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Um Ponto Zero

“Faster than the speed of sound


Faster than we thought we’d go
Beneath the sound of hope”

The Smashing Pumpkins

Manhã.

Enquanto o comentador de televisão assegura que o puto está morto de certeza,


Son Goku sente a energia de seu filho e calmamente, avisa que ele é capaz de muito mais
do que parece. Son Gohan levanta-se como se nada fosse e de novo se prepara para atacar
Cell. “Esta criança é espantosa”, comenta a assistência. Son Gohan brilha de energia,
atingiu um nível novo nas suas possibilidades.

Desligo a televisão.

O ciberespaço é adolescente. Passaram 14 anos desde que William Gibson1 pela


primeira vez deu uso ao termo, síntese pop de conceitos e ideias que, em plena década de
80, nasciam no universo marginal da ficção científica. Qualquer pessoa nascida nessa
década deixará de ser adolescente – pelo menos teenager –, no máximo, na viragem do
milénio e é dessa geração que trata este texto, porque, aparentemente, essa geração corre
o risco de se tornar no principal conteúdo de um mundo em rede.
Digo risco porque não tenho a certeza que os próprios tenham consciência daquilo
em que as duas últimas décadas deste milénio os mergulharam. Digo risco igualmente
porque não tenho a certeza das consequências e arriscaria dizer que as causas se
dispersam demais pelos anos deste século agitado para serem identificadas com a
precisão que se exigiria, mas escapa a este texto.
Atrevo-me contudo a ir mais longe, desde já, e a dizer que essa geração é sem
dúvida a mais bem preparada para enfrentar o presente e, consequentemente, o futuro. Ao
que acresce que o risco vem mais da violência que preside a qualquer momento de
revolução, como é este que atravessamos, e da capacidade dessa geração para lidar com
essa violência. Mas já lá vamos.
A ideia de que os mais velhos deteriam mais conhecimento, por o terem
acumulado, ideia que presidiu a este milénio como, receio bem, ao anterior, sofreu a

1
Leia-se evidentemente Neuromancer, obra fundamental de 1984
erosão da democratização das tecnologias da informação, comunicação e conhecimento.
O perpetuar do saber por via de suportes tecnológicos, começando, evidentemente, pelas
paredes das cavernas, e a democratização do acesso a eles, de há uns duzentos anos para
cá, modificou e generalizou o número de discursos possíveis, lançando as bases de uma
revolução que hoje atinge, de alguma forma, o seu clímax, naquilo a que se chamou a
Sociedade da Informação.
Para além de todas as discussões eruditas possíveis sobre o significado dos
discursos sobre o real e as possíveis relações desses discursos com o próprio real, para
além da qualidade desses discursos, o final do milénio trouxe, mais do que tudo, uma
explosão no número de discursos possíveis e, chegados ao século XX, o nosso tempo
parece cada vez mais curto perante a profusão da camada mediatizada de realidade (?)
que nos rodeia, os conteúdos. A palavra media parece mesmo ter perdido a sua conotação
de espelho ou janela sobre o real para se constituir como um mundo auto-inventado, mais
do que um universo paralelo, um multiverso permanente.
No século XX, o fenómeno talvez mais importante, pelo menos nas sociedades do
hemisfério norte – e de exclusão se falará adiante –, foi a generalização de formas
diversas de educação e cultura, criando gerações muito mais novas com um domínio
completamente inesperado das tecnologias e linguagens circundantes.
O século XX é o século do cinema, da banda desenhada, da televisão, dos jogos
individualizados e já não comunitários, dos desenhos animados, além, é claro, da cultura
pop, da música à televisão, às mais variadas formas de imprensa especializada e
generalista. E todos estes produtos se dirigiram ou dirigem, num momento ou noutro, de
uma forma ou de outra, a um público mais jovem, apostando, não numa qualquer
sensatez ou conhecimento acumulado trazido pelos anos, mas na imediatez e na
capacidade intuitiva para lidar com estas mensagens que vem do banho permanente numa
sociedade em sobre-informação.
A sobre-informação não é uma coisa má, é uma coisa boa. E daqui vem a primeira
força desta geração que terá 20 anos no ano 2000. O seu tempo é muito mais largo,
amplo, que o tradicional tempo estreito da escrita, do conhecimento linear.
Explique-se.
Laurie Anderson pergunta, genial, numa das suas músicas, “Is time long or is it
wide?”2. Eu atrevo-me a responder: ambos, mas está a alargar-se. O tempo estreito, veja-
se, é aquele que se define como uma linha, é o tempo da sucessividade, da causa e
consequência, de uma coisa a seguir à outra. O tempo largo é o tempo que se define como
um espaço, o tempo da simultaneidade, da rede, das coisas todas que estão a acontecer
neste momento e a que eu me posso ligar3.
Neste tempo largo, os “adultos” descobriram de repente que tudo está diferente, e
sempre diferente. Foi como se a sensação difusa de aceleração que tinha dominado o
século atingisse extremos praticamente insuportáveis. Foi como se de repente olhassem

