Você está na página 1de 174

dLivros

{ Baixe Livros de forma Rápida e Gratuita }

Converted by convertEPub
Enrique Vila-Matas

SUICÍDIOS EXEMPLARES

Tradução de Carla Branco

COSAC & NAIFY


Sumário

Viajar, perder países


Morte por saudade
Em busca do parceiro eletrizante
Rosa Schwarzer volta à vida
A arte de desaparecer
As noites da Íris negra
A hora dos cansados
Uma invenção muito prática
Pedem que eu diga quem eu sou
Os amores que duram por toda uma vida
O colecionador de tempestades
Mas não façamos literatura
A Paula de Parma
Viajar, perder países

Há alguns anos começaram a aparecer uns grafites


misteriosos nos muros da cidade nova de Fez, no
Marrocos. Descobriu-se que quem os desenhava era um
vagabundo, um camponês emigrado que não havia se
integrado à vida urbana e que, para orientar-se,
rabiscava itinerários de seu próprio mapa secreto,
sobrepondo-os à topografia da cidade moderna, que lhe
era estranha e hostil.
Minha ideia, ao iniciar este livro contra a vida estranha
e hostil, é trabalhar de forma parecida à do vagabundo
de Fez, ou seja, tentar me orientar no labirinto do suicídio
traçando o itinerário de meu próprio mapa secreto e
literário, e esperar que este coincida com o que tanto
atraiu meu personagem favorito, aquele romano de
quem Savinio, em Melancolia hermética, nos diz que,
grosso modo, viajava em princípio na mais completa
nostalgia, mais tarde foi invadido por uma tristeza
debochada, depois buscou a serenidade helênica e,
finalmente — “Tentem, se puderem, deter um homem
que viaja com seu suicídio pendurado na lapela”, dizia
Rigaut —, deu-se uma morte digna, e o fez de maneira
ousada, como protesto por tanta estupidez e na
plenitude de uma paixão, pois não desejava diluir-se na
obscuridade com o passar dos anos.
“Viajo para conhecer minha geografia”, escreveu um
louco, no começo do século, nos muros de um
manicômio francês. E isso me leva a pensar em Pessoa
(“Viajar, perder países”) e a parafraseá-lo: Viajar, perder
suicídios; perdê-los todos. Viajar até que se esgotem no
livro as nobres opções de morte que existem. E então,
quando tudo estiver terminado, deixar que o leitor
proceda de forma oposta e simétrica à do vagabundo de
Fez e, com certa loucura cartográfica, atue como
Opicinus, um sacerdote italiano do início do século XIV,
cuja obsessão era interpretar o significado dos mapas,
projetar seu próprio mundo interior sobre eles — não
fazia mais que desenhar a forma do litoral mediterrâneo
na extensão e na largura, sobrepondo às vezes o
desenho do mesmo mapa orientado de outra maneira, e
nesses traçados geográficos desenhava personagens de
sua vida e escrevia suas opiniões sobre qualquer tema
—, ou seja, deixar que o leitor projete seu próprio mundo
interior sobre o mapa secreto e literário deste itinerário
moral que aqui mesmo já nasce suicidado.
Morte por saudade

Naqueles dias eu tinha nove anos e, como se já não


andasse muito ocupado, havia arranjado uma nova
ocupação: deixei crescer em mim uma súbita curiosidade
em saber o que acontecia além das paredes de minha
casa ou da escola, uma curiosidade repentina pelo
desconhecido, isto é, pelo mundo da rua ou, o que dava
na mesma, pelo mundo do Paseo de San Luis, onde
minha família morava.
Às tardes, em vez de ir diretamente da escola para
casa, comecei a me demorar um pouco pela parte alta do
Paseo e a observar o vaivém dos passantes. Meus pais
não chegavam antes das oito, e isso me permitia atrasar
em quase uma hora minha volta para casa. Era uma hora
na qual a cada dia me sentia melhor, pois sempre
acontecia alguma coisa, algum pequeno acontecimento,
nunca nada do outro mundo, mas suficiente para mim: o
tropeção de uma senhora gorda, por exemplo, o vento da
baía provocando o voo de um chapéu de palha que eu
julgava infeliz, a bofetada terrível de um pai em seu filho,
os pecados públicos da bilheteira do Vênus, a entrada e
saída dos fregueses do Cadí.
A rua começou a me roubar uma hora de estudo em
casa, uma hora que eu recuperava graças ao simples
método de dividir o tempo que, depois do jantar,
dedicava à leitura de grandes romances, até que chegou
o dia em que o encanto do Paseo de San Luis foi tão
grande que me roubou inteiramente o tempo da leitura.
Em outras palavras, o Paseo substituiu os grandes
romances.
Naquele dia me atrevi a voltar para casa às dez, nem
um minuto antes, nem um minuto depois, bem na hora
do jantar. Um grande enigma havia me detido na rua.
Uma mulher caminhava, com passo tímido e vacilante,
em frente ao cine Vênus. Num primeiro momento, pensei
que se tratava de alguém que esperava o namorado ou o
marido, mas ao me aproximar pude ver que, tanto pela
roupa que usava como pelo modo de abordar todos os
que passavam, só podia ser uma mendiga. Como eu
havia lido muitos contos, me pareceu ver naquela mulher
a majestade de uma rainha destronada. Mas isto só num
primeiro momento, porque logo voltei à realidade, e
então, já sozinho, vi uma reles moradora de rua. Dispus-
me a dar a ela a única moeda que tinha, mas quando ia
fazê-lo passou por mim sem nada pedir. Pensei que
talvez tivesse percebido o que de fato eu era: um pobre
colegial sem dinheiro. Mas pouco depois vi como pedia
esmola à pequena Luz, a filha do professor, e observei
que o fazia acompanhada de uma frase sussurrada ao
ouvido, uma frase que assustou a menina, que de pronto
acelerou o passo. Tornei a passar, e novamente a
mendiga me ignorou. Apareceu em seguida um homem
muito bem vestido, e a mendiga não lhe pediu nada,
deixou simplesmente que passasse. Mas quando, pouco
depois, surgiu uma senhora, quase se jogou em cima
dela e, com a palma da mão bem aberta, sussurrou-lhe
ao ouvido a frase misteriosa, e também a senhora, muito
assustada, andou mais rápido. Passou outro homem, e
ela deixou que também seguisse seu caminho, não disse
nem pediu nada, deixou simplesmente que passasse.
Mas assim que apareceu Josefina, a balconista da
mercearia, pediu-lhe esmola e murmurou-lhe a frase
misteriosa, e também Josefina acelerou o passo.
Estava claro que a mendiga só se dirigia às mulheres.
Mas o que dizia e por que só a elas? Nos dias seguintes,
aquele enigma me impediu de estudar ou de me refugiar
na leitura dos grandes romances. Pode-se dizer que fui
me transformando em alguém que, depois de andar sem
rumo pelas ruas, andava sem rumo em sua própria casa.
— Mas o que tem te deixado tão ocioso ultimamente?
— perguntou-me certo dia a minha mãe, que desde
criança me havia incutido a ideia do trabalho, e parecia
preocupada com a minha mudança.
— O enigma — disse, e fechei em seguida a porta da
cozinha.
No dia seguinte, o vento da baía soprava com mais
força que de costume, e quase todo mundo se refugiou
em suas casas. Eu não. Tinha aprendido a amar a rua e a
intempérie, tanto quanto a minha mendiga parecia amá-
las. E de repente, como se esse amor compartilhado
fosse capaz de gerar acontecimentos, deu-se algo
inesperado, algo realmente surpreendente. Passou uma
mulher, a mendiga a abordou, sussurrou-lhe ao ouvido a
frase terrível, e a mulher se deteve, como se tivesse sido
gratamente surpreendida, e sorriu. A mendiga
acrescentou então mais algumas frases, e quando
terminou, a mulher deu-lhe uma moeda e seguiu
tranquila seu caminho, como se nada, como se
absolutamente nada tivesse acontecido.
Há um momento na vida em que se oferece a alguém a
oportunidade de vencer para sempre a timidez. Eu
entendi que esse momento tinha chegado, e me
aproximei da mulher perguntando que tipo de história a
mendiga lhe havia contado.
— Nada — respondeu. — Um pequeno conto.
E dito isto, como se levada pelo vento da baía, dobrou
uma esquina e sumiu da minha vista.
No dia seguinte, não fui à escola. Às seis da tarde,
passei pela porta do Vênus, disfarçado com roupas da
minha mãe. Blusa preta transparente, saia azul, botas
vermelhas e chapéu branco de aba muito larga. Lábios
pintados, uma pinta na bochecha e os olhos muito
abertos, redondos como faróis. Se acaso o disfarce não
fosse o bastante para a mendiga morder a isca, eu
carregava uma bolsa a tiracolo, pendendo de uma longa
alça, e um grande pacote de comida na mão esquerda,
ainda que sem vidros nem latas, para que pesasse
pouco. Levava pãezinhos, pó de café, duas costelas de
cordeiro e um saquinho de amêndoas.
Quando fiquei frente a frente com a mendiga, sorri
para ela. Respondeu-me no ato com uma gargalhada
estridente, os olhos completamente fora de órbita. Seu
olhar errante possuía, por mais paradoxal que possa
parecer, um grande magnetismo. Eu tinha ouvido falar
da Loucura, compreendi que estava diante dela.
— Todas nós somos umas desocupadas — sussurrou-
me ao ouvido, enquanto estendia a palma da mão
direita.
Nessa mão havia uma moeda antiga, uma moeda já
fora de circulação. E era antigo também o ritmo dos pés
descalços da mendiga. Fiquei meio paralisado, e ela
prosseguiu assim:
— Não é verdade que para nós sobra todo o tempo do
mundo? Escute, então, a minha história.
O vento golpeou meu rosto no instante em que notei
que minhas pernas tremiam, e este vento me trouxe o
eco da gargalhada estridente, pareceu-me então que o
olhar da mulher, inquieto, olhar magnético e de espelho,
tentava se apoderar de mim, e então deixei a bolsa e o
pacote de comida na calçada, e já não quis ouvir mais
nada, não quis ouvir conto nenhum.
Tirei as botas e fugi dali a toda a velocidade. Fugi
apavorado porque de repente entendi que tinha acabado
de ver com toda a nitidez o rosto daquele mal que
assolava as ruas da cidade, e que meus pais, em voz
baixa e cautelosa, chamavam de vento da baía, aquele
vento que a tantos enlouquecia.
Ao chegar em casa, troquei rapidamente de roupa,
comi com gosto depois de muitos dias, e às sete em
ponto já estava estudando. Disse a mim mesmo que
voltaria a ficar muito ocupado e que, depois do estudo e
do jantar, me entregaria, com o mesmo fervor de antes,
à leitura daqueles grandes romances que nas noites de
inverno me deixavam sem dormir. Mas agora não os
temia, porque sabia que lá fora, para além da janela do
meu quarto, no Paseo de San Luis, com todo seu horror,
mas também com todo o seu fascínio, o vento, o vento
da baía, seguiria soprando com força.

Naqueles dias era raro que me queixasse de algo.


Diferente de agora, que não paro de reclamar. Às vezes,
penso que não deveria reclamar tanto. Afinal, as coisas
vão bem para mim. Ainda sou jovem, tenho ou conservo
certa facilidade para pintar os quadros em que evoco
histórias de minha infância, possuo uma sólida reputação
como pintor, tenho uma mulher bonita e inteligente,
posso viajar para onde bem entender, amo muito minhas
duas filhas e, enfim, fica difícil encontrar motivos que me
façam infeliz. E, no entanto, é assim que me sinto. Sigo
por aqui, pela Estufa Fria, feito um vagabundo, enquanto
me assalta sem parar a tentação do salto, aqui em
Lisboa, nesta cidade tão cheia de lugares bonitos para
lançar-se ao vazio, e onde meu olhar se tornou tão
errante como o da mendiga de minha infância, nesta
cidade em que hoje acordei chorando agachado num
canto sombrio do meu quarto de hotel.
Nesta cidade tão distante da minha, hoje acordei
chorando sem saber por que, talvez por causa daquele
quadro, que há tanto tempo resiste a mim, aquele
quadro que volta e meia começo, mas que não consigo
terminar nunca, e que evoca um velho ritmo de pés
descalços, o ritmo da mendiga do Vênus que, uma
semana depois e para o meu espanto, reapareceu no
ritmo dos pés desnudos de Isabelita, a criada que ia
buscar o Horacio Vega no colégio. Lembro muito bem
dela, perfeitamente uniformizada, mas com os sapatos
sempre na mão, como se tivesse acabado de sair de um
exaustivo baile no palácio, como se quisesse imitar
minha mendiga, ou talvez eu mesmo no momento de sair
correndo, apavorado e com as botas na mão, por causa
do maldito vento da baía.
É assim que me lembro dela, lembro dela muito bem,
mas jamais pude acabar de pintá-la. Ela sempre me
escapa com seu ritmo antigo nos pés descalços, e talvez
por isso (porque não encontro outra explicação para esta
angústia que me domina) sigo triste e melancólico pela
Estufa Fria, feito um vagabundo, enquanto trato de
afastar essa tentação que me assalta sem piedade, a
tentação do salto.
Vou andando feito um vagabundo, e de vez em quando
vejo minha silhueta fugidia refletida nas vidraças,
enquanto penso que, na vida, a vida é inalcançável. A
vida está tremendamente por baixo de si mesma. Não
existe, além disso, a menor possibilidade de se alcançar
a plenitude. E é ridículo ser adulto, e absurdo que ainda
haja quem diga se sentir cheio de vida. Tudo é penoso, é
impossível negar. Se ao menos me restasse a esperança
de algum dia conseguir terminar o quadro que tanto
resiste a mim, o quadro em que Isabelita salta sobre o
gramado do campo de futebol do colégio, perfeitamente
uniformizada, deixando-se levar por um ritmo que é tão
antigo como antigas são nossas silhuetas fugidias...

Faço mal em me enganar. Na verdade, eu não valho


nada. Não valho nada, e, além disso, não pinto. Jamais
pintei um quadro. É verdade que ainda sou jovem, que
tenho uma mulher bonita e inteligente, que posso viajar
para onde bem entender, que amo muito minhas duas
filhas, mas tudo isso é tão certo quanto o fato de que
nunca pintei nada, nem um quadro sequer. Talvez por
isso agora ande triste pela rua Garrett, feito um
vagabundo e pintando (apenas mentalmente e sem
nunca conseguir terminar) certas lembranças de infância.
Acho que se Horacio Vega, meu amigo Horacio, que
agora deve estar em seu escritório, pudesse me ver, riria
com todas as suas forças. Já nos dias de colégio
costumava censurar minha tendência a nunca acabar
nada.
— Nem os gibis — me dizia. — Você nunca termina
nada do que vejo começar.
E não lhe faltava razão. Inclusive quando eu tentava
responder a esse comentário, nunca terminava a frase.
Horacio me impunha certo respeito, porque parecia um
menino velho e sábio, e em muitas ocasiões falava como
se fosse um adulto. Um fim de tarde, enquanto eu olhava
para a lua que surgia num canto do pátio do colégio, ele
me disse:
— Você foge da plenitude.
Não entendi nada do que me dizia, mas isso não era
novidade, também não entendia quando me falava do
seu avô Horacio, que tinha sido um intrépido capitão de
navio. Para me contar as histórias do avô usava uma
linguagem obscura, extremamente difícil. Às vezes, como
não entendia muito o que dizia, eu pensava no meu avô,
que havia sido simplesmente um fiscal da fazenda e um
aficionado em tomar aperitivos ao meio-dia. Um homem
comum, diferente do avô de Horacio, que se lançou à
vida em mil aventuras.
Não o entendia quase nunca, mas sempre disfarçava,
para que não me censurasse por não estar à altura de
sua linguagem. Não queria perdê-lo como amigo. Por isso
me preocupei na tarde em que, à saída do colégio e
diante de Isabelita e alguns companheiros, começou a
recriminar minha fuga da plenitude. Tê-lo feito
publicamente me levou a pensar que havia sido
descoberto, e que aquele era o castigo que eu recebia
por fingir sempre entender suas palavras.
Pensei que tudo aquilo era uma questão entre nós dois,
que não dizia respeito aos companheiros (todos riam e
pareciam estar do lado de Horacio) nem a Isabelita.
Decidi segui-lo para o caso de em algum momento (era
bastante improvável, mas não custava nada tentar) ele
ficar sozinho e eu poder então abordá-lo, manifestar-lhe
meu desgosto por seu comportamento. Sem que se
desse conta, fui atrás de seus passos, segui-os, ele e
Isabelita, até a parte mais alta do Paseo de San Luis,
onde ficava sua casa. E tive sorte, porque durante alguns
minutos ele ficou sozinho. No momento em que ela o
deixou na rua para entrar na tinturaria (da qual hoje sou
o proprietário), avancei por trás dele o mais
silenciosamente que pude e, derrubando a sua pasta
escolar com um chute colossal, não sabendo o que dizer,
tratei de intimidá-lo com estas palavras:
— Você, sim, é que foge da plenitude.
Levantei os punhos, pois mesmo que não descartasse
que o fator surpresa estava inicialmente a meu favor,
esperava que, cedo ou tarde, ele reagisse com um tapa
ou talvez apenas com uma displicente e humilhante
careta de indiferença. No lugar de tudo isso, deparei-me
com um Horacio desconhecido, um Horacio subitamente
abatido, entristecido e mais velho do que nunca, a
cabeça baixa, como se minhas inconscientes palavras
tivessem tocado a fibra mais funda e, ao mesmo tempo,
mais dolorosa do seu ser. Foi uma sensação estranha
porque, ao ver aquele menino velho ferido
profundamente por minhas palavras, descobri existirem
frases que não eram inocentes, por mais vazias que
parecessem; havia frases que possuíam, às vezes sem
sabê-lo, agressividade. Acreditei ter certeza disso nos
dias seguintes, nos quais Horacio não parou de me
torturar, sem dúvida como vingança, com todo o tipo de
frases que giravam em torno das aventuras de seu avô,
frases que compunham histórias malaias, chinesas,
polinésias. Eu suspeitava que todas essas histórias
tivessem uma agressiva mensagem secreta. Talvez dizer-
me que seu avô tinha conhecido a plenitude? Mas o que
havia por trás dessas palavras que parecia afetá-lo
tanto? Suas histórias tinham um final que
inexoravelmente era sempre o mesmo, um desfecho que
parecia exigir de mim uma pergunta imediata, que eu
resistia em formular.
— Os últimos minutos da vida do meu avô — dizia-me
Horacio — foram os mais intensos de uma vida intensa.
— E o que aconteceu nesses minutos? — supunha-se
que eu devia perguntar. Mas não o fazia. Estava bastante
atormentado com tantas histórias do avô. Mas era
contraproducente não perguntar, porque então o mais
habitual era que voltasse à carga com uma nova
aventura do avô. Acabou conseguindo que eu perdesse a
paciência, e uma tarde impedi sua passagem num canto
do pátio quadrangular do colégio, dizendo-lhe:
— Vamos acabar com isso, acho que já deu. Se o que
você queria era me atormentar, é claro que conseguiu.
Vamos acabar com isso de uma vez, me conta como o
seu avô morreu, a vida dele eu já sei de cor, me conta
agora esses minutos finais tão intensos da vida dele.
— Sério? Quer que eu conte mesmo? — me perguntou
enquanto lançava um olhar terrível, como se fosse um
crime que naquele pátio, onde só se respirava um tédio
profundo, eu lhe exigisse (precisamente eu, que nunca
terminava nada) completar um quadro, a história da vida
de seu querido avô.
Aguentei seu olhar o quanto pude, até que, com uma
voz inesperadamente compungida, ele me contou de
uma vez que seu avô, no fim de seus dias, caiu vítima de
uma paralisia, e num domingo, enquanto todos estavam
na missa, depois de uma trabalhosa tentativa ao longo
de minutos intensos, conseguiu afinal colocar na boca o
cano de uma escopeta e se matar com o polegar do pé
direito.
Era a primeira vez que ouvia falar de um movimento
que às vezes se produzia no homem e que se chamava
suicídio, e lembro que me chamou a atenção o fato de
ser um movimento solitário, afastado de todos os
olhares, perpetrado na sombra e no silêncio.
Recordo que ficamos os dois em silêncio naquele dia,
Horacio e eu, como se estivéssemos pensando em todos
aqueles que, afastados de todos os olhares, haviam
perpetrado o movimento solitário e conhecido a única
plenitude possível, a plenitude suicida. E recordo
também que o pátio ficou abandonado como uma
eternidade quadrangular.

Estou num espaço quadrangular, de madeira torneada


e brilhante, sólido como um móvel antigo, com bancos ao
longo das paredes e, nestas, anúncios emoldurados que
falam de lojas de tecidos, de tinturarias ou cabeleireiros.
Observo que falta um anúncio, algum vândalo deve tê-lo
arrancado da moldura. A sensação é desanimadora,
porque está claro que, mesmo se quisesse, jamais
poderia ler a totalidade da atrativa publicidade deste
cômodo que agora lentamente começa a subir pelos
ares. Estou no Elevador de Santa Justa, e sei o que me
espera quando terminar a subida. Estarei em um grande
terraço e diante de uma esplêndida vista do ar azul que
envolve a cidade baixa, vista que tampouco alcança a
totalidade (neste caso, a totalidade da cidade baixa),
pois é parcialmente impedida por uma rede metálica que
prolonga o parapeito do terraço até uma altura que torna
impossíveis (e creio que isso me convém) os suicídios
daqueles que, como é tão habitual aqui em Lisboa,
sentem a tentação do salto.

Penso em toda essa gente que há pouco vi praticar a


saudade{1} no Campo das Cebolas. A cidade inteira está
cheia de solitários dominados pela nostalgia do passado.
Sentados em cadeiras públicas, que nos mirantes ou nos
píeres a prefeitura dispôs para isso, os praticantes da
saudade calam e olham a linha do horizonte. Parece que
estão esperando algo. A cada dia, com perseverança
admirável, sentam-se em suas cadeiras e esperam
enquanto evocam os dias do passado. Isso que eles têm
é melancolia, uma certa tristeza leve. Penso neles agora,
enquanto digo a mim mesmo ser ridículo que eu ande
por aqui desolado quando, entre outras tantas coisas,
ainda sou jovem, dono de uma próspera rede de
tinturarias, tenho uma mulher bonita e inteligente, posso
viajar para onde bem entender, atraio facilmente as
mulheres de que gosto, amo muito minhas duas filhas e
tenho uma saúde de ferro. Não, não parece razoável que
eu vá agora por aqui, por entre os jacarandás do largo do
Carmo, dominado por lembranças de infância e deixando
atrás de mim um rastro inesgotável de tristeza leve.
Lembro do dia em que vi, estacionado na frente do
colégio, o imenso automóvel de um pai que sempre me
disseram não existir. No conversível, os assentos de
couro vermelho brilhando ao sol me deslumbraram. No
pai de Horacio, tudo me deslumbrou: a altura
extraordinária e a corpulência, o chapéu marrom, os
óculos pretos, o terno listrado, a gravata de seda, o
bigode desafiador e, sobretudo, o fato de existir. Horacio
sempre havia dito que seu pai tinha desaparecido nos
porões da cidade de Beranda.
— Reapareceu, é isso que importa. Veio liquidar um
grupo rival — Horacio me explicou de modo sucinto.
Parecia-me cada dia mais difícil acreditar em qualquer
coisa do que Horacio me dizia, mas preferia ficar quieto,
por medo de estar enganado e fazer papel de ridículo e,
ainda por cima, de não poder subir nunca no automóvel
interminável.
Durante duas semanas, o pai nunca faltou ao encontro
com o filho à porta do colégio. No lugar dos pés
descalços de Isabelita aparecia o couro vermelho dos
assentos brilhando ao sol, o gigantesco conversível. E eu
ficava extasiado diante daquele espetáculo que oferecia
o monumental pai de terno mafioso com listras e gravata
de seda.
Ao longo de toda a primeira semana, o pai caminhava
de um jeito firme e seguro. Mas na segunda, já desde a
segunda-feira, o passo do pai se tornou vacilante e algo
temeroso. Nesse dia todos pudemos observar a presença
de um estranho. A certa distância do conversível,
estacionou sigilosamente uma moto conduzida por um
espião louro de cabelo muito curto e olhos azuis
esbugalhados que olhavam para o conversível. Não
tardou e começamos a importunar o espião, e na terça
nos atrevemos inclusive a invadir-lhe o sidecar. Na
quarta-feira, como era previsível, se cansou de nos
suportar.
— Vocês vão ver o que é bom — nos disse, levantando
a mão em um tom muito feroz e ameaçador, e parecia
que falava com sotaque berandês.
Nesse mesmo dia, Horacio afinal me convidou a subir
no conversível de seu pai. Levaram-me até minha casa.
Do assento traseiro do carro, o Paseo de San Luis
assumia outra dimensão, parecia diferente. O pai não
falou nada em todo o trajeto, mas de vez em quando me
vigiava através do retrovisor, e logo ajeitava o chapéu.
Num semáforo, em frente ao cine Vênus, acendeu um
cigarro, e riu sozinho. Eu estava um pouco assustado
quando chegamos em casa. Desceu cerimoniosamente
do carro e abriu a porta traseira. Com inesperada
cortesia, tirou o chapéu, inclinou a cabeça e me disse:
— Adeus, senhor.
Eu deduzi que era um pai preocupado. No dia seguinte,
atribuindo a conduta do pai à presença da moto, fiz
circular o rumor de que uma gangue berandesa se
propunha a sequestrar Horacio, e que seu pai ia
diariamente ao colégio para protegê-lo.
— Não devia ter espalhado essa bobagem. Além disso,
Beranda não existe — Horacio me disse na sexta-feira, e
achei-o muito mudado, como se algo andasse muito mal
em sua vida. Não havia sinal do seu habitual senso de
humor.
Essa sexta foi o último dia em que vi o pai de Horacio.
No dia seguinte, uma fria segunda-feira de janeiro
daquele ano ímpar, não havia mais conversível à saída
do colégio, nem moto de espião, nem nada. Toda a
cenografia berandesa tinha desaparecido, e só se podia
ver numa esquina Isabelita, com cara de preocupada,
aspecto de gripada, e com os sapatos calçados.
Aproximou-se de Horacio, sussurrou-lhe algo ao ouvido, e
o levou sem dizer nada.
Na manhã seguinte, sob uma chuva torrencial,
entramos no colégio pela porta da igreja. Às terças havia
missa obrigatória, e foi nessa missa que nos disseram, do
púlpito, que o pai de Horacio também se chamava
Horacio, que tinha quarenta anos e que já não pertencia
ao mundo dos vivos, pois descansava em paz, tinha
morrido.
— Adeus, senhor — eu disse, e fiz o sinal da cruz.
Lembro que não parou de chover o dia inteiro, e que
pelo colégio circulou em voz baixa todo tipo de versão
sobre aquela morte, cada uma mais arrepiante do que a
outra, e que o único ponto em comum era que o pai de
Horacio tinha sentido a tentação do salto e se lançado ao
vazio da parte mais alta da Torre de San Luis.
O professor de redação, um homem irritadiço e sem
piedade, me contou o resto. Não havia um só professor
do colégio que conseguisse despertar meu entusiasmo,
mas, dentre todos, o mais odioso e lamentável era o
raivoso professor de redação, que perdia a compostura
ao menor pretexto e nos insultava com apaixonada
maldade. A profunda aversão que me produzia foi a que
me levou a falar com ele, convencido (e não me enganei)
de que era a pessoa certa para me contar a crua
verdade, a verdade que se escondia para o resto dos
meus companheiros. Ele gostava de praticar o mal, e em
mim viu uma ocasião inigualável de poder fazê-lo. Nunca
imaginei que, ao me dirigir a ele, agi de forma inocente,
mas sim guiado pela intuição de estar no limiar de uma
emoção que podia ser bem forte.
Contou-me que há apenas duas semanas o pai de
Horacio tinha recebido alta do manicômio. Permitiram
que recuperasse o automóvel comprado outrora em
Caracas, mas ao mesmo tempo o submeteram a uma
rigorosa vigilância para assegurar plenamente que o
vento da baía já não exercia nenhuma influência sobre
ele. O espião da moto não era mais que um médico do
manicômio de quem se esperava o veredicto final. Diante
do acontecido, o único veredicto que podia confirmar era
que, mantendo-se fiel a uma arraigada tradição familiar,
o pai de Horacio tinha trocado o vento da baía pelo
suicídio.
— Não me parece agradável — disse o professor de
redação — evocar a interminável nota necrológica da
família de suicidas a que pertence o seu amigo Horacio.
Porque ainda que seja totalmente real, parece inventada,
ninguém poderia acreditar nela. Com a história dessa
família de suicidas não se poderia jamais redigir um
conto convincente, pois há muitos disparos e muitos
saltos no vazio, muito veneno, muitas mortes pelas
próprias mãos.
Não lhe parecia agradável, mas evocou a nota
necrológica, desfiando um extenso rosário de
calamidades: o tio Alejandro, por exemplo, um irmão do
pai de Horacio, havia matado seu melhor amigo numa
caçada, e isso o consumiu em tal desespero que, não
sabendo mais o que fazer com sua vida, internou-se em
um hospital fingindo estar doente e ali roubou uma forte
dose de cianureto com a qual se matou. Uma irmã da
mãe de Horacio, a tia Clara, pouco antes de abrir o gás,
deixou uma carta ao juiz na qual dizia que a
impossibilidade de frear o desejo de viver era a causa
direta de seu suicídio. A filha da tia Clara, a prima Irene,
que queria ser trapezista, acabou escolhendo a Torre de
San Luis para, com perícia e grande exibição de arrojo e
técnica, dar um triplo salto mortal no vazio, estatelando-
se pouco depois no asfalto duro e frio da zona alta do
Paseo. Em comparação, o salto do pai de Horacio parecia
coisa de amador, um salto bem mais modesto, ainda que
sem dúvida mais rápido e direto, talvez porque a vontade
de se espatifar contra o solo fosse superior a qualquer
outra coisa.
Passaram-se mais de trinta anos desde que o professor
de redação me colocou no rastro da terrível história da
família de Horacio, e ainda sinto em meus ossos a
emoção daquele dia. Agora, enquanto vou ao Miradouro
de Santa Luzia, um lugar adequado para o salto no vazio,
penso que aquilo foi o mais próximo a uma revolução que
jamais senti na própria carne, e que, sem que eu me
desse conta, mudou a minha vida. Acho que se meu
amigo Horacio, que se rebelou contra seu destino suicida
e estará agora tranquilamente em seu escritório,
pudesse me ver neste momento, caminhando por aqui
feito um vagabundo, riria com todas as suas forças e se
perguntaria pelas forças obscuras que me levaram a
assumir como minha a trágica história de sua família,
que me levaram a ser todo melancolia, uma tristeza leve
— dizem que a nostalgia é a tristeza que fica mais leve —
quando evoco aquelas jornadas nas quais descobri que,
na vida, a vida é inalcançável, que a vida está por baixo
de si mesma e que a única plenitude possível é a
plenitude suicida.
Mas não saltarei no vazio, amigo Horacio. Vou deixar
que me invada toda essa tendência a recuperar a
infância, toda essa nostalgia por um passado que, à
medida que me aproximo do Miradouro de Santa Luzia,
percebo ir conciliando com o presente, até o ponto de ter
a impressão de não estar retrocedendo no tempo, mas
quase a eliminá-lo. Vou me sentar para esperar, haverá
uma cadeira para mim nesta cidade, e nela poderei ver
todos os entardeceres, calado, praticando a saudade, o
olhar fixo na linha do horizonte, esperando a morte que
já se desenha em meus olhos, e que aguardarei, sério e
calado, todo o tempo que for necessário, sentado diante
deste infinito azul de Lisboa, sabendo que à morte lhe cai
bem a tristeza leve de uma severa espera.
Em busca do parceiro
eletrizante

Não sei de tudo que está por vir, mas seja o que for, vou
fazer dando risada.
Stubb, em Moby Dick

