e raça sobre o orçamento muni- dimensão da execução, ou seja, o dos recursos públicos e, por conse-
cipal, no Brasil, torna-se necessário público ao qual beneficia a ação e guinte, de políticas voltadas para a
desenvolver um campo de estudos, como tal ação se projeta nas atribui- redução das desigualdades, torna-se
considerando-se as especificidades ções de cada órgão. Por este moti- necessário incorporar o enfoque ra-
do próprio orçamento e, portanto, vo, torna-se imprescindível a reali- cial a esse debate. É sob esse aspec-
compreender os termos do orça- zação de análises qualitativas para que to que reside um dos principais de-
mento em vigor conforme norma- se possa acompanhar e examinar in safios da política pública, pois, via
tização do Ministério do Orçamen- loco os processos sociais subjacen- de regra, os processos de planeja-
to e Gestão. Com base em análise tes ao orçamento municipal. mento e o sistema de informação
exploratória10 , observa-se que: As iniciativas em gênero e orça- nele inseridos não operam ou expli-
mento desenvolvidas trazem impor- citam a diversidade dos grupos so-
• é possível uma comparação dos tantes subsídios para o desenvolvimen- ciais, o que dificulta e, muitas vezes,
resultados do orçamento anual com to de experiências similares, contudo, inviabiliza análises que tenham como
o Anexo de Metas Fiscais da LDO; a sua transposição é limitada não só objetivo medir ou avaliar o impac-
• algumas disposições presentes pelos contextos sociopolíticos bastante to das políticas implementadas.
na LDO podem explicar ou justifi- diferenciados, mas também por abs- A diversidade de situações que per-
car alguns itens do orçamento anual traírem a dimensão racial. No caso da meia a arena política dos municípios

10 A título de ilustração ver o Anexo III, Planilhas-síntese: análise exploratória dos orçamentos municipais de Londrina/Pr e Vitória/ES, do Relatório Final do projeto
Gastos públicos e cidadania de homens e mulheres: uma comparação entre intenções (o orçamento) e ações (o realizado) em municípios selecionados. IBAM/UNIFEM/
Fundo Belga: 2003.

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brasileiros enfeixa relações marcadas tários quanto de analisá-la e propor al- sunto, o artigo ora apresentado
pela tensão entre o clientelismo e a pa- ternativas sob o ponto de vista das re- espera ter fornecido insumos para
tronagem e os princípios orientadores lações raciais, de gênero e de classe. as discussões e as iniciativas em
da prática democrática, tensão esta que O processo de consolidação curso, de modo a contribuir para
acompanha as discussões sobre o con- da democracia, no Brasil, tem a incorporação das dimensões de
trole da administração dos recursos pú- ampliado os espaços de partici- gênero e raça. Amparando-se na
blicos. As iniciativas que venham a ser pação e de diálogo entre o go- sistematização de experiências que
desenvolvidas apresentam, portanto, verno e a sociedade civil, e, ao vêm sendo realizadas nesse cam-
elementos que tornam esse campo de mesmo tempo, contribuído para po, o artigo dá início à constru-
discussões passível de problematiza- a criação de fóruns de debate e a ção de uma metodologia que per-
ções, caso seja desejável romper com inclusão de novos temas na agen- mita monitorar e avaliar as políti-
uma abordagem normativa. Trata-se da política, entre eles, o do con- cas públicas, tanto sob o aspecto
tanto de compreender as lógicas soci- trole e fiscalização do orçamento do seu impacto quanto da aloca-
ais que orientam os processos orçamen- público. Longe de esgotar o as- ção e execução de recursos.

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