2
Na música Same Time Tomorrow do albúm Bright Red
3
“No beginning / No end / No direction / No duration / Video as mind”, anotações geniais de Bill
Viola em 1980, incluídas em Reasons for knocking at an empty house – Writings – 1973-1994
em volta e se descobrissem mergulhados numa tecnologia que não dominavam mas que
fazia cada vez mais parte de si e das suas vidas.
E essa tecnologia é a tecnologia que alargou o nosso tempo, é a tecnologia da
cópia tecnológica4, a tecnologia do rádio, a tecnologia da televisão, mesmo num primeiro
momento a imprensa, agora, evidentemente, as redes, sejam feitas de cabo, GSM ou
satélite. Todas estas tecnologias multiplicaram exponencialmente o número de coisas a
acontecer paralelamente, quer na realidade propriamente dita – se é que esta é ainda
relevante ou discernível – quer nos múltiplos níveis mediáticos que a ela se sobrepõem.
Quer isto dizer que hoje, em cada dado momento, a nossa atenção é cada vez mais
valiosa. Ao nosso tempo como leitores, ouvintes ou espectadores, exige-se cada vez mais
que se desmultiplique para responder a um sem fim de solicitações simultâneas. Ao limite
seremos consumidores perfeitos deste mundo se, como o aleph de Borges, formos
capazes de ter tudo aqui e agora onde estamos.
Mas esta não foi a única forma pela qual se alargou o nosso tempo. Ele alargou-se
também, por assim dizer, em profundidade, na medida em que se modificou a nossa
obsessão cultural com o corpo, com a multiplicidade e intensidade de experiências que
ele permite. Não podemos, por isso, deixar de fora deste alargamento do tempo
fenómenos como os chamados desportos radicais, os fenómenos de alteração do corpo
(piercing, tatuagem, escarificação, etc.), para já não falar na industrialização da
pornografia.
Ora, quer num caso – desmultiplicação mediática da realidade –, quer noutro –
aprofundamento em intensidade da experiência do próprio corpo – os “jovens” entraram
no ciclo de alimentação das indústrias construídas em torno deste movimento.
É uma questão de ponto de vista e de ponto de começo, perceber se os jovens são,
aqui, primariamente mercado-alvo preferido5 ou verdadeiros iniciadores de movimentos
culturais que das margens emergem depois na cultura massmediática. O que me parece
realmente relevante é que é uma geração que está no âmago desta tendência cultural,
económica e social para a industrialização da nossa atenção num tempo largo.
E é natural que esteja. Se marcarmos, de uma forma geral, a segunda metade do
século XX como o período em que este “alargamento” do tempo entra em velocidade de
cruzeiro até, em princípios da década de 90, atingir um ponto fulcral na massificação das
redes como forma de comunicação multiponto, então aqueles nascidos depois de 1980,
nascem já mergulhados nesta tecnologia e na cultura que ela constrói e reproduz.
E é nesta sopa de sobre-informação e sobre-estimulação que nos dá o tempo largo,
que os jovens aprendem a programar os vídeos antes dos pais, lidam com os
computadores como os pais deles lidaram (eventualmente) com livros, copiam, piratam,
distribuem todos os conteúdos que lhe parecem interessantes e vivem, de um modo geral,
num contexto dominado pelo valor da intensidade da experiência – real ou mediatizada.