Numa tarde de abril há alguns anos, quando ainda me


chamava Mempo Lesmes, era muito jovem e um ator
desconhecido e morto de fome, me perdi nos labirintos
das redondezas de San Anfiero de Granzara e descobri
uma grande mansão rodeada por um jardim silvestre,
Villa Nemo. Era muito fácil entrar nela, não havia nem
fechadura nem ferrolho na porta, tratava-se de uma casa
abandonada, e me pareceu que no sentido mais amplo
da palavra, pois encontrei indícios de que, além de ter
sido abandonada por seus donos, era uma casa que
havia se abandonado a si mesma. Tudo isso me fascinou,
passeei por um longo tempo pelo jardim imaginando a
casa abandonando-se a sua própria sorte na escuridão
da noite. Completamente excitado, em uma de suas
galerias abertas a todos os ventos, pensei que, se algum
dia conseguisse triunfar como ator, a primeira coisa que
faria seria comprar aquela casa e transformá-la em
minha residência favorita.
Passaram-se alguns anos e triunfei no cinema. Um
papel secundário (mas muito apreciado) em El baúl de
los cafres me levou diretamente ao estrelato. Minha
maneira de mover um palito entre os dentes assombrou
meio mundo. Meu agente teve o cuidado e a astúcia de
trocar meu nome para Brandy Mostaza, e, a partir daí,
tudo foi um mar de rosas. Fui contratado para
protagonizar Los amores de Mustafá, uma comédia que,
ao me abrir todas as portas da popularidade, fez com
que minha vida mudasse espetacularmente da noite para
o dia. Meu maior sucesso seria alcançado com Los
humores del joven Brandy, série televisiva que brilhou
com esplendor na década de sessenta e hoje, como tudo
o que fiz, repousa no mais irritante e humilhante
esquecimento.
Contribuiu para minha irresistível ascensão a cômica e
exagerada magreza de meu corpo (as pessoas riam
porque, quando eu andava, parecia uma folha levada
pelo vento), mas esse mesmo traço físico não demoraria
a se voltar tragicamente contra mim. Comprei a Villa
Nemo, arrumei o jardim e restaurei a casa, construí uma
grande piscina, comecei a dar grandes festas todas as
sextas-feiras, e os labirintos das redondezas de San
Anfiero de Granzara se povoaram de homens e garotas
que iam e vinham feito mariposas, entre sussurros,
champanhe e estrelas. Todas as sextas chegavam de
uma quitanda de San Anfiero caixas de laranjas e limões
para os coquetéis; e todos os sábados, esses mesmos
limões e laranjas saíam pela porta de trás da Villa Nemo
transformados em uma pirâmide de cascas vazias. Tive
muitas namoradas, dancei boleros, acariciei morenas,
cantei o amor. Mas o infortúnio espreitava no ângulo
mais iluminado de meu festivo jardim, e sem me dar
conta comecei a me abandonar. Como se existisse uma
relação secreta entre a casa e a obesidade, comecei
pouco a pouco a engordar, e quando me dei conta já
nenhuma dieta era capaz de frear o irreversível processo,
minha trágica transformação. E assim cheguei à última
sexta-feira da década de sessenta: a ver navios, sem
namoradas, transformado em um Brandy Mostaza
desconhecido, um gordo infame que havia perdido sua
veia cômica.
— Já faz um tempo que a gordura o impede de ver o
que precisa fazer — me advertiu aquele dia meu agente.
— O que preciso fazer? — perguntei, fingindo que não
sabia do que ele falava.
— Ora, vamos! Me responda só uma coisa: quanto
tempo faz que não o contratam?
Como havia ganhado muito dinheiro, o fato de que
tivessem deixado de me contratar era algo que não me
incomodava tanto. Preocupava-me muito mais, por
exemplo, a alarmante e repentina ausência de
namoradas, assim como a queda progressiva da
frequência às minhas festas. Não era capaz de
compreender que tudo, absolutamente tudo, estava
estreitamente relacionado.
— E diga — continuou meu agente —, por que acha
que mais ninguém lhe oferece filmes ou, quando o
fazem, é apenas para infectos papéis secundários?
— Bom — eu disse —, suponho que tenha algo a ver
com estes quilos a mais que exibo.
— Supõe!
O barão de Mulder, que sem a menor dissimulação e
com o maior descaramento estava nos escutando, entrou
na conversa.
— A gordura de meu amigo Brandy — disse ajeitando o
monóculo — é um esplêndido monumento à carne, ao
excesso e à ternura da humanidade.
Podia-se pensar que dizia isso porque estava ainda
mais gordo do que eu, mas também me pareceu entrever
que, por algum motivo que me escapava, tratava de me
adular com a finalidade de primeiro ganhar a minha
simpatia, depois conseguir algo que desejava de mim.
Não demorei a confirmar minhas suspeitas quando,
uma hora mais tarde, esbarrei de novo com ele no jardim
e se pôs a falar de seus antepassados, os Mulder e os
Roiger, revelando-me que os dois ramos da família
tinham habitado em outros tempos a Villa Nemo, e que
nessa casa tinham padecido toda sorte de infortúnios.
Tinha bebido um pouco e estava muito falante, e
também escandalosamente alarmista. E de tudo quanto
me disse (incluindo uma impertinente pergunta sobre se
os fantasmas de seus antepassados circulavam pela
minha casa), tirei uma única e clara conclusão: Villa
Nemo exercia uma influência nefasta na vida de todos os
seus proprietários. Por isso, surpreendeu-me que,
naquela noite, ao despedir-se, me perguntou por quanto
eu lhe venderia a casa.
— Brandy, meu amigo — me disse —, vou ser sincero.
Na condição de gordo, o senhor tem um futuro negro no
mundo do espetáculo. Por que nos enganar? O público o
preferia magro. Sei que não vai demorar a passar por
apuros econômicos, e queria estender-lhe a mão. Venda-
me a Villa Nemo com o submarino incluído, e saia de
viagem, dê uma volta ao mundo.
Ia perguntar sobre o tal submarino quando seu
monóculo caiu no chão. Dispus-me a pegá-lo quando ele
o pisou com verdadeira fúria. Em seguida deu uns
estranhos passos de sapateado e caiu de bruços na
grama. Então me ocorreu algo que me desconcertou,
pois ao vê-lo cair senti um impulso estranho, um desejo
irrefreável de dar uma pirueta no ar e de fazer com o
barão um número de circo ao final de uma festa que,
verdade seja dita, havia sido de dar sono.
— Escute o que eu digo — disse o barão ao se levantar
—, venda-me sua casa. É o conselho de um amigo.
Então me deu uma forte palmada no ombro e se
perdeu na noite. Ao meu lado, meu agente parecia
assombrado.
— Genial, absolutamente genial — comentou. — Viu
com que pose e elegância ele estraçalhou o monóculo?
Seria um comediante de alta voltagem esse barão. Se
você voltasse a ser o magro que foi, e desgraçadamente
pressinto que nunca mais vai conseguir, formaria com ele
uma dessas duplas de grande sucesso que surgiram no
cinema.
— Não vai me dizer agora...
— E por que não? Estou falando dessas estranhas
duplas de atores que deram o máximo de si mesmos
porque — como direi — havia algo de estranho em cada
um que estimulava o crescimento ou fazia emergir a
eletricidade oculta que existia no outro. Parceiros
eletrizantes, entende?
— Espera aí... — protestei enquanto me despedia
fleumaticamente de duas antigas namoradas que tinham
se tornado íntimas entre si — você não estaria falando do
Gordo e o Magro?
— Estou falando deles, e também de Abbott e Costello.
Sua magreza e a gordura extravagante do barão
poderiam transformar vocês em uma dupla de provável
sucesso. Mas infelizmente o parceiro que você precisa
hoje tem características muito distintas das do barão. Era
precisamente disso que eu queria lhe falar.
Me levou a um banco num canto do jardim, perto da
piscina. E ali, enquanto eu assistia ao duro desfile de
antigas namoradas que se despediam de mim com os
mais cruéis e cínicos sorrisinhos, me mostrou um álbum
de fotografias de atores magros que talvez pudessem
salvar minha carreira se me juntasse a algum deles
numa parceria artística.
— E não seria uma solução melhor pedir ao barão que
emagreça até virar um palito? — eu disse de brincadeira,
constrangido pelo desfile das namoradas irônicas e pela
fadiga daquela hora da noite.
— Problema seu — me disse em tom ameaçador,
despedindo-se com uma expressão que pretendia indicar
que se desinteressava para sempre de minha carreira.
Mas na manhã seguinte, com ares de ter reavaliado e
de querer me oferecer uma última oportunidade,
apareceu de novo em Villa Nemo com seu álbum de
fotografias de atores magros.
— Olhe este — dizia apontando um deles.
— Olhe aquele — eu respondia sem levar a sério. Mas a
brincadeira durou pouco. Nos dias seguintes, acabei
fazendo testes com muitos daqueles magros, testes que
se revelaram um completo desastre. Ao ver que não
havia em todo o país um só ator com o qual eu pudesse
formar uma verdadeira dupla perfeita, colocamos
anúncios nos jornais. Mas nem isso funcionou. Então meu
agente sugeriu que talvez esse ator estivesse no
estrangeiro ou talvez (e aí começou a se consolidar
minha ruína) não fosse um ator, e nesse caso teria que
buscá-lo na rua ou, melhor dizendo, nas ruas, nas ruas
de todo o mundo.
— Temos de checar todas as possibilidades — me
disse. E semelhante raciocínio me levou muito longe, me
levou inclusive até as ruas de Hong Kong, perseguindo
um magro que acabou se revelando um verdadeiro
fiasco. Quando estava quase desistindo de encontrar um
parceiro e havia entrado em cheio na crise econômica,
minha mãe, que descanse em paz, veio em meu auxílio.
— Na Calle Rendel — me disse —, na livraria que tem o
mesmo nome, há um vendedor esquelético que tem cara
de imbecil e um sobrenome de confeitaria. Chama-se
Juan Lionesa e pode ser o homem que você procura.
Algumas horas depois, Juan Lionesa — cabelo escuro
cortado em forma de cuia sobre bochechas bronzeadas e
uma expressão entediada e misteriosa — estava na
minha frente. Eu acabava de lhe pedir a Divina comédia
e o examinava de cima a baixo. Mas ele, em vez de
procurar o livro, se dedicava a uma operação semelhante
à minha, ou seja, também me submetia a uma avaliação
visual intensa, bastante incômoda, até que disse:
— O senhor foi Brandy Mostaza, não foi?
O foi me tirou um pouco do sério.
— E o senhor — respondi — nunca foi ninguém, o que é
muito pior.
— Puxa! Não me diga que se aborreceu com a minha
observação!
Odeio a palavra observação, e vi uma cara muito
grande de imbecil naquele pedante, livreiro impertinente.
Olhei-o com certa raiva e lhe enviei em silêncio todo tipo
de maldições, mas ele apenas se calou. De repente,
aconteceu algo extraordinário. Ao decidir por fim ir
buscar a Divina comédia, olhou para uma estante
(bastante vazia, aliás) e ficou rigorosamente de perfil. Vi
então que nessa posição os traços de Lionesa, seu perfil
esquerdo, eram curiosamente iguais aos meus à época
em que era magro e fazia sucesso. Esse perfil esquerdo,
que evocava o de uma garça no cio, era capaz de
provocar riso no mais sério dos mortais. Sem o saber,
Lionesa possuía a essência exata de minha comicidade
perdida, o segredo de meu antigo sucesso, uma
verdadeira mina de ouro. Minha mãe tinha acertado em
cheio.
— Ouça — disse-lhe num tom confidencial —, preciso
falar a sós com você. Fora da livraria, entende? Trata-se
de um assunto que pode lhe interessar. Por ora, vendo
que você não tem a Divina comédia, me dê qualquer
outra coisa, um Júlio Verne por exemplo.
Arqueou as sobrancelhas e mudou radicalmente de
expressão como se a referência a Júlio Verne contivesse
uma mensagem transcendental. E então pronunciou em
voz baixa, lenta e muito respeitosa, esta frase:
— E de balão viajará a torta.
Eu poderia ter pensado que ele estava louco, ou que
simplesmente queria rir de mim, mas não sei muito bem
por que tive a rápida intuição de que aquela frase podia
ser uma senha (e era, mas não o tipo de senha que eu
imaginava). Num primeiro momento, pensei que Lionesa
tinha detectado em mim alguém que em muitos aspectos
o complementava e que, por isso, inventava uma
linguagem secreta entre nós, frases que permitiriam nos
entender sem que ninguém pudesse saber do que
falávamos.
— E de balão viajará a torta — disse, acreditando que
com minha resposta não fazia mais do que reconhecer a
estranha corrente de eletricidade que parecia nos unir, e
também que com tais palavras assinava a certidão de
nascimento da linguagem secreta que acabávamos de
inaugurar.
— E de balão viajará a torta, e eu às oito e dez estarei
no pub Jacobs — respondeu. Pouco depois deixei a
livraria com Cinco semanas num balão debaixo do braço.
Li os primeiros capítulos no Jacobs enquanto aguardava
Lionesa, que foi bastante pontual. Chegou de óculos
escuros e a gola do casaco ligeiramente levantada.
Saudou-me de longe arqueando as sobrancelhas, mas
quando se aproximou fez como se não me conhecesse.
Sentou-se à minha esquerda no balcão, mostrando-me
seu insignificante perfil direito. Pediu uma cerveja e,
quando eu pensava que fosse me perguntar pelo motivo
que o tinha levado até ali, agiu como se não esperasse
nada de mim, salvo a torta, aquela que devia viajar de
balão.
— Bem — disse, olhando para a frente, não me
chamando de “senhor” e sem virar um centímetro a
cabeça —, quando eu terminar minha cerveja, me passe
a torta, e boa sorte, camarada. Ah!, um conselho. Da
próxima vez, tente ser mais ágil e mais discreto, e vê se
aprende melhor essa senha.
Tratava-se, então, de uma senha, mas não o tipo de
senha que eu imaginava. Tinha me metido bem no olho
de um furacão, provavelmente numa conspiração ou
num assunto de espionagem. Lamentei o fato de não ter
sumido antes, quando saí da livraria. Me aborreci por não
ter intuído que Lionesa era um conspirador que
aguardava uma mensagem secreta sobre Júlio Verne ou
sobre um balão.
Enquanto ele tomava pausadamente a cerveja que eu
pagaria, fui considerando as opções para poder sair de
um modo honroso daquele enredo, e finalmente decidi
que o melhor seria simplesmente lhe dizer que, por
motivos alheios à minha vontade, a torta se atrasaria
vinte e quatro horas. Assim que o disse, ele me encarou
com um estupor e em seguida um medo que eu jamais
vira.
— Não há torta até amanhã, mas não fique assim —
disse em voz alta, de tão nervoso que fiquei.
Era meu jeito de falar nos momentos de conflito. Saía
pela tangente ou empreendia uma enlouquecida fuga
para a frente. Em todo caso, Lionesa parecia não
acreditar no que acontecia, enquanto no Jacobs todos
pareciam pensar que o álcool acabava de propiciar o
nascimento de uma amizade entre dois desconhecidos, e
houve mesmo um bêbado que nos premiou com um
grande sorriso e uma salva de palmas. Pensei que era
evidente que formávamos uma dupla interessante, de
marcados contrastes físicos. Mas não parecia que
Lionesa pensasse assim e, pior, tudo indicava que via em
mim alguém que, pelos motivos que fossem, acabava de
lhe preparar uma armadilha fatal.
A estranha corrente de eletricidade que circulava entre
nós fez com que, de repente, como quem solta o lastro
principal de um balão, eu me livrasse de todos os meus
nervos e os transferisse integralmente a ele. Fiquei muito
tranquilo — diria mesmo que nunca havia me sentido tão
sereno — e decidi que não tinha por que me alarmar, e
que o mais prático seria consertar a situação, contando
toda a verdade a Lionesa. Expliquei-lhe, então, que tinha
ido à livraria porque andava à procura de um homem
magro para trabalhar comigo em filmes que, com
certeza, seriam grandes sucessos se eu encontrasse o
parceiro ideal.
— E esse parceiro ideal sou eu. É isso o que pretendia
me dizer? — perguntou com tal agressividade e
desconfiança que pensei que quisesse me matar.
— Claro que é o senhor. Por favor! Precisa acreditar em
mim. Fazer política não me interessa nem um pouco.
Houve um mal-entendido, é tudo. A verdade é que eu
entrei na livraria porque minha mãe me disse que ali
estava o homem que eu procurava. Viajei até Hong Kong
atrás desse parceiro que salvaria minha carreira. Preciso
que você se junte a mim, que se converta em meu
parceiro artístico. Senão terei de vender a Villa Nemo e
ficarei na rua. Me ajude, por favor.
— Olhe bem para mim — do bolso do seu paletó surgiu
um volume que bem podia ser uma arma —, estou lhe
apontando um revólver. Portanto, não diga mais
besteiras, pague as cervejas e ande na minha frente.
Aquilo já estava parecendo um pesadelo. Paguei as
cervejas e saímos para a rua. Lionesa tentou parar um
táxi, mas, no mesmo instante, andávamos tão perto um
do outro que embolamos as pernas e os casacos e
acabamos tropeçando e indo para o chão — eu com todo
meu peso amassando a gravata de Lionesa, que se
empertigou com toda a velocidade, ainda que
ligeiramente tonto, e voltou a me apontar o revólver —,
enquanto na rua todo mundo ria e celebrava aquele
espetáculo, o que confirmou minha suspeita que havia
encontrado meu par ideal, e que poderíamos ter formado
uma dupla de arrebentar, se a desconfiança e aquele
maldito revólver não tivessem se colocado
estupidamente em nosso caminho rumo ao estrelato.
Ao entrar no táxi, me dei conta de quão difícil seria
escapar do veículo em movimento, levando em conta
que meu corpo mal passava pela porta, e que tinha sido
o próprio Lionesa quem, à base de empurrões, afinal me
introduziu no interior incômodo. Já rodando pela cidade,
enquanto passávamos pelas proximidades do parque
Rendel, me atingiu uma melancolia profunda. Fiquei
olhando com tristeza pela janela, perguntando-me se
voltaria a ver algum dia aquelas árvores que tantas
vezes me seduziram. Perguntei-me, também, se devia
me despedir da vida. Nunca, nem nas situações mais
desesperadoras, perdi meu senso de humor, pois sou dos
que pensam que esta vida é uma piada e que, por mais
que ignoremos o que nos espera no final, o melhor é ir
em sua direção rindo de tudo, com uma trágica falta de
seriedade. Então olhei longamente para Lionesa e, com
um amplo sorriso, disse a ele:
— E posso saber onde o senhor pensa em me matar?
Vi como o taxista segurava o riso. Era evidente, ou
assim me pareceu, que desde o primeiro instante
havíamos lhe causado muita graça, pois nem todo
mundo para um táxi rolando em dupla pelo chão. Para
dissimular o quanto tinha apreciado nosso pequeno
número circense, e o muito que o fazíamos rir, ou talvez
para se integrar ao que devia parecer uma bela cena de
humor, o taxista pigarreou e chamou a atenção de
Lionesa:
— Desculpe, mas disse Juárez esquina com Verlás?
— Não, eu disse Verlás esquina com Juárez — replicou
irritado um Lionesa que não parecia ter tudo sob
controle. Sua insegurança e um certo riso frouxo que
havia se apoderado de mim (não podia deixar de pensar
que me encontrava à beira da morte, e isso me parecia
engraçado) me animaram a confrontá-lo quando
paramos num semáforo.
Eu era — sou ainda — um grande ator. Inclinei-me para
a frente de um modo estranho, empurrando o queixo
para fora e mostrando os dentes. Pensei que Lionesa não
estivesse preparado para isso. Minha cara, que
normalmente era fofa e flácida, se endureceu até parecer
uma máscara de pedra, a princípio branca como a morte,
em seguida de um vermelho cada vez mais intenso, que
se espalhou desde as maçãs do rosto, e por fim negra
como se estivesse a ponto de me afogar. Eu acreditava
que Lionesa não poderia suportar e desmaiaria, mas não
foi assim, simplesmente ficou me olhando com ar de
estranheza.
— Pena, porque teríamos nos coberto de ouro — disse
então, e lhe dei uma bela cabeçada. Todo meu peso,
incluindo minha máscara de pedra, tinha caído sobre ele.
Ficou inconsciente. Depois de umas angustiantes
manobras de corpo, consegui descer do táxi e me
refugiar entre a multidão que se aglomerava na entrada
do metrô. Olhei para trás, mas não parecia que tivesse
me seguido. Respirei com certo alívio. Entrei num vagão
da linha 5, e pensei que viajava em direção à liberdade.
Pobre de mim, não sabia o que ainda me esperava.
Naquela mesma noite, minutos depois de falar com meu
agente, que não acreditou numa só palavra do que lhe
contei, tocou o telefone em Villa Nemo, e uma voz
criminosa anunciou que minha mãe havia sido
sequestrada. Se eu contasse à polícia sobre o sequestro
ou a conspiração, a matariam e depois me matariam
também. Se não pagasse um milhão de dólares pelo
resgate, não voltaria a vê-la viva. Depois que pagasse e
eles a libertassem, praticamente nada teria mudado,
salvo que minha mãe poderia estar ao meu lado, apesar
de que, se eu contasse à polícia, não poderia estar com
minha mãe, pois além de ter um milhão de dólares a
menos, seria um homem morto, e sabe-se que não há
um só homem morto que conviva com sua mãe.
Não me restou outro remédio a não ser vender a Villa
Nemo ao barão de Mulder. Disse a ele que precisava do
dinheiro para fazer uma longa viagem.
— Eu sabia que cedo ou tarde acabaria se desfazendo
da Villa Nemo, que é uma casa feita sob medida para
uma grande família como a minha, jamais para um
solteiro inveterado como o senhor, a quem acredito
convir melhor viajar e ter um apartamento prático e dar
festas, talvez não para uma multidão, mas para uma só
mulher — e me piscou o olho com pouca graça —, não
acha, amigo Brandy?
— Faz tempo que não dou festas — me limitei a
responder. — Desde que voltei de Hong Kong.
Com o dinheiro do barão, paguei o resgate e me
devolveram minha mãe, mas ela voltou com o gênio
mudado. Tive que ir morar em sua casa, pois fiquei
completamente arruinado. Ela passava os dias me
culpando por seu sequestro.
— As más companhias — dizia. — Você não me
engana. Em algum rolo você se meteu, e eu é que tive
que pagar. A prova é que não quer ir à polícia.
Não adiantava nada explicar que eu suspeitava se
tratar de um bando de malfeitores que tinham prazer de
matar por matar. Ir à polícia significava lhes oferecer um
motivo para uma represália brutal. Minha mãe não
acreditava em mim. Além disso, por mais que fosse
inocente, os fatos não me ajudavam. Porque minha mãe
e eu começamos a receber visitas de membros do
renascido culto dos feiticeiros britânicos, em busca de
informação sobre unguentos para voar e coisas
parecidas. Minha mãe acabou perdendo a paciência e me
deserdou. Atormentada pelo remorso, começou a
envelhecer enquanto passava os dias sem me dirigir a
palavra, dedicada unicamente a registrar numa
caderneta vermelha os detalhes mais relevantes de
todos os enterros que via passar por debaixo de sua
janela. Quando já havia registrado trinta e três cortejos e
uns oitenta ou noventa detalhes, morreu. Muito
possivelmente morreu de pena por ter me deserdado tão
injustamente, pois sabia que me deixava na mais
absoluta miséria. Não se podia dizer que a vida sorria
para mim, mas ainda assim permaneci fiel aos meus
princípios e eu sim sorri para a vida.
Além do mais, comecei a tomar gosto pela rua, me
tornei um vagabundo interessante porque fingia estar
louco, o que era muito rentável, já que as pessoas se
apiedavam e me davam dinheiro. Minha loucura consistia
em ir por toda a cidade com uma vareta, açoitando o
chão em um ritmo tão contundente quanto desprovido
de sentido, torpemente inclinado para a frente enquanto
avançava pela rua, batendo e batendo no cimento. Minha
nova vida — estadias noturnas no metrô incluídas —
começou a me satisfazer plenamente. Era maravilhoso
não ler jornais, não ter que suportar meu agente, não
receber as visitas dos feiticeiros britânicos, passar às
vezes na frente da livraria Rendel e dar para eles uma
banana de vagabundo anônimo. Era fantástico poder
ganhar a vida com o teatro de rua, com a encenação
cotidiana da mais refinada loucura de que podia ser
capaz um ator obeso.
Ao não ler jornais e ter contato apenas com os
miseráveis, demorei para saber que um incêndio havia
destruído a Villa Nemo e que o barão e toda sua família
tinham morrido. No dia frio de inverno em que soube da
notícia, disse a mim mesmo que aquele incêndio, que a
polícia qualificou como acidental, poderia ter sido
provocado pelos feiticeiros britânicos. Possivelmente
teriam confundido o barão comigo. Não podendo fazer
nada por ele, rezei em companhia de outro vagabundo, e
pouco depois, morto de curiosidade, me dirigi à Villa
Nemo, onde vivi o prazer mórbido de passear maltrapilho
e barbudo por entre as ruínas do que tinha sido a minha
deslumbrante mansão. Restavam só quatro paredes de
pé, e a casa se parecia muito à que, numa tarde de abril
anos atrás, eu descobri com verdadeiro fascínio. O jardim
caminhava para voltar a ser silvestre, não havia nem
fechadura nem ferrolho na porta. Enfim, voltava a ser a
mesma casa abandonada que eu tinha visto a primeira
vez, aquela casa que tanto sabia abandonar-se a si
mesma.
Pensei na Villa Nemo nos dias que se seguiram, e uma
irresistível atração magnética me levava a voltar, a voltar
a me instalar novamente ali. Até que uma noite voltei
para ficar. Completamente excitado, em uma das
galerias abertas a todos os ventos, e enquanto
contemplava com satisfação o jardim selvagem, decidi
reinstalar-me na casa, ou melhor, no que restava dela.
Pensei que, depois de tudo, não só era a moradia ideal
para um miserável como eu, mas também o espaço mais
familiar e confortável que eu conhecia, e sem dúvida o
lugar ideal para festas de uma só pessoa, para as festas
íntimas que se celebrariam a cada dia ao final de minhas
esgotantes jornadas de açoitador enlouquecido das ruas.
Tudo isso pensei à noite, ao voltar a me instalar no que
um dia tinha sido meu luxuoso quarto. E talvez porque
não parasse de pensar nisso, ou por causa do frio que
sentia (e a minha única manta era incapaz de evitar),
demorei para dormir. Por volta de meia-noite, o frio
voltou a me acordar. Comecei a considerar a
possibilidade de fazer um bom fogo com a velha
estrutura de um armário que não tinha se queimado
inteiramente e que eu conhecia muito bem, pois afinal
me pertencera. Enquanto considerava essa possibilidade,
como se o armário tivesse percebido minhas intenções,
me pareceu que do seu interior vinha um rangido e um
lamento. Pensei que fosse minha imaginação, mas o
rangido se repetiu, e em seguida um ruído de correntes,
e finalmente um lamento comovedor.
— Quem está aí? — disse enquanto acendia um
fósforo, e sem perder totalmente a calma.
Ninguém respondeu. A luz tênue do fósforo, o armário
parecia diferente do que eu conhecia. Tinha a forma de
um submarino colocado em posição vertical. Era um
desenho art déco, e tampouco nisso eu tinha reparado
até então. Lembrei-me das palavras do barão quando me
disse na festa que lhe vendesse a Villa Nemo com o
submarino incluído. E também me lembrei de quando me
perguntou se os fantasmas de seus antepassados
circulavam pela casa. Consumiu-se o fósforo e, durante
uns segundos, ao ficar às escuras, senti certo respeito
pelas sombras, mas logo acendi outro fósforo.
— Quem está aí? — repeti, tentando que minha voz
soasse firme e livre de qualquer temor. Tampouco obtive
qualquer resposta, mas quando me dispus a voltar a
dormir, repetiu-se o rangido. Compreendi que devia
enfrentar com todas as consequências aquela situação, e
então me entreguei a todos os santos do mundo e abri
de súbito o armário.
Nada. Não havia nada nem ninguém em seu interior.
Voltei para minha cama, me envolvi em minha manta,
tentei recobrar o sono. Estava considerando de novo
transformar o submarino em uma boa fogueira quando o
rangido voltou, e desta vez chegou acompanhado de um
contundente lamento.
— Não me queime — dizia-me. — Se o fizer, não lhe
oferecerei resistência, mas receio que será em vão. Sou
um espírito.
— Quem está aí? — repeti, desta vez sobressaltado.
— Sou seu amigo, o barão de Mulder. Neste quarto se
fez minha ruína neste mundo, nesta casa perdi toda
minha família, neste armário guardava minhas melhores
roupas. Esta casa é minha: deixe-a para mim.
Não me atrevi a acender outra vela. Não queria que
pensasse que ia atear fogo ao armário.
— Sua voz se tornou irreconhecível, barão — disse
enquanto tratava de recobrar minha presença de
espírito.
— Se pudesse me ver, veria que minha aparência
também mudou bastante. O fogo me transformou em
uma figura pálida e arrasada, que passa todas as noites
de pé neste armário. É uma lástima que o senhor não
possa me ver e rir um pouco. Uma lástima que pertença
ao mundo dos vivos e não possa apreciar a graça
especial de minha aparência magra e sobrenatural.
Tratei então de fazê-lo ver que não parecia lógico, caso
fosse um fantasma e tivesse a oportunidade de visitar os
lugares mais belos da Terra (pois supunha não ser o
espaço um problema para ele), que optasse por voltar
precisamente ao lugar onde havia passado pelo pior.
— Reconheço que sou burro — me disse —, mas é que
adoro ser assim, como também gosto muito de ser
magro e desgraçado. Porque eu, meu querido amigo
Brandy, tenho uma grande reserva natural de riso, e rio
sempre a todas as horas e, quanto mais desgraçado sou,
mais rio.
E riu. Se já não tivesse morrido, teria morrido ali
mesmo de tanto rir.
— O senhor ri de uma maneira infinitamente séria — eu
disse. — Não sei se sua risada pode ser considerada
como tal. Veja, por exemplo, a minha.
Fiz-lhe uma demonstração de como rir de forma alegre
e despreocupada, e enquanto o fazia me dei conta da
suave mas enérgica conexão que havia entre a sua
risada e a minha. Havia entre nós, além disso, uma
corrente de mútua simpatia e a estimulante
solidariedade dos desgraçados. E também alguma coisa
estranha em cada um de nós, que estimulava o
crescimento ou a vinda à tona da eletricidade oculta que
havia no outro.
Comentei-lhe tudo isso, mas não respondeu. Pensei
que talvez fosse por haver mergulhado em uma profunda
inquietude. Pois tudo que tinha dito a ele era verdade,
mas também era verdade que nunca poderíamos chegar
a formar uma verdadeira dupla eletrizante se eu não
desse (porque dos dois só eu poderia dá-lo) um passo
fundamental que haveria de me levar ao mesmo lugar do
barão, além das minhas roupas sujas e rasgadas, além
de minha barba, do quarto e do submarino, além desta
vida.
Por isso, espero agora que caia a noite e o barão
regresse a seu armário. Tenho tudo preparado. A
estricnina com a qual darei o último e fundamental
passo, que vai me permitir fundar uma parceria
eletrizante, uma dupla que não tardará a sair em turnê,
em turnê triunfal pelo espaço sideral.
Rosa Schwarzer volta à vida

Nos fundos do museu de Düsseldorf, em uma austera


cadeira do incômodo canto que lhe foi designado há
anos, na última e mais escondida das salas dedicadas a
Klee, pode-se ver esta manhã a eficiente vigilante Rosa
Schwarzer bocejando discretamente, ao mesmo tempo
que se sente um tanto inquieta, pois um momento antes,
mesclando-se ao som da chuva que cai sobre o jardim do
museu, começou a chegar, vindo do quadro O príncipe
negro, o sedutor chamado do príncipe que, para convidá-
la a entrar e se perder na tela, envia o altivo som do
tambor de seu país, o país dos suicidas.
Eu sei que Rosa Schwarzer, em sua desesperada
tentativa de afastar a influência do príncipe e a tentadora
proposta de abandonar o museu e a vida, acaba de
refugiar o olhar nas tênues cores rosadas de Monsieur
Perlacerdo, que é outro dos quadros dessa sala que vigia
com tanto zelo, onde quem ousasse irromper agora se
depararia com uma eficiente vigilante que prontamente
interromperia seu bocejo, e pondo-se de pé pediria ao
intruso que, por causa do alarme, fizesse o favor de não
se aproximar muito nem de monsieur Rosa nem do
senhor Negro.
O fato, Rosa Schwarzer está ligeiramente inquieta esta
manhã.
Influi nisso tudo a segunda-feira que viveu ontem? Eu
diria que sim. Ontem, Rosa Schwarzer fez cinquenta
anos, e como o museu fecha às segundas, achou que
teria toda a manhã para preparar o almoço de
aniversário. Mas já desde o primeiro momento tudo se
complicou enormemente. Para começar, acordou
angustiada, movendo-se feito uma marionete, tateando
no vazio incolor e insípido de sua triste vida. Depois, esse
vazio recobrou um ligeiro tom de cinza, como o do dia.
Esta vida para quê?
Eu sei que Rosa Schwarzer disse isso ontem enquanto
dormia, um pouco antes de acordar, no sono da manhã,
e que falou a mesma coisa hoje, dormindo, mas que,
diferente desta manhã, ontem levantou sem a
consciência do que disse, ontem simplesmente começou
a preparar o café da manhã para seu marido e os dois
filhos, que lhe haviam assegurado que, mesmo se
trabalhassem na segunda-feira, iam fazer um esforço
para que todos se reunissem à hora do almoço, e
provariam com o prazer de sempre aquele leitão assado
que ninguém sabia fazer melhor que mamãe Rosa, como
todos a chamavam.
Assim todos me chamam, pensa agora Rosa Schwarzer
enquanto escuta o rumor da chuva no jardim, enquanto é
atraída pelo som do tambor do país dos suicidas.
Sei que ontem, depois do despertar de marionete
angustiada, o segundo contratempo foi a inesperada
deserção de Bernd, o filho mais velho, que durante o café
disse que seria impossível estar presente para o almoço,
então o pai aproveitou para também se desculpar e dizer
que andava muito ocupado, e que guardassem sua parte
do leitão assado para a noite.
Em silêncio, Rosa Schwarzer mordeu os lábios e pensou
que tudo aquilo não atrasava o café, que já estava quase
pronto, mas o que de alguma forma já estava atrasando
era a hora do almoço, pois havia outras coisas se
cruzando perigosamente em seu caminho, pedindo com
força sua atenção. Porque, ao deixar que seu olhar
vagasse distraidamente pela cozinha, tinha reparado,
junto ao café, aos queijos, ao chá, aos pães de centeio,
às geleias e aos embutidos, no coração solitário de uma
garrafa transparente de água sanitária que, se pudesse
estar viva, teria sem dúvida se animado na forma de
uma triste marionete perdida no vazio insípido daquela
cozinha não menos triste.
Pensou em como era fácil morrer, e que não devia
deixar para outra hora aquela magnífica ocasião.
Bastavam uns goles de água sanitária e apagaria de uma
vez todo aquele cotidiano de imagens cinza, de maridos
desalmados, de tédio mortal no museu. Mas quando já
estava a ponto de pegar a garrafa, aconteceu de pensar
no desgraçado de seu marido ou, melhor dizendo, em
seu marido sem graça, e de repente descobriu que havia
algo no ar da manhã, nesse estar sozinha na triste
cozinha, que agitava seu sangue de um modo não
desagradável. Na verdade seu marido, enganando-a
descaradamente todos os dias com a vizinha (e o
desgraçado achava que ela não sabia), era merecedor de
compaixão, e precisava ser ajudado, o que não deixava
de ser uma boa razão, simples, mas muito importante,
para seguir vivendo, para seguir preparando o café da
manhã, para seguir tentando que seu marido
recuperasse a alegria e voltasse a ser aquele homem
encantador que havia conhecido no parque Hofgarten,
numa maravilhosa manhã de domingo, trinta anos antes,
e que não merecia ser apagada por uma garrafa de água
sanitária qualquer.
Antes de levar o café da manhã até a sala, e para
celebrar que havia deixado escapar aquela ótima ocasião
de acabar com a própria vida, Rosa Schwarzer tomou um
café muito forte que a fez dar uma nova olhada na
paisagem da cozinha, prescindindo desta vez da
presença obsessiva da água sanitária, ou seja, viu os
outros cafés, os queijos, o chá, os pães de centeio, as
geleias e os embutidos, mas não viu, ou não quis ver, a
maldita água sanitária.
O café a despertou de modo quase selvagem e, por um
momento, caso se tratasse de uma breve antecipação do
que hoje poderia viver no museu, viu as remotas
paisagens do país de um obscuro príncipe estrangeiro. O
café a despertou de tal modo que a fez entrar na sala
com um passo excessivamente vivo e acelerado, e por
pouco não derrubou a bandeja sobre a cabeça inocente
do filho caçula, que tinha uma doença mortal e não
sabia, o pobre Hans.
Meu pobre e querido Hans, pensou enquanto abria a
janela e o ar frio da manhã entrava de uma vez em toda
a sala, e Rosa Schwarzer seguiu pensando na infinita
desgraça de seu filho, até que pensou de repente na
possibilidade de se atirar no vazio, ou melhor, no duro
pátio da vizinha, aproveitando aquela segunda ocasião,
tão fácil como inigualável, que se apresentava para tirar
sua vida e fazê-la alcançar a liberdade, ao desprender-se
de tudo e de todos, e sair por fim deste trágico e
grotesco mundo. Mas logo se deu conta de que seu filho
precisava muito dela, ainda mais do que seu marido, e
que aquela, sim, era uma verdadeira razão para
continuar vivendo. E para dizer a si mesma que
continuaria viva, perfeitamente viva, Rosa Schwarzer
provou um pedaço de queijo.
Quando os três homens da casa saíram para o
trabalho, começou a se vestir, e o fez tão lentamente
que acabou demorando muito mais que o habitual em se
arrumar para sair à rua. Distraiu-se contando as mechas
brancas que haviam aparecido em seu cabelo ao longo
da última noite, e pensou em comprar uma peruca, mas
então se lembrou de um sujeito estranho que tinha
conhecido na infância. Um homem que em seu trágico
desespero arrancava, brutalmente, os fios da peruca.
Não queria que acontecesse algo semelhante com ela. O
que será que aconteceu com esse homem?, pensou. E
mais: onde vão parar as perucas quando as pessoas
morrem?
Ficou se fazendo perguntas desse tipo e atrasando
deliberadamente a hora de comprar o leitão até que,
finalmente, já bastante tarde, saiu à rua. O ar e as cores
do meio-dia se descortinaram a sua frente, frescos,
tonificantes e novos, enquanto procurava direcionar às
suas tarefas domésticas essa paixão que, inconfessada,
acende o coração de tantas donas de casa quando
sabem da doçura secreta e do furioso fanatismo que se
pode colocar sobre a prática cotidiana mais vulgar, o
trabalho de casa mais humilhante, porque no fundo —
pensou Rosa Schwarzer — não há nada comparável à
íntima satisfação de ver o prato fumegante servido com
admirável pontualidade à hora do almoço.
Era o que Rosa Schwarzer pensava ontem pela manhã,
mas ao mesmo tempo, e entrando em violento choque
com suas convicções mais íntimas, disse para si mesma
que o leitão assado podia esperar, e mais, que não
estaria pronto, nem por casualidade, à hora do almoço,
declarou-se em operação tartaruga, e começou a
caminhar mais devagar, como se estivesse em fogo
brando, cozinhando lentamente. E lentamente o sangue
subiu às bochechas quando decidiu que faria uma
simples salada de batatas (no fim, para ela e para Hans
era suficiente), e logo pensou que não, nada disso, não
prepararia um só prato e que Hans era um enorme
desgraçado para que ela ainda estivesse planejando
saladas otimistas, e que definitivamente a vida era pior
que uma estúpida batata, e que se mataria, sim, se
mataria sem mais adiamento. Além disso, ali estava o
maldito asfalto brilhando ao sol, convidando-a a lançar-se
sob as rodas de algum carro e acabar assim, de uma vez
por todas, com o cansativo assunto do leitão assado, do
marido infiel, da salada de batatas, dos talheres e da
toalha, do infinito tédio das manhãs no museu, da couve
e das alfaces, do filho caçula à beira da morte, dos pratos
fumegantes servidos com admirável pontualidade à hora
do almoço.
Já estava procurando o carro que acabaria com sua
vida quando percebeu que, na verdade, algo muito mais
fundo havia se partido nela nas primeiras horas da
manhã, daquela fria e estranha manhã, porque,
pensando bem, não deixava de ser esquisito que, depois
de tantos anos sem refletir sobre a vida e as coisas, nas
últimas horas não tivesse parado de pensar nisso. E
pensou que no fundo era muito estimulante ver como
sua frágil vitalidade tinha se enchido de sombras daquela
forma tão tétrica, mas ao mesmo tempo tão
perigosamente atraente. Em outras palavras, sua vida,
ao entrar no reino do obscuro e do desespero, tinha se
transformado paradoxalmente em algo, por fim, um
pouco animado. Similar a um desses filmes que
começam com uma fotografia preto e branco na qual,
com alguma insistência, é possível ir vendo mais e mais,
até que a imagem vai recuperando a cor, e um discreto
enredo se põe em marcha. Assim se animava — não
muito, mas discretamente, o que já era alguma coisa — a
sua vida. Por que, então, ficar cruelmente sem
maquiagem sob as rodas de um carro se na verdade
nada a interessava tanto como saber com que
acontecimentos — discretos, mas ainda assim
acontecimentos — se depararia nas horas seguintes?
Tudo isso lhe pareceu uma razão mais do que
suficiente para deixar passar aquela nova ocasião de se
matar. Para comemorar que havia decidido continuar
viva, entrou no Comercial para tomar um chá, e o fez
com a satisfação de quem enfim se atreve a tomar uma
decisão por muito tempo adiada, pois fazia anos — desde
que se casara, ou talvez desde muito antes — que não
entrava sozinha num bar. Por isso, ao apoiar-se no balcão
e pedir o chá, sentiu que estava vivendo um momento de
intensa liberdade. Sentia-se muito contente, quase feliz,
mas quando lhe serviram o chá, e quando, mais
precisamente, estava vendo a vida cor-de-rosa — o
carpete do lugar, que era dessa cor, contribuía em parte
— reparou em um homem, bêbado provavelmente, que
cambaleava de forma estranha a poucos metros dela.
Lembrou, sem saber muito bem por que, do homem da
peruca que havia conhecido na infância. Apesar de ter
parado de chover há horas, o homem continuava com o
capuz de sua velha e escura capa de gabardine. A uma
hora dessas e já tão bêbado, pensou Rosa Schwarzer.
Pouco depois, com certo horror, viu que estava se
aproximando dela. Então o reconheceu e se tranquilizou.
Era um vizinho do bairro, que já havia visto muitas vezes,
e de quem se comentava estar sempre perdido,
chorando pelos cantos dos bares.
— Boa noite — disse o homem, com graciosa e
surpreendente amabilidade. Tinha uns trinta anos, era
muito bonito e parecia triste.
— Quer dizer bom dia — ela respondeu.
— Saiba a senhora que só existe a noite, a escuridão.
Só há uma história que acontece à luz do dia. Já ouviu
falar desse homem que sai de um bar do porto à primeira
hora da manhã?
— Ouça, Hans, não incomode a senhora — interveio o
garçom. E Rosa Schwarzer ficou um tanto surpresa ao ver
que aquele homem tinha o mesmo nome do seu
desenganado filho caçula.
— Não, não me incomoda nada — disse Rosa
Schwarzer, comovida pelo nome daquele bêbado tão
educado que, por outro lado, falava com certa graça, até
mesmo com bastante lucidez. Quase não se notava que
havia bebido.
— Esse homem — continuou ele — leva no bolso uma
garrafa de uísque e desliza pelos paralelepípedos com a
rapidez de um barco que deixa o porto. Logo se mete de
cabeça em uma tempestade...
— Ah! Agora entendo o senhor — ela o interrompeu —,
agora compreendo por que o senhor sai com o capuz na
cabeça.
O homem fez como se não tivesse escutado e terminou
sua peculiar história:
— Logo se mete de cabeça em uma tempestade, e aos
trancos tenta freneticamente regressar. Mas não vai
chegar a porto algum. Entra em outro bar.
— E por que bebe tanto? — ela perguntou
imediatamente.
Depois de uma quase interminável reflexão, depois de
dar muitas voltas no assunto, o homem respondeu:
— Porque a realidade é desagradável.
Rosa Schwarzer riu timidamente.
— Bobagem! — disse. — E por acaso a irrealidade
também não é, meu amigo?
O homem então se aborreceu e perdeu a educação.
Começou a explicar que era um boêmio incurável e que
naquela noite não havia dormido e que o que mais
gostava (e aqui fez uma inflexão de voz para reforçar seu
suposto engenho) era divulgar seu estilo de vida
pecaminoso e não convencional entre as almas
condenadas da Internacional Cebolista das sofridas
donas de casa, tão choronas. Rosa Schwarzer, que não
estava para brincadeira e que, além disso, lembrava que
o único chorão ali era ele, decidiu não se abater e o
fulminou com o olhar.
— Quem você achou que eu era? — disse.
E repete agora. Quem você achou que eu era? Mas
desta vez dirige a pergunta ao príncipe negro, que insiste
em emitir, através do rumor da chuva, o som do tambor
de seu longínquo país, o país dos suicidas.
— Quem você achou que eu era? — repetiu Rosa
Schwarzer ao boêmio impertinente.
— Ele não está incomodando mesmo a senhora? —
interveio de novo o garçom.
— Oh, não! — ela reagiu de imediato, pois não
desejava de modo algum a interrupção daquela
sequência em cores de sua recém-animada vida.
— Minhas desculpas, peço desculpas — apressou-se
em dizer o boêmio com grande educação, um pouco
assustado com aquele olhar fulminante de uma Rosa
Schwarzer que se sentia capaz de tudo, pois estava
convencida de que ninguém havia tido — o pobre boêmio
muito menos — uma manhã tão intensa e perigosa como
a sua. Sempre à beira da morte e sempre deixando para
trás, no último segundo, o abismo. Já eram três as
oportunidades que havia desperdiçado aquela manhã,
três claras e precisas ocasiões para se matar. Isso a fazia
sentir-se tão segura, e era tal a confiança que naquele
momento tinha em si mesma, que se atreveu a convidar
o desconhecido do capuz a passear com ela pelo bairro.
— Aceita? Tenho que comprar quatro coisas para uma
salada de batatas.
— Bem, por que não? — ele disse, sem qualquer
objeção. E então ela, ao ver que sua companhia era
valorizada sem reservas, ficou profundamente comovida,
e passou a ter tal confiança no desconhecido que lhe
confessou ter estado três vezes à beira do suicídio nas
últimas horas. Para contar tudo, demorou bastante
tempo, porque não queria que os detalhes que ela
considerava mais importantes ficassem em segundo
plano.
— Assim — Rosa Schwarzer conclui, depois de meia
hora —, nesta manhã tudo me parece novo, nada do que
me acontece havia se passado antes.
O homem tinha quase dormido.
— Ei! Acorde, por favor, ficamos de ir comprar umas...
— não se atreveu a dizer batatas —, vamos, faça o favor
de acordar, o senhor não é o boêmio que disse ser.
O homem se reanimou, foi até o lavabo e voltou
renovado.
— Que barbaridade! — ele comentou pouco depois,
quando saíram à rua e a confiança já era mútua,
inclusive chamando um ao outro de você. — Mas que
barbaridade. Olha, você tem que me fazer um favor,
Rosa, estive pensando bem, minha mente dava voltas
enquanto você falava, e eu quase dormia, e se não dormi
completamente é porque tentava seguir o misterioso fio
do seu pensamento. Olha, você tem que me fazer um
favor, Rosa. A próxima vez que quiser se matar, não
recorra à água sanitária nem ao pátio da vizinha nem às
rodas de um carro. São mortes muito pouco estéticas.
— E por que acha que haverá uma próxima vez? — ela
perguntou um tanto surpresa.
Em resposta, o homem deu a ela uma garrafinha de
uísque e disse que era cianureto, que ela a guardasse.
Ela preferiu achar que aquilo era mais uma piada do
boêmio e guardou a garrafinha num bolso de seu casaco.
— Em caso de necessidade — ele disse —, basta
arrancar a tampa da garrafa e tomar o veneno num gole
só, simples assim.
— Você sabe muito bem que está me dando uísque e
não veneno — ela disse carinhosamente, sorrindo.
— Juro que é cianureto. A garrafinha é só para
despistar, entende? — falou enquanto tirava lentamente
o capuz da capa de gabardine, num gesto que ela
interpretou como sinal de que estava voltando a si
depois da sua noite de bebedeira, que estava voltando à
realidade, por mais desagradável que a realidade
pudesse parecer.
Às duas da tarde ainda continuavam caminhando, não
haviam parado em nenhuma lanchonete e muito menos
— apesar das tentativas dele — em nenhum bar,
andavam tropeçando no calçamento de um bairro que já
não era o deles, e estavam se aproximando do parque
Hofgarten, já longe das paisagens cotidianas e também
dos bares e das lanchonetes. Ele estava pensativo e,
sobretudo, cansado, perto de desmaiar ou cair dormindo
em qualquer esquina, mas continuava mostrando certa
atenção quando Rosa Schwarzer falava e contava, por
exemplo, que em Hofgarten tinha conhecido, trinta anos
antes, seu pobre e infeliz marido. E acabaram sentando-
se em um banco de pedra na entrada do parque.
— Agora — disse ele — em lugar de vigiar uma sala de
museu, vigie Hofgarten inteiro. Não é má a mudança,
nada má. Hofgarten inteiro...
Rosa Schwarzer sorriu, não respondeu e ficou olhando
a passagem das nuvens no céu cinza e gelado, que
cobria o parque. Meu pobre e querido Hans, pensava de
vez em quando, e não sabia se estava invocando o nome
de seu filho, a quem acabava de avisar por telefone que
ainda estava no cabeleireiro e que demoraria para o
almoço, pedindo que ele se virasse com um frango frio
que estava na geladeira, ou se pensava no outro Hans,
aquele que a acompanhava meio dormindo, o pobre e
belo Hans, tão jovem e cordial, o homem do capuz e do
cianureto, o homem que a havia feito se afastar do
bairro, de sua família, da dor pela enfermidade do filho,
do tédio das manhãs no museu e, definitivamente, do
insuportável crisalho que se refletia em todos os passos
de sua amarga vida.
— Então — ela disse —, ainda não me contou em que
trabalha, se é que trabalha; o que, claro, eu duvido.
— Eu não posso trabalhar — respondeu com afetação,
como se recitasse um papel muito estudado. — Eu só
posso beber e chorar.
— Nunca trabalhou?
— Bom, algumas vezes, mas sempre acabaram me
destruindo, quer dizer, me despedindo. Agora estou na
mais absoluta miséria. Uma menina me ajudava, mas ela
também ficou sem trabalho. Ultimamente meu pai me
ajudava, mas entraram em greve na fábrica dele, e
enfim... Agora ninguém me ajuda mais.
— Meu pai passou a metade da vida em greve. Dizia
que era do que mais gostava.
Ficaram em respeitoso silêncio, ela pensando em seu
pai, ele pensando no dele e, ao mesmo tempo, dava uma
cochilada atrás da outra. A paz do lugar era imensa,
ainda que fosse um parque muito triste por parecer
profundamente solitário. O céu cinza e gelado que se
estendia sobre ele o transformava na mais fria das
paisagens. Era aquele, sem dúvida alguma, um parque
solitário e gelado.
— Enfim, somos filhos de grevistas — disse ele com
certa melancolia. E pouco depois, dando uma nova
cochilada, caiu profundamente adormecido no ombro de
Rosa Schwarzer.
Ela não se atreveu a despertá-lo, aquilo seria um
crime. Depois, especulou o que aconteceria se
casualmente passasse por ali algum familiar ou amigo.
Que pensariam ao vê-la junto a um desconhecido que
apoiava docemente a cabeça em seu ombro? Pouco
importava o que poderiam pensar, entre outras coisas
porque ninguém circulava por ali, aquele parque não
podia ser mais solitário e silencioso, o mesmo lugar onde
trinta anos atrás ela também havia arrancado da vida
uns breves mas intensos momentos de grande felicidade.
Precisamente porque já os tinha vivido, sabia que esses
instantes tinham uma duração muito limitada, de modo
que tirou de seu ombro, com grande suavidade, a cabeça
do amável desconhecido e, deixando-o ali perdido e
adormecido no velho parque solitário e frio, empreendeu
a lenta e dolorosa viagem de volta ao bairro e à sua casa.
Durante o caminho, destroçou-lhe a alma a certeza
quase absoluta de que nunca poderia expressar, nem
com alusões, ainda menos com palavras, e sequer em
pensamento, os momentos de felicidade fugaz que tinha
consciência de haver alcançado. Essa certeza a
acompanhou, como uma nova dor secreta, ao longo do
caminho de volta. E quando, duas horas depois, voltou a
encontrar-se nas ruas de seu bairro, um novo temor se
juntou a tudo o que a preocupava, porque lhe ocorreu
que seu filho Hans, que não trabalhava à tarde, poderia
ter renunciado à volta habitual com os amigos e estar,
dadas as circunstâncias especiais do dia, esperando-a
em casa, aguardando seu regresso do cabeleireiro. Isso
poderia ser terrível, porque ele veria que não havia
cabeleireiro nenhum e sim um grande mistério ou, o que
era pior, e além disso rimava com mistério: um grande
adultério. Temendo ser descoberta, entrou no cabeleireiro
do bairro e, como não tinha tempo para fazer o
permanente, comprou uma horrenda peruca castanha. E
com a peruca na cabeça se apresentou em sua casa,
onde por sorte não havia ninguém, somente os ossos de
um triste frango de geladeira, os restos da comida de seu
pobre e querido Hans.
Logo a alegria de estar sozinha passou e deu lugar na
indecisa Rosa Schwarzer ao sentimento contrário, um
profundo abatimento por aquela terrível solidão que a
casa oferecia. Aproximou-se da janela. O céu estava
esbranquiçado, invadido por um verniz opaco, assim
como em sua memória uma brancura opaca ia apagando
a lembrança das sensações vividas junto ao boêmio
abandonado no parque. Em seu trágico desespero,
começou a arrancar, brutalmente, os fios de sua peruca.
Pegou então uma faca de cozinha e pensou em fazer um
haraquiri, arrebentar o ventre sem dó, oferecer suas
entranhas a toda a inconsciente raça de sofridas donas
de casa que o jovem boêmio escandalizava, para logo
antever um sonho caprichoso no parque do
esquecimento. Pôs a peruca em cima da geladeira e a
cortou em duas com a faca, e foi tal a tensão e o esforço
acumulados no gesto, que cortou a seco o ar carregado
daquela cozinha. Esgotada, caiu no chão. Não, também
não seria dessa vez que tiraria sua vida. Seu pobre filho,
seu querido Hans, merecia jantar comida quente aquela
noite. Levantou-se, jogou o que restava da peruca no
lixo, riu feito uma louca, e provou o pão de centeio.
Porém, ao cair da tarde, seu pobre e querido Hans
voltou para casa e nem sequer se interessou pelo leitão
assado, nem perguntou por que ela tinha demorado
tanto no cabeleireiro, tampouco se queixou de ter tido de
comer o frango frio da geladeira, nada, nem sequer a
olhou e, portanto, não teve oportunidade de ver o
escandaloso cabelo de piaçava branca que sua mãe
exibia. Apenas a cumprimentou sem entusiasmo e pediu
que ela pregasse dois botões da camisa. Mas não a
olhou. Rosa Schwarzer compreendeu que seu filho não se
interessava nada por ela.
A aparição de Bernd, o filho mais velho, foi ainda mais
desalentadora, porque nem se lembrava do leitão assado
— nisso era igual a Hans —, mas por não se lembrar, não
se lembrava sequer do aniversário da mãe, não se
lembrava de nada. Limitou-se a encher a sala de fumaça,
ligar a televisão e afundar no sofá. Rosa Schwarzer
pensou em desligar de repente a televisão e falar a seus
filhos de um gesto do boêmio que para ela havia
parecido abrir imensas e desconhecidas possibilidades de
amor. Mas sabia que jamais conseguiria expressar a
plenitude que havia alcançado há apenas uns instantes,
e também sabia que, mesmo na hipótese de fazê-lo, se
pudesse expressar o que realmente sentia, seus filhos
nem a escutariam, ou melhor, não acreditariam.
— O que vai ter para o jantar? — perguntou do sofá um
exigente Bernd.
— A morte — ela disse. — Apenas a morte.
Disse isso tão baixo, da solidão de sua cozinha, que
eles não puderam ouvir, assim como também não
podiam escutar que naquele momento era degolada uma
galinha. E se não era possível ouvir, era porque essa
galinha era sua própria mãe, que se imaginava dessa
forma, degolada viva, e fazia isso para pensar em algo
que a distraísse e a afastasse de uma perigosa tentação
que acabava de se apresentar na forma de uma nova
oportunidade de tirar a própria vida. Abrir o gás e meter
a cabeça no forno. Uma morte horrível, dizia para si
mesma enquanto pensava que o pior de tudo era que, se
finalmente se decidisse a imolar sua cabeça com o
cabelo de piaçava junto, seus filhos provavelmente
demorariam a se dar conta. Continuariam ali na sala
discutindo como faziam diariamente, por sua ridícula
parcela de poder no sofá. Imbecis. Desgraçados. Só
quando tudo fosse consumado encontrariam uma cabeça
de mãe bem assada no lugar do leitão. Uma morte
horrível, pensava Rosa Schwarzer enquanto tentava, sem
conseguir, afastar aquela imensa tentação.
Foi salva pela violenta chegada do marido. Sua
inconfundível maneira de entrar em casa — a batida
forte da porta e a tosse de fumante inveterado —
dissolveu a feroz tentação do forno, porque
imediatamente tinha mais interesse em pegar um pote
de geleia e enfiá-la na cara do marido infiel. Uma
vingança pela vizinha e, sobretudo, por tantos anos de
indiferença e constante humilhação. Valia a pena deixar
de lado a ideia do forno e gozar fugazmente da
expressão de horror e surpresa de seu marido quando,
pela primeira vez em trinta anos, a visse rebelar-se
contra a sufocante violência de sua enorme indiferença.
Mas antes de lançar sobre ele o pote, disse a si mesma
que apagaria as luzes da casa e apavoraria os três. Não
pela escuridão, mas porque com sua voz rouca de
gaivota gritaria o próprio nome na escuridão. E assim o
fez, mesmo que ao final não tivesse apagado as luzes
mas se limitado ao grito:
— Rosaaaaaaa Schwaaaaaarzer.
Abaixaram incrédulos o volume da televisão, e então
seu nome voltou a ser ouvido, mas dessa vez
pronunciado em forma de eco veloz e muito sincopado,
quase sufocado, como se estivesse em pleno ataque de
soluço. Quando tudo passou, ela foi ouvida respirando
profundamente, com grande alívio e felicidade.
— Ficou louca, mamãe Rosa? — interveio o marido
segurando-a violentamente pelo braço. — O que está
acontecendo com você?
Uma excelente oportunidade para morrer, pensou ela.
Esta ocasião, sim, não vou deixar passar, vou tirá-lo do
sério, o que é fácil, e estou certa de que dirá que vai me
matar, e então forçarei as coisas para que me mate de
verdade.
— Bela maneira de preparar o jantar — disse o marido.
— Posso saber o que você tem?
Respondeu atirando o pote de geleia na cara dele, mas
não acertou no alvo, e o pote se espatifou no relógio da
cozinha, que parou de funcionar, o que deixou Rosa
Schwarzer muito satisfeita, pois pensou que, pelo menos
na cozinha, o tempo tinha parado; assim, com um pouco
de sorte pararia para sempre se, como esperava, o
marido se decidisse a matá-la. E o marido parecia ter
essa intenção, pois tinha a mão levantada e a ameaçava
dizendo justamente que ia matá-la. Tinha que fazer com
que dessa vez a frase não ficasse, como de costume, por
isso mesmo. Ela não podia deixar passar aquela
excelente ocasião, aquela inigualável oportunidade —
quem diria, a sexta em um único dia — de alcançar a
morte.
Da porta da cozinha, os dois filhos a olhavam entre
desolados e atônitos, como se lhe reprovassem algo. Era
como se não quisessem perdoá-la por sua vida de
escrava ter se animado ligeiramente nas últimas horas,
como se não pudessem admitir de modo algum que,
ainda que timidamente, ela tivesse voltado a respirar,
tivesse voltado a viver.
— A culpa de tudo isso é do museu. Como se eu não
soubesse... — Bernd comentou com seu pai.
Voou um novo pote de geleia, que também não acertou
o alvo. Pouco depois, uma Rosa Schwarzer muito abatida,
cansada de tanta incompreensão, se rendia. Sentou-se
numa cadeira e ficou soluçando debilmente durante
alguns instantes. De vez em quando gritavam:
— Cale-se, mamãe.
— Cala a boca, mamãe Rosa.
Ficou ali na cadeira, como se estivesse sentada no
museu, até que terminou a programação da televisão.
Chegando a hora de dormir, deitou-se sem vontade,
tomada por uma insônia galopante, e passou a noite em
claro, imaginando todo tipo de histórias que aconteciam
num parque solitário e gelado, que transformava em
notívagos todos seus visitantes. Já com as luzes da
aurora, sem ter dormido a noite toda, ouviram sua voz:
— Esta vida para quê?
Disse isso dormindo, no sono da manhã, pouco antes
de afinal se levantar e preparar o café da manhã, em que
provou apenas uma fatia de presunto, enquanto pedia
desculpas ao marido e aos filhos pela noite anterior, e
lhes explicava ter se sentido afetada pelo aniversário e
que isso era tudo, que a desculpassem.
Logo, como em tantos dias por tantos anos, foi de
bicicleta ao museu, e está agora em sua tediosa cadeira
de sempre, morta de sono depois da noite inquieta,
bocejando ostensivamente enquanto tenta não se deixar
seduzir pelo chamado do príncipe negro que, para
convidá-la a entrar e perder-se na tela, faz soar o altivo
som do tambor de seu país, o país dos suicidas.
Eu sei que Rosa Schwarzer, em sua desesperada
tentativa de afastar a influência do príncipe e a sua
tentadora proposta, acaba de refugiar o olhar nas tênues
cores rosadas de Monsieur Perlacerdo, outro quadro
dessa sala que vigia com tanto zelo, onde quem ousasse
irromper agora se depararia com uma eficiente vigilante
que prontamente interromperia seu bocejo, e pondo-se
de pé pediria ao intruso que, por causa do alarme,
fizesse o favor de não se aproximar muito nem de
monsieur Rosa nem do senhor Negro.
O fato, Rosa Schwarzer está ligeiramente inquieta esta
manhã. E não é para menos, pois o tambor a chama com
insistência cada vez maior, convidando-a a deixar o
museu e a vida, e é tanta a sedução exercida pelo
príncipe negro que, a qualquer momento, ela poderia
sucumbir à nova oportunidade de tirar a própria vida. Na
sétima vez, vou conseguir, pensa Rosa Schwarzer, e
pouco depois lembra que ainda conserva o cianureto
num bolso do casaco, e decide testar a sorte. Se for só
uísque, talvez ajude a despertar, porque está caindo de
sono, ainda que não esteja segura de que o uísque
desperte, nunca provou uma gota de álcool e não sabe
como este pode agir sobre ela, mas vai se arriscar. Se
não for uísque, mas cianureto, vai viajar para o outro
lado da existência, para aquele outro mundo, longínquo e
sedutor, no qual vive o príncipe dos suicidas, que é
apaixonado por ela.
Com um único e fulminante gole ingere o veneno, e
quase de imediato o tambor a envolve com a mais
calorosa sensualidade, ainda que também com alguma
brutalidade, porque tem a sensação de que caiu morta.
Tal foi o impacto, a força da rápida descida do líquido no
estômago. Mortalmente tonta, dá uma forte cabeçada
para a frente e, quando está a ponto de cair, sente que
entrou no quadro e que avança por um estranho corredor
de uma cor cinza-chumbo, que a conduz a uma
esplanada de forte colorido na qual se estende um altar
precedido por vários degraus, cobertos por um tapete de
um verde muito intenso, nunca visto por ela antes. Já
perto do altar, e à sombra de uma gigantesca palmeira,
descobre uma estátua que representa um homem ferido
mortalmente por uma adaga cravada no coração. Seu
coração de suicida apaixonado. É o príncipe negro, que
logo que recobra a vida começa a celebrar a chegada de
seu amor e, valendo-se de uma dança tão delirante
quanto prolongada, convoca todos os suicidas do reino à
grande esplanada em cujo altar vão acontecer os festejos
de acolhida à recém-chegada. De todas as inumeráveis
cabanas cercadas por um oceano de águas muito
cristalinas, surgem súditos com trajes de gala que,
segundo esclarece o príncipe, imitam o inimitável: a
névoa azul ardente da África.
A felicidade mata, e esses suicidas imitam não o
inimitável, mas o inexistente, pensa Rosa Schwarzer,
enquanto lembra que também a irrealidade é
desagradável. Pois, apesar da exultante beleza do
príncipe, da névoa azul ardente e do deslumbrante país
no qual se encontra, começa a sentir-se incômoda nessa
cultura incompreensível, nesse longínquo e misterioso
lugar em que se celebra a morte. Como se tivesse lido
seu pensamento, o príncipe, depois de lamentar por ela
não ter sabido apreciar o brilho das estrelas que em sua
honra lançam fogos de artifício no velho e gelado céu de
seu país, lhe adverte que só poderá voltar atrás em sua
viagem se inalar a névoa azul ardente do país dos
suicidas. Uma névoa altamente tóxica. Em seguida, Rosa
Schwarzer compreende que se trata de suicidar-se
novamente e, neste caso, de praticar o gesto ao
contrário, um suicídio que a fará cair, não do lado da
beleza, mas do lado oposto, do lado da vida. E Rosa
Schwarzer não pensa duas vezes, se aproxima de uma
das colunas de névoa e aspira profundamente, com toda
a força, e em poucos instantes se encontra de novo em
sua cadeira do museu, junto à qual descansa, quebrada
em mil pedaços, a garrafinha embriagante.
Ninguém presenciou a fulgurante viagem. E Rosa
Schwarzer, vigilante eficiente, abre bem os olhos e, ainda
um pouco tonta, recompõe sua figura enquanto
comprova que tudo continua igual. Ou melhor, quase
igual, porque já não se ouve o clamor apaixonado e
constante do tambor dos suicidas. Imóveis estão agora
as cores, o negro do príncipe e o rosa do monsieur. No
fundo, tudo está em perfeita e triste ordem. Com um
sentimento amargo, mas no fundo também muito
aliviada, Rosa Schwarzer sente que voltou a sumir no
crisalho de sua vida, e se encontra bem, como se
houvesse compreendido que, depois de tudo, não
sabemos — eu o direi com as palavras do poeta — se na
verdade as coisas não são melhores assim: escassas de
propósito. Talvez sejam melhores assim: reais, vulgares,
medíocres, profundamente estúpidas. Além do mais,
pensa Rosa Schwarzer, aquela não era minha vida.
A arte de desaparecer