4
É clássica a escrita de Walter Benjamin sobre A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade
Técnica
5
Leiam-se alguns estudos como Street Trends de Janine Copiano-Misdom e Joanne de Luca ou
Rocking the Ages de J. Walker Smith e Ann Clurman
É fácil perceber que estes adolescentes, tenham de ser hiper-adolescentes, com
uma intuição natural para estabelecer as ligações que lhes interessam, para procurar e
encontrar aquilo que, no momento seguinte, garante a continuidade do interesse das suas
vidas. E a tecnologia que utilizam é relativamente irrelevante, diga-se, desde que a
ligação exista. Pode ser a Internet como a televisão, como, espante-se, um bom livro ou
revista, mas também a música, evidentemente, para já não falar da roupa.
Relativamente irrelevante, acentue-se porque, seja como for, é de redes que
estamos a falar e da capacidade destes hiper-jovens nelas se movimentarem de forma
intuitiva, como seus conteúdos, eu diria.
Pierre Bongiovanni fala do surgimento de novos continentes e o primeiro que
identifica é o da juventude. Pierre Levy6 fala da inteligência colectiva, Derrick de
Kerckhove7 da inteligência conectiva. Douglas Rushkoff8 cita a importância da banda
desenhada ou do snowboard para compreender as transformações culturais que
atravessamos. Os heróis do último livro de Gibson, Idoru, são sobretudo jovens, tal como
o são os do tão citado Dragonball. Richard Dawkins9 fala de memes – ideias que
circulam como numa rede pelo mundo todo – e o primeiro exemplo que dá é o do uso do
boné ao contrário que das ruas das cidades norte-americanas chega a uma cidade de
província austríaca. Mas chega de notas de rodapé, isto é, links.
Se é de conteúdos que falamos, tentemos perceber um bocadinho melhor como
eles circulam nesta rede de redes, nesta pele eléctrica de cultura que cobre a humanidade.

Tarde.

A parte sul da cidade de Los Angeles é uma enorme bacia desértica hoje habitada
sobretudo por emigrantes ilegais, mas ligeiramente mais acima, das colinas de
Hollywood e Beverly Hills a cidade desce para as praias da costa, onde, junto ao pacífico,
o sol ilumina as filmagens de Baywatch, segundo consta a série televisiva mais vista no
mundo, com uma das actrizes de certo mais “circulantes” na Internet, Pamela Anderson,
corpo construído para servir esses objectivos precisamente.

Desligo a televisão.

Foi só quando no verão estive em Los Angeles pela primeira vez, quando depois
voltei a Lisboa e quando, passados uns meses, senti saudades daquela cidade lá longe na