Até aquele dia, exatamente o dia de sua


aposentadoria, a ideia de chegar a ter sucesso na vida
sempre o aterrorizou. Volta e meia era visto a andar na
ponta dos pés pela escola ou por sua casa, como se não
quisesse incomodar ninguém. E sempre tinha existido
nele uma recusa total do sentimento de protagonismo.
Perder, por exemplo, era algo de que sempre gostou. Até
no xadrez preferia jogar um tipo de jogo que se chama
autômato e que consiste em obrigar o adversário a
vencer. Gostava de sentir-se protegido dos olhares
indiscretos dos outros. E não era nada estranho,
portanto, que tudo o que ao longo de quarenta anos
vinha escrevendo — sete extensos romances sobre o
tema do equilibrismo — permanecesse rigorosamente
inédito, guardado a sete chaves no fundo de um baú que
tinha herdado de seus discretos antepassados.
Era um homem modesto, não voltado a si mesmo, mas
a uma busca obscura, a uma preocupação essencial cuja
importância não estava ligada à afirmação de sua
pessoa; tratava-se de uma busca muito peculiar, em que
estava empenhado com obstinação e força metódicas, e
que só se dissimulava sob sua modéstia.
Para que me exibir (raciocinava Anatol cinicamente) e
por que dar os meus textos para impressão, se no que eu
escrevo suspeito não haver mais que uma cerimônia
íntima e egoísta, uma espécie de interminável e
falsificada fofoca sobre mim mesmo, destinada, portanto,
a uma utilização estritamente privada?
Era um raciocínio absolutamente cínico que volta e
meia ele fazia, para não sentir a tentação de publicar.
Porque nada mais distante da realidade do que aquilo
que dizia a si mesmo, para assim enganar-se e poder
seguir na amada sombra do espaço fechado de seu
estúdio.
Entre as medidas para poder viver como escritor
secreto, a mais curiosa era a que havia tomado há mais
de quarenta anos: a de morar em seu próprio país, a
pequena e sedutora, mesmo que terrivelmente
mesquinha, ilha de Umbertha, fazendo-se passar por
estrangeiro. Foi fácil enganar todo mundo, porque o
trágico e brutal desaparecimento de toda sua família na
guerra o ajudou na mudança de identidade. De repente,
certa noite, todos mortos, Anatol compreendeu que
estava só, completamente só no mundo, e sentiu essa
sensação de extravio que se vive quando, no caminho,
voltamos atrás e vemos o trecho percorrido, a via
indiferente que se perde num horizonte que já não é o
nosso. Acabada a guerra, Anatol disse a si mesmo que ao
final só restava isso, o olhar para trás que percebia o
nada, e ficou perambulando — extraviado — três longos
anos pela Europa, e quando fez vinte anos regressou a
Umbertha, e o fez exagerando enormemente os agás
aspirados (em Umbertha não há palavra que não leve
essa letra, que é pronunciada sempre de forma
relativamente aspirada) e cometendo todo tipo de erros
quando falava esse idioma. Todo mundo o tomou por
forasteiro, e até riam de seu exagero ao aspirar os agás,
o que deu a Anatol a garantia imediata de proteção como
escritor secreto, pois em Umbertha os caçadores de
talentos só estavam interessados em possíveis glórias
nacionais e descartavam sistematicamente qualquer
pista que pudesse conduzir a gênios forasteiros.
Em quantos lugares deste mundo (pensava Anatol) não
haverá neste instante gênios ocultos cujos pensamentos
nunca chegarão às pessoas? O mundo é para os que
nascem para conquistá-lo, não para os que preferem
passar despercebidos, viver no anonimato.
Vivendo nesse anonimato, tentando passar pela vida
na ponta dos pés, protegido por sua falsa condição de
estrangeiro e confiando em não ser nunca reconhecido
como nativo da ilha nem como escritor, pôde desfrutar
por quarenta anos de uma discreta e feliz existência.
Sempre em companhia de sua esposa Yhma, uma
umberthiana que lhe deu cinco filhos e foi sempre a
cúmplice fiel de seus segredos literários. E trabalhando
sempre na mesma coisa, como professor de idiomas e de
educação física na escola da capital. Sempre na mesma
coisa, sempre, até que chegou o dia de sua
aposentadoria.
Foi precisamente nesse dia quando, repercutindo ainda
os ecos do emocionado aplauso de várias gerações de
alunos que fizeram questão de assistir a sua última aula,
viu estar em risco pela primeira vez em quarenta anos a
total recusa que tinha pelo sentimento de protagonismo,
pois notou que no fundo não lhe desagradavam nada
todas aquelas demonstrações de afeto, e também o
sentir-se (ainda que fosse apenas por algumas horas) o
centro das atenções daquele instituto de ensino, no qual,
sem pretender, tinha se transformado em uma
instituição. Com seu peculiar sotaque estrangeiro e
aspirando mais que de costume os agás — sem dúvida
para rir um pouco de si mesmo —, brincou com seu
amigo, o professor Bompharte, sobre a estima que tinha
na escola.
— Querido Bompharte, veja só: instituto, instituição —
disse Anatol.
Bompharte lhe dedicou um sorriso amável e
condescendente (o que habitualmente dedicava quando
não conseguia entender o que Anatol queria dizer) e
comentou que se alegrava por vê-lo tão radiante:
— Você está muito bem. Isso de se aposentar está
sendo uma maravilha para você.
Anatol se calou, porque pensou que se falasse teria de
explicar — e aquilo era vergonhoso para ele — que se
estava tão radiante era devido ao muito que estava
desfrutando ao se sentir, entre tanta gente, o centro das
atenções na escola.
Veja só como são as coisas (pensava Anatol). Passo
dias, meses, anos recusando qualquer tipo de
protagonismo e quando de repente me torno o
personagem principal da história fico muito contente.
— Por que ficou tão calado? No que está pensando? —
perguntou então Bompharte.
— Em como todos nós, humanos, somos volúveis —
respondeu-lhe. — E não me pergunte agora por que
estava pensando nisso. Deixemos assim. De vez em
quando gosto de ter algum segredo.
— Tá certo — disse Bompharte com um ar um tanto
misterioso. — Com certeza lhe falei da exposição de
fotografias sobre o mundo do esporte que ando
preparando...
— Sim, me falou.
— Mas não sei se disse que pensamos também em
editar um livro sobre a exposição...
— Não.
— É que pensei em você, dada a autoridade que lhe
conferem tantos anos como professor de educação física,
para escrever a introdução. O que acha? Suspeito, amigo
Anatol, que o faria muito bem. Você sempre me pareceu
um escritor secreto.
Anatol, completamente lívido, acreditou que o fim do
mundo havia chegado. Que tipo de piada infeliz era
aquela? Toda ordem, harmonia e tranquilidade de sua
vida cambalearam por instantes. Demorou a se dar conta
de que não era para tanto, de que as palavras de
Bompharte eram apenas uma forma convencional de
instigá-lo a escrever quatro intranscendentes linhas, e
nada mais. Mas até entender, passou um mau bocado. O
pior de tudo era que sua lividez repentina e a expressão
de pânico o estavam delatando.
— Está acontecendo alguma coisa com você, Anatol?
Finalmente reagiu a tempo e conseguiu mudar a
expressão de seu rosto.
— Não, nada. Por quê? — sorriu.
Era muito melhor não se negar a escrever a introdução,
pois isso sim equivaleria a levantar automaticamente
todo tipo de suspeitas. Era melhor aceitar o encargo,
escrever quatro linhas com negligência e torpeza, quatro
besteiras, e acabar com aquele assunto desagradável.
— Eu pensei — Bompharte já estava se desculpando —
que tendo como vai ter a partir de agora mais tempo
livre, eu pensei, disse a mim mesmo...
— Nada! — brincou Anatol. — Instituto, instituição!
Como poderia não escrever a introdução para você?
Uma semana depois, chegavam as fotografias a sua
casa de recém-aposentado. Eram imagens de tênis,
futebol, esgrima, atletismo, natação... Acreditou apreciar
de imediato nas fotografias dos saltos com vara uma
beleza incomum, que se destacava das demais imagens
que lhe haviam enviado. Uma beleza única. E quando
começou a redigir a introdução, não demorou a se dar
conta de como seria difícil escrever com negligência e
torpeza. Mesmo que pudesse, teria sido incapaz de
assinar um texto fraco; além disso, acreditava que cada
homem tem escrita no próprio sangue a fidelidade de
uma voz e que não faz mais do que obedecer a ela, por
mais invalidações que a ocasião sugerisse.
Disse a si mesmo ser incapaz de escrever mal e trair-
se, e que, além disso, ali estava (não podia afastar dela
seu fascinado e obsequioso olhar) a exagerada e singular
beleza das fotos dos saltos com vara, que
inevitavelmente acabou comparando em seu texto com
as heroicas manobras dos equilibristas. E como conhecia
estes à perfeição, pois não fora em vão que levara
quarenta anos escrevendo sobre seu arriscado ofício, o
resultado final foi um texto compacto e muito ousado,
elegante e quase genial, uma bem equilibrada e
espetacular reflexão sobre o equilíbrio humano e
também sobre o mundo dos passos em falso no vazio do
céu de Umbertha.
A introdução chegou às mãos de Lampher Hvulac, o
grande poeta e editor umberthiano, porém não por causa
do brilhantismo e da força da prosa de Anatol ou da
importância da exposição (que não existia, pois estava
em princípio condenada a não ultrapassar os estreitos
limites da escola), mas porque casualmente a sobrinha
favorita do grande Hvulac aparecia muitas vezes em
segundo plano nas fotografias dos duelos de esgrima, e
fez chegar o livro ao seu amado tio, que ficou
assombrado e vivamente intrigado diante do talento
exibido por aquele desconhecido e modesto professor de
educação física que assinava a equilibrística introdução.
— Aqui, atrás destas linhas, se esconde um autor —
sinalizou Hvulac quando terminou de ler a introdução.
Disse isso com certo fanatismo e plenamente convencido
de que seu olfato jamais havia falhado, seu tremendo
olfato literário.
E pouco depois — para que o ouvissem todos os
hvulaquianos que o rodeavam naquele momento —
repetiu-o gritando, cada vez mais fanático pelas linhas
que havia lido e também por seu próprio faro.
— Aqui há um autor!
Pouco depois, todos seus seguidores estavam de
acordo que atrás daquelas frases sobre o equilíbrio e a
vara tinha de haver escondidas entre as prateleiras de
um escritório páginas secretas e deliciosamente
estrangeiras. Hvulac precisava descobrir, pois sabia que
mereceriam ser editadas em sua bela coleção de prosas
umberthianas.
Podemos imaginar o estado de ânimo de Anatol, que
em vão invocou sua condição de estrangeiro para que se
desinteressassem dele, em vão, pois o círculo de Hvulac
considerava que quarenta anos na ilha o haviam
convertido em um verdadeiro umberthiano.
De nada serviu que Anatol se defendesse, que negasse
a existência de outros escritos. Tudo foi inútil. Assediado
tenazmente pelo círculo de hvulaquianos, acabou
confessando que, como era aficionado pela literatura, em
certa ocasião tinha se atrevido a traduzir por sua conta
Infância em Berlim, de Walter Benjamin, e ofereceu como
fachada, para que não indagassem mais sobre seus
possíveis trabalhos literários, sua versão do livro para o
umberthiano, que assim começava: “Saber orientar-se
numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se
numa cidade, como alguém se perde numa floresta,
requer instrução”.
— Publicaremos essa tradução — disseram em coro
todos os hvulaquianos.
Curioso dilema! (raciocinava Anatol naquela mesma
noite, em companhia de sua mulher Yhma). “Há em mim
dois estímulos de uma mesma ambição honesta, do
mesmo desejo de mover as coisas, mas pudicamente,
para poder dizer a eles que na verdade utilizei a tradução
somente como fachada para não descobrirem que tenho
escritos sete romances terríveis sobre esta maldita ilha
de Umbertha. Por um lado, a íntima sensação de que no
fundo morro de vontade de que me leiam. Mas por outro,
e ainda mais forte, o pressentimento de que um eventual
destino de escritor possa conter não sei que sementes de
uma sinistra aventura. E além desse dilema, a impressão
ou talvez a certeza de que na clandestinidade minha
obra amadureceu mais e melhor do que se houvesse me
apressado a publicá-la; e também a impressão ou ainda a
certeza de que estou chegando à última etapa de uma
viagem na qual fui aprendendo lentamente o difícil
exercício de saber se perder no emaranhado mundo do
impresso.”
Nunca deixou que eu lesse seus papéis (disse Yhma), e
por isso sempre vivi sem saber sobre o que você
realmente escrevia. Mas devo dizer que sempre, está me
ouvindo?, sempre me perguntei qual deve ser a história
que se esconde sob todas as histórias que contou em
seus romances.
É triste (disse Anatol desviando-se da questão) mas
cada vez se glorifica menos a arte e mais o artista; cada
vez se prefere mais o artista à obra. É triste, acredite em
mim.
Mas não respondeu à minha pergunta (insistiu Yhma).
Qual é a história que você deve estar repetindo
continuamente em seus romances?
No fundo, muito no fundo (respondeu-lhe então Anatol
simulando uma confissão muito íntima e dolorosa), venho
repetindo sempre a história de alguém que, disfarçado
de forasteiro, jura morar em seu próprio país até que o
reconheçam.
Pois já o reconheceram (disse-lhe a mulher com um
sorriso que, para Anatol, pareceu de uma estupidez e
grosseria infinitas).
Vou me arriscar a subir na corda e correr os riscos do
equilibrista? Vou me arriscar a permitir a publicação do
meu primeiro romance? (perguntava-se Anatol no dia
seguinte, enquanto avançava com o manuscrito em
direção à editora de Hvulac). Se entregar o romance,
nunca mais vou poder recuperá-lo, vai pertencer ao
mundo. Devo entregá-lo? Hvulac não sabe que existe.
Nada me obriga a oferecê-lo. De repente, o poder das
palavras me parece exorbitante; sua responsabilidade,
insuportável. Vou me arriscar a subir na corda?
— Amigo Anatol — Hvulac lhe diria pouco depois ao
receber o manuscrito —, queria que soubesse que minha
experiência como autor reconhecido confirma seu
pressentimento de tratar-se de uma aventura realmente
sinistra. Entre outras coisas, porque o escritor que
consegue um nome e o impõe sabe muito bem existirem
outros homens que, até aquele momento, são puramente
escritores, e precisamente por isso não podem conseguir
um nome. Uma aventura realmente sinistra, mas o fato é
que não se pode deixar de vivê-la, acredite, não se pode
escapar de um destino semelhante.
— Mas é que a mim, amigo Hvulac, sempre me
horrorizou o sentimento de protagonismo. Sempre amei a
discrição, o anonimato em tristeza, a glória sem fama, a
grandeza sem brilho, a dignidade sem remuneração, o
prestígio próprio. Desde menino o mundo da escrita me
parecia precocemente apetecível e proibido relacionado,
em todo caso, com uma infração, com uma prática
furtiva. E além disso, amigo Hvulac, nas coisas que
escrevo suspeito uma operação de baixa luxúria, uma
espécie de interminável e falsificada fofoca sobre mim
mesmo. A quem poderia interessar algo semelhante?
— Fofoca sobre si mesmo? Por acaso o senhor também
é um equilibrista, como seu herói?
— Bem que gostaria. Mas nunca me atrevi a ser,
porque é um trabalho muito duro. Se você cai, merece a
mais convencional das orações fúnebres. E não deve
esperar nada além disso, porque o circo é assim,
convencional. E seu público é descortês. Durante os
movimentos mais perigosos, fecha os olhos. O público
fecha os olhos quando você está roçando a morte para
deslumbrá-lo! É um trabalho duro que nunca me atrevi a
praticar. Tenho fugido sempre do menor risco, e é por
isso, talvez, que nunca me decidi a publicar, a correr
esse perigo infinito de uma aventura literária que
pressentia poder conter não sei que sementes de uma
peripécia realmente sinistra. Publicar era e é, para mim,
algo assim como arriscar-se a dar um passo em falso no
vazio. Se eu algum dia visse publicado meu romance,
sofreria esse fato como uma afronta, me sentiria nu e
humilhado como se diante de uma comissão médica
militar.
— E no entanto o senhor não negará, amigo Anatol,
que acaba de me entregar seu romance para que o
publique. E mais, sabe perfeitamente que vou publicá-lo.
Em resposta, Anatol abaixou a cabeça, como se
estivesse confuso e envergonhado por suas manifestas
contradições. Mas na verdade se sentia intimamente
satisfeito por ter-se atrevido a dar aquele passo decisivo
sobre a corda bamba, sobre o arame circense da
literatura.
Depois, começou a perder-se. Imaginou-se num bosque
de pinhos e faias, numa paisagem chuvosa, rodeada de
esquilos que zombavam dele. O bosque era tenebroso, e
na madeira das árvores havia lendas gravadas em letra
impressa. Decidiu que tinha chegado a hora de retirar-se
prudentemente, a hora de desaparecer. Despediu-se de
Hvulac e voltou à rua, caminhando pensativo sob a
chuva de Umbertha. Ficou remoendo a ideia de que seu
romance já não podia ser recuperado, pois agora
pertencia ao mundo, que saberia, afinal, através de uma
voz estrangeira, da mesquinhez e da miséria moral que
reinavam na ilha de Umbertha.
Um sentimento de pânico o acompanhou até o portão
de sua casa. Tratava-se, porém, de um pânico fingido,
provocado artificialmente pelo próprio Anatol. Dispunha-
se a entrar em casa quando de repente golpeou
teatralmente a testa e simulou que tinha acabado de
lembrar que estava sem fumo. E então, enquanto
anoitecia, dirigiu seus passos ao café Asha, ali perto, em
cuja antessala (Anatol nunca foi além dessa antessala)
havia um luminoso quiosque com um velho cartaz onde
se lia: Tabaco e jornais. Essas duas palavras unidas lhe
produziam sempre uma imensa sensação de felicidade,
porque ler e fumar eram suas duas atividades favoritas,
e porque, além disso, aquela inscrição era como um sinal
confortável no deserto da cidade, pois indicava que ele
estava a dois passos de sua mulher, de seu cachimbo e
de seus livros, seu lar.
Contra seu mais elementar costume, Anatol se perdeu
no interior da antessala. Tabaco e jornais em riste,
abordou um garçom que lhe pareceu também andar
perdido por ali, e perguntou a ele que tipo de segredo
ocultavam atrás da porta do fundo do bar, e por que há
muito tempo ela permanecia misteriosamente fechada.
Anatol, que sabia perfeitamente que pela porta traseira
passava diariamente uma verdadeira multidão, escutou
com simulado interesse as explicações do garçom:
— Por essa porta passa cada dia mais gente do que
pela própria Via Vhico... Não vê que leva ao beco da
China?
— Não me diga — disse Anatol.
— Pois, digo — respondeu irritado o garçom, enquanto
o convidava a abandonar o local exatamente por aquela
porta.
Anatol saiu de boa vontade para o beco e pôs-se a
caminhar como se estivesse perdido. Andando em
deliberado zigue-zague sob a luz dos faróis, não fazia
mais que treinar como se perder para mais tarde poder
perder-se de verdade. E andando daquela forma, chegou
finalmente, depois de não poucas vacilações, ao
escritório de viagens marítimas que definhava junto à
lavanderia chinesa que dava nome ao beco. Ali, um
homem que parecia muito impaciente o saudou:
— Finalmente! Já era hora, senhor... Faz tempo que
deveria ter fechado. Achei que não viesse. Aqui está seu
bilhete, e boa sorte... Perdão, não consigo lembrar seu
nome, se bem que, se quer saber a verdade, sempre me
soou falso.
— Senhor Dom Ninguém — Anatol sorriu com imensa
felicidade. E depois de deixar seu olhar vagar pelas
estranhas pinturas de rebocadores balançando em águas
manchadas de óleo que, junto a um calendário exaltando
as férias na Europa, decoravam o poeirento escritório,
Anatol pagou, saiu assobiando uma habanera e se
perdeu na noite.
Uma hora depois, entrou no bar do porto. Continuava
fingindo estar perdido. Sabendo perfeitamente onde
estava, perguntou se ficava longe o cais da Europa.
Disseram-lhe que estava nele. Então pediu um café e
duas fichas, primeiro telefonou para Yhma.
— Não se preocupe com meu atraso — disse. — Desci
para comprar fumo.
— Mas como desceu se você não subiu em casa? Às
vezes não te entendo, Anatol.
— Já vai entender — disse, e desligou.
Depois, ligou para Hvulac.
— Inimigo Anatol — disse Hvulac, meio brincando, mas
também bastante sério —, o senhor é um verdadeiro
animal, permita-me que lhe fale assim. Estou lendo seu
romance, e nos deixa muito mal. Mas o que o senhor tem
contra nós? A verdade é que nunca imaginei que o
senhor fosse tão estrangeiro...
Houve uma longa pausa, na qual talvez Hvulac
estivesse esperando alguma justificativa séria por parte
de Anatol, mas este permaneceu em rigoroso silêncio.
— Mas enfim — prosseguiu Hvulac — não dá para
negar que se trata de um texto valioso, e nós somos
mais liberais do que o senhor acredita, portanto o
publicaremos. E mais, o senhor tem que assinar um
contrato de exclusividade comigo, quero me assegurar
dos direitos de seus próximos livros. Esqueça a pensão
com a qual achava que viveria depois de sua
aposentadoria, e alegre essa cara, homem, assine o
contrato de sua vida, e decida-se a ser feliz entre nós.
Por um momento, foi como se Anatol tivesse previsto
há muito tempo que Hvulac lhe falaria dessa forma,
porque respondeu num tom muito cerimonioso, como se
recitasse um papel aprendido de antemão:
— Vai encontrar a porta de minha casa aberta, amigo
Hvulac, minha mulher a abrirá com grande prazer; vai
encontrar todos os cômodos iluminados, e em um deles,
no que até o dia de hoje foi meu escritório, vai encontrar
a chave que abre o baú no qual descansa o resto de
minha obra secreta. O baú é seu. A ilha é bela. Em minha
escrivaninha, vai encontrar um documento que atesta
que o baú é seu e da ilha inteira.
Fez uma breve pausa, enquanto contemplava através
da janela a fileira de palmeiras e de bancos de pedra do
cais da Europa. E logo acrescentou, murmurando entre
dentes e com voz muito baixa e quase imperceptível:
— E que lhes sejam leves, porque lhes deixo seis
verdadeiras bombas-relógio.
— O que disse? Ainda está aí, Anatol?
— Sim, mas por pouco tempo. Porque o autor vai
embora. Deixo-lhes o baú, a única coisa que interessa.
Anatol desligou o telefone. Pensou: a obrigação do
autor é desaparecer. Tomou sem pressa o café, observou
que tinha parado de chover, e pouco depois se perdeu na
escuridão do cais da Europa. Pensou: há pessoas que
sempre ficam bem em outro lugar.
Ao meio-dia do dia seguinte, em alto-mar, o sol
esquentava com cada vez mais violência, o alcatrão
derretido escorria pelas paredes, o mar era azul, e a
água usada para lavar a ponte evaporava rapidamente
em direção ao céu também azul. O capitão apareceu
sobre o passadiço, molhou um dedo, e comentou que já o
imaginava, que a brisa estava descendente e que muito
em breve o vento poderia mudar de direção. Anatol,
ouvindo-o, blasfemou em uma longa e obscena frase
contendo cinco agás, que ele pronunciou tão
exageradamente aspirados quanto pôde, e depois sorriu.
O capitão repetiu sobre a direção do vento, e Anatol
então desceu, sem pressa, pela escada que conduzia à
única zona refrigerada do barco, e ali se perdeu.
As noites da Íris negra

Nada melhor a lei interna fez do que nos dar uma


entrada para a vida e muitas saídas.
Sêneca, Epístolas morais a Lucílio

Escuto as ondas enquanto sinto que toda a tarde cabe


em um olhar, em um só olhar de sossego. Mesmo que só
a morte me atraia, devo reconhecer que estou bem aqui,
em Port del Vent, tão perto da vida. Estou bem aqui, em
minha terra e junto ao mar, do qual nunca devia ter me
afastado tanto. O mar sempre me deu — escuto agora
seu rumor enquanto fumo esticado sobre a cama — a
sensação de ser algo assim como um corpo único, e isso
me tranquiliza. Gosto muito do mar. Estar perto do mar,
sobre o mar, pelo mar. Sinto diante dele uma sensação
de liberdade, provavelmente enganosa, mas que deve
ser levada em conta: a ilusão de viver.
Os últimos meses em Madri foram um inferno. E não só
por todo o drama do divórcio com a Marta, e a
consequente crise profunda. Não, não só por isso, mas
também pela amargura de estar longe do mar. Vivi num
estado quase permanente de claustrofobia, que só
conseguia vencer quando íamos jogar em estádios de
cidades portuárias. Só então me reencontrava comigo
mesmo, e inclusive jogava minhas melhores partidas.
Porque nasci junto ao mar, e preciso dele sempre ao meu
lado. Durante todos esses anos em Madri não fiz mais do
que sentir falta de lugarejos como este onde estou agora:
lugares em que é totalmente impossível marcar limites
precisos. Por isso estou bem aqui, neste povoado e nesta
agradável Pensão Iborra e nesta rua tão breve quanto
singular: rua de fachadas brancas que une, em seu
último trecho, duas avenidas convergentes, nesse lugar
do vilarejo cujos bares e restaurantes continuam
aproveitando, em suas listas de preços, o prestígio
póstumo da boêmia que noutros tempos frequentou Port
del Vent.
Viemos, Victoria e eu, a este canto da Costa Brava
porque ela queria conhecer o vilarejo onde seu
desconcertante pai — ao que parece, homem de notável
mau gênio e perturbado pela tramontana{2}, o vento de
sua infância — passou os últimos meses de sua vida
dedicado a explorar umas pequenas terras herdadas e a
memorizar — suponho que por puro capricho — a
escalação de times de futebol espanhóis da segunda ou
terceira divisão.
Victoria nunca chegou a conhecer o salafrário, pois
alguns meses antes que ela viesse ao mundo, na cidade
de Buenos Aires — o que em breve vai fazer vinte anos
—, uma grave disputa matrimonial e, sobretudo, um
último e definitivo ataque de mau gênio e de loucura
tramontanesca fizeram o pai empreender o caminho de
volta à Catalunha, deixando tudo, absolutamente tudo —
incluindo a esposa e os sete filhos bonaerenses — para
instalar-se em sua vila natal, Port del Vent, onde a poucos
meses de sua chegada, com todas as escalações da
segunda divisão do futebol espanhol decoradas, morreria
ao perder o equilíbrio no alto da igreja do povoado
quando atuava como figurante no último filme rodado
neste bairro que, no passado, foi escandalosamente
boêmio e do qual, na opinião do senhor Iborra, dono
desta pensão, resta apenas a memória do fracasso geral
de suas torturadas, belas e malditas noites.
Conheci Victoria no ano passado, quando cruzei o
Atlântico para jogar com a seleção no campo do River.
Veio ao hotel me entrevistar e, depois de eu me estender
sobre minhas inquietações intelectuais (“tão raras num
futebolista, eu sei”, repeti várias vezes), e também sobre
a minha iminente aposentadoria dos gramados, ela me
falou de seu pai catalão e da paixão dele por memorizar
a escalação de times sem expressão. Contou-me
também — e me pareceu bastante cômico, mas prendi o
riso, porque ela o disse com verdadeira tristeza — que o
texto da última carta que seu pai tinha enviado a Buenos
Aires era uma série de insultos dedicados a sua mulher,
seguidos de um extravagante P.S. no qual se limitava a
reproduzir a formação titular do Centro de Deportes
Sabadell da temporada 1957-58.
Desde o primeiro momento surgiu entre nós dois uma
corrente de mútua e sincera simpatia — o amor chegaria
mais tarde — que me levou de repente a acompanhá-la,
sem saber muito bem por quê, até a porta do hotel e,
uma vez ali, quando já estava apertando sua mão para
me despedir, me levou também a dar um beijo tímido na
sua bochecha, e pouco depois a escapar da concentração
da seleção nacional para acompanhá-la durante uns
minutos pelas ruas da Recoleta, entrando no cemitério
que dá nome ao bairro, onde baixamos o olhar e nos
demoramos, ao cair da tarde, entre as lentas fileiras de
túmulos.
A pausada fadiga das cores da tarde e a melancolia
própria da hora criaram um clima adequado para que
Victoria me contasse seu drama íntimo e cruel. Ninguém
teria dito, vendo-a ali ensombrecendo os túmulos com
sua soberba beleza e sua vitalidade, mas a verdade era
que lhe restavam muito poucos meses de vida; um tumor
cerebral havia se reproduzido várias vezes com uma
insistência fatal, e tudo parecia indicar que o fim estava
próximo.
Ao saber disso, mal soube o que dizer a Victoria, mas
notei que ela e aquela ameaça de morte que a
embelezava ainda mais ante meus olhos me atraíam
poderosamente, com essa força incomum e incontrolável
que faz com que, de uns tempos para cá, tudo que
pareça abrigar a morte me seduza de maneira
irremediável. E então pensei que isso talvez explicasse
minha estranha conduta, o fato de ter abandonado
daquela forma a concentração da seleção, como se
seduzido por tanta beleza e morte, e me precipitado para
a rua para acompanhar Victoria em seu caminho pelo
bairro da Recoleta.
Caminhamos em silêncio até sua casa e, ao chegar à
porta, mesmo que fosse muito difícil, tentei baixar a
tensão e brinquei sobre uma possível relação entre a sua
vontade de ser jornalista esportiva e a paixão de seu pai
por memorizar a escalação de times de futebol. Victoria
entendeu que devia rir e me dirigiu um belo e patético
sorriso de excepcional tristeza, e disse que não
voltaríamos a nos ver, nunca mais, mas que se a vida o
permitisse escreveria para meu endereço em Madri.
Não o fez nos meses que se seguiram, temi o pior, e fui
acalentando a ideia de que Victoria tinha sido uma visão
tão fugaz quanto irrecuperável. Mas quando menos
esperava, chegou uma carta. Quando o passeio pela
Recoleta já se tornara uma lembrança longínqua — da
qual sobrevivia, no entanto, a impressão ainda muito
forte que me havia causado a deslumbrante luz austral
que acompanhou nosso trajeto de conversa triste no
cemitério — chegou a Madri, às vésperas do meu jogo de
homenagem e despedida do futebol, uma carta de
Victoria, na qual me dizia continuar viva, ainda que mais
desenganada do que nunca: “Parece que me resta
apenas um par de meses, de modo que decidi viajar para
o país do meu pai, e vou sozinha. Minha família e a
compaixão que desperto neles me agoniam, e consegui
que me deixem ficar sozinha uma semana na Espanha.
Poderemos nos ver?”. E depois, após uma série de
comentários irônicos sobre o mundo do futebol,
terminava dizendo: “Finalmente, uma pergunta. Lembro
que quando caminhamos aquelas poucas quadras juntos
em Buenos Aires você me contou uma história, não sei se
se referindo a você mesmo ou a um amigo, a história de
alguém que não podia comer... Ele não podia comer — ou
você não podia — a não ser quando alguém (outro
amigo? você?) o cobria...? Cobria o quê? A cabeça? O
rabo? As asas?”.
Fascinou-me que chegasse de tão longe uma pergunta
assim. Respondi explicando que era um problema que eu
tinha, desde a infância, com os peixes, por conta do
horror que me causavam, e ainda me causam, os
inexpressivos e extraviados olhares que se podem ver
nos peixes arrebatados do mar. No P.S. acrescentava:
“Vou com prazer buscá-la no aeroporto às oito e dez da
manhã de sete de julho, pois é muito, muito grande a
vontade que tenho de vê-la e, além disso, se quiser,
posso acompanhá-la para conhecer o vilarejo de seu
pai”.
Era verdade, tinha imensa vontade de vê-la, talvez
porque intuísse que podia me ajudar a esquecer por uns
dias alguns de meus problemas (a separação de Marta,
os negócios que iam mal, a saída infeliz do futebol) e
porque, além disso, aquela carta de estilo tão direto e
ingênuo e, sobretudo, a extrema inocência da pergunta
final eram o presságio de algo bom e alentador, mesmo
que também fosse certo que a pergunta tivesse um
duplo sentido, porque era de fato uma pergunta
inocente, mas também precisamente por isso
extremamente perigosa, por revelar que Victoria se
interessava por mim, e isso tornava a pergunta tão
grande quanto um touro alado: uma pergunta com pés e
cabeça, asas e rabo, e orelhas para serem cortadas, ou
seja, algo muito parecido com o amor, que é no fundo
também uma grande pergunta, e algo tão direto e
ingênuo quanto extremamente perigoso.
Portanto, quando Victoria pisou em Barajas, eu já sabia
que aquilo podia se tornar uma história de amor tão
grande quanto um touro alado. E assim foi, e aqui
estamos agora, em Port del Vent. Chegamos ontem de
madrugada, e nos hospedamos nesta agradável Pensão
Iborra, em cujo quarto agora me espreguiço enquanto
fumo e penso esticado sobre a cama e conto para mim
mesmo as coisas que me acontecem.
Hoje ao meio-dia o senhor Iborra nos convidou para
comer e nos ofereceu um besugo, uma espécie de peixe,
que precisou ter a cabeça coberta, mas que, fora isso,
estava excelente. Depois, na longa e prazerosa
sobremesa, me pediu um autógrafo para seu sobrinho e
se interessou por essa ligeira contusão que, um mês
antes do previsto, me retirou dos gramados. Contei a ele
que era uma contusão para toda a vida, ele me disse que
sentia bastante, o que não acredito muito, porque logo
se esqueceu de minha pequena desgraça e passou a
falar de outras coisas. Ofereceu-se para nos acompanhar
e nos guiar à tarde pelo cemitério. Disse que conheceu
bem o pai de Victoria, ainda que na verdade pareça o
contrário, pois até agora se mostrou muito moderado e
cauteloso na hora de falar dele.
— Jogávamos bocha — foi tudo o que se dignou a nos
dizer até agora.

Espero que tenhamos mais sorte esta tarde. Mas


duvido, não sei por quê. Na verdade, também não
entendo por que se mostra tão interessado em nos
acompanhar ao cemitério. Ainda que seja um homem
educado e amável, às vezes se comporta de um jeito um
pouco estranho. Por exemplo, quando Victoria quer saber
coisas de seu pai. Então, ele se mantém firme, como se
na verdade não houvesse conhecido o pai dela ou talvez,
ao contrário, o tivesse conhecido demais e tivesse algo a
esconder. Não sei. Sua conduta não me parece muito
normal. Além disso, chama-se Catão. Disse que seus pais
amavam a Antiguidade clássica, daí o nome. Não sei,
mas não consigo confiar nele. A história da bocha, por
exemplo, não está clara. Enfim, por mais amável e
educado que seja, não sei se se deve confiar em alguém
chamado Catão. Não sei.
Há na atitude de Victoria perante a morte uma
profunda e admirável serenidade, como se suspeitasse
de que o mais importante, talvez a única coisa que
realmente conte na vida, fosse preparar-se para morrer
com dignidade. Desde que chegamos a Port del Vent, e
sobretudo desde que visitamos o cemitério, essa atitude
de Victoria ficou ainda mais forte, talvez porque aqui ela
se sinta ajudada pela presença dessas ondas serenas e
desse mar Mediterrâneo, cenário de antigas proezas, o
mar dos clássicos.
Pensava nisso quando, há pouco, ao cair da tarde,
passeávamos entre as tumbas e as esculturas, lendo
distraidamente as inscrições de algumas lápides e
olhando em silêncio as datas fatais e as flores
maltratadas sobre os mármores que, de um lado e de
outro da avenida central asfaltada, descendo em direção
ao vilarejo e ao mar, dividem em dois o campo-santo.
— Coreografia da destruição — comentou
pomposamente Catão, dando uma de poeta ou erudito
ou sei lá o quê.
Paramos diante da tumba de alguém que nunca saiu de
Port del Vent, nem sequer para ir até o vilarejo ao lado. E
lemos o epitáfio que celebra o amor ao seu lugar natal e
sua absoluta falta de vontade de abandoná-lo: “Convém
aos felizes ficar em casa”.
Depois, chamou nossa atenção a tumba de Bonet, um
homem simples, um pescador humilde do vilarejo. Seu
epitáfio está em inglês, e Catão, que se mostrou
incomodado por nos determos nessa tumba, o traduziu
assim: “Não feche o caminho da liberdade. Se lhe apraz,
viva; se não lhe apraz, está perfeitamente autorizado a
voltar para o lugar de onde veio”.
Nem Victoria nem eu sabemos inglês. Perguntamos —
incrédulos — se o epitáfio de um simples pescador de
Port del Vent realmente dizia isso.
— Sim — disse Catão —, não fui eu que inventei. O
amigo Bonet pôs em inglês para evitar qualquer
complicação com o padre.
— Não me surpreende — disse eu — porque se não me
engano essas frases justificam o suicídio, não?
— Sim, mas ninguém se deu conta aqui no vilarejo —
disse Catão. — Levando em consideração que as frases
estão em inglês e que aqui as pessoas não leem nada,
nem um jornal e muito menos um epitáfio numa
sepultura, passaram sempre despercebidas. Bom, agora
que me lembro, o padre se interessou, um dia, em saber
o que queriam dizer essas frases. Pediu para mim que as
traduzisse, e eu respondi que eram um elogio da vida na
Grã-Bretanha, e o homem ficou muito pensativo, sem
entender nada, suponho que se perguntando o que
poderia ter perdido o amigo Bonet por terras tão
longínquas.
— Não tão longínquas — disse Victoria.
— Para Bonet eram. Para ele, tudo o que estava fora do
Mediterrâneo eram brumas estranhas e dragões
cuspindo fogo em covas selvagens de países bárbaros
que se encontravam nos confins do mundo. Para Bonet
só existia esse mar. Vocês gostariam de tê-lo conhecido.
Era um homem de caráter, um tipo que já não existe
mais, porque hoje em dia os pescadores deste vilarejo
são todos uma calamidade, gente que só vê televisão,
não sei, tudo mudou muito.
Em seguida, mostrou-nos a cova de um oriental, um
japonês muito querido no vilarejo, um apaixonado por
Port del Vent e, muito especialmente, por uma escultura
de Llimona, que representa uma mulher ajoelhada
chorando, e cujo pé esquerdo descalço era para o
japonês um pé tão perfeito e insuperável que pediu que
ao morrer fosse enterrado em uma cova de onde
pudesse contemplar, durante toda a eternidade, o
magnífico pé.
— Podem ver que respeitaram sua última vontade —
disse Catão.
De fato. Vimos a escultura e o pé insuperável (coberto,
em deferência ao repouso eterno do japonês, com um
plástico, para a água não o deteriorar quando chovesse),
e em frente a ele o olhar eternamente agradecido e
escrutador que se adivinha no túmulo nipônico.
Seguimos caminhando e chegamos ao colossal túmulo
da família Miró, onde está enterrada a infeliz Maria, a
menina que morreu de amor. Seu pai lhe havia proibido
se casar com um jovem a quem faltava posição social e
econômica. Em vista disso, o jovem viajou para a
América para fazer fortuna e, enquanto a ia fazendo,
enviava cartas de amor de Punta del Este, cartas que
nunca chegavam a seu destino, porque o pai as
interceptava e destruía. O dia em que o jovem, dono já
de uma sólida fortuna, regressou a Port del Vent, o fez
convencido de que ela, tal como lhe havia prometido ao
partir, o esperava para casar. As salvas que do barco do
indiano{3} anunciavam as bodas se confundiram com os
sinos da igreja anunciando a morte, pois naquele mesmo
dia a infeliz Maria, acreditando-se esquecida, tinha
morrido de irremediável tristeza de amor.
— E agora me sigam — disse Catão — porque vão ver a
tumba de Sabdell, o poeta de Port del Vent. Trata-se,
devo adverti-los, de uma sepultura muito especial, pois
nela não há ninguém enterrado. Foi financiada por
Sabdell com suas poucas economias, mas ele não jaz
nem aí nem em parte alguma. Numa noite de
tempestade, foi visto desaparecendo no mar, e seu corpo
jamais foi encontrado.
Como se o poeta Sabdell conhecesse de antemão seu
destino, há na tumba vazia uma singular inscrição que
ele mandou gravar alguns meses antes de sua morte:
“Joan Sabdell. Nos dias ímpares, a vida o sufocava muito.
Nos dias pares, a vida lhe parecia um punhal sem lâmina
a que faltava um cabo”.
— Como podem ver — comentou Catão —, a vida não
significava nada para ele.
Victoria riu e disse que achava o cemitério realmente
animado. Ao dizer isso, ficou tímida. Porque, ao deixar
para trás a tumba vazia, começamos eu e ela a nos
interessar por um homem de cabelo curto e grisalho e
cara muito sulcada e aspecto de pássaro. Era um homem
que mancava ligeiramente — como eu — do pé
esquerdo, e que vinha nos seguindo fazia já algum
tempo, farejando todos os lugares e tumbas que íamos
deixando para trás.
— Quem é? — perguntamos.
— Uli — foi a tensa e seca resposta de Catão.
Como se tivesse nos ouvido, Uli se escondeu atrás de
outra escultura de Llimona, mas pouco depois
reapareceu e nos encontramos de frente, ele avançando
como alma penada e nos olhando fixa e
aborrecidamente. Ao passar ao nosso lado, nos sussurrou
ao ouvido com grande parcimônia e quase se deleitando
com as palavras:
— Morreu com dignidade. Sua sombra voa.
Em voz baixa, perguntamos a Catão se se tratava de
um louco ou de um piadista que pretendia se fazer
passar por um fantasma.
— Bom, vocês já vão ver — disse Catão um tanto
alterado e profundamente incomodado. — Trata-se de
meu irmão mais velho, Uli. Fica bastante inquieto a esta
hora, quando pressente que vão fechar o cemitério.
Fez esse comentário em voz alta, para que seu irmão
pudesse ouvi-lo.
— Não é verdade, Uli? — disse.
— Mentira — respondeu Uli com certa solenidade. —
Absoluta e risível mentira. Eis você outra vez tentando
fazer as pessoas acreditarem que sou demente... Você
me cansa, Catão.
— Verdade e mentira — disse Catão enigmaticamente.
— Voltamos ao velho ponto, Uli, a mesma e eterna
discussão entre nós. Verdade e mentira... Mas digo que a
verdade é que você fica muito nervoso quando pressente
que vão fechar o cemitério. E também digo que mentira
é tudo o que você costuma contar às pessoas. Mentira
são todas essas histórias com as quais você gosta de
assustar os visitantes deste lugar. E não vou permitir que
faça isso com meus amigos. Logo, você já está indo
embora...
— Você é um cínico lamentável — respondeu-lhe Uli. —
Sabe muito bem que sou o porteiro deste lugar —
titubeou —, deste lugar sagrado. Não me apresente,
portanto, como um louco.
Dito isso, Uli tentou aproximar-se mais de nós, mas seu
irmão o impediu energicamente.
— Quem foi seu pai, senhorita? — disse Uli safando-se
por um momento dos empurrões de seu irmão. — Se não
me engano, a senhorita é argentina, e seu pai poderia
ser...
Victoria se preparava para responder quando Catão a
impediu, colocando-se diante dela e quase a tapando
com seu corpo.
— Vai nos deixar em paz, maldito Uli? Ouça o que estou
dizendo, não vou mais repetir. Fora. Fora daqui, fora! —
disse levantando o punho, e o imaginei capaz de golpear
seu irmão. Este, diante do rumo que a coisa tomava,
optou por bater em retirada, e o fez exagerando um
pouco ao mancar.
— Uli conheceu meu pai? — perguntou Victoria, uma
vez já superado o estranho incidente.
— Bem, é possível. Não sei, sei lá. Mas devo avisar que
se ele contar alguma coisa, não devem acreditar numa
só palavra. Ele inventa tudo, pois não está nada bem da
cabeça. Pensa que é o porteiro e o guardião do cemitério,
e com isso acredito dizer tudo. Está louco.
— E que tipo de nome é Uli? — perguntei.
— Ulisses — disse Catão. — E uma irmã nossa, que já
morreu, se chamava Medeia. Nossos pais levaram muito
longe, como podem ver, seu amor pela Antiguidade
Clássica.
Baixou lentamente a cabeça e ficou pensativo, e logo
lamentou que seus pais não tivessem posto um nome
mais adequado em Uli.
— Os nomes marcam muito a vida das pessoas —
refletiu em voz alta. — Aquiles ou Diomedes lhe cairia
muito melhor do que Uli. Teria lhe inculcado um espírito
pretensioso, orgulhoso. Mas não. Tiveram que lhe dar o
nome de Ulisses, e acredito que isso, ao longo do tempo,
fez muito mal a ele.
Perguntamos a ele por que, mas se calou firmemente,
como quando lhe perguntamos pelo pai de Victoria.
Depois, seguimos vendo tumbas, todas de pouco
interesse e nula inspiração nos epitáfios. Até que
chegamos à de Norberto Durán.
— Foi o melhor médico que tivemos aqui — nos disse
Catão —, um homem excepcional e, além disso, uma
figura-chave em todo esse mundo boêmio nos anos de
esplendor de Port del Vent.
A tumba é muito sóbria e elegante. “Mármore de
Carrara”, disse Catão muito satisfeito. E o epitáfio está à
altura dos melhores do lugar: “Nunca é tão saborosa a
fruta como quando está passada; o maior encanto da
infância se encontra no momento em que termina”.
Gravadas na cruz de ferro um tanto oxidada que se
destaca na tumba, há umas iniciais que anteriormente eu
já tinha visto nas lápides do poeta Sabdell e do pescador
Bonet: M.C.D.S.S.V. Perguntei o que significavam, mas
Catão não soube o que dizer, e saiu-se com a evasiva de
uma piada fácil, o que me fez suspeitar de que pudesse
estar escondendo algo. Como futebolista, sempre fui
muito intuitivo, me adiantava uns décimos de segundo
nas jogadas que adivinhava no time adversário. Essa
tarde, no cemitério, acreditei intuir que, por algum
motivo que me escapava, Catão podia estar ensaiando
uma jogada que consistia em demorar-se em todas as
tumbas com a ideia de que fosse diminuindo a
intensidade da luz, e só então levar-nos à tumba do pai
de Victoria, onde podia haver alguma coisa que não
julgasse conveniente vermos com excessiva claridade.
Isso talvez tenha influído no que vi ou achei que vi ao
chegar ao lugar onde repousam os restos de seu pai.
Uma tumba que nos impressionou por seu radical
despojamento. Nenhuma inscrição. Somente o símbolo
da cruz. Nem sequer um nome. Nada de nada. Tem de
haver algo mais, disse a mim mesmo.
— Que estranho — comentou Victoria. — Tem certeza
que esta é a tumba? Por que seu nome não está na
lápide?
— Seu pai queria que fosse assim. O símbolo da cruz e
nada mais — disse Catão.
Tem de haver algo mais, continuei pensando, talvez
influenciado pela intuição de que Catão tentava esconder
alguma coisa. O que me levou a notar que havia, sim,
uma inscrição — anômala e quase imperceptível, mas
afinal uma inscrição — na tumba. Não era perceptível à
primeira vista, mas estava ali para quem quisesse ver.
No extremo inferior esquerdo do mármore, alguém tinha
gravado com um objeto pontiagudo uma espécie de
desenho de um cajado, ou talvez de uma flecha, que
apontava em direção à base de pedra da sepultura, onde
com o mesmo buril haviam sido marcadas seis pequenas
e quase imperceptíveis maiúsculas: M.C.D.S.S.V.
Perguntei-me se devia dar ou não importância a isso.
Victoria não havia visto nada, e preferi manter silêncio.
Catão, entretanto, começou a mostrar-se inquieto ante a
proximidade de uma sineta que avisava o momento de
fechar o campo-santo.
— Acho que deveríamos ir — sugeriu Catão, enquanto
Victoria lançava um ramo de rosas sobre a lápide
desfigurada. Tomamos a direção da saída. Uma vez lá
fora, vimos uma tumba solitária junto a um cipreste não
menos solitário. Uma sepultura extramuros.
— E aquela tumba? — perguntamos.
— Ali descansa Eceiza, o ateu do povoado — apressou-
se em dizer Catão. — O padre se negou a enterrá-lo no
campo-santo, e aí está ele, feliz na liberdade do campo
aberto.
E depois de uma breve pausa, como se se sentisse
obrigado a nos contar algo mais sobre o ateu, disse:
— Muita gente do povoado foi ao seu enterro, quase
uma multidão, porque deixou seu administrador
encarregado de pagar mil pesetas da época a todos que
o acompanhassem à sua última morada. Foi uma grande
manifestação popular, seu último grande triunfo sobre o
padre. Ainda mais levando em conta as circunstâncias de
sua morte.
Victoria perguntou do que morreu, e o rosto de Catão
pareceu sombrio por uns instantes.
— A vida o matou — disse. — Aproximou-se dela, de
seu segredo mais profundo, e ela o matou. Para mim, é
simples assim. Não há outra explicação. Eu havia
escutado ele dizer que um revólver era algo sólido,
porque era de aço, não de cristal como a vida. Dizia
também que um revólver era um objeto. E dois dias
antes que fosse pelo ar a parte superior de seu crânio,
me disse que não ia demorar muito para tropeçar com
esse objeto.
Dito isto — o que, aliás, não entendemos muito bem —
tentou fazer com que nos esquecêssemos da tumba e,
dando uma volta ao redor de si mesmo, começou a
descer, fazendo com que o seguíssemos, pela inclinação
que há em frente à entrada do cemitério. Mas Victoria,
como se estivesse atraída subitamente pela tumba
extramuros, se dirigiu até a insólita sepultura do ateu. E
eu, movido pelo recém-adquirido costume de fuxicar
todas as tumbas e ler todos os epitáfios, a segui.
Paramos diante de outra sepultura de radical
despojamento. Nem o nome nem o sobrenome do ateu.
Tampouco, claro, o símbolo da cruz. Somente uma
inscrição, seis iniciais gravadas com esmerada caligrafia
sobre a pedra: M.C.D.S.S.V.
Victoria me ofereceu um cigarro.
— Quer?
Soprou uma brisa fria e eu levantei a gola de minha
camisa.
— O que são essas letras? — perguntou Victoria. — O
que você acha?
— Morreu com dignidade. Sua sombra voa — disse
cerimoniosamente uma voz a nossas costas.
Ao nos virarmos, deparamos com Uli que, apoiando-se
em um cajado, sorria enquanto agitava o sino de
fechamento do campo-santo.
— É o que significam essas letras — continuou nos
dizendo. — Todos souberam morrer com dignidade,
menos Catão e eu.
Ao ver que Catão estava voltando apressadamente
sobre seus passos, disse com palavras atropeladas e, em
todo caso, enigmáticas:
— Das velhas noites da íris negra, quando o olhar vê
tudo mais negro e mais escuro que a própria noite,
somente ficamos Catão, eu e a vergonha de
continuarmos vivos, a vergonha de não termos tido a
coragem de tirar a própria vida.
Ao ver que Catão estava já em cima de nós, levantou
com ira o cajado, como se se preparasse para um novo
episódio do combate fratricida, mas afinal preferiu dirigir-
se até a cancela do portão do cemitério, fechando-a com
um cadeado e confirmando que não estava tão louco
quando dizia ser o porteiro.
Passou um avião que voava muito baixo, e eu
acompanhei seu voo. O ruído dos motores quase nos
deixou surdos, e foi sob esse ruído ensurdecedor que
Catão me gritou ao ouvido que era preciso, e urgente,
que falasse comigo a sós, e marcamos no Clube Náutico
às cinco da tarde do dia seguinte.
— Vá sozinho, por favor — me disse —, não leve a
Victoria. É melhor poupá-la do que me vejo obrigado a
contar a você.
Fiquei imaginando que pilotava esse avião e que o sol
invadia a cabine e que eu ficava olhando o espaço
imóvel, a luz. Depois, aterrissei. Muito longe. O sol
acabava de esconder-se atrás das colinas que protegem
Port del Vent, e a luz, em uns segundos, se transformou
por completo. Pareceu-me ver Uli, na última contraluz da
tarde, agitando com ira eterna seu cajado.

Esta manhã, ao despertar, Victoria me disse ter


sonhado que caminhávamos pela Calle Florida, em
Buenos Aires, e que diante de nós se estendia a Plaza
San Martin, que nos negávamos a atravessar, o que
finalmente fizemos quando um vento frio vindo de longe
nos atingiu. A praça quase flutuava no ar, e lá longe, nos
confins azulados da água, da névoa e do céu
esbranquiçado, via-se subir a fumaça que saía dos barcos
jazendo inertes no rio da Prata.
— Não é um sonho premonitório — me disse —, porque
eu não penso em voltar nem morta para a Argentina.
Jamais voltaremos a estar juntos nas ruas de Buenos
Aires. Eu fico aqui, em Port del Vent. Grudada, junto a
você.
Fez um desses gestos mediante os quais uma pessoa
manifesta, sem se dar conta, uma graça que não sabe
que tem. No caso de Victoria, a graça da morte. E à
atração que tenho por ela se juntou a que sinto por este
lugarejo e por esse mar, e desde esse momento Victoria
e Port del Vent compõem uma única figura que se perde
não muito longe desta paisagem de beleza e morte, não
muito longe da linha de meu próprio horizonte.

Agora há pouco, enquanto acabávamos de devorar


outro excelente besugo, Victoria me disse que ia me
mostrar a última carta que seu pai enviou a Buenos
Aires.
— Que carta? — perguntei. — A que tinha um P.S. com
a escalação do Sabadell?
— A própria, só que não é uma escalação. Estive
relendo essa mensagem final, e me pareceu que pode se
tratar de um acróstico.
Perguntei o que era um acróstico, e Victoria me
explicou. Depois, passou a me contar que, pouco antes
de partir de Buenos Aires, roubou a carta de sua mãe e
em seguida percebeu que ali não havia a escalação do
Sabadell.
— A carta — continuou dizendo Victoria — foi escrita no
hall do Hotel Port del Vent. E eu saí de Buenos Aires com
a ideia de ler pela última vez a carta de meu pai no
mesmo lugar em que ele a escreveu. Essa será minha
despedida de meu pobre papai. Ele jamais poderia
imaginar que sua cruel carta regressaria ao ponto de
partida.
Passou-me uma folha de papel quadriculado na qual,
depois de uma série de insultos (“Deste maravilhoso hall
do Hotel Port del Vent escrevo para dizer que você é uma
bruxa velha...”), há um P.S. que absolutamente não
contém a escalação de time nenhum, pois onde se
supunha que o pai tinha escrito Sabadell, na verdade
está Sabdell, ou seja, o sobrenome do poeta de Port del
Vent. E são oito, unicamente, os sobrenomes que se
seguem. Não há, portanto, time de futebol possível. Sem
dúvida, a família de Victoria leu mal a carta na época. Na
folha de papel quadriculado, depois dos inúmeros
insultos, pode-se ler: Sabdell, Uribe, Iborras, Candi,
Itotorica, Durán, Amoral, Tonet, Eceiza.
— Está tudo muito claro — brinquei um pouco nervoso.
— Tonet é Bonet. Durán é Durán. E os Iborra são dois,
isso está ainda mais claro. Mas, além disso, não entendo
nada. Alguns estão no cemitério e “morreram com
dignidade, sua sombra voa”. Há um ateu que se chama
Eceiza, que dorme ao relento, mas fora isso não sei mais
o que dizer, diga-me você.
— Mais besugo? — perguntou Victoria.
Disse que não, que já tinha o bastante.
— Lembra do nosso passeio pelo cemitério da
Recoleta? — me perguntou com seu mais sereno sorriso.
— E como não vou lembrar? — disse-lhe, enquanto
retirava a folha de papel laminado que cobria a cabeça
do besugo, como se desse o primeiro passo para que
meus olhos começassem a parecer com o que eu mais
temia e, ao mesmo tempo, tanto me atraía: os olhos
desses peixes de olhar inexpressivo e extraviado.
— Do que temos que preservar a Victoria? — perguntei
a Catão olhando-o por cima de minha xícara de chá.
— Da verdade — se apressou em responder.
O garçom do Clube Náutico se retirou inclinando a
cabeça e fiquei pensando se o gesto de respeito era
dirigido a nós ou à verdade.
— A primeira coisa que você tem que saber — disse
Catão — é que o pai de Victoria, que foi meu grande
amigo, se atirou no vazio. Não vejo necessidade de que
Victoria o saiba. É uma mulher muito frágil e sensível,
sensível como seu pai. Eu gostava muito dele, e para sua
filha só desejo o melhor. Se os acompanhei ao cemitério,
foi para evitar que meu irmão, o Uli, contasse a vocês a
versão alterada desse suicídio. Achei melhor manter meu
irmão dentro dos limites, preservar a Victoria do duro
transe de conhecer a verdade sobre a morte do pai e,
sobretudo, de conhecê-la de maneira brusca e pouco fiel
aos fatos. Porque o que Uli conta é pura demência. Ele foi
muito afetado por certos fatos hoje já perdidos na noite
dos tempos. Foi afetado a ponto de não poder levantar a
cabeça desde então. Vive atormentado, por não ter sido
capaz de morrer como fizeram seus melhores amigos.
Para não ser contrariado, deixamos que acredite ser o
porteiro do cemitério, inclusive tem as chaves para
fechar a grade da entrada. De vez em quando, eu o
lembro de que não é o porteiro, tento fazer com que
volte à realidade. Mas não tem jeito. Ele quer se ver
como o guardião das almas dos que foram seus amigos;
ele quer estar sempre perto daqueles que acredita, de
certo modo, haver traído. É uma velha história...
Fez uma breve pausa para contemplar o mar, e logo
tirou do bolso da jaqueta uns papéis velhos.
— Você perguntou do que preservar a Victoria. Pois
bem, em primeiro lugar, e tal como lhe disse, da versão
enlouquecida do Uli uma visão histérica e mentirosa,
carregada de profundo remorso por não ter tirado a
própria vida na hora certa. Mas também se deve poupá-
la de coisas como este velho documento, por exemplo.
Entregou-me umas folhas amareladas costuradas com
linha branca, nas quais tinha sido escrito em tinta
vermelha este cabeçalho: “Relatório confidencial sobre o
aroma suicida, sereno e clássico, que envolveu a
desaparição do 3”.
— Basta ler os primeiros parágrafos — disse —, e já
terá uma ideia de para onde vão as coisas.
— E da incumbência de todos os sócios... — comecei a
ler em voz alta.
— Não — me interrompeu Catão com olhar assustado.
— Por favor, mais baixo, um pouco mais baixo, por favor.
— É da incumbência — li em voz mais baixa, quase
sussurrante — de todos os sócios de nossa entidade
saber que quando a carta do número 3 dos Notáveis
chegou à sede central desta Sociedade de Simpatizantes
da Noite da Íris Negra de Port del Vent, que tenho a
grande honra de copresidir, não tardamos em nos reunir,
os Notáveis restantes, para ver o que faríamos a fim de
satisfazer plenamente, e com a maior prontidão possível,
os desejos desse amigo que, antes de tornar-se o
assassino de si mesmo, desejava que seus íntimos
acudíssemos a visitar sua casa e, falando toda a noite de
filosofia, o acompanhássemos nas horas anteriores à
desse gesto valente e final com que desejava ser fiel à
máxima de nossa Sociedade, ou seja, desaparecer digna
e serenamente depois de uma grande festa do espírito e
de uma vibrante homenagem à amizade e ao amor à
filosofia, à maneira de um Catão ou de um Sêneca, cujas
mortes são, ainda em nossos dias, o mais perfeito
exemplo e modelo do suicídio clássico e sereno,
profundamente mediterrâneo...
— O que se segue — interrompeu-me Catão — é uma
longa crônica da festiva reunião dos Notáveis na casa do
pai de Victoria, que, como você pode imaginar, era esse
número 3 de que fala o documento. Ele foi o primeiro da
Sociedade da Noite da Íris Negra a definir os limites de
sua existência e também a decidir que já tinha tido
bastante deste mundo. Precisamente ele, que nos
acalmava quando começava a nos rondar a ideia de tirar
a própria vida. “Não tenham pressa”, costumava dizer,
“sem a possibilidade do suicídio eu já teria me matado
há muito tempo... O suicídio é um ato afirmativo, vocês
podem cometê-lo quando quiserem. Por que a pressa?
Acalmem-se. O que torna a vida suportável é a ideia de
que podemos escolher quando abandoná-la.” E, afinal,
haveria de ser ele precisamente o primeiro a se cansar
deste mundo. Um dia, nos chamou e comunicou que já
tivera o bastante com o que havia vivido, e que desejava
pôr um ponto final em tudo na companhia de seus
amigos.
— Não me parece que isso fizesse honra à regra mais
elementar da sociedade — eu disse.
— O que você quer dizer?
— Saltar no vazio não é um ato exatamente sereno.
— Mas é — Catão foi categórico. — Pelo menos, no seu
caso foi. Escolheu saltar do campanário, porque, afirmou,
isso continha uma espécie de rebelião em relação à
condição humana, privada da possibilidade do voo. Disse
que era um gesto maravilhoso se atirar no vazio, porque
se estendia ao espaço, às grandes dimensões, ao
horizonte. Uma forma nobre de morte, que podia ser
executada com serenidade depois de uma vigília
reflexiva com os amigos. Foi o que ele disse.
Não soube o que dizer. Fiquei olhando o mar enquanto
Catão refletia.
— Nos convocou a sua casa — prosseguiu depois de
alguns segundos. — A vigília foi inesquecível, e muito
alegre, pois a serenidade — me olhou fixamente nos
olhos, e quase me deu medo — não é avessa à alegria.
Eis aí, se interessar, uma detalhada, talvez
excessivamente minuciosa, descrição do que foi essa
noite, em que se bebeu, em lentos e prudentes goles,
uma suave aguardente de maçã até o amanhecer. Falou-
se da vida e da morte, falou-se de tudo. Depois, com as
primeiras luzes da aurora, ele se despediu de nós e,
vestindo-se de monge, se dirigiu sozinho à praça do
vilarejo para se fazer de figurante desse último filme
passado em Port del Vent. Uma vez no alto da igreja,
fingiu que tropeçava em um andaime, e voou. Voou e
voou. Atirou-se no vazio eterno. E seu grande voo fechou
aquela primeira grande noite da Íris Negra, a primeira de
uma série de vigílias que acabavam todas com o suicídio
de algum de nós como arremate. Lembro muito
especialmente da noite em que Bonet se matou, o amigo
Bonet. Levantou sua taça e, ao brindar conosco, disse
duas frases que não duvidamos em adotar como lema:
“Morreu com dignidade. Sua sombra voa”. Ainda hoje,
dizer isso me comove, porque me traz a lembrança de
noites que não voltarão.
— As noites da Íris Negra — eu disse sentindo-me já
quase cúmplice de Catão. Acho que ele o notou, porque
prosseguiu com ainda mais força nas palavras:
— Aconteceu que Durán, o médico, se especializou em
maquiar as mortes; conseguia veneno para quem lhe
pedisse, e ele mesmo o injetava. Depois, atestava as
mortes falando de colapsos respiratórios, enfartes e
outras coisas do tipo. Assim, ninguém no vilarejo
suspeitava da existência da nossa sociedade, ainda que
tenha surgido uma superstição entre as mulheres de Port
del Vent, a de que os homens do povoado costumavam
morrer quando se reuniam com os amigos. Ainda hoje há
vestígios dessa superstição...
— E como se extinguiu a sociedade? — perguntei.
— Paradoxalmente, por morte natural... Um suicídio a
cada dois anos acabou reduzindo a sociedade a sua
mínima expressão. E isso porque Durán imitava o pai de
Victoria e nos dizia com frequência para nos acalmar,
que o importante era saber que o suicídio era a única
liberdade autêntica que temos na vida. Mas um dia,
Durán entendeu que também para ele tinha chegado a
hora. Começou a ficar cego, e nos mandou uma carta
com um texto curtíssimo: “Estou ficando cego. Vou me
matar”. Prestou homenagem ao primeiro suicídio da Íris
Negra e se lançou ao vazio do alto da igreja. Depois da
sua morte, só restamos três, unicamente três membros
da sociedade. Eceiza, meu irmão Uli e eu. No dia
seguinte, Eceiza foi se confessar com o padre do
povoado e, enquanto o fazia, estourou a parte superior
do crânio. Naturalmente, o enterraram extramuros. E
nesse dia, enquanto o enterrávamos, considerei que a
história da sociedade, depois de mais de dez anos de
existência, tinha chegado ao fim. Uli e eu éramos dois
irmãos assustados. Os dois sem a coragem de pôr um
ponto final em nossas vidas e, ao mesmo tempo, sem a
força de seguir adiante. Atados pelo medo e pela vida.
Uli, louco e histérico por sua incapacidade de ser fiel à
premissa de morrer com dignidade. E eu, veja só, um
pobre homem que sabe que não é ninguém e que,
portanto, nem sequer suicidando-se poderia conhecer o
destino e a grandeza.
Acho que não se deu conta de que a Noite da Íris Negra
podia estar ressurgindo naquele momento das cinzas.
— Que seja um segredo entre nós — me disse. — Nem
pense em sair contando isso por aí. Para a Victoria muito
menos, pois lhe faria mal. De qualquer jeito, se você o
fizer, vou desmenti-lo. Estou acostumado. Vivi sempre
sob suspeita, já que o Uli nunca se conteve na hora de
contar a história para todo mundo. Mas Uli está louco, e
acreditam em mim, que desmenti essa história centenas
de vezes. E voltarei a fazê-lo se for necessário. Se tentar
espalhá-la por aí, direi que foi o Uli quem a contou a
você.
— Não se preocupe. Será um segredo entre nós —
disse.
Respirei tranquilo.
— Entre você e eu — acrescentei. — Ou melhor, um
segredo entre nós três, Uli, você e eu. A Sociedade da Íris
Negra revive, volta a existir.
Ficou me olhando entre incrédulo e aterrado.
— Morreu com dignidade. Sua sombra voa — disse
como um juramento.
Não me surpreendeu que falasse assim. Vi que se
aproximava. Logo ao chegar em Port del Vent tive a
obscura sensação de que vir para esse lugar significava
abraçar uma certa ordem, integrar-se, aceitar alguma
coisa como a delegação de uma continuidade, como se
chegar ali implicasse que não se pode ser indigno de
quem antes aqui esteve. Tem que ser como eles. Agora
(parece nos dizer o povoado) é a sua vez.

Alguém bateu em nossa porta às onze da noite. Ao


abrir, nos deparamos com uns penetrantes olhos azuis
atrás de uma armação dourada, cabelos muito curtos e
grisalhos sobre umas sobrancelhas cerradas, e uma cara
muito enrugada: diante de nós, estava Uli.
— Só uma coisa — nos disse.
Não o deixamos entrar. Parecia completamente fora de
si. Mas só parecia. Pois quando falou, o fez com toda a
normalidade. O homem mais prudente do mundo.
— Só quero lhes dizer uma coisa — dirigia-se a Victoria.
— Seu pai tirou a própria vida, estava farto de tudo, eu
sei, e se lançou ao vazio. Nada de tropeções no
campanário. Matou-se. Simples assim. Nos últimos
meses, fazia-se chamar de Eceiza e nos dizia que estava
se aprofundando no insondável mistério do eterno
retorno. Eu acho que não fazia mais do que pensar em
como tirar a própria vida. Eu jogava bocha com ele. Não
está enterrado na tumba que o meu miserável e
mentiroso irmão mostrou a vocês, mas na que está fora
do cemitério. Só queria lhes dizer isso. E agora, adeus.
Tinha uma garrafa de Johnny Walker Black Label na
mão direita, e três copos de plástico na esquerda. Com
certeza, nos visitou com a ideia de passar um tempo
conosco, mas por algum motivo optou por não ficar.
Suponho que nossa descortesia tenha influído, o fato de
que não o deixamos passar da porta e de que o tomamos
por louco. Será? Trata-se de um louco? Pouco importa.
Loucura e lucidez se confundem numa só figura, como a
verdade e a mentira, aqui em Port del Vent.
E pensando nisso tudo, decidi contar a Victoria o que
Catão me disse aquela tarde sobre as noites da Íris
Negra. E ao contar, acrescentei — acho que por puro
capricho, mas também por simpatia pelo Uli, que
caminha tão manco quanto eu — a sombra de uma
possível mentira à luz da possível verdade, e disse a
Victoria que Uli tinha toda a razão quando dizia que seu
pai se fazia chamar de Eceiza e estava enterrado
extramuros.
— Sei disso por fontes confiáveis — disse a Victoria.
— Bom, vamos sair — foi sua resposta, como se a esta
altura da vida lhe fosse indiferente saber onde está a luz
e onde a sombra.
E saímos, sabendo que não iríamos a lugar nenhum.
Caminhamos agora pela praia. Chove sobre Port del Vent.
Chove no mar com um murmúrio lento, e ouço a brisa
que geme dolorosamente. E penso que estou bem aqui,
preso a este povoado junto ao mar. Gosto muito de estar
perto do mar, nunca devia ter me afastado tanto dele.
Sinto diante das ondas uma sensação de liberdade só
comparável à que pressinto agora, ao me dar conta de
que Vitoria e eu caminhamos em boa companhia com os
que souberam afrontar a morte com uma serenidade
antiga. Estes, há alguns instantes, trouxemos
silenciosamente para dentro de nós preenchendo seus
vazios com nossa própria substância, e nos tornamos
eles. E vou andando pela praia de Port del Vent sob a
chuva, e penso nisso tudo e escuto e contemplo as ondas
e digo que sim, que toda a noite cabe num olhar de íris
negra em um só e quieto olhar de sossego. Agora
(parece dizer o povoado) é a sua vez.
A hora dos cansados

Para Mercedes Monmany

São seis horas e já escurece quando me detenho a


contemplar nas Ramblas a súbita irrupção dos
passageiros do metrô que desceram na estação do Liceu.
Trata-se de um espetáculo que nunca me frustra. Hoje,
por exemplo, quinta-feira santa, surge no meio da
multidão um tenebroso velho que, apesar de ter um
aspecto cadavérico e transportar uma pesada maleta,
anda com surpreendente agilidade. Ultrapassa com
rapidez espantosa uma fila inteira de entorpecidos
passageiros, planta-se muito decidido diante de um
cartaz do Liceu, e ali, muito sério e compenetrado, passa
em revista o programa de uma ópera de Verdi, adotando
quase de imediato um gesto de imensa contrariedade,
como se o elenco de estrelas o houvesse decepcionado
ampla e profundamente. Este homem, penso, esse
cadáver ambulante, tem algo que me inquieta, que me
intriga.
Decido segui-lo. E logo percebo que não vai ser nada
fácil. Talvez porque minha jornada de trabalho foi longa e
dura, e a essa hora eu já me sinta bastante cansado, mas
o certo é que, apesar de eu ter quarenta anos e ele
provavelmente o dobro, o velho anda tão rápido que ao
começar a percorrer a Calle Boquería por pouco não o
perco de vista. Acelero o passo e, por alguns segundos,
sinto um quase desfalecimento, e penso que vou desabar
sobre o asfalto. Logo percebo que não é para tanto, afinal
ainda sou jovem, o que acontece é que sempre me
imagino à beira do desfalecimento porque, com mais ou
menos intensidade, sempre estou cansado, cansado
dessa cidade lamentável, cansado do mundo e da
estupidez humana, cansado de tanta injustiça. Às vezes
tento superar esse estado e luto comigo mesmo, me
imponho desafios como esse de persistir, sem objetivo
algum, na perseguição de um velho nem um pouco
cansado.
De repente meu perseguido, como se quisesse me dar
algum alívio, se detém em frente à vitrine de uma loja de
artigos religiosos. Eu avanço com calma, junto à parede,
junto às vitrines, agora sem pressa. Alcanço-o, me ponho
ao seu lado, vejo que está espiando o interior da loja,
onde um negro compra uma imagem do Menino Jesus de
Praga. Vou dizer alguma coisa ao velho quando o negro
sai disparado em direção à rua, muito feliz com sua
compra, e o velho se vira e o segue.
Vê-se o negro muito feliz, mas depois de vinte passos
se torna um homem repentinamente cansado. Vai
diminuindo o passo até acabar andando muito devagar,
quase arrastando os pés, como se a compra o tivesse
deixado extenuado, ou como se houvesse chegado de
repente essa sensação de estar em uma hora em que
alguém se sente irremediavelmente cansado. Atrás dele,
o velho também reduz a marcha. E só agora me dou
conta de que o meu perseguido deve estar há um bom
tempo perseguindo o negro, que não parece suspeitar de
nada, e certamente teria uma surpresa se descobrisse a
procissão espontânea que se organizou atrás dele.
Os três, muito fatigados, como se tivéssemos nos
contagiado mutuamente de cansaço, começamos a
percorrer a Calle de Banys Nous num ritmo bastante
comedido. O negro é um indivíduo corpulento e elegante,
de uns cinquenta anos, com jeito de boxeador terno e
cansado. É evidente que não suspeita de nada, porque
logo se detém, muito confiante, a contemplar sua
brilhante aquisição. Eleva-a por cima dos ombros, como
se quisesse consagrá-la num altar imaginário. Atrás dele,
e para não ultrapassá-lo, o velho se deteve de repente, e
eu imito sua imobilidade. Formamos uma curiosa
procissão de quinta-feira santa. Seguem-se intermináveis
minutos, até que por fim o negro reinicia sua lenta
marcha e, passados outros minutos que parecem
infindáveis, acaba entrando num bar, onde pede uma
cerveja, e logo outra, e depois outra. De vez em quando,
ri sozinho e mostra horríveis dentes de canibal. No outro
lado do balcão, o velho não perde um só detalhe de sua
indecente espionagem. Demoramos tanto os três em
nossos gestos que o garçom perde a paciência e se
revela um perfeito alérgico a qualquer tipo de
manifestação de cansaço profundo, e como estamos em
pleno crepúsculo, ou seja, nessa hora em que até as
sombras se fatigam, põe-se a trabalhar como um louco
enquanto nos envia terríveis olhares de ódio. Se pudesse,
esse garçom nos fuzilaria sem a menor hesitação. Eu me
ponho em pé de guerra e penso que já é hora de nós, os
cansados deste mundo, unirmos nossas forças para
acabar, de uma vez por todas, com tanta injustiça e
estupidez.
Enquanto penso isso, o velho se ocupa em procurar
alguma coisa na maleta. Pelo tique-taque que detecto,
imagino se tratar de um despertador. Mas talvez, por que
não?, poderia ser uma bomba. Se for, não posso vê-la.
Mas o que afinal retira da maleta é outra coisa. Nem
relógio nem bomba. Trata-se de uma pasta vermelha,
com uma grande etiqueta em que se pode ler: “Relatório
1.763. Averiguações sobre vidas alheias. Histórias que
não são minhas”. No interior da pasta há um monte de
folhas, repletas de anotações a lápis ou caneta. O velho
anota apressadamente alguma coisa nos papéis, e pouco
depois fecha a pasta, a coloca novamente na maleta,
olha o teto e assobia uma habanera. Bela maneira de
dissimular, penso, apenas para pensar em algo, pois na
verdade não consigo decifrar o que o velho faz
exatamente. Fico pensando no assunto, e acabo me
perguntando se não será talvez um pesquisador, um
perseguidor de vidas alheias, uma espécie de detetive
ocioso, um contista.
Entretanto, o negro paga sua conta e, com um passo
mais que lento, se dirige à saída. Quando finalmente
alcança a rua, o velho paga seu café, eu pago o meu, e
penso que vamos voltar a caminhar, que vamos retomar
a nossa lenta e pausada procissão. Mas não. Chegamos à
Baixada de Santa Eulália, e o negro dá sinais de ter
recuperado as forças. As cervejas fizeram um milagre, e
a procissão se anima. É como se ganhasse asas, pois vai
pela Baixada como se quisesse bater algum recorde
mundial. O velho parece encantado por poder praticar de
novo seu esporte predileto. E eu, qual a alternativa?,
também me lanço com tudo pela Baixada. Mesmo
sabendo que em tal ritmo não se deve permitir o luxo de
pensar em outras coisas, começo a refletir sobre a hora
em que estamos, sobre o sempre misterioso crepúsculo,
essa hora vasta, solene, grande como o espaço: uma
hora imóvel que não está assinalada no mostrador, e é
leve como um suspiro e rápida como um olhar, a hora
dos cansados.
A cem metros da catedral, bato contra um muro. O
golpe é forte, caio, mas o que mais me incomoda é que o
negro e o velho, alheios ao acidente, prosseguem em
desabalada correria. Recuso os primeiros socorros de
ímprobos cidadãos e a perversa extrema-unção de um
padre de batina e, pondo-me de pé com muita raiva,
recomeço como posso a perseguição, deixando atrás de
mim um rastro patético, pequenas gotas de sangue, o
preço de minha loucura, de minha insensata incursão por
vidas alheias, por histórias que não são minhas.
Perto de uma das portas laterais da catedral, localizo
perseguido e perseguidor. Recupero a calma ao retomar
o terceiro lugar na singular procissão, mas não é uma
calma total, já que do golpe contra o muro ficou uma dor
que vai ganhando intensidade, e se não se pode dizer
que eu veja estrelas, vejo sim um foco de luz, como um
lustre de milhares de lâmpadas. Meio cego pela luz, vejo
que o velho se detém em frente a uma das portas
laterais, tira da maleta um chaveiro magnífico e entra no
que deve ser a sacristia da catedral. Tudo acontece muito
rápido. E depois de uma sonora batida da porta, o velho
desaparece da minha vista sem nem sequer dedicar-me
um olhar de desculpas por ter arruinado a minha
diversão. Sem nem sequer um adeus, um olhar de
desprezo ou de compaixão. Nada. Desaparece como um
raio, e me deixa perseguindo o negro. Penso que talvez
eu esteja enganado, que o velho na verdade não
perseguia ninguém, talvez estivesse apenas
transportando uma bomba que fará voar pelos ares a
catedral.
Mas o que faço agora perseguindo o negro? Vejo-o
entrar na catedral e ajoelhar-se diante do Cristo de
Lepanto. Penso que por hoje basta. Estou exausto. Penso
em minha mulher, minha falecida mulher, e evoco os
dias em que nos encontrávamos em frente a esse
mesmo Cristo. Nós, os cansados, também temos
coração, também nos apaixonamos. Eu a amei muito.
Vem-me à lembrança certa noite de verão, os dois
dançando em um terraço suspenso, eu a apertando
contra meu corpo cansado, pensando que jamais poderia
desprender-me do cheiro de sua pele e de seus cabelos.
E recordo que os músicos tocavam “Stormy weather”.
Que dias aqueles. E logo os encontros em frente ao
Cristo, e então as promessas de nunca nos separarmos.
Também os cansados somos uns sentimentais.
Num gesto quase automático, resquício do passado,
faço o sinal da cruz, penso na Batalha de Lepanto,
estremeço, ouço o estrondo dos canhões, penso na
bomba que o velho transportava, e que talvez fosse
melhor abandonar logo o templo, me apoio em uma
coluna, decido dar meia-volta e esquecer o negro, giro e,
com meus passos cansados, saio à praça da catedral,
vou em busca do rastro de meu próprio sangue, começo
a refazer o caminho, vou até as Ramblas, de onde nunca
devia ter saído. Caminho fumando. Depois de cada
tragada, atravesso minha fumaça e estou onde não
estava, onde antes soprava. Então sinto em minhas
costas uma respiração rouca, e em seguida um golpe
seco na nuca. Viro assustado, e vejo o negro, que me
oferece seu melhor sorriso de canibal e me pergunta por
que o seguia. Não saio do meu susto. Digo que parece
ser ele quem me segue. O negro para de rir e, com um
olhar desafiador, parece bastante zangado, mas me
concede uns segundos para dar a ele uma resposta
satisfatória. Percebo claramente que, se não inventar
alguma coisa rápido, posso ser devorado.
Providencialmente, lembro da pasta do velho. Digo que
sou um perseguidor de vidas alheias, uma espécie de
detetive ocioso, um contista. Explico que vivo fora de
mim. Conto que gosto do ar livre, assim como de manter
os olhos abertos. Afirmo que sigo as pessoas para saber
coisas sobre elas, o que então utilizo em meus contos.
Ele então põe sobre meu ombro uma mão imensa e
ameaçadora, e me pergunta como se chama o conto em
que estou trabalhando. Digo a primeira coisa que me
ocorre: “Vejo olhos negros”. Ele me olha com
desconfiança, e depois me diz que não quer ser
personagem de conto nenhum. Mostra seu punho e me
assegura que é maior do que o de Cassius Clay. Não, não
e não, acho que diz. Não quero sair nesse conto. Digo a
ele que estou exausto, que decidi não incluí-lo no conto e
que, por favor, deixe um pobre homem cansado seguir o
seu caminho. Surpreendentemente, seu rosto perde toda
a ferocidade. A palavra cansado parece ter feito um
milagre. Volta a ser o boxeador terno e fatigado que vi na
Calle de Banys Nous. Diz que se chama Romeu e
pergunta se pode me acompanhar até as Ramblas.
Respiro aliviado, e digo que sim e que, no caminho,
contarei a ele a história de um velho sacristão cansado e
anarquista que tinha seguido hoje. Caminhamos nos
apoiando um ao outro, terrivelmente cansados. Já é
noite, e ao longe soam as badaladas das sete. Diz que
quer me dar de presente o Menino Jesus de Praga
quando, ao entrarmos na Baixada de Santa Eulália,
ouvimos uma forte explosão. O gás, diz Romeu. A
provável bomba de um velho kamikaze eu esclareço. Fica
ainda mais terno e sentimental quando lhe digo que a
catedral está voando pelos ares.
Uma invenção muito prática