6
Leia-se L’intelligence Collective de Pierre Levy
7
Leia-se A Pele da Cultura e Connected Intelligence de Derrick de Kerckhove. O autor chama a
atenção para a diferença entre conectiva e colectiva, afirmando a primeira de tendência mais democrática, a
segunda podendo descambar em totalitarismos não intencionados pelo próprio Pierre Levy.
8
Em Playing the Future, de Douglas Rushkoff
9
Em River Out of Eden, de Richard Dawkins
west coast que me apercebi realmente da quantidade assustadora de cultura importada
que os media tradicionais, em particular o cinema e a televisão, veiculam.
Foi uma sensação quase física, só uma lembrança vaga da familiaridade daqueles
lugares onde não passei mais de uma semana, como uma impressão intensa demais para
ser apagada, no meu corpo.
Apesar dos esforços proteccionistas dos diversos corpos políticos europeus,
liderados quase sempre pela arrogância dos franceses, a Europa consome avidamente,
desde pelo menos a segunda guerra mundial, a cultura americana. Aquilo a que hoje os
europeus chamam indústria de conteúdos, é, nos Estados Unidos, uma verdadeira
indústria cinematográfica, audiovisual, musical e videográfica que, com toda a
experiência acumulada e com uma rede de distribuição consolidada, chega facilmente em
papel dominante a quase todos os mercados mundiais.
É uma indústria, é uma máquina. Mas aquilo que está dentro dela, do que muitas
vezes nem nos apercebemos, é a realidade americana e a sua reinterpretação estética e
ideológica, fascinante muitas vezes, sedutora quase sempre, estrangeira, já mal o
notamos.
Devo dizer que não é uma questão que me preocupe muito, a do protecionismo
cultural. Devo dizer igualmente que, no virar do milénio, não acredito por aí além nas
chamadas ameaças culturais da globalização. Acho mesmo que a discussão de uma
possível política proteccionista só se pode dar a um nível económico, da redistribuição
mundial dos lucros fabulosos gerados nesta área. Só como exemplo, o Titanic, só de
receitas em sala, já gerou mais de 200 milhões de contos para a economia americana, ou
seja mais de metade de toda a nossa indústria de telecomunicações. E isto é apenas um
filme.
Ao nível cultural, as questões colocam-se, parece-me, hoje de outra maneira, por
um lado nos movimentos mais ou menos subterrâneos que fazem as escolhas dos
mercados, cada vez mais construídos como redes com comunicação horizontal, e por
outro na capacidade criativa dos detentores de talento e de direitos sobre esse talento. A
tecnologia, a indústria e a economia são o fiambre desta sanduíche e não sobrevivem sem
o pão. E o pão são as pessoas. Um Ponto Zero.
Rewind.
Voltamos aos jovens em rede, os hiper-jovens.
Se tomarmos como boas as novas regras da nova economia como nos propõem,
entre outros, Don Tapscott10 e Kevin Kelly11, então estamos a falar de redes de
abundância em que dominam a atenção e a escolha como valores acrescentados. Ora,
como se viu, parece haver uma geração que percebeu exactamente o que isso quer dizer,
de forma quase intuitiva e que assume o “risco da escolha”, assume o controlo.