Você foi uma péssima vizinha naquele verão em


Alicante, agora não me venha com histórias tentando
mudar as coisas, porque eu tenho memória. Já não
existem (você me diz) casas como as de antes, casas que
sejam silenciosas. Bem, você sabe que bicho te mordeu.
Não entendo por que me fala disso, mas de qualquer
jeito você tem razão, querida Susana, toda a razão. Com
isso de cimento armado e ladrilhos finos, as casas já não
estão protegidas do calor e dos ruídos como antes, e
tudo se torna ligeiramente horrível.
Você acerta também quando diz que ultimamente as
coisas não podem piorar. Eu acrescentaria: ainda mais
depois da morte de meu querido Mario. Bom, seria
melhor dizer “nosso querido Mario”. Afinal, nós o
dividimos, isso há quase cinquenta anos, naquele verão
— que parecia interminável — em Alicante, do qual
conservo intacta a lembrança de sua impertinente
intromissão em minha vida de casada. Mas como (você
deve se perguntar agora) ainda se lembra disso? Sim,
lembro perfeitamente. Cinquenta anos não são nada. Ao
menos para mim. Para você não sei. Eu até me sinto
perto da velhice, mas você deve estar pele e osso. Para
você esses cinquenta anos não devem ter passado em
vão. Nota-se pelo tremor de sua letra. Você deve estar
em cacos, um horror. Para você deve ser terrível olhar no
espelho e perguntar que fim levaram aqueles ombros
redondos e delicados, aqueles braços longos, aquelas
mãos finas. Deve ser terrível perguntar que fim levou
aquele rosto perfeito, aqueles cabelos louros, o olhar
misterioso que deixava todos os homens apaixonados.
Nosso querido Mario. Não estou convencida de que no
fim da vida ele a amasse de fato. Em sua agonia,
perguntou por você, é verdade, deram-lhe a informação
correta. Mas devo dizer que ao perguntar por você
pensava numa batata quente. Veja só, assim são os
homens, assim eles se lembram de suas velhas amantes,
das importunas que os assediavam em outra época,
assim eles se lembram delas quando estão à beira da
morte, ou seja, na hora da verdade. Porque não sei se
você sabe, mas a morte é a verdade do amor, do mesmo
modo que o amor é a verdade da morte.
Escrevo para você com a esperança de que se atire
logo da janela de sua casa. Esta é — eu acho — a única
frase que deveria ter me escrito, querida, deveria ter se
atrevido a ser sincera, e em vez de me perguntar como
passei no manicômio ou de me enviar essas frases feitas
forçadas junto com suas afetadas condolências pela
morte de Mario e todas essas palavras cínicas de apoio,
em vez de tudo isso, deveria ter escrito para mim:
“Gostaria que se suicidasse logo, Mary, gostaria de vê-la
morta, e se isso não for possível, gostaria de vê-la
completamente louca e enterrada para sempre nesse
manicômio do qual conseguiu sair não sei como”.
Em vez disso, me escreve frases convencionais e
hipócritas. Diz para mim: “Perdão por ter demorado tanto
em saber da morte de Mario e de seus problemas
psiquiátricos”. Perdoo, querida, porque morando tão
longe, do outro lado do oceano (e dizem que certamente
encharcada de rum), nessa casa horrível de Havana
Velha, não surpreende que você tenha demorado a saber
da história de minha loucura e a se regozijar com ela.
“Você deve ter ficado tão sozinha com a morte de
Mario...” Mas, minha querida vizinha má, como você
queria que eu ficasse?
Fiquei tão sozinha que, de repente, os sons do andar de
cima e do de baixo começaram a me obcecar
seriamente: no sétimo andar, sapatos de salto alto e
brincadeiras aquáticas, entre outros horrores; no quinto,
gritos e brigas entre pai e filho, de grande dramaticidade.
Tudo isso foi me consumindo num desespero maníaco
que me levou a tentar catalogar as diferentes
modalidades de ruídos dos vizinhos.
Sequelas, talvez, de sua má vizinhança naquele verão
em Alicante? Não sei, mas a verdade é que me bateu um
maníaco desespero. Depois de setenta anos respeitando
muitíssimo os outros, tentando sempre, mesmo que
fosse apenas por educação, não incomodar nunca e,
definitivamente, perdendo a vida por delicadeza,
começou a parecer tremendamente injusto que o prêmio
para a minha conduta irrepreensível e a minha discrição
perfeita fosse essa contínua perturbação dos vizinhos,
essa gente vulgar, que parece empenhada em que todos
saibam de suas vidas medíocres e estúpidas.
Achei muito penoso que tudo isso acontecesse comigo,
precisamente comigo, que jamais quis incomodar
ninguém e sempre tentei passar por este mundo com
passo de bailarina, leve, na ponta dos pés pela vida. E
quis me matar, é verdade, você não está enganada. Foi
bem informada, cara esponja de rum, eu quis mesmo me
matar me atirando do primeiro andar. Cômico, mas o que
posso fazer? Desci do sexto para o primeiro andar,
porque não tive coragem de voar de tão alto. Temia o
baque brutal contra o asfalto, pra que me enganar? No
fim, fraturei o tornozelo e a tíbia e não sei mais o que,
mas sobrevivi. Quando me recuperei do voo ensandecido
e voltei para casa, o desespero com a barulheira dos
vizinhos aumentou. Pensei, refleti: “Se as coisas
continuarem assim, logo vou me atirar do segundo
andar, e então, após a inevitável visita ao hospital e a
posterior volta para casa, me atirarei do terceiro, depois
do quarto... Enfim, se não fizer alguma coisa, se não
inventar alguma coisa logo, vou acabar mal, muito mal
mesmo”.
Foi então que me disseram que a minha melhor amiga,
Rita Rovira (acho que a conhece, porque ela jogava tênis
comigo naqueles dias, tão felizes para você, em
Alicante), tinha sido internada misteriosamente em um
sanatório mental. Isso me impressionou bastante. E
então, uma noite, tive uma intuição obscura, uma
revelação dentro de um sonho, e algo me disse que
nesse sanatório eu talvez pudesse encontrar, não só a
companhia de que sentia falta (tinha certeza de que por
mais louca que Rita estivesse me faria companhia), mas
também a fórmula mágica que podia tornar a vida
suportável para mim.
Acreditei cegamente em minha obscura intuição, e por
isso me internei no manicômio. Não por outro motivo,
querida, porque não estou e nunca estive louca. Nem tive
— lamento, sei que a sua fantasia lhe havia dado essa
ilusão — problemas psiquiátricos. Sinto muito, de
verdade. E agora, querida Susana, deixe que sua fantasia
sirva para alguma coisa, e desenhe a janela iluminada de
um consultório do manicômio que parece também uma
fantasia, aproxime-se dos vidros embaçados e olhe
através das velhas cortininhas. Aqui estou eu, na tarde
em que entrei no lugar, sentada de frente para o doutor
Camps, um ingênuo psiquiatra freudiano — muito fiel aos
dogmas do velho mestre vienense —, que me examina
atentamente com seu pretenso olhar perspicaz. “Conte-
me sua primeira lembrança”, me diz o homem tentando
me analisar. Sem dúvida está convencido dessa teoria
que diz que, normalmente, a lembrança que o paciente
aponta em primeiro lugar, a primeira que relata, é a mais
importante, aquela que encerra a chave dos
comportamentos secretos de sua vida mental.
“Vamos lá, conte-me sua primeira lembrança”, repete,
e noto que ainda não acabou de superar a surpresa de
que uma anciã feito eu tenha vindo por conta própria a
esse centro para se internar. Com certeza, está mais
acostumado às famílias que encerram no manicômio um
parente para preservar sua herança, daí sua grande
surpresa, daí também, agora — você pode ver melhor,
querida Susana, se chegar mais perto dos vidros
embaçados —, tentar descobrir através da minha
primeira lembrança se estou mesmo um tanto louca ou
se apenas finjo estar.
Encantada (disse a ele), porque quem canta seus
males espanta. Veja o senhor, doutor Freud, minha
primeira lembrança é a cúpula de cristal,
extraordinariamente bela, de um teatro que não existe
mais. No entanto, essa primeira lembrança da minha
vida se encontra estreitamente ligada ao horror porque,
imediatamente após descobrir a maravilhosa cúpula,
meus olhos tropeçaram em algo também gigantesco —
quase tão grande quanto a cúpula — mas, neste caso,
simplesmente espantoso. Uma boca. Uma boca imensa,
talvez desenhada pelo doutor que criou aquele monstro,
refiro-me ao doutor Frankenstein. Uma boca, doutor
Freud. Uma boca imensa, pertencente a um artista que
entrou em cena vestindo um fraque negro e carregando
um chapéu alto entre as mãos com luvas brancas. “É
Barrymore”, disse meu pai. Era um mágico, e ao mesmo
tempo um cantor, cuja boca, por suas dimensões
colossais, me deixou aterrada; cantava enquanto tirava
da cartola todo tipo de seda e de coelhos estranhos e, ao
final, num raro frenesi, tirou dali enormes máscaras
pintadas, rosadas e bochechudas, que intensificaram
ainda mais o clima tão brilhante quanto artificial, e de
puro pânico para meninas feito eu.
Essa boca (continuei dizendo ao doutor Freud) me
deixou aterrada, e me deixou menina pelo resto da vida,
a ponto de ainda hoje, quando alguém boceja, por
exemplo, eu sentir sempre a sensação de que vou
desmaiar de puro medo. Tão horrenda é a impressão
fascinante que me deixou aquela boca de mágico e
cantor, marcando assim minha existência, que me tornou
a senhora que o senhor tem agora à sua frente: uma
mulher que passa a vida em revista e descobre, não sem
certa melancolia, que a perdeu por delicadeza, por não
querer incomodar ninguém, e por se empenhar em
passar por este mundo com passo de bailarina, leve,
extremamente leve; sem querer incomodar ninguém,
porque a vida já é complicada o bastante para
complicarmos ainda a vida dos outros; sem querer
incomodar ninguém, e sem poder evitar que me
incomodassem, pois logo me surgiu um pretendente que
a toda hora me dizia coisas como “sob o peso do amor,
eu afundo”: um pretendente, enfim, mas muito chato, a
quem eu correspondia com meu passo leve e um certo
olhar de suave indiferença, até que, para não incomodá-
lo mais, acabei aceitando-o como marido (pensei: se não
for ele, será outro, tanto faz); sem querer incomodar
ninguém, e por isso acatei a ordem fulminante de ter um
filho, acatei porque não queria incomodar ninguém,
muito menos meu marido, e o que aconteceu foi que
esse filho, que descanse em paz o maldito, me
incomodou muito; sem querer incomodar ninguém, e por
temor de contar à humanidade inteira o horror daquela
boca monstruosa do Barrymore, o criador de máscaras,
boca enorme e profunda que afinal associei ao tédio
profundo e enorme que domina nossa vida neste mundo
de fraque e bocejo.
Tudo isso eu disse ao doutor Freud (que não parava de
tomar notas), e com as minhas últimas palavras (refiro-
me a essa associação delirante entre fraque e bocejo)
tentei compensar o excessivo efeito de candura causado
pela severa confissão de que tinha perdido minha vida
por delicadeza. No final, delirei um pouco, mas de
propósito, para que o doutor pensasse: “Esta mulher
falou com muita sensatez, e, portanto, de louca parece
não ter nada; mas, no final, seu relato se esgarçou de um
modo alarmante, e entrou com certo desvario nas águas
pantanosas do fraque e do bocejo, uma associação um
tanto delirante, o que me leva a pensar que, de vez em
quando, a razão dessa anciã se ofusca gravemente ou,
dito de outra forma, com essa mulher, como aliás com
todas as mulheres, nunca se sabe, pois já faz tempo que
a observo e a analiso e ainda não tenho nada claro”.
Era conveniente para mim que o doutor pensasse
coisas desse tipo, porque me interessava ficar no
sanatório, mas não me fazendo de louca o tempo todo,
que é uma coisa incômoda, além de chata e complicada.
De modo que optei por uma fórmula intermediária, ou
seja, comportar-me como uma mulher sensata que, às
vezes, como todo mundo, se extravia. Confiei que assim,
misturando loucura e sensatez, conseguiria manter o
doutor em suspenso, hesitando em um diagnóstico
incerto, o que me permitiria ganhar tempo, para poder
ficar no sanatório e localizar minha amiga Rita Rovira,
que era o que me interessava.
Naquela mesma tarde encontrei a Rita. Da minha
primeira lembrança, eu tinha escondido uma coisa muito
importante do doutor. Não tinha dito nada sobre a
presença de minha amiga Rita naquele teatro, sob cuja
cúpula vimos aparecer a monstruosidade. Pois nesse dia
— e haveria muitos mais — Rita estava sentada junto a
mim, sorrindo sob a cúpula gigantesca pela qual se
filtrava uma luz outonal que tornava ainda mais
horrorosa a boca do criador de máscaras. Já nesse dia
prematuro de minha vida, Rita estava ao meu lado,
companheira inseparável, companheira inclusive de
minha primeira lembrança. Lembro dela muito bem ali,
repetindo as palavras de meu pai: “É Barrymore”, disse
ela, naquele dia, como um suave eco feminino.
A verdade é que Rita sempre esteve, de alguma
maneira, comigo — ainda que estivesse em sua casa em
Malibu e eu em Madri, ou, se fosse verão, junto ao mar
em Alicante — sempre comigo, sem a menor trégua ao
longo de toda esta vida tediosa neste mundo de
vizinhança horrível e bocejo profundo.
Rita se parece com você em algumas coisas. Também
no caso dela, como no seu, a perplexidade misturada
com certa admiração foram para mim os motores
principais de nossa união, dessa união tão grande como
a boca do Barrymore que tantas vezes eu e ela
recordamos.
Sim, perplexidade e admiração. O mesmo que
acontece com você. Porque enquanto eu não senti mais
do que indiferença absoluta pelo mundo, achando-o
sempre cinza e me limitando a passar por ele na ponta
dos pés e escondendo, em lugar de exibir, meu profundo
mal-estar e meu tédio, Rita, ao contrário, sempre se
divertiu — grande mistério! — colecionando ou roubando
carros esportivos, joias hindus e, sobretudo, maridos,
arruinando-os com sua tendência atarantada para o jogo
e, especialmente, com sua grande e incrivelmente
envolvente — daí minha secreta admiração — vitalidade.
Ainda que grandes distâncias nos separassem, tanto na
geografia quanto na personalidade — eu tão discreta e
ela tão ousada, eu em um prédio cinza de Madri e ela
dançando com todo mundo em Malibu —, Rita sempre
esteve comigo, e éramos capazes de nos reconhecer no
meio de uma grande multidão, portanto não há nada de
estranho em não demorar a encontrá-la no sanatório.
Naquela mesma tarde, como disse, localizei-a. Vi que
estava no pátio central. E me lembrei de que nos
romances russos os balneários ou manicômios eram
lugares onde volta e meia dois seres solitários,
transportados até ali pela loucura ou pelo infortúnio, se
cruzavam numa caminhada vespertina, seus olhares se
encontravam ao cair da tarde, e eles, mutuamente
magnetizados, se sentavam no mesmo banco de ferro
forjado e trocavam suas primeiras palavras.
Algo assim aconteceu quando a vi vagar feito uma
alma penada pelo canto mais escuro do pátio do
manicômio, um espaço sombrio onde Rita passeava, com
confusa vocação de fugitiva, movendo de vez em quando
os lábios com gestos um tanto histéricos, que pareciam
pequenas rebeliões contra sua clausura. Aproximei-me
com a intenção de dizer a ela que estava ali disposta a
salvá-la. Cheguei mais perto, nossos olhares se
encontraram e, mutuamente magnetizadas, fomos nos
sentar no mesmo banco de pedra, e começamos a falar.
Logo percebi que Rita não tinha me reconhecido, pois se
comportava como se eu fosse uma completa
desconhecida. Mas também me dei conta de que ali a
verdadeira desconhecida era ela, pois estava realmente
irreconhecível, e às vezes parecia bastante perturbada,
principalmente quando falava em estilo telegráfico e as
frases saíam incompletas e um tanto incertas;
demasiado breves, o que me obrigava a decifrar o que
estava tentando dizer.
“É Barrymore”, me disse de repente, sorrindo como nos
velhos tempos. Isso me aliviou, e por um momento
pensei que ela tivesse recuperado a memória. Mas logo
me pareceu que era justamente o contrário. Era como se
pequenos pedaços ou fragmentos de sua memória
estivessem se desprendendo de sua fronte e eu pudesse
assistir ao insólito espetáculo de ver como, ali mesmo,
naquele exato instante, sua mente ia se esvaziando em
público, lentamente, para ficar em branco, despossuída
tragicamente de toda lembrança.
Agora, quando lhe conto isso tudo, é noite em Madri,
minha querida rouba-maridos, minha muito querida
Susana. É noite em Madri e na minha vitrola, enquanto
escrevo estas linhas, toca o Requiem de Gabriel Fauré, a
música ideal para partir sem incomodar, para deixar este
mundo sem fazer ruído, tal como penso fazer algum dia,
mas não quando você quiser. Você já ouviu o Requiem
alguma vez? Com suas linhas melódicas doces e sem
dramaticidade, com suas texturas diáfanas, tão
francesas, com sua orquestração de veludo, com seus
suaves adornos de metal, o Requiem se apresenta esta
noite para mim como um requiem para as mortes
tranquilas — como espero que seja algum dia a minha —,
para as mortes daqueles que viveram em paz com os
homens e com eles próprios, e querem abandonar este
mundo sem incomodar, sem fazer o menor ruído.
É noite em Madri e, enquanto lhe escrevo, os vizinhos
do sétimo se obstinam em me incomodar da pior
maneira. Se não morasse tão longe, querida, acharia que
tinham sido contratados por você para que eu me atire
pela janela. Gostaria que me jogasse? Tenho certeza que
sim, que nada lhe causaria maior satisfação. Mas o
Requiem — você não contava com ele, não é verdade,
querida? — me ajuda nesses momentos.
Apesar dos malditos vizinhos do sétimo estarem
fazendo o impossível para que eu volte a cair em meu
maníaco desespero de antes do sanatório, continuo
ouvindo a música enquanto lhe dirijo estas linhas a fim
somente de comunicar que me deparei com um invento
excepcional, que me impede, a qualquer hora do dia, de
cair no maníaco desespero no qual você desejaria que eu
caísse, querida.
Fique registrado que os vizinhos do sétimo fazem o que
podem. Gostaria que me dissesse se é normal que
caminhem de salto alto pela casa ou que passem o dia
inteiro tomando banho. Diga-me se isso é normal. A certa
altura, o ruído da água — sua casa inteira deve ser uma
banheira, do contrário não consigo entender — chegou a
me obcecar seriamente. Que gentinha, meu Deus. Tenho
pena de você se são seus aliados. Que gentinha esse
casal, essa dupla com cérebro de mosquito que mora no
sétimo e é proprietária de vários açougues na cidade.
Devem ter obsessão por higiene, talvez por remorso, e
porque lhes causa repugnância sentir-se tão manchados
de sangue. O fato é que conseguiram que o meu ouvido
se desenvolvesse de uma forma surpreendente, e que
nas mudanças do meu silencioso e (reconheço) tenso
rosto, possa ver no espelho como até o último dos meus
sentidos se mantém em permanente contato com o
repugnante mundo do andar de cima, inclusive com os
vãos mais recônditos do seu carcomido assoalho. Até o
menor rangido desse piso do apartamento dos
açougueiros aquáticos encontra em mim a mais atenta e
diligente espiã.
Daqui a pouco a açougueira encontrará um motivo
para entrar na cozinha. É como se eu a visse. Todas as
noites faz a mesma coisa. Será ouvido um tilintar de
copos e um pinga-pinga enervante e, fatalmente, pouco
depois, algo cairá; será seguramente uma dessas
irritantes bandejas de alumínio, que continuará então
balançando no chão de forma mais do que ridícula. É
inevitável. Quando ela entrar na cozinha, terei de
interromper esta carta e permanecer em silêncio, para
que o estrépito não me surpreenda.
Às vezes, acordo à noite e vejo a pobre açougueira à
luz do abajur do meu quarto, muito molhada, a pobre
mulher, com os cotovelos entre os almofadões, sob a
grande cabeceira esculpida da minha cama, com sua
pequena sombra de vizinha vitalista (tem a sua cara)
balançando-se sobre a parede em uma triste e silenciosa
meditação, que acaba desembocando num patético
pedido de socorro. Dessa forma dou por realizada a
vingança de seus eternos ruídos de vizinha. Dessa forma
me vingo amplamente dos sons irritantes que chegam a
mim dessa gentinha de cima com a qual, fiel à minha
obsessão e ao meu desejo de não incomodar ninguém,
eu jamais reclamei por coisa alguma. Mordo os lábios e
aguento, pois sei que posso aguentar, pois sei que não
voltarei ao maníaco desespero, porque me deparei com
uma invenção muito prática para burlá-lo.
Foi Rita, na mesma tarde de nosso encontro no
sanatório, quem me deu a pista para chegar a tão feliz
descoberta. Começou enquanto me falava da estranha
correspondência que lhe chegava diariamente no
manicômio já havia dois meses: uma coleção de cartas
muito breves que um desconhecido — ao que parece, um
pianista em turnê pela Hungria — lhe enviava em
pequenos envelopes azuis ou verdes, segundo a cor do
filtro — o azul equivalia a otimismo — pelo qual
contemplava os assuntos do mundo naquele dia.
Num primeiro momento, Rita suspeitou que fosse ela
mesma que se enviava aquelas mensagens breves, tão
telegráficas — e tão parecidas com sua maneira de falar
quando se perde e saem frases incompletas e incertas
—, mas depois da terceira ou quarta carta deixou de se
preocupar com a questão, e disse para si mesma não
importar saber se realmente existia ou não esse pianista
em turnê. Os textos — vi alguns — eram realmente muito
breves, originais e inspirados, ainda que contivessem
sempre um cabeçalho tradicional, ou seja, o nome da
cidade na qual se encontrava e a data correspondente.
Porém as mensagens não eram nada convencionais,
mas, mais precisamente, incomuns, com frases como
estas: “Morrer é uma arte, como tudo. Eu o faço
excepcionalmente bem”; “Diz-se que na Rússia já não se
sabe o que é o ciúme; eu sou russo”; “A vida é uma
enfermidade da mente”.
Os últimos envelopes que haviam chegado a Rita —
faltava o último de todos porque, segundo ela, o doutor
Camps tinha se negado a entregá-lo — eram todos de um
verde forte, ou seja, continham mensagens muito
pessimistas, o que a tinha levado a suspeitar que o
pianista podia estar se aproximando do fim da turnê.
“Como você pode ver”, me disse Rita aquela tarde,
“apenas a ideia de que a correspondência possa estar
chegando ao seu final me deixa de muito mau humor.”
Eu assenti com a cabeça, e me limitei a dizer que a
compreendia perfeitamente.
E você não imagina, querida Susana, o quanto a
compreendia. Além disso, não podia estar mais
agradecida, pois ela tinha me colocado às portas de uma
grande descoberta, do melhor dos inventos.
Naquele dia, quando chegou a hora de nos retirarmos
para nossas sinistras dependências (não sei como
chamar aqueles miseráveis cubículos para
desequilibradas), fiquei pensando na escrita daquele
pianista desconhecido que provavelmente a imaginação
perturbada de Rita havia criado, e lembrei que existe
quem escreva cartas para se vingar de alguém, ou de
alguma coisa, ou ainda para fugir da obsessão constante
da morte, ou para escapar do grande bocejo universal,
ou simplesmente para passar o tempo, o que já é muito,
e assim se livrar da loucura que, cedo ou tarde, ameaça
todos nós, e pensei que se a loucura era todo um
mistério, também o era a escritura, e que, em todo caso,
nas mensagens do pianista da Hungria o que
predominava não era o mistério da loucura, mas, pura e
simplesmente, o mistério da escritura: o mistério de
cartas como esta que lhe escrevo agora para celebrar um
invento que me mantém afastada do maníaco desespero,
pois desde que escrevo cartas me sinto fora de todo
perigo, mas sobretudo desde que descobri que dessa
invenção tão prática podia surgir uma invenção ainda
melhor e mais efetiva.
Comecei a intuí-la no dia seguinte ao meu encontro
com Rita, quando ela me deu a notícia que iria mudar a
minha vida. Me disse que acabava de roubar do doutor a
carta oculta do pianista, a carta que não tinham até
então querido lhe entregar. “Talvez tentassem esconder
um texto de conteúdo desagradável para você”, sugeri.
“Nada disso”, comentou Rita, e me mostrou com um
gesto triunfal a carta roubada; depois, sorriu
enigmaticamente e disse: “O que acontece é que não
gostaram nada de ver quem a assina”. Pois a
surpreendente novidade era que desta vez a carta vinha
— numa mais do que borrada caligrafia — assinada. O
texto, por sua vez, não estava borrado, e era tão breve
que não parecia possível haver espaço para o conteúdo
ser muito agradável ou o contrário, pois ia além da maior
brevidade possível nas mensagens escritas: “Fi”, dizia, de
um lugar chamado Balatonszárszó. Como você pode
perceber, querida Susana, além do grande contraste
entre uma palavra e outra — uma tão longa e estranha, a
outra tão exígua e, ainda por cima, mutilada — era
curioso constatar como, em seu exagerado afã de
brevidade, o homem tinha inclusive comido a letra m de
sua parca mensagem. Em todo caso, tinha de concluir
que tanto a correspondência como a turnê haviam
chegado ao fim. Depois do breve, mas contundente
texto, podia-se então ver a microscópica e mais do que
borrada assinatura, ilegível para todo mundo, menos
para Rita.
“É Barrymore”, disse com seu melhor sorriso, olhando-
me com estranha inquietude e agitação. Senti como se
naquele instante, na duração e no brilho daquele olhar
único de Rita, meu destino tivesse se encarrilhado, e não
me causou estranheza que isso tivesse ocorrido, pois de
fato eu tinha procurado por ele com rigor e infinita
vontade, ali naquele sanatório. Ninguém consegue nada
que não esteja perseguindo, e eu tinha ido a esse
manicômio precisamente buscando a confirmação de
uma grande suspeita: a de que a solidão é impossível,
pois está povoada de fantasmas. E eu tinha ido a esse
manicômio precisamente buscando esse momento único
que, após ser guiada por uma obscura, mas certeira,
intuição, tinha acabado por encontrar na intensidade e
na agitação do olhar de minha amiga mais terna, mais
louca e mais inseparável. Então não adiei mais. Fui ao
consultório do doutor Freud e me despedi dele: “Vim ver
minha amiga Rita Rovira, e já a vi, de modo que estou
indo”. O doutor ficou me olhando por cima das lentes
sobre a ponta de seu nariz, e quase conseguiu me
enternecer. Pobre homem. A sós com sua maldita ciência,
e sem imaginação. Estava claro que não entendia nada.
Desesperado, começou a remexer papéis, a consultar
fichas, a lançar olhares assassinos aos vidros embaçados
de seus óculos e de sua janela, e finalmente acabou
pondo-se de pé para me dizer num tom crispado, tão
ridículo quanto patético: “Aqui não há nenhuma Rita
Rovira. Essa tal amiga é uma invenção sua”.
Fiquei na ponta dos pés e apertei carinhosamente a
ponta do seu nariz, fiz com que balançassem seus
óculos, e depois lhe disse: “Não me faça rir, doutor Freud.
Se minha amiga de infância é uma invenção, então
Barrymore é a invenção de uma invenção”. Afundou-se
em seus pensamentos, e eu aproveitei para fugir. Isso já
faz alguns dias. Grande libertação. Agora estou tão
tranquila em casa, escutando o Requiem de Fauré e
fazendo pouco-caso do barulho dos vizinhos, do alvoroço
que a cada dia a esta hora se produz no apartamento de
baixo, onde pai e filho, com grande dramaticidade,
discutem sobre assuntos misteriosos. Que discutam o
que queiram. Não os escuto. Encontro-me além de tudo,
submersa na audição do Requiem, e o que é mais
importante: encontro-me, esta noite, em irretocável
companhia.
Pois Barrymore escapou comigo do sanatório, e desta
carta, e agora se encontra aqui ao meu lado, lendo
minhas palavras e sugerindo-me que não volte a lhe
lembrar que, à beira da morte, Mario a via feito uma
batata quente. É que Barrymore não quer que eu faça
mal a você, porque é uma belíssima pessoa, que gosta
muito de não incomodar a humanidade. Barrymore tem e
sempre terá uma vitalidade superior à sua. Barrymore
acha muito questionável este mundo de fraque e de
bocejo, mas esse sentimento, que compartilha comigo,
nele não está associado ao ódio, mas sim ao respeito à
vida. É uma grande pessoa esse Barrymore, e isso apesar
de seu feroz aspecto, dessa boca tão grande à la
Frankenstein e dessa fronte imensa, que parece a maior
cúpula do mundo, e que tomba de medo.
Barrymore não quer que eu faça mal a você. Opõe-se a
que eu lhe repita que não penso em me suicidar. Diz que
você já sofreu decepção suficiente ao sabê-lo. Barrymore
é um grande personagem. E é também um grande
invento, surgido do melhor dos inventos. É toda uma
descoberta, pois diz que sempre que eu cair na tentação
de desesperar-me de um jeito maníaco, ele estará
disposto a se matar em meu lugar. Barrymore diz que
morrer é toda uma arte (e só uma arte) e que ele o faz
excepcionalmente bem. Tudo o que penso, ele pensa.
Disse que passa o dia escutando a Roda do Destino que
gira e gira com um sussurro e tece a velha, velha história
de ódio e vingança. Barrymore é um grande personagem.
Parece tanto comigo que disse desejar também partir
deste mundo sem incomodar, sem fazer o menor ruído,
com delicadeza, tal como viveu. Barrymore é capaz de
tudo contanto que não incomode seus semelhantes. Está
tão obcecado em não incomodar ninguém que acaba de
me dizer que se esta noite eu caísse em um maníaco
desespero e tivesse que se matar em meu lugar, fecharia
— veja bem, minha querida batata quente, porque é
importante o detalhe —, fecharia a janela atrás dele
depois de lançar-se no vazio.
Pedem que eu diga quem eu
sou

Pedem que eu diga quem eu sou. Dizem que para


satisfazer minha vaidade pessoal (não preciso disso, mas
enfim, problema deles), e também pela curiosidade que
o leitor possa acabar sentindo sobre o autor deste
testemunho, talvez interessante (me dizem que
fundamental), sobre o episódio mais obscuro da vida do
grande pintor Panizo del Valle, pedem que antes eu diga
meia dúzia de palavras sobre minha pessoa.
Minha muito modesta e humilde pessoa, porque eu não
sou mais do que um pobre-diabo que nasceu na
Catalunha, neste querido povoado de Tossa de Mar onde
agora escrevo, enquanto penso que estou em um dos
melhores lugares da Terra. E digo isso não porque nasci
aqui, pois de fato há lugares de que gosto mais e a que
me sinto muito mais ligado sentimentalmente.
Babàkua, por exemplo.
Eu, nos meus anos de juventude, e depois também, fui
marinheiro de segunda classe, sempre nos portos do sul
oriental da África, mais exatamente nos de Bikanir e
Moçambique (minhas pantufas se chamam assim em
homenagem a esses dois fabulosos países), sendo dois
também (tal minhas pantufas e esses países) os motivos
de orgulho que tenho na vida: um é o de ser autodidata
(gosto de desmentir a cada momento essa lenda
segundo a qual o velho lobo do mar não pode ser um
homem sensível e instruído); o outro motivo me deixa
arrepiado e está estreitamente ligado à lembrança de ter
pilotado um baleeiro na costa sul da península de
Babàkua (tão famosa em todo o mundo pelos retratos de
nativos babakuanos pintados pelo grande Panizo del
Valle), península onde, por certo, eu sou homem
respeitado e muito querido, e à qual gostaria de poder
voltar algum dia, e onde gostaria que me enterrassem,
escrevendo no meu túmulo simplesmente isto: “Pilotou
um baleeiro em nosso litoral”.
Quis o destino que numa noite fria e sem lua, de chuva
fina e insistente em alto-mar, ainda a muitas milhas da
costa sul de Babàkua, o grande pintor Panizo del Valle,
que tinha uma capa de chuva cinza quase idêntica à
minha, fosse se apoiar numa grade na qual eu também
estava apoiado, nesse barco tão orgulhoso de seu
passado (nada menos que o Bel-Ami com sua histórica
quilha), que nos levava até esse remoto país onde eu era
tão respeitado e querido e onde tinha pilotado — que
dias aqueles, quando se caminha sem saber que o tempo
caminha conosco — um fantástico baleeiro.
Era a noite de 5 de janeiro de 1917. Usávamos capas
de chuva parecidas e, nas sombras da noite fechada,
éramos figuras bastante iguais. No entanto, íamos a
Babàkua por motivos bem distintos. Eu ia reunir ou
envolver os bártulos (como vulgarmente se diz) na
organização dos preparativos de minha viagem de
regresso, talvez definitiva, à minha Tossa de Mar natal.
Panizo del Valle, por sua vez, seguia rigorosamente
incógnito para Babàkua, onde nunca havia estado antes,
numa viagem tão solitária quanto emotiva; dirigia-se ao
cenário de sua imaginação, à remota península à qual
devia a sua grande fortuna, lugar que levara mais de
vinte anos pintando de forma incansável (retratando
sobretudo seus povoadores, como se fosse um novo
Gauguin), mas onde jamais tinha pisado.
Lembro que ficamos um longo tempo em silêncio, um
ao lado do outro, até que no sempre esquivo horizonte
começou a desenhar-se a costa sul da península em
forma de figura geométrica, angulosa e negra, contra o
céu sombrio. Então, como se movido por uma estranha
mola, o pintor se virou lentamente para onde eu estava e
ficou me olhando com notável fixação. De imediato, fiz o
mesmo com ele, ou seja, correspondi com um olhar não
menos fixo e insolente do que me parecia o seu.
E assim ficamos alguns segundos, que me pareceram
intermináveis. O canto lamentoso do barco nos
acompanhou. Ao nosso redor, tudo, absolutamente tudo,
transpirava: os mastros de carga, as grades, todo o
cordoamento da embarcação. Era como se um ânimo
choroso se tivesse apoderado de toda aquela zona, tão
parecida com o fim do mundo. Durante esses segundos
intermináveis, lembro que, tentando que meu olhar não
perdesse em nenhum momento sua intensidade inicial,
pus-me a pensar em outras coisas, sobretudo no
movimento da lâmpada da divisória da minha cabine
quando desenhava um círculo impecável sobre minha
velha cadeira de balanço. Essa evocação manteve meu
olhar bem longe dali e, ao mesmo tempo, muito perto
daquela situação tão arrevesada, daquele
aparentemente gratuito desafio de olhares. Panizo del
Valle, por sua vez, também manteve o olhar fixo, e a
única coisa que então lamentei foi não saber a que tipo
de longínquas e talvez sugestivas imagens ele recorria
para se manter à altura da intensidade de minhas
pupilas.
Ficamos assim por breves mas intensos segundos,
enquanto eu pensava: “Pensar em outras coisas é o que
se deve fazer para manter na linha quem ousa nos
desafiar com seu olhar”. E assim ficamos até que,
quando a costa sul de Babàkua começou a adquirir seus
primeiros tons de púrpura, Panizo del Valle decidiu falar
comigo. Não sei como adivinhou que eu era espanhol —
o mais provável é que tivesse me ouvido falar com o
contramestre —, e em espanhol me disse:
— O senhor não é de Babàkua. — Aparentemente, isso
foi dito de forma muito amável. Mas a verdade é que
nada na vida tinha me incomodado tanto. E não foi uma
pergunta ou uma suposição não. Era uma afirmação. “O
senhor não é de Babàkua.” Quem era ele para me dizer
isso? Incomodou-me tão gratuita presunção. Indignou-me
que se considerasse um entendido em babakuanos
quando eu sabia que em sua vida não tinha sequer se
incomodado em pôr os pés na península. E, sobretudo,
me indignou (reconheço que nós, os autodidatas, somos
pessoas muito suscetíveis) que nem sequer tivesse
passado pela sua cabeça a possibilidade de que eu o
tivesse reconhecido, de que eu tivesse detectado
naquele barco a presença do grande Panizo del Valle.
Sem dúvida, via-me como um pobre velho marinheiro
ignorante, um desses lobos do mar que nada sabem do
mundo da arte. Incomodou-me, indignou-me
profundamente.
— Eu vi seus malditos babakuanos — disse a ele.
— Perdão.
— Não costumo perdoar.
— Não, peço que o senhor me perdoe porque não o
entendo.
— Conheço-os a fundo.
— Quem?
— Todos esses retratos de nativos tão equivocados.
Quis manter o tipo, fazer como se continuasse sem me
entender. Fingiu que não era Panizo del Valle, mas que ia
na minha onda como se eu estivesse louco. Porém, tinha
me entendido muito bem. E, além disso, sua ansiedade o
delatava.
— Equivocados os nativos ou os retratos? — acabou me
perguntando com um sorriso mais do que forçado.
— Equivocado o pincel.
Compreendeu que era inútil continuar fingindo. Já não
conseguia disfarçar.
— Devo achar que sabe quem sou? — perguntou.
Pareceu-me que eu lhe inspirava, como provavelmente
a maioria das coisas deste mundo, uma profunda
desconfiança.
— Sim, deve — respondi.
— E o que o senhor sabe de mim?
Com essa pergunta, conseguiu que eu voltasse a me
indignar. Continuava resistindo em me ver como um
homem instruído. Por que eu não podia conhecer de
memória a sua obra?
— Sei, por exemplo, que o senhor jamais esteve em
Babàkua, nem sequer em pintura.
— Puxa, em pintura sim é que estive — brincou com
cinismo, sem dúvida inquieto e surpreendido ao ver que
eu, um pobre-diabo, sabia bastante sobre sua vida.
— E também sei — disse — que se tivesse se
incomodado alguma vez em pisar nessa terra diabólica,
saberia o quão imensamente equivocadas são todas as
suas pinturas. Não posso deixar de rir quando penso em
todos esses críticos que o consideram o último realista.
Quanta ignorância, meu Deus.
— Puxa vida — protestou timidamente. — Por que tudo
isso?
— Porque sim — respondi, notando uma tão repentina
quanto oportuna neblina que acabava de fazer sua
aparição, e que foi ficando mais espessa num ritmo
muito rápido, até quase ocultar o perfil da costa sul de
Babàkua. — Por que diabos — disse — inventou de pintar
os babakuanos de modo tão diferente do que são na
verdade?
— Eu fiz isso? É a primeira vez que ouço algo do tipo —
e riu. Com esse comportamento conseguiu que eu
continuasse bastante indignado com ele. Passei
decididamente ao ataque.
— Pena — disse a ele —, seus malditos babakuanos me
dão pena, esses retratos de puras e angelicais almas
indígenas. Sua pintura é uma salada de erros. Porque não
são estúpidos nativos com osso no nariz o que o senhor
vai encontrar aí em Babàkua. É melhor que você saiba.
Vai encontrar gente que ama o verdadeiramente
diabólico. São diabólicos. Gente que nada tem a ver com
o que o senhor pinta.
— Ora, vamos — voltou a protestar. — O senhor está
falando sério? Parece querer me dar um banho de água
fria, amigo. E, além do mais, eu jamais pintei nativos
com ossos no nariz. Pintei-os civilizados, sentados
tranquilamente em cafés ao entardecer, por exemplo.
— Mas pintou pessoas que não existem. Pintou homens
e mulheres que eu nunca vi em Babàkua, onde todo
mundo é pior do que o demônio. O senhor pintou pessoas
serenas e simpáticas, felizes e amáveis, profundamente
sinceras, nada retorcidas, adoravelmente cristãs,
bondosas, burras. Nada mais distante da realidade.
Sua expressão era um tanto incrédula.
— Como assim... burras? — disse.
Fiz como se não tivesse ouvido. Não quis dar
explicações sobre isso.
— Eu só direi ao senhor — prossegui — que são
pessoas nas quais constantemente se manifesta, talvez
como em nenhum outro lugar da Terra, e lembre-se de
que estamos nos confins dela, o verdadeiramente
diabólico.
— Nos confins dela — sublinhou com um sorrisinho,
como se eu tivesse falado bobagem.
— Eu disse alguma coisa má ou disse mal alguma
coisa, senhor sorrisinho?
— O senhor disse coisas muito incomuns — respondeu.
— Deve ser culpa dessa neblina — respondi a fim de
despistar com algo que não viesse ao caso.
— Muito incomuns — repetiu ele.
Durante alguns segundos permanecemos calados,
como se a conversa, ainda que breve, nos tivesse
deixado fatigados. Finalmente, rompi o silêncio.
— Imagino que o senhor deva estar se perguntando
que diabos é isso de verdadeiramente diabólico. Não é?
— Na verdade, não. Não estava me perguntando nada
— foi sua irritante resposta.
— Claro, prefere olhar o mar.
— Não, não é isso. Com essa neblina, qualquer um se
põe a olhar o mar...
— Então vai querer saber o que é o realmente
diabólico.
— Claro... Se faz questão... Enfim, diga, meu bom
homem, o que é o realmente diabólico para o senhor?
Achava-se muito esperto, mas a única coisa que
conseguia com tudo isso era que eu o detestasse cada
vez mais. Ele e suas pinturas. O grande Panizo del Valle!
O último realista...
— Foi o senhor que pediu — eu disse. — Para começar,
digo que seu famoso retrato de babakuana com boneca
de pano é motivo de chacota constante em Babàkua.
Não há um dia em que alguém em Babàkua não faça um
comentário irônico sobre seu equivocadíssimo retrato.
— Não sei por que disse equivocadíssimo. Limitei-me a
copiar com maestria uma fotografia. Não vejo o
problema, amigo. Retratei da forma mais fiel possível a
menina dessa fotografia. Isso é tudo.
— Aí é que está todo o problema. Mesmo com o risco
de parecer pedante, devo dizer que, para mim, as fotos
são uma manifestação diabólica do moderno, e sempre
enganam.
— Ora, ora. Quem lhe soprou uma ideia tão boba?
— A ideia é minha, e de boba não tem nada — me
enfureci. — Boba é essa cafoníssima menina com boneca
de pano que o senhor pintou. E boba somente em sua
pintura, pois na vida real... Chama-se Ajevni e, como
todas as demais babakuanas, é uma criatura muito
esperta e muito endiabrada, que se distingue por sua
tendência de sentir grande despeito ou muito ciúme, o
que dá no mesmo, de sentir muita inveja de tudo. E a
inveja, se o senhor não sabe, é uma das paixões
nacionais em Babàkua. E a inveja, se também não sabe,
é uma das manifestações mais claras do
verdadeiramente diabólico.
— Sinto muito, cavalheiro. Pintei essa menina doce e
serena, nada invejosa. Apresento minhas desculpas. Mas
é assim tão grave não tê-la pintado invejosa?
— Claro que é — disse energicamente. — Sobretudo
levando em conta que o senhor sempre se gabou de
pintar a realidade de Babàkua e, no entanto, ignora
detalhes tão elementares como o de que em Babàkua
todas as mulheres, sem exceção, morrem de inveja.
Desde meninas, todas desejam ter a boneca de pano da
sua melhor amiga. E quando se tornam adultas, querem
todas ser o marido de sua melhor amiga. Desculpe. Quis
dizer que invejam sua melhor amiga pelo marido que ela
tem.
Novamente me presenteou com um incômodo
sorrisinho de pedantismo, desta vez, sem dúvida, por
causa da pequena confusão que fiz ao falar. Mas
continuei como se nada tivesse acontecido.
— E por inveja — eu disse — os homens de Babàkua
matam. Matam para ficar com a boneca de pano que
menos sua lhes pareça. Seus babakuanos são invejosos e
assassinos, e o senhor sem saber de nada.
Ficou me observando fixamente, como se tentando
adivinhar se eu estava louco ou se dizia a verdade (e não
fazia então mais do que preveni-lo do horror que ia
encontrar em Babàkua), ou se era, simplesmente, um
charlatão muito incômodo.
Desta vez eu não quis entrar em um novo duelo de
olhares.
— Ouça — disse-lhe —, eu já vi muitos quadros, muitos,
ainda que o senhor ache que eu não passo de um pobre
marinheiro ignorante. E devo lhe dizer que de um pintor
eu só espero, exijo, que sua relação com o que é definido
no quadro seja direta, sem equívocos possíveis, real,
mesmo que essa realidade não tenha mais vida, mais
definição que a do próprio quadro. Por isso me irritam tão
profundamente o senhor e a sua extravagante e
irresponsável relação com a realidade de Babàkua. O
senhor jamais se comprometeu com o que pintava.
Retratou babakuanos como retrataria estampas em
missais. Sua frivolidade, para mim, é desprezível.
— Invejo seu bom humor — limitou-se a me dizer.
Dissimulei minha sensação de fracasso.
— Parece que não quer me entender. Estou tentando
fazê-lo ver que ainda há tempo para aceitar a realidade e
envolver-se nela.
— Está certo, meu bom homem, está certo. Ou que
ainda há tempo para eu ir embora daqui e deixar o
senhor a sós com suas idiotices de mexeriqueiro.
Foi então que me dei conta que, ainda que tentasse
não deixar transparecer, alguma inquietude tinha se
apoderado dele. Ao dizer aquilo, que ainda estava em
tempo de sair dali, não tinha feito mais do que
demonstrar, sem se dar conta, uma certa percepção de
que não poderia continuar suportando por muito tempo
as verdades que eu estava lhe dizendo sobre a sua
mentirosa e equivocada pintura.
Isso me deu ânimo. Voltei à carga. Disse-lhe:
— O senhor deve ter muito orgulho, por exemplo, de
toda essa celebrada série de quadros que pintou sobre os
religiosos de Babàkua. Todas essas famosas pinturas de
padres pregando a verdade, sempre com o inefável
vulcão Ogof ao fundo. Belas pinturas, sim senhor, mas
redondamente equivocadas, porque em nenhum
momento refletem a realidade de Babàkua. Enfim, o
senhor deve se sentir muito satisfeito com a sua obra,
mas vou lhe dizer uma coisa, e o senhor me perdoe, mas
acho que é minha obrigação, vou lhe dizer apenas isto: o
senhor deveria morrer de vergonha.
— Bom, vejo que o senhor está cismado comigo —
disse aparentando não estar nem um pouco tocado pelas
minhas palavras. — Vejamos, o que há com os meus
quadros de religiosos babakuanos? Também os pintei
mal?
— Não poderia ter pintado pior. Não há nada mais
distante da realidade de Babàkua que suas pinturas de
religiosos. Porque o senhor deveria saber que em
Babàkua todo mundo, incluindo os padres, cultiva a arte
da mentira, e é evidente que o senhor nunca soube
disso. A mentira, já é hora do senhor saber, é outra das
mais claras manifestações do verdadeiramente diabólico.
E em Babàkua reina por todo lado. Há inclusive
monumentos dedicados à Mentira. É outra das paixões
nacionais. No entanto, vem o senhor, meu bom homem
— devolvi-lhe o insulto —, vem o senhor e pinta esses
pirados pregadores como se estivessem divulgando nada
menos do que a Verdade com letra maiúscula. Nem
imagina que todos esses pregadores adoram a mentira. E
sabe por quê? É simples. Para não perder a clientela. Eles
sabem que só a mentira fascina seus fregueses, e dão o
que lhes pedem: uma mentira atrás da outra. Por isso me
causam tanta pena, ou melhor, tanto riso todos esses
quadros em que o senhor retrata pregadores íntegros e
cheirando a santidade.
— Não posso acreditar — disse, e pareceu que estava
começando a se preocupar.
— E, além disso, em Babàkua — prossegui — todos são
difamadores. Todos, sem exceção, dedicam-se a difundir
notícias falsas sobre o próximo. Mas não dá para dizer
que isso esteja exatamente evidente nesses sublimes
quadros em que o senhor pinta entardeceres em cafés
transbordando de babakuanos calados e serenos,
incapazes de falar mal de alguém. São de fazer rir todos
esses seus babakuanos mirando o horizonte. Tão
silenciosos. Pelo visto, o senhor ignora que ao entardecer
os cafés se enchem, transbordam de gente que não para
de se exercitar no velho esporte da difamação. Se o
senhor tivesse retratado a realidade, teria intitulado
assim seus quadros de cafés babakuanos: Entardeceres
viperinos na península do Mal.
Panizo del Valle abaixou ligeiramente a cabeça, e
parecia cada vez mais preocupado.
— O senhor vai ver — continuei. — Logo vamos
desembarcar, e o senhor vai ter a oportunidade de
comprovar a veracidade do que estou lhe dizendo.
Poderá em seguida perceber a minha absoluta falta de
surpresa quando começarem a difamá-lo sem piedade,
assim que puser os pés no lugar. Mesmo que não o
perceba, dá no mesmo; o difamarão de imediato, o
senhor vai ver, e com muita vontade. Eles são assim.
Vivem esperando gente nova para alargar o campo de
suas difamações. O senhor nem imagina o quanto os
diverte esse esporte nacional. E difamar, se o senhor
ainda não sabe ou não adivinhou, é outra das mais claras
manifestações do verdadeiramente diabólico. Eles se
entusiasmam além do imaginável. E no entanto o senhor
sempre retratou os babakuanos como almas puras e
intocadas. Veja que pôs em um dos seus quadros o título
de O frescor da vida selvagem... O senhor me faz rir.
— Esse quadro e esse título não são meus — protestou.
— Mas poderiam ser. Pois essa é a ideia que percebo
por trás dos seus quadros de maior sucesso. Refiro-me
àqueles em que se veem nativos dançando em praias ao
amanhecer, sempre ao redor de uma fogueira. A ideia
por trás desses quadros é clara: o frescor da vida
selvagem.
Ri sozinho, sentindo-me um tanto vitorioso. Bastava
ver o rosto preocupado de Panizo del Valle. Então
continuei:
— O que o senhor não sabe, porque o senhor não sabe
nada sobre Babàkua, é que enquanto dançam também
aproveitam para difamar, só que, nesse caso, a
difamação é feita exclusivamente para a fogueira,
representação em miniatura do vulcão Ogof. Por isso
dançam tanto. Como adoram difamar e como adoram
que a fogueira os escute enquanto difamam, são
incansáveis em matéria de dança praiana e matinal.
Parecia agora entre cansado, preocupado e aturdido.
Era evidente que não gostava nada do que eu estava lhe
dizendo, principalmente porque tinha começado a intuir
que eu não mentia; tinha começado a se dar conta de
que eu o estava colocando a par da áspera realidade,
muito distante de suas telas, que iria encontrar quando
desembarcasse em Babàkua.
— São uma raça diabólica — insisti, olhando-o
fixamente nos olhos.
Houve, então, um primeiro movimento de retirada.
Como se já não pudesse mais comigo. Fiz o que pude
para detê-lo.
— Dá na mesma que o difamem assim que
desembarque — disse a ele —, porque na verdade já faz
tempo que se dedicam a falar mal do senhor. Nunca
nenhum babakuano lhe contou? Ninguém lhe escreveu
de Babàkua? Receio que não, receio que o senhor não
tenha o menor contato com as pessoas dali.
— Certa ocasião uma babakuana me escreveu e me
contou que pertencia a uma raça feliz, como é difícil
encontrar sobre a Terra.
— Já disse que a mentira os fascina.
— Já. A verdade é que não sei mais o que pensar.
— Dizem do senhor que é a soma de todos os homens
drogados do mundo, o que explicaria não ter pintado
Babàkua tal como é.
Notei que ele se entristeceu profundamente.
— Desculpe ter sido tão direto — lhe disse —, mas
desde o primeiro instante senti que era minha obrigação
adverti-lo sobre o que o senhor vai encontrar ao
desembarcar em Babàkua.
— Cavalheiro, foi um prazer — disse enquanto tentava
uma nova retirada. — Não sei se é verdade o que me
conta. Mas, em todo caso, vou indo. Prefiro não saber
mais nada.
Deu meia-volta e tomou a direção de seu camarote. A
neblina parecia começar a perder intensidade. Logo o
inquietante perfil da costa sul de Babàkua reapareceria.
Logo poderia voltar a ver aquela figura geométrica,
angulosa e negra, contra o céu sombrio.
Tentei a sorte, para ver se conseguia detê-lo um pouco
mais.
— Todos os babakuanos sabem ler e falar ao revés —
gritei.
Consegui que detivesse seus passos. Deu lentamente
meia-volta e, titubeante, mas avançando, se pôs de novo
diante da grade.
— Como disse? — me perguntou.
Era possível ver um raio de esperança em seu olhar.
— Se alguma vez — respondi — tivesse intitulado um
de seus quadros ao revés, ao menos nisso o senhor teria
sido fiel ao espírito arrevesado desse povoado.
Ele estava repentinamente feliz. Mas eu também
estava. No meu caso, por ter-lhe estendido essa
magnífica armadilha que o tinha feito voltar sobre seus
passos.
— Mas faz anos que eu sei que eles gostam, de vez em
quando, de ler e falar ao revés. Por isso vários quadros
têm, sim, o título ao contrário. Ao menos nesse aspecto
não fui ignorante da realidade do país.
Ficou, por uns segundos, pensativo. E logo
acrescentou, visivelmente satisfeito:
— É mesmo verdade que o senhor conhece minha
pintura?
Ele estava radiante com a possibilidade de que até
então eu estivesse mentindo.
— Não será o senhor — disse ele — o mentiroso e o
difamador, o verdadeiramente diabólico em tudo isso?
E riu. Era tamanha sua alegria repentina que assumiu
uma expressão de prazer ensandecido. Até então tinha
estado muito nervoso, e isso tem um preço.
— Prefiro não responder — lhe disse.
Eu sabia perfeitamente dos títulos ao revés. Qualquer
um que conheça a pintura de Panizo del Valle o sabe, e
não apenas o sabe como é a primeira coisa que comenta
quando alguém pergunta do pintor. “O dos títulos ao
revés”, diz o clichê. Se tinha fingido ignorá-lo, era porque
me pareceu o truque ideal para deter o pintor ali na
coberta do navio. Não me agradava a perspectiva de
ficar sem interlocutor.
— Não será o senhor — repetiu exultante — o
mentiroso e o difamador e o invejoso? Agora entendo.
Como não percebi isso antes? Tudo o que o senhor me
disse não obedecia mais do que à inveja que sente por
minha fama, por meu sucesso, por meu enorme vínculo
com a realidade.
Tinha ganhado confiança de repente, o que não
deixava de ter graça, pois nem cinco minutos antes
parecia o homem mais arruinado sobre a Terra.
— Então o senhor não sabe — continuou exultante —
que alguns dos meus quadros, precisamente os mais
famosos, têm títulos ao revés? Que revés o seu, meu
amigo, que revés. E quando menos o esperava, não é
verdade?
Poderia ter acabado com sua frágil alegria limitando-
me a perguntar por que o quadro da menina Ajevni e sua
boneca de pano não tinha o título ao revés, ou seja, por
que não se chamava Inveja. Teria sido suficiente. Mas
não disse nada. Preferi ser prudente e me limitei a repetir
sua última frase ao revés.
— Avarepse o sonem odnauq e — disse, e fiquei
esperando sua reação.
Ficou um tanto confuso, diria mesmo pálido. Como não
era imbecil, imediatamente compreendeu que lhe tinha
repetido sua frase ao revés. Depois de um breve e
incômodo silêncio — não parava de me olhar intrigado —
acabou dizendo:
— O senhor é de Babàkua.
Fiquei furioso. Continuava a se acreditar um entendido
na matéria. E, pelo visto, pensava que podia decretar a
seu bel-prazer a minha nacionalidade. Antes, achava que
eu fosse um ignorante e estúpido velho lobo do mar,
agora, me via como um indígena de osso no nariz. Não
pude evitar lhe dizer:
— O senhor está louco. E pensar que o consideram o
último realista...
— Cavalheiro — tentou novamente bater em retirada
—, foi um prazer.
Enquanto me estendia a mão — uma prova de que não
acabava de se decidir a sair —, passei a descrever-lhe
mais horrores, aquilo que, por falta de tempo, ainda não
tinha podido lhe contar sobre o temível e infernal caráter
dos babakuanos. Panizo del Valle não deixou em nenhum
momento de me olhar com estranheza, como se o louco
fosse eu, sempre duvidando de que estava dizendo a
verdade. Parecia estar pensando: não posso acreditar no
senhor, meu amigo, não pode ser que essa gente seja
tão imensamente má.
Expliquei a ele com muitos detalhes que os
babakuanos não eram apenas, como já tinha lhe
contado, mentirosos, invejosos e difamadores, mas, além
disso, também mesquinhos, desprezíveis, malignos e
terríveis envenenadores das almas cândidas.
— Estes são — lhe disse — os sete traços mais
distintivos de sua maneira de ser. E são, precisamente,
as sete manifestações essenciais do verdadeiramente
diabólico. E o senhor ignorou isso tudo, pintando-os como
se fossem anjinhos.
— Cavalheiro, foi um prazer — disse, e deu meia-volta.
Dessa vez parecia decidido a me deixar sozinho na
coberta da embarcação.
Então cometi o erro.
Até aquele momento, tinha me limitado a adverti-lo
sobre a tenebrosa realidade que ia encontrar em
Babàkua. Até aquele momento, não tinha inventado
nada, apenas me limitado a informá-lo do que
encontraria quando desembarcasse. Mas ao vê-lo tão
rotundamente decidido a regressar ao seu camarote,
menti. Tornei-me um traidor da realidade de Babàkua. E
tudo pela necessidade de não ficar sozinho, e tudo para
deter Panizo del Valle por uns minutos mais.
Então cometi o erro.
— Viu estas fotografias? — perguntei.
Mostrei a ele três aterrorizantes instantâneos que
haviam dado de presente ao meu amigo José, o
contramestre do barco, num porto de Moçambique.
Viam-se ali as catastróficas consequências de recentes
lutas tribais. Mas disse a Panizo del Valle que eram
fotografias tiradas, uns dias antes, no cemitério de
Satsitra Suam, mais conhecido como Campo Violeta dos
Realistas Torturados. Em Babàkua.
— Todos esses cadáveres que o senhor vê aí,
horrivelmente torturados, espantosamente mutilados,
secam ao sol, segundo um velho costume babakuano,
antes de serem transferidos ao seu último destino, ao pé
do vulcão Ogof.
— E fotografias não mentem — disse, recordando-lhe
suas próprias palavras.
Devo dizer que me arrependo de haver mentido
daquela forma. Mas a verdade é que não o fiz com má
intenção. Meu propósito era detê-lo. Eu só queria que
Panizo ficasse um pouco mais ali na coberta. Hoje, claro,
me arrependo. Pegou mal. Mas quem poderia prever que
essas fotografias moçambicanas constituiriam o fator
final pelo qual o grande Panizo del Valle acabaria
aceitando a realidade, ou seja, o fato inquestionável de
que tinha sido a vida inteira um péssimo pintor?
O mau pintor sabe, de alguma maneira, que o é, e por
isso tem uma inquestionável má consciência. Não fiz
mais do que ajudar o grande Panizo del Valle a enfrentar
a realidade. Ajudá-lo a compreender que a pintura não é
nada se não for perigosa.
— Já vou. Sim. Acho que já vou — disse, e eu li, ou
acreditei ler em seu rosto, uma expressão de profundo
mal-estar, possivelmente a sua má consciência. — Com
quem tive o gosto, quer dizer, o desgosto de conversar?
Desgostei da palavra desgosto, mas viva a
redundância. Então cometi um novo e, creio, gravíssimo
erro. Do mesmo modo que às vezes um mal-entendido
leva a outro, o mesmo aconteceu em relação aos meus
erros.
Mostrei-lhe meu passaporte.
Meus dois sobrenomes, tão catalães, devem ter
representado para ele um pequeno alívio, momentâneo,
mas no fim das contas um alívio.
Durou pouco. O tempo durante o qual ele ficou olhando
com doçura o horizonte em que já se podia ver — com
relativa claridade — a costa sul de Babàkua e o vulcão
Ogof ao fundo. A neblina havia se dissipado — mais
tarde, voltaria de repente, dando mostra do estranho
desequilíbrio das leis da natureza nas redondezas da
península —, e seguiram-se uns momentos de calma.
Momentos únicos, inesquecíveis, os últimos. Porque
pouco depois ele teve a ideia fatal de ler ao revés e em
voz alta meus dois sobrenomes.
— Satam Alive — ouvi-o dizer.
Eu diria que todo o barco o ouviu. E seu grito acabou
confundindo-se com o canto tétrico e lamurioso da
embarcação.
— Satã vivo — acrescentei com falsa inocência, como
se para acabar de corrigi-lo.
Dizer que estava lívido é pouco.
E aquilo foi como uma sessão de teatro que chega
abruptamente a seu final. Panizo del Valle, com o rosto
transformado, dirigiu definitivamente seus passos em
direção ao camarote, do qual não sairia até chegar a
Babàkua. Nem sequer se despediu.

A neblina havia reaparecido, e a selva estava


enegrecida e encharcada quando chegamos ao porto de
Fiu, em Babàkua. A umidade revelava-se em todos os
galhos, acima do toldo tenso que guarnecia a ponte. Era
um amanhecer gelado, algo pouco habitual nessa época
do ano, se bem que, para dizer a verdade, naquele clima
nada nunca era habitual.
A antepenúltima coisa que vi de Panizo foi seu perfil
sombrio e diluído naquele amanhecer gelado. Parecia
fugir de mim, de si mesmo, de sua espantosa pintura tão
equivocada, de tudo. Depois, vi-o saltar no cais. Ia
vestido simplesmente com uma calça larga, que
pertencia sem dúvida a seu pijama, e uma camiseta
florida. Sem bagagem. Tinha deixado tudo a bordo.
Nessa manhã, ao ver aquela figura de louco de pijama
que avançava pela inconstante neblina, pensei que
provavelmente jamais voltaria a vê-lo. E assim foi.
Perdeu-se na selva, não sem antes me lançar, em
despedida (alguns amigos afirmaram que com ódio
eterno por eu ser tão insuportável, mas duvido que fosse
por isso), um olhar tão entregue quanto profundamente
alienado.
E agora só me resta confiar que o relato dos fatos que
precederam o desembarque do grande Panizo del Valle,
metido em um furioso pijama, lance alguma luz sobre as
misteriosas circunstâncias que cercaram a desaparição
do pintor. Eu, do meu lado, quero apenas acrescentar
que, no meu modesto entender, ninguém de pijama
adentra impunemente a perigosa selva de Babàkua. E
isso me leva a pensar que ele, à última hora, num gesto
tão admirável quanto comovente, decidiu brincar,
arriscar pela primeira vez em sua vida, arriscar e
adentrar de corpo limpo na realidade.
Quanto a mim, acho que já disse antes. Sou apenas um
pobre-diabo. O pobre-diabo, para ser mais exato. Estou
cansado de ser quem sou. Já são muitos anos fazendo
cachorradas. Enquanto escrevia isto, fui me dando conta
de que eu também tenho muita vontade de desaparecer.
Passei em revista todas as possibilidades de suicídio e,
depois de encontrar objeções para cada tipo de morte,
decidi me fazer cócegas até morrer. E que me enterrem
em Babàkua, onde pilotei — acho que está na cara — um
baleeiro, um senhor baleeiro, ao longo da costa.
Os amores que duram por
toda uma vida

Ser professora de escola não é um trabalho


apaixonante — eu diria inclusive que ser bedel é mais —,
mas tem a vantagem de que se fica em permanente e
alucinante contato com a mediocridade humana (assim
nunca se esquece onde realmente se está, e em que
mundo se vive) e, além disso, pode-se desfrutar de
muitos meses de férias. Agosto é o meu favorito. Todos
saem de Zaragoza, vão a praias infectas para tomar
picolés estragados e me deixam bem tranquila com
minha avó no apartamento da Gran Via. Ali fumamos.
Minha avó fuma cachimbo. Na juventude, quando
mulheres fumando não eram bem vistas, ela causava
escândalo. Me contou isso não sei quantas vezes. Todos
os anos, quando chega agosto, repete isso e ficamos as
duas sozinhas no apartamento e ela — bem de acordo
com seu papel de avó — se sente mais ou menos
obrigada a me contar histórias. E conta as histórias não
só para sentir-se avó, mas também para impedir que eu
lhe conte muitas histórias inventadas. A cada agosto
vivemos uma simpática, porém firme e permanente luta
para ver qual das duas conta à outra mais histórias. As
de minha avó são todas sempre rigorosamente verídicas.
A cada ano, quando chega agosto, repete a da confusão
enorme que armou na praia da Concha de San Sebastián,
quando apareceu enfeitada com uma mantilha e com
fumaça saindo até pelas orelhas.
Há muita fumaça — é natural — na casa. Fumo um
cigarro atrás do outro e jogo as bitucas no velho e íntimo
ventilador que nada ventila, o coitado, ainda que hoje
não seja afinal necessário fazê-lo, pois o dia é quase frio
e está nublado, e não falta muito para que comece uma
boa tempestade. Jogo os restos do vício — as bitucas
bem cortadas —, como se não fossem nada, no
ventilador que não ventila nada. Mas hoje não sei se é
muito apropriado dizer tanto a palavra nada. Estou muito
nervosa, e não se pode dizer que não se passe nada.
Ainda por cima, minha avó me olha com infinita raiva.
— Estou esperando, Ana Maria, que me explique por
que me deixou sozinha nestes três dias — me diz, e está
realmente muito chateada comigo.
Minha mala ainda está no corredor. Acabo de voltar de
minha viagem de fim de semana a Cerler, o vilarejo mais
alto dos Pireneus aragoneses. Minha avó, que espera
uma explicação imediata, me olha com severidade, e
puxa seu cachimbo. Estou sentada no sofá, e fumo. Tento
acalmá-la, quando o que deveria fazer é, para começar,
me acalmar. Porque estou desfeita, completamente
destroçada, desesperada. Preciso contar a minha avó o
que me aconteceu e, ao mesmo tempo, tentar entender
alguma coisa do que aconteceu.
Adoro inventar histórias, mas a que vou contar para
minha avó, a que agora preciso contar,
desgraçadamente aconteceu de verdade. E não sei muito
bem por onde começar, nem se minha avó vai acreditar.
Se a resumo em quatro palavras — ou seja, se a ponho a
par da desgraça e ponto — podem ocorrer duas coisas:
ou não acredita em mim, e ainda por cima dá risada (o
que pode me deixar mais arruinada e destroçada), ou
acredita e tem um ataque do coração (ultimamente,
qualquer notícia triste à queima-roupa a deixa à beira do
colapso). De modo que o melhor é contar tudo bem
devagar e que ela mesma, pouco a pouco, vá intuindo
que essa história acaba mal.
— Já disse, vó. Fernando precisava de mim.
A expressão de minha avó é de fingida perplexidade.
Fingida porque sabe perfeitamente do que estou falando.
A verdade é que, nesses momentos, a mataria com uma
merecida notícia triste à queima-roupa, mas, afinal, vou
evitar cair nisso. Olha para mim com raiva. Suponho que
suspeite que, mais uma vez, eu vá lhe contar um bom
conto. Sempre inventei tantas histórias — como gosto
daquela da cédula que voou!, é a minha preferida — que
é lógico agora ela se mostrar cética ante o que acredita
poder ser uma nova história das minhas.
Continuo fumando, trago profundamente, e logo
prossigo, às cegas. Digo a ela:
— Fernando me convidou para ir a casa dele em Cerler.
Já contei que se sentia numa situação muito complicada,
e que tinha me pedido que, por favor, desse a ele uma
ajuda. Já lhe disse, vovó. Você sabe que Fernando é meu
melhor amigo e eu não podia negar. Eu disse que seriam
só três dias e foram, não é verdade? Foram no total três
dias, como eu disse. Você se sentiu muito sozinha?
Vovó não responde. Cala mas não consente. Eu me
atropelo um pouco com as palavras, e a introduzo na
história do grande amor de Fernando e Beatriz.
— Ele precisava urgentemente de mim ao seu lado
porque seu grande amor, essa Beatriz da qual uma vez já
falei à senhora, ia vê-lo em Cerler em companhia de seu
mais novo namorado. E ele, que quando a convidou não
sabia que ela acabava de arrumar um novo namorado,
precisava de sua melhor amiga, ou seja, eu, para
compensar a, como dizer, irritante presença do
namorado inesperado e não convidado. Já está mais clara
a coisa?
— Você está muito nervosa — disse minha avó.
— Mas a coisa está ou não mais clara?
— Não — disse. — Nada.
E em parte ela tem razão. Atropelo-me ao contar, estou
muito nervosa. Deveria contar as coisas de um modo
mais calmo para que pudesse me entender melhor;
deveria contá-las do jeito que ela faz, ainda que na
verdade a coitada tampouco as conte de um modo
perfeitamente ordenado; além disso, repete-se, repete-se
muito. Uma amiga me disse que minha avó só tinha uma
história e por isso se repetia tanto. Se isso é verdade,
supero minha avó em histórias, porque tenho, no
mínimo, duas: a da cédula que voou (com a qual talvez
se pareça muito o resto das histórias que até agora
inventei) e a deste fim de semana em Cerler. Deus meu,
tenho duas. Mas a segunda preferia não ter. E também
acho que deveria demorar menos para contá-la. Porque
está certo que vá preparando minha avó para a terrível
notícia final, mas não acho que seja necessário ir tão
devagar. Já faz tempo que deveria tê-la posto a par da
história do grande amor de Fernando por Beatriz. Deveria
ter dito a ela algo mais sobre essa paixão extrema desde
o dia em que ele viu Beatriz pela primeira vez e ficou
apaixonado de forma fulminante. Até então ele não havia
notado nenhuma outra mulher. Uma coisa um tanto
penosa, se levarmos em conta que já me conhecia, mas,
enfim, sempre me viu como uma amiga e por isso — por
mais que eu desejasse, e foram infinitas as vezes que o
desejei — é algo que desgraçadamente já não se pode
mudar.
Digo a minha avó:
— Talvez me entenda melhor se eu disser que
Fernando permaneceu sempre fiel a esse seu primeiro
amor. Desde que viu Beatriz, e isso logo fará dez anos, se
apaixonou por ela de modo irredutível. Disse a si mesmo
que nunca poderia substituir Beatriz em seu coração.
Mas não confessou a ela seu amor: ficou esperando que
ela lhe correspondesse. Mas como isso não aconteceu,
pouco a pouco foi descobrindo as angústias e as delícias
dos amores impossíveis.
Olho minha avó e vejo que continua me olhando com
raiva. É evidente que acha que eu estou inventando
tudo. Estou certa de que não vai demorar a dizer, mais
uma vez, que sou uma maníaca na invenção de histórias.
Mas sinto que devo continuar. Digo a ela:
— Acho que o Fernando se atirou porque quis nesse
tipo de amor que nos faz passar muito mal, pois o
mantemos em segredo e nunca somos (e estamos certos
de que nunca seremos) correspondidos, o que no fundo é
um alívio total, porque é terrível que nos amem. Está
entendendo alguma coisa, vovó?
— Não, nada — me diz.
— Nada? — quase grito.
— Você está muito nervosa, Ana Maria.
— Mas me entende um pouco pelo menos?
— Não — disse. — Nada.
Bom, em parte ela tem razão, teria que dar menos
voltas e, além disso, falar sem me atropelar nas palavras
e sem estar o tempo todo com a alma encolhida.
Estava cada vez mais próxima a tempestade. O vento
move as cortinas das janelas. Levanto e desligo o
ventilador. Acendo outro cigarro. Olho minha avó.
Continua zangada e olhando-me com total desconfiança.
Digo a ela:
— Foi um amor impossível, sempre foi, porque, se algo
estava claro desde o primeiro momento, era que jamais
Beatriz se apaixonaria por ele. Eu não sei, mas sempre
me disse que talvez tenha sido essa precisamente a
causa de ele se sentir tão seduzido por ela. Porque foi
tudo tão estranho nesse enamoramento...
Pergunto a mim mesma se não haverá algo de
escandaloso em minhas palavras, pois apesar de estar
tratando de contar uma coisa muito dolorosa para mim,
sinto certo prazer perverso ao fazê-lo. Talvez a minha avó
tenha razão quando me chama de a maníaca das
histórias.
— Ainda me lembro — digo — do dia em que ele a viu
pela primeira vez e veio me dizer umas palavras que
ficaram profundamente gravadas em mim, e a prova é
que me lembro delas com exatidão. O Fernando me
disse: você não sabe, Ana Maria, como é bonita a mulher
que acabo de conhecer. É alta, morena, com uma
magnífica cabeleira preta que lhe cai em tranças pelos
ombros; seu nariz é grego, seus olhos luminosos, suas
sobrancelhas altas e lindamente arqueadas, sua pele
brilhante como se fosse veludo misturado a ouro. E tudo
isso junto com uma fina penugenzinha que escurece seu
lábio superior e dá ao seu rosto uma expressão viril e
enérgica que faz empalidecer as belezas louras...
Faço uma pausa. Ainda me surpreende a exatidão com
que recordo essas palavras. Logo acrescento:
— Acho que se alguém é capaz de falar assim é porque
está muito, mas muito apaixonado. Não acha?
— Uma expressão viril, você disse? — pergunta minha
avó, revelando que está mais interessada do que parece
em minhas palavras.
— Sim, eu disse isso.
— E não será que esse seu amigo Fernando se
apaixonou na verdade por ele mesmo?
Pergunta estranha. Não sei como responder. Minha avó
está muito entretida abanando a fumaça que, sem
querer, soprei na direção dela.
— Então a senhora está entendendo alguma coisa do
que tento lhe contar? — digo.
Vã ilusão a minha.
— Não entendo nada — me diz, e sorri.
Também sorrio, mesmo que pouco, mas sorrio, a
verdade é que precisava disso. Compreendo que minha
avó estava me dando uma margem de confiança. Sem
dúvida pensa que invento tudo, mas ao menos não está
totalmente segura. Tento não jogar mais fumaça em sua
cara.
— O que eu quero que entenda — digo — é que o
Fernando se deparou, nem mais nem menos, com seu
ideal feminino, o que não é pouco. Desde então, Beatriz
se tornou sua paixão secreta. E ela nunca o soube,
jamais se inteirou disso. Assim estão as coisas. E assim
estavam quando cheguei a Cerler e vi. Sabe o que eu vi?
— Qualquer coisa — disse a avó.
— Vi — digo a ela e que pense o que quiser — nada
menos do que paraquedistas chovendo ao redor do
povoado. Praticantes do parapente pireneu. Já ouviu falar
disso?
Não responde.
Explico a ela no que consiste o parapente. Conto que é
uma variante fascista do já por si só fascista exercício de
se deixar cair, sem mais nem menos, sobre povoados
tranquilos.
Imagino que vá dizer que não me disperse quando de
repente encolhe os ombros — suponho que tratando de
me indicar que não dá a mínima para tudo isso — e me
surpreende dizendo exatamente o contrário:
— Você está indo pelas beiradas, que é onde vão parar
as vulgares e as más paraquedistas. Anda, lembre-se de
onde estava. Volte atrás. Acho que estava empoando o
nariz dessa senhorita chamada Beatriz.
Parece, portanto, que a tensão entre nós está
diminuindo sensivelmente. Já quase não há sinais de
censura por eu tê-la deixado sozinha por três dias. Mas
não deixa de ser lamentável comprovar que não dá
crédito a minha história. Está claro que não acredita
numa só palavra do que conto. É evidente que está
pensando que fui ver o Fernando para passar o fim de
semana em Salou, e ponto. Mas seu inesperado bom
humor me reconforta. Me faz lembrar do de Fernando
quando cheguei a Cerler e, acreditando que ia encontrá-
lo muito inquieto, quando não desesperado, me
surpreendeu com uma careta muito alegre e esticada.
— O que é que há? — perguntei a Fernando, confusa.
— Esperava te encontrar com problemas e me recebe de
excelente bom humor.
Como agora, havia uma espécie de ameaça de
tempestade no ambiente.
— Deve ser — me respondeu Fernando — porque este
clima, este clima de montanha me cai bem.
Eu ainda não tinha entrado na casa, ainda estávamos
no portão. De repente me dei conta de que sempre tivera
uma grande ascendência sobre ele, e de que eu era
talvez a única pessoa no mundo capaz de alegrá-lo,
talvez porque fosse a única que conhecesse seu segredo
e, portanto, a única com a qual, na hora h, podia
realmente desafogar.
— Entre, Ana Maria — me disse. — Entre e vai ver que
divertido! Na saleta está a Beatriz com seu radiante
namorado. Tenho certeza de que não imagina como ele
é.
E a duras penas conteve o riso.
Pensei num anão, num travesti disfarçado de
escafandrista, num louco de cabelo vermelho, num
tenista com a raquete incluída, num incendiário, num
homem muito peludo, num ponto de teatro disfarçado de
missionário, num corretor da bolsa e até num monstro
com três olhos e cinco orelhas nas costas. Morria de
curiosidade quando, ao ir entrando na saleta, Fernando
me sussurrou ao ouvido:
— É um saráui.
Conhecendo os namorados de Beatriz, não era
especialmente surpreendente. Tampouco algo que me
fizesse rir: não via onde estava a graça. Mas Fernando
sim, e isso, depois de tudo, era melhor do que o
contrário; era preferível que aquilo o deixasse de tão
bom humor. Melhor assim, pensei. Pois no que ele
sempre pecava era em uma excessiva, quase brutal,
dramaticidade, sempre provocada por sua incorrigível
tendência ao exagero. Exagerava em tudo. Em sua
profunda aflição, por exemplo, pela Espanha, que via
afundada eternamente por nossa congênita
incompetência geral. E se envergonhava tanto de nosso
passado político que, às vezes, levado pelo exagero,
chegava a se sentir o único responsável por todos os
abusos de nossa história, o que o levava a se
transformar, claro, no ser mais triste da Terra. Seu
bisavô, seu avô e seu pai tinham sido diplomatas ou
militares, mas isso não justificava sua atitude exagerada
nessas ocasiões. Fernando era um desses tipos tristes
que, dia sim dia não, se sentem os responsáveis pelo
nosso passado nefasto. E que se deixam abater
profundamente.
Sua incorrigível tendência ao exagero se refletia
também na questão do amor, pois o que é amar com
uma estranha profundidade, silenciosamente, sem ser
correspondido, senão amar exageradamente? Exagerava
em tudo. E enquanto eu me dizia tudo isso, me perguntei
se os que amam dessa forma não são os que pensam
que o amor é o essencial e veem no sexo apenas um
acidente. Para mim, Fernando estava apaixonado pela
ideia do amor e conhecia, portanto, a única fórmula para
que ele durasse toda uma vida.
Minha avó interrompe meus pensamentos:
— Pode-se saber o que está acontecendo com você
agora? — me diz. — A terra engoliu você? Anda, lembre-
se de onde estava. Estava empoando o nariz da
senhorita Beatriz, lembra?
Ouve-se um forte trovão. A tempestade está cada vez
mais perto. Apago o cigarro e acendo outro. Digo a ela:
— Ah, sim. E o namorado dela, veja que curioso, era
saráui.
— Não me diga — disse minha avó com certa ironia.
— Não acredita em mim, não é verdade?
— Não — diz.
Penso que tanto faz e continuo, preciso continuar.
Conto a ela do jantar dos quatro num restaurante do
povoado. Explico-lhe que, no início, e a pedido de
Fernando, tive que falar muito, e que contei a história da
nota que voou na minha infância.
— Uma das primeiras noites da minha vida que me
lembro — disse a eles —, foi numa casa de campo, muito
pobre, em que a janela estava aberta, e uma grande
tempestade se aproximava. O vento soprava. Chegou um
homem com um papel e um valor escrito nele. Quando
minha mãe e minha avó abriram a porta, ele entrou
imediatamente para pegar o dinheiro que estava sobre a
mesa. Mas talvez porque a porta aberta tivesse criado
uma corrente de ar, o vento que estava do lado de fora
deu a volta de repente pela sala e roubou literalmente o
dinheiro que estava sobre a mesa: uma nota de mil
pesetas. Essa nota era o aluguel. Roubou-a e a levou,
pela janela, até um bosque que ficava do outro lado do
caminho. Imediatamente minha avó correu para fora,
para o bosque, a procurar as preciosas mil pesetas. E,
enquanto se escutavam os trovões e começava a chover,
minha mãe rogava ao homem com infinitas palavras
ternas e suplicantes que nos perdoasse: o vento tinha
roubado o aluguel!
Como era de se supor, minha avó protesta
energicamente. Diz que essa história, que já ouviu mil
vezes, e que eu inventei ou li e roubei de algum lugar, a
deixa indignada, pois é vergonhoso sair por aí contando
coisas que não são de todo verdade.
— Olha só, dizer que você foi pobre na infância. Onde
fomos parar — me diz.
— Eu não afirmo que fosse pobre na infância. Fui, mas,
enfim, se você se empenha em dizer que não... Eu não
afirmo isso exatamente, apenas me dedico a evocar um
medo universal: certa ameaça que flutua sempre no
ambiente; o Bosque e o Vento roubando o dinheiro das
meninas, roubando o dinheiro nas casas, e o escondendo
para levar as pessoas ao desespero.
Minha avó continua furiosa, e insiste que fica indignada
por eu dizer que fui pobre na infância. E eu, já que se
irrita tanto, digo que não contarei mais essa história do
vento que roubou o dinheiro (depois de tudo, tinha
mesmo vontade de esquecê-la), mas que era
conveniente ela saber, isso sim, que até agora essa
história sempre me pareceu muito útil para justificar para
as pessoas meu medo de sair de casa. Isso a acalma
visivelmente. Fala que eu poderia ter dito isso antes.
— Porque todo mundo — e aí arremato a história —
sabe que eu não sou das que saem por prazer de casa.
Mas vivem me perguntando a que se deve isso. Me
perguntam também por que ainda não tenho namorado,
ou por que fumo tanto. Porque para mim perguntam de
tudo, não sei por quê. De tudo. E eu tenho resposta para
tudo. Ou tinha, pois como agora renunciei à história da
nota que voou, vamos ver o que eu vou contar. Mas,
enfim, renuncio a essa história que, por outro lado, acho
que encerrava uma ideia muito melancólica que servia
para explicar tudo.
A avó, como se quisesse compensar a tirania de ter me
proibido a história, me diz que continue contando como
foi esse jantar tão interessante no restaurante de Cerler.
Digo a ela que bebemos muito e que o saráui, que se
chamava Idir, não fazia mais do que criar uma grande
tensão, pois mal falava e só se dedicava a nos olhar
fixamente nos olhos, como se nos censurando alguma
coisa, como se estivesse reprovando nossa frivolidade de
restaurante. Fernando, por sua vez, com sua peculiar
conduta de anfitrião, não fazia mais do que aumentar a
já por si só grande tensão (“Amanhã subiremos todos ao
pico do Aneto”, dizia de vez em quando, acho que em
tom ameaçador e também desafiante), e o jantar
terminou um completo fracasso.
Minha avó deixa escapar uma nova e irritante risadinha
de incredulidade. E eu sinto vontade de deixar tudo de
lado, e contar de uma vez a ela que Fernando morreu,
que ontem o enterramos em Cerler e que eu estou
destroçada e sinto vertigem diante da vida. Nada será
como antes. Dizer tudo isso de uma vez só, sem mais
contemplações, e retirar-me logo para o meu quarto para
chorar e pensar no profundo amor que senti por
Fernando, sempre em segredo, desde o primeiro dia em
que o vi. Só eu sei que ninguém vai poder substituí-lo em
meu coração. E minha dor é infinita.
Agora minha avó fuma com repentina ansiedade. Tenho
consciência de que, se lhe digo de repente que Fernando
morreu, pode ter uma recaída brutal em sua já
maltratada saúde. No entanto, esse risinho de
incredulidade me tira do sério. Sou capaz de qualquer
coisa para acabar com o maldito risinho. Deus meu, por
que não quer acreditar em mim? Mas não, não vou lhe
dizer as coisas de uma forma tão brutal, tenho de
prepará-la para a notícia. Vou tentar continuar contando
tudo de uma forma suave, vagarosa, tal como me propus
desde o início, Mas me irrita, não posso evitar, essa
atitude de sarcasmo e desconfiança e esse ridículo
ressentimento por tê-la deixado sozinha por três dias.
— De vez em quando — digo — caíam paraquedistas
sobre o povoado, e caiu um sobre o flã que pedi de
sobremesa.
Olha para mim como se pensasse que sou uma
desgraçada. E de repente, como se tivesse lido no fundo
da minha alma toda a minha tragédia, pergunta:
— Você está apaixonada pelo Fernando? Não é isso?
Acha que sua avó não se deu conta? Mas não será esse
Fernando um amor imaginário? Não será simplesmente a
figura de um sonho?
Contenho-me como posso. Vou cair no choro. Já não
vejo sentido na vida. De novo me sinto tentada a dizer a
ela que Fernando está morto, e então que aconteça o
que tem de acontecer. No fim das contas, que importa
tudo agora? Mas acabo retomando como posso o fio da
meada e repito que bebemos muito e que Fernando
estava cada vez mais divertido, mas também mais
perigosamente enlouquecido.
— Depois do jantar — digo — voltamos para casa. O
clima entre nós não estava muito bom. Acendemos a
lareira. Não é maravilhoso poder fazer isso em pleno
agosto? Beatriz, muito iludida, coitada, não parava de
procurar com os olhos nada menos do que a aprovação
do Fernando para o seu novo namorado. Idir limitava-se a
observar. Fazia frio e o clima era, tal como dizia
Fernando, gelado. Em todos os sentidos. Porque Fernando
parecia definitivamente instalado no gelado e solitário
cume de sua paixão por Beatriz. Clima gélido em que o
fio quase visível de uma faca cortava o ar.
— Não posso acreditar em você — disse minha avó,
imagino que desta vez para me chatear.
Volto a Idir. Digo a ela que apenas observava e que,
ainda que o fizesse teoricamente com profundidade,
parecia que só sabia fazer isso. Fernando, que se
mantinha com um bom humor impecável, começou a
olhar para Idir, e finalmente não pôde mais e lhe disse:
— Uma pergunta, caro Idir, só uma pergunta — era a
primeira vez que se dirigia a ele em toda a noite. —
Vamos ver. Vamos ver se você pode me esclarecer o
seguinte. A pergunta é esta: por que devemos ter dois
olhos se a visão é uma só, e um só o mundo? E outra
pergunta: onde se forma a visão? No olho ou no cérebro?
E se for no cérebro, em qual de suas zonas?
Digo a minha avó que era evidente o Fernando estar já
muito bêbado. Idir sorria diplomaticamente. Também era
evidente que, apesar do bom humor de Fernando, a
qualquer instante aquilo podia se transformar em fogo no
paiol. Beatriz, com sua distração habitual, não o advertiu,
e escolheu precisamente esse momento para anunciar
que Idir e ela iam se casar no fim do mês. Idir confirmou
e disse que seria na Basílica do Pilar.
— Que mau gosto! — comenta minha avó.
Digo a ela que isso é o de menos e que o importante —
vou preparando-a como posso — é o que veio depois.
Fernando bebeu mais, muito mais. E cada vez estava
mais simpático.
— Você me disse que era cubano ou não, perdão,
filipino, guineano? De onde diabos você me disse que
era? — perguntou a Idir.
Talvez ele tenha se sentido maltratado, mas não
pareceu dar maior importância ou soube dissimulá-lo
muito bem; afinal, notava-se que Fernando tinha bebido
muito. Idir se limitou a dizer, num tom de voz amável,
que era saráui.
— E é da Polisário,{4} não? — perguntou Fernando com
os olhos um pouco fora de órbita.
— Claro — respondeu Idir, e talvez para não ser tão
contido como até então, se estendeu um pouco mais na
resposta, e falou da grande tragédia em que vivia seu
povoado, condenado ao exílio doloroso e à guerra no
deserto.
Deu de bandeja a Fernando um de seus temas
prediletos: o do sufocante passado colonial espanhol.
Mas diferente de outras ocasiões — diatribes inocentes
contra Cortês e Pizarro, a batalha de Annual ou os
incidentes finais nas Filipinas —, talvez porque tivesse
bebido demais, o lamento pelo passado e o presente
político da Espanha soava francamente duro e pungente.
Notei nas palavras de Fernando uma autenticidade maior
do que aquela a que eu estava habituada. E percebi o
reflexo de uma dor e de um constrangimento tão
profundamente arraigados que estremeci.
Idir, que não conseguia compreender muito bem o que
se passava, continuou a botar lenha na fogueira —
possivelmente só por cortesia, e para não contrariar seu
anfitrião —, e não fazia mais do que enfatizar os erros da
administração colonial espanhola, alimentando a
excitação de Fernando que, à medida que o tempo
passava, ia assumindo totalmente os erros políticos de
seus antepassados. A cada duas frases, Idir citava o
nefasto Pacto Tripartido, que condenou seu país à guerra.
E a cada vez que isso ocorria, Fernando afundava ainda
mais no sofá, abrumado porque se sentia o único
responsável por tantos erros do passado. Até que em
determinado momento perdeu o rumo e começou a
exagerar também com os erros coloniais franceses.
— Que dias mais vergonhosos aqueles — disse —, dias
passados às sombras das palmeiras, com rebanhos de
cabras pastando nas beiras das poças e, sobre nós, a
noite luminosa do deserto. Que dias mais sórdidos e
vergonhosos aqueles, vividos junto às caravanas que
pernoitavam nas velhas hospedarias enquanto nós,
impassíveis e fascistas, bebíamos sem parar Cap Corse e
líamos Le courrier du Maroc.
Idir se sentiu na obrigação de adverti-lo de que havia
transferido seu sentimento de culpa para o país vizinho,
em direção à França, e que esta nada tinha a ver com o
que estavam falando. Fernando apenas o ouviu.
Levantou-se para ir ao banheiro e, ao passar por mim,
indicou com dissimulação Beatriz e me sussurrou ao
ouvido:
— Ninguém pode abraçar sua alma. Você percebe, Ana
Maria? Ninguém pode abraçar a alma de ninguém.
Disse isso com desespero. Pensei se ele não estaria
representando uma farsa para encobrir sua dor diante do
casamento de Beatriz. Quando voltou, era a própria
palidez.
— Bom — disse-nos. — Será melhor que nos deitemos.
Amanhã teremos de subir o Aneto.
Tinha-se criado certo clima gelado junto ao fogo.
Aquele foi talvez o momento de maior intensidade da
noite. Foi também a última vez que vi Fernando com
vida. Encerrou-se em seu quarto enquanto nós ficávamos
mais um pouco na sala comentando que tudo havia sido
um tanto estranho, mas divertido. Amanhã será outro
dia, eu disse. E nesse momento soou, seco e duro, o tiro
que o arrancou deste mundo.
— Porque Fernando morreu — disse eu de supetão a
minha avó, sem poder evitar e dizer de outra forma. Mas
disse isso com certa calma e algum distanciamento,
eliminando toda a dramaticidade. Como se fosse um
conto.
Minha avó me olha incrédula.
— Bom, não acredita em mim agora?
— Não — disse.
Continua acreditando que tudo é uma tosca invenção
minha. Ou talvez simplesmente prefira ver as coisas
desse modo.
— É sério que acha que eu estou inventando? —
pergunto a ela.
— Sim — disse.
Penso que talvez seja melhor assim. E decido resignar-
me a que não acredite em mim, ainda que seja terrível,
porque isso aumenta minha solidão, meu desespero.
— Fernando — concluo já sem ânimo, mas prefiro
concluir — deixou uma carta. Nela explica que, como se
estivesse morrendo literalmente de vergonha, da
vergonha de ser espanhol, preferiu não prolongar tanto
sofrimento e se matar. Mas acho difícil acreditar na
sinceridade dessas palavras. Existiu alguém alguma vez
que tenha morrido realmente de vergonha?
— Sim — disse minha avó.
— Mas eu acho que possivelmente, até o último
momento, ele amou Beatriz com todas as forças, e com
essa carta quis apenas encobrir o verdadeiro motivo pelo
qual se matava. Até o último momento, ele a amou
silenciosa e desesperadamente, mas não queria
angustiá-la e disfarçou de protesto o que não foi mais
que um ato de paixão. Não acha?
Minha avó não responde, está esvaziando seu cinzeiro.
Eu jogo outro cigarro no ventilador.
— Continua sem acreditar em mim? — pergunto.
— Acredito, Ana Maria, acredito.
Ainda que a veja como ficção, minha história lhe
interessa agora o suficiente para quase acreditar nela.
Alguma coisa é alguma coisa. Em compensação, deixo
que venha à tona minha realidade.
— Está convencida de que se matou por paixão e não
por protesto? — quis saber.
— Você teria de perguntar a ele.
— E você não poderia fazer isso?
O céu está muito carregado, ouve-se um novo
retumbar potente de trovões. Fecho as janelas para que
o vento não roube minha história.
— E você não poderia fazer isso, Ana Maria?
— Seria tão impossível quanto perguntar à imagem de
um sonho, ao homem de minha vida.
O colecionador de
tempestades

Passei os dois melhores anos de minha juventude


restaurando obras de arte na cidade de Bergamo, no
norte da Itália, e ali tive a oportunidade de conhecer um
homem que sempre me pareceu excepcional: Attilio
Bertarelli, conde de Valtellina. Em Bergamo era
conhecido por il condottiere, mas eu, desde aquela visita
que fiz ao seu palácio de Città Alta, optei por chamá-lo
simplesmente il maestro ou, melhor dizendo, Mestre,
sem o artigo e com maiúscula (que bem merecia), e
assim vou continuar chamando-o agora que me decidi, já
no final de meus dias, evocar aquela tarde de outono, em
que fui convidada ao palácio de Città Alta para ver as
novidades que ele tinha incorporado à cripta que, nos
porões do palácio, guardava os restos de sua jovem
esposa, a bela Vizen, falecida no início daquele ano de
violentas tempestades na não menos bela, ainda que
assustadora, cidade de Bergamo.
A antiga cidade, Città Alta, está construída sobre uma
rocha imensa da qual se pode contemplar a cidade nova,
a dos comerciantes e artesãos: a Città Bassa, um
conjunto arquitetônico deplorável e vulgar. Acima, na
impressionante e misteriosa Città Alta, no labirinto de
ruelas entrecruzadas, a obscura Idade Média italiana
continua viva. Dessa Città Alta, imóvel em sua colina,
escrevi em um de meus contos, já faz muito tempo, que
era silenciosa e temível como um condottiere
envelhecido e ocioso. Pensava sem dúvida em Mestre,
que morava numa das ruas mais sombrias, altas e
estreitas da Città Alta, em um não menos alto e
enegrecido palácio e na mais absoluta e radical — tinha
despedido todos os empregados — solidão desde que a
bela Vizen, a jovem bailarina valenciana, a belíssima
Vizen, o tinha deixado para sempre.
Na porta do palácio, poucos dias depois da morte de
sua mulher, Mestre tinha mandado gravar em latim uma
desconcertante inscrição que fez seus amigos — que só o
viam no mercado, rapidamente, à primeira hora da
manhã — pensarem que talvez il condottiere estivesse
beirando o desespero ou, simplesmente, tivesse
enlouquecido. Dizia a legenda: “Logo foi terminada a
metade esquerda do quadro”. Quando alguém lhe
perguntava por essa inscrição, Mestre acelerava suas
compras no mercado e desaparecia assobiando canções
trágicas.
— O que significa essa inscrição na porta? — me
apressei a perguntar naquela tarde de outono, ao cruzar
o umbral do escuro palácio. Tive a coragem de perguntar
porque o fato de que em toda a Bergamo ele só confiasse
em mim (“Não vai contar a ninguém o que vir na cripta”)
me dava certa força e segurança.
— Ande, entre — Mestre se limitou a dizer, sorrindo.
Tinha na verdade uma pergunta muito mais urgente a
fazer. Saber por que só eu havia sido convidada a
conhecer as novidades que tinha incorporado à cripta.
Mas quando ia lhe perguntar, Mestre fechou a porta do
palácio e quis saber as horas.
— Sabe que nunca ando de relógio — disse a ele —,
mas suponho que sejam sete horas. Acho que fui
pontual.
Riu enigmaticamente.
— Sim, é verdade — disse. — Sei perfeitamente que
nunca usa relógio. Ande, siga-me. Ali no fundo do salão
tem um quadro.
Indicou uma tela que estava situada entre as duas
colunas de madeira que flanqueavam a lareira e o
escudo de armas dos Valtellina. Sob o escudo estava
escrito, também em latim, o estranho lema da família:
“Buscamos sempre o lado imóvel do tempo”. A tela
reproduzia a cripta em que a bela Vizen repousava junto
à sepultura, aberta e vazia, na qual um dia o Mestre
também repousaria.
Duas tumbas, uma cripta de teto muito alto. No
conjunto um espaço espetacular, que eu conhecia muito
bem por ter assistido ao patético enterro da bela Vizen.
No quadro, à esquerda do espectador, podia-se ver o
corpo — muito luminoso — da jovem esposa, que parecia
atada por uma infinidade de ligaduras aladas. À direita, a
tumba aberta e vazia que esperava o Mestre.
— A metade esquerda do quadro logo ficou pronta —
ele disse.
Só então me dei conta de que a parte direita da tela
não estava acabada.
Ao fundo da cripta que refletia o quadro, um vigilante
de silhueta feminina e vestimenta de faraó permanecia
em atitude muito rígida, como se estivesse
perfeitamente imóvel. Fiquei um pouco perturbada,
porque a figura se parecia muito comigo.
— E quem é? — perguntei.
— Digamos — Mestre disse sem vacilar — que é o lado
eterno do Tempo, seu lado imóvel.
— Não usa relógio — brinquei estupidamente. — Nisso
se parece comigo.
Mestre não respondeu. Fomos nos sentar nas poltronas
que flanqueavam a lareira, o escudo de armas e o quadro
inacabado, que ele disse pensar em terminar em poucos
dias.
— Antes de ver as novidades da cripta, tem de me
jurar, mais uma vez, que ninguém vai saber que veio me
ver.
— Juro — disse.
Imediatamente um enorme temor me dominou. Minha
imaginação se descontrolou por alguns momentos. E se
Mestre fosse um assassino e desejasse me encerrar na
cripta para sempre? Então lembrei de um conto
fantástico em que uma garota fica presa com um homem
numa cripta sem trinco por dentro. O homem então
comenta que a porta trancou os dois. Os dois, não, ela
diz. Só um. E dizendo isso, passa através da porta e
desaparece.
— Uma pergunta — eu disse então. — Por que só eu
posso conhecer as novidades da cripta?
Mestre se moveu inquieto em sua poltrona e me olhou
com uma estranha, porém intensa, ternura. Isso me
devolveu à realidade. Ele certamente não era um
assassino.
— Não sei se vai me entender — começou a dizer —,
mas tenho uma teoria...
Me explicou que na sua opinião o homem, depois da
morte de Deus, continua sentindo a necessidade de que
alguém o observe.
— Isso nos levou — disse — a inventar vigilantes sem
nenhuma transcendência. Você mesma reúne as
condições para ser uma adorável e trivial vigilante do
que eu faço, do que construí na cripta de meus amores.
Trivial, sim. Mas absolutamente necessária. Porque eu
preciso do olhar trivial de alguém que saiba ver a obra
que estou a ponto de terminar na cripta.
Atirou dois pedaços de lenha na lareira e acrescentou:
— Alguém que saiba vê-la e não se escandalizar. Que
saiba vê-la e, além disso, saiba vigiá-la por toda a
eternidade. Por isso pedi que você viesse.
Não entendi quase nada do que me dizia, mas suas
palavras, ao lado da lareira, soavam bonitas, muito
especialmente a palavra eternidade que eu tinha
começado a relacionar, sem saber muito bem por que,
comigo mesma, e também com o lado imóvel do tempo,
que não sabia em que consistia exatamente, mas que
com certeza era algo (pensei) apaixonante.
— Quero — Mestre prosseguiu — que antes de descer à
cripta conheça como funcionava o despertador que eu
inventei há uns trinta anos. É um invento muito simples.
Você sabe que, no geral, meus inventos sempre foram
muito complicados, mas esse relógio tinha um
mecanismo bastante simples.
Fez uma breve pausa, contemplou a esplêndida
evolução do fogo na lareira.
— Suponho que se perguntará por que quero explicar
como esse despertador funcionava. Bem, acredito que se
entender o mecanismo elementar desse relógio de trinta
anos poderá compreender muito bem o funcionamento
do invento que estou pondo em andamento na cripta.
Trata-se, devo adverti-la, de uma invenção bastante
cômica. O despertador era igualmente engraçado. Mas é
que a morte também é. Para mim, a morte é um
despertador muito cômico. Você não acha também?
Eu não opinava. Como poderia opinar se não entendia
quase nada do que estava me dizendo?
— Houve uma época — continuou — em que não havia
jeito de me acordar. Tinha sonhos muito profundos.
Nenhum relógio me servia. Tive que construir meu
próprio despertador. Seu funcionamento, baseado em um
eficaz sistema de polias móveis, varetas, cronômetros e
outras miudezas, era o seguinte: soava, com notável
estrondo, uma campainha e, se esta não surtisse efeito,
as roupas de cama de quem dormia eram retiradas
automaticamente, o colchão era inclinado e quem dormia
era depositado no chão; se continuasse sem acordar,
automaticamente a máquina arrancava da cabeça, com
violência, a touca de dormir, e diante de seu nariz
aparecia um cartaz ordenando que se levantasse; se,
depois de tudo isso, o dorminhoco resistisse, um relógio
d’água, situado sobre seu rosto, transbordava; depois
desse despertar úmido, que era também quase um
banho, aparecia, sob os compassos de uma canção
napolitana, uma soberba xícara de café.
— Belo despertar — disse para dizer alguma coisa e
não ficar ali quieta feito uma tonta.
Então me explicou como funcionava o muito eficaz e
muito simples (segundo ele) sistema de polias móveis,
varetas, cronômetros, arandelas, cones imateriais,
refletores opacos, lâmpadas, cilindros, células focais,
lentes, círculos de cobre, espelhos, agulhas imantadas,
botões magnéticos e outras miudezas, graças às quais
era possível o impecável funcionamento do despertador
que agia automaticamente a partir do som estrondoso da
campainha, pois esta continha em seu interior toda a
memória dos gestos que, a partir de então, no caso de
não ser freada pela vítima, devia realizar a máquina
infernal até desembocar numa graciosa chuva sobre o
rosto do incorrigível dorminhoco.
— Na cripta — me disse cada vez mais enigmático —
pretendo substituir a graciosa chuva pelo golpe certeiro
de um raio que vai fulminar a vítima que descansará na
tumba vazia. A água do relógio de outrora pertence
agora somente à lembrança, ou melhor, ao campo
magnético da evocação de tempestades já passadas, e
que desembocam na morte do único ocupante vivo da
cripta, que morre partido pelo raio que ele mesmo
fabricou com a intenção de completar a parte direita do
quadro.
Devo ter feito uma imensa cara de assombro, porque
me disse em seguida:
— Vejo que não entendeu nada, é lógico. É melhor
descermos à cripta e ali, vendo o que estou construindo,
talvez você comece a compreender em que consiste meu
projeto de me autoimolar com um raio de fabricação
própria.
Mestre se levantou da poltrona e foi até um armário
próximo, voltando com dois capacetes e uma chave que
pouco depois introduziu na fechadura da porta abaulada
da cripta. Para que a chave funcionasse, agitou em sua
mão esquerda um estranho objeto que, segundo disse,
também era de sua invenção: um recipiente cilíndrico e
transparente que, com uma grande tampa de cortiça
atravessada por um tubo metálico, tinha a surpreendente
propriedade de exibir na parte de baixo (quando se
fizesse a escuridão mais absoluta) um conjunto de
partículas fosforescentes — dez no total —, de que se
sentia enormemente orgulhoso e que, segundo me disse,
pareciam graciosos cristais mas, por conta de um
sofisticado efeito ótico, podiam reproduzir, cada um, uma
das dez tempestades mais colossais do século.
— De tempestades — me disse — acho que eu
entendo. Durante um longo período me dediquei a
escrever cartas aos amigos que tinha em Leipzig,
Dresden, Milão, Bellagio, Bréscia e Capodimonte,
pedindo-lhes descrições das mais recentes tormentas
que tinham presenciado em suas cidades. Todos os meus
empapados cronistas já morreram, mas sua vida não foi
uma paixão inútil, pois ficou plenamente justificada
graças às precisas, desinteressadas, detalhadas e
entusiásticas descrições de tormentas que me fizeram
por carta. Graças a elas, hoje posso afirmar que não há
uma só tempestade que se pareça com outra. Todas as
tormentas são terrivelmente singulares. E graças
também a todas essas generosas cartas, dez
tempestades, perfeitamente selecionadas, estão
reproduzidas, acho que com irretocável acerto, nos sais
químicos ou cristais graciosos que, quando chegar minha
hora, ou seja, quando tiver aperfeiçoado meu invento,
me ajudarão, numa visão elétrica, derradeira e de
caráter extraordinariamente único, a ter um bel morir na
cripta.
Ao ver que a chave funcionava sem problemas e que a
porta se abria, me pediu que colocasse o capacete, que
no início pensei ter sido desenhado para prever
acidentes na cripta. Mas o capacete, que era muito
estranho e tinha no topo uma agulha horizontal móvel
que, fortemente imantada, imitava de vez em quando o
ruído de um trovão, não servia para prever acidentes, e
sim para orientar-se na cripta no caso de, antes de ele
conseguir terminar o que denominou raio mortal e
definitivo, se produzir um curto-circuito.
Quando coloquei devidamente o capacete, me pediu
que o seguisse com muita cautela pela escada espiral
que descia em direção à cripta. A grade era
extremamente traiçoeira. De vez em quando, se
interrompia bruscamente e dava passagem ao vazio mais
aterrador. Tinha que descer com os olhos muito abertos,
com o ritmo do coração um tanto acelerado, pontuado
ferozmente pelo ruído descontínuo de um trovão
caprichoso.
Na grade, e ante meu mais absoluto assombro, vi
inscrito em letras luminosas o lema do escudo familiar
dos Valtellina: “Buscamos sempre o lado imóvel do
tempo”. No ponto superior do t da palavra tempo, havia
um botão vermelho que, se apertado (como o fiz a
pedido do Mestre), iniciava um cegante ziguezague de
fogo fátuo, que diminuía na cúpula da cripta e terminava
na ponta de um para-raios falso também. Era uma nova
ilusão de ótica, Quando terminava, dava lugar a um
simulacro de vento que arrastava nuvens para o chão da
cripta. Um trovão se distanciava velozmente, e pouco a
pouco se ia criando a sensação de que o céu estava
clareando — o céu fictício da cúpula — e um esplêndido
clarão de lua — uma homenagem delirante à lua de
Valença, a cidade da bela Vizen — brilhava durante três
segundos no mais alto daquele singular cômodo
funerário.
Uma vez afinal posicionados, depois de uma descida
perigosa, mas carregada de emoções, diante da tumba
da bela Vizen, Mestre começou a me instruir sobre seu
estranho e paciente trabalho, sobre como tinha
conseguido transformar a cripta num cativante
espetáculo dirigido para conseguir — calculava que
faltavam duas ou três semanas de trabalho — uma obra
perfeita, graças à qual, quando estivesse concluída, ele
poderia colocar-se em seu ataúde, junto ao da bela
Vizen, e simular que tinha morrido, e nada nem ninguém
poderiam despertá-lo no momento que acionasse o botão
de seu impecável invento, e colocasse em andamento
uma sucessão diabólica de fenômenos elétricos
deslumbrantes, que desembocariam numa última visão
arrebatadora: a perfeita reprodução, em uníssono, das
dez tempestades mais ativas e ferozes do século, até
acabar num efeito ótico pelo qual todas as tempestades
se sobreporiam e, sob a música relaxante de uma canção
napolitana, graças à fusão da grande energia das dez
tormentas na modesta e mínima energia das
tempestades representadas na parte inferior do bocal
transparente, acabariam projetando o efeito final e
mortal durante tantos meses buscado, o efeito definitivo,
esse tão esperado raio colossal que partiria sua alma de
inventor e, ato contínuo, fecharia a lousa de sua tumba
para toda a eternidade.
— E eu de vigilante — disse, e tapei minha boca de
vergonha, ao me dar conta da idiotice que tinha dito.
— Venha, vamos subir ao salão. Já viu o que tinha que
ver — Mestre me disse com voz suave e carinhosa.
Enquanto subíamos pela perigosa escada espiral,
espirrei. Tive a impressão de que embaixo, na cripta,
tinha me resfriado.
De novo junto à lareira, Mestre me perguntou se havia
me resfriado. Respondi que não, para que não se sentisse
culpado, mas o certo era que havia uma grande
diferença entre estar naquela cripta alucinante e estar
junto à lareira.
— Como em todos os outonos — Mestre disse —, vão-
se os patos e vêm os micróbios.
Contou-me então como algumas múmias egípcias
mostram sintomas de pneumonia e outras formas de
resfriado.
— Seria engraçado — comentou — que depois de
tantos preparativos para viver um bel morir um simples
resfriado me tirasse a vida.
Rimos, sobretudo ele, que achou muito divertido o que
acabava de dizer. Depois, me contou sobre a morte de
Benjamin Franklin, o inventor do para-raios, que
acreditava que dormir com a janela aberta era uma
prática saudável e fortalecedora dos pulmões. Passou
toda a vida afetado por um resfriado crônico; apesar
disso, continuava dormindo com a janela aberta. E mais,
adquiriu o hábito de madrugar e, com a janela aberta,
trabalhar nu em sua escrivaninha durante uma hora no
verão e meia hora no inverno. A consequência foi que
sua saúde se deteriorou de tal modo que passou os
últimos anos na cama, embora continuasse com a janela
aberta, o que finalmente provocou sua morte por uma
pneumonia brutal.
— Pobre Franklin — disse, e voltamos a rir juntos. Eu
sabia que Mestre se mataria quando conseguisse
terminar o mecanismo de seu gigantesco despertador,
neste caso desesperador. Isso, claro, me dava uma pena
e uma tristeza infinitas, mas vendo-o tão entusiasmado
com sua invenção, era difícil se opor aos seus planos
suicidas.
As nove da noite, deixei o palácio de Città Alta.
Caminhei com o coração apertado até o bonde que tinha
de me levar à Città Bassa, onde eu morava com uma
amiga, também restauradora, a quem nada contei do
que tinha visto no escuro palácio. Uma semana depois,
Mestre deixou de aparecer na hora costumeira no
mercado. Passados três dias sem que fosse visto, seus
amigos forçaram a porta do palácio e desceram à cripta,
que encontraram aberta. Entre descargas de trovões e
visões de tempestades distantes, encontraram o cadáver
do Mestre que, segundo todos os indícios, tinha sido
surpreendido por um ataque do coração quando estava
enlaçando duas arandelas com um cronômetro.
Não teve tempo de concluir seu grande projeto. A
morte — sempre tão estupidamente cômica — o
surpreendeu antes de poder ver terminada a obra. Toda a
Bergamo ficou impressionada pela cenografia e
magnitude da cripta. Nela o enterramos, no último dia de
outubro daquele ano, sob a lua de Valença e junto aos
restos mortais da bela Vizen. No dia seguinte, um jornal
de Milão publicava com imensa ironia a notícia: “Homem
morre quando se preparava para o suicídio”. Acredito que
Mestre, se a tivesse lido, teria achado a notícia tão
estupidamente cômica quanto a própria morte.
Mas não façamos literatura

Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou


amanhã) registradamente enviarei o meu caderno de
versos que você guardará e de que você pode dispor
para todos os fins como se fosse seu. [...] Adeus. Se não
conseguir arranjar amanhã a estricnina em dose
suficiente, deito-me para debaixo do “metro”... Não se
zangue comigo.

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Carta a Fernando Pessoa, 31-3-1916)
Crédito das traduções

A tradução do trecho de Moby Dick, de Herman


Melville, da p. 31 é de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa
de Souza. In Moby Dick. SP: Cosac Naify, 2008.
A citação de Walter Benjamin na p. 77 é do livro Rua de
mão única. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e
José Carlos Martins Barbosa. In Rua de mão única. SP:
Brasiliense, 1987.
O trecho das Epístolas morais a Luctlio, de Sêneca, na
p. 85 foi traduzido por João Ângelo Oliva Neto.
O excerto da carta de Mario de Sá-Carneiro reproduzido
na p. 187 está em Correspondência com Fernando
Pessoa, edição de Teresa Sobral Cunha. SP: Companhia
das Letras, 2004.
© Cosac Naify, 2009
© Enrique Vila-Matas, 1985

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vila-Matas, Enrique [1948-]
Suicídios exemplares: Enrique Vila-Matas
Título original: Suicidios ejemplares
Tradução: Carla Branco
São Paulo: Cosac Naify, 2009
ISBN 978-85-7503-796-6
1. Ficção espanhola. I. Título. II. Série.
CDD-863

Índices para catálogo sistemático:


I Ficção: Literatura espanhola 863

COSAC NAIFY
Rua General Jardim, 770, 2º andar
01223-010 São Paulo SP
[55 11] 3218 1444 cosacnaify.com.br
Atendimento ao professor [55 11] 3218 1473
{1}
Em português no original [N.E.]
{2}
A tramontana é um vento que sopra na Catalunha,
vindo dos Pireneus, e, reza a lenda, teria o poder de
enlouquecer as pessoas [N.T.]
{3}
Refere-se, no espanhol, a alguém que “fez a
América”, que voltou rico da América [N.T.]
{4}
Frente Polisário, grupo que luta contra a anexação
do Saara Ocidental por Marrocos. [N.T.]

Você também pode gostar