10
Leia-se, de Don Tapscott The Digital Economy e Growing Up Digital
11
De Kevin Kelly, além de Out of Control, vale a pena ler o artigo The New Rules for the New
Economy, na Wired 5.09, posteriormente editado em português pela Cyber.net
Ao desespero dos seus pais, a ver nascer um mundo dominado pelo prefixo
“ciber” em total ausência de controlo, paralisados pela velocidade de escape da sociedade
em que vivem, parece contrapor-se, subitamente, uma outra, dominada por uma
desconfortável apatia ideológica, um vazio de grandes discursos morais, mas
perfeitamente capaz de lidar com o torvelinho que tanto incomoda os que detêm ainda o
poder – porque não tenhamos dúvidas, existe um confronto latente entre a cultura linear e
a cultura em rede, um confronto decidido à partida pela facilidade que a cultura em rede
tem em devorar qualquer outra, mesmo a linear; o que interessa perceber é o que se
ganhará e perderá nessa passagem.
Essa geração que terá vinte anos no ano 2000 – de que os americanos,
curiosamente afirmam ter medo –, uma geração sem história, sem princípio, meio e fim,
uma geração feita de nós em redes intermináveis de ideologias, imagens, sons, corpos,
marcas, sensações, intensidades, movimentos e, é claro, tecnologia, é a geração Um
Ponto Zero.
Um Ponto Zero é, na indústria do software, a primeira versão seja do que for,
depois dos testes, depois das experiências, depois das versões alfa e beta, a um ponto zero
é aquela que, vê pela primeira vez a luz do dia e sofre o choque da realidade, que
geralmente lhe descobre todos os defeitos e espera melhorias na versão seguinte.
Esta geração é duplamente 1.0: é-o em primeiro lugar porque é a primeira que
nasce no meio desta realidade feita de redes, multiplicidade permanente, mudança
interminável, choques e confrontos multidimensionais; é-o igualmente porque aborda
essa realidade como se não fosse feita de milénios de cultura, mas apenas uma massa
indistinta retrabalhável de acordo com os seus próprios critérios individuais e
comunitários.
É uma geração que aborda o que a rodeia como se não houvesse memória, ou
como se, por instantânea e universalmente acessível, a memória não fosse mais relevante
que o presente, mas apenas mais um nó na rede, tempo largo, espaço aberto. Termos
como surfing e browsing definem perfeitamente esta atitude, de navegação por um mar
de conteúdo. Há contudo uma mais valia fundamental.
Confundir browsing e surfing na internet com o zapping televisivo, é ignorar
aquilo que faz da geração 1.0 um agente inteligente, isto é, a capacidade para apreender
instantaneamente os conteúdos – um plano de um videoclip pode ser compreendido em
menos de um segundo – e moldá-los a si próprio como processador de relevância.
Isto é, a diferença está na actividade, ou interactividade, se assim lhe quiserem
chamar, na capacidade para viajar sem se mover, na capacidade para incorporar os
conteúdos nos gestos, na roupa, nas atitudes, no que se ouve e vê e, logo, no que se
mostra e diz. Ser Um Ponto Zero é tomar tudo como novo e inesperado, avaliar e escolher
permanentemente, não de forma superficial, mas retomado em profundidade.
Juntando a esta premissa a de que o utilizador é o conteúdo12, somos o que
fazemos, então a conclusão mais lógica é de que o Um Ponto Zero se define como uma
atitude geral, uma maneira de abordar a contemporaneidade em rede que a toma como

12
Ver http://www.terravista.pt/aguaalto/1072/utilizador.html
um quadro geral para a acção, um contexto para a navegação. Isto permite-nos duas
conclusões imediatas.
A primeira é que podemos escapar a um estereótipo de dizer que o Um Ponto
Zero pertence apenas e exclusivamente à adolescência de final de milénio. É uma atitude
que percorre, pelo menos, todo o século e não é exclusiva de uma faixa etária,
evidentemente. Falar da relevância que ela ganha entre os adolescentes de final de
milénio é apenas e só constatar uma tendência dominante.
A segunda conclusão é que a tecnologia é, aqui, facilitadora e exclusivamente
isso, alguma mais do que outra, é certo. O telefone é mais interactivo que a televisão, que
por sua vez é mais multimédia que a internet, por exemplo, mas bem menos que os jogos
de consola, que são, contudo, fechados, impedindo a criação de redes. E é precisamente
na questão da tecnologia dominante que se podem resolver as questões da exclusão.

Noite.

Sentado em frente a um computador, banhado pela luz azulada do ecrã, com uma
mão sobre o teclado e outra sobre o rato, o corpo parece parado, mas de repente um
arrepio o move, um sorriso, um teclar súbito e nova pausa. Tão diferente. Um ecrã e um
teclado é uma coisa tão diferente de estar cara a cara, tão diferente, mas com a mesma
força, como um desporto radical.

Ligo o computador.

Descida à Terra. Aterramos num arquipélago no meio das águas mornas do


Atlântico por alturas do equador, quinhentos quilómetros a oeste de Dakar, coberto pela
poeira do Sahara, pelo sol já quente de Fevereiro. Cabo Verde foi o local escolhido para o
lançamento pelo Ministério da Cultura do projecto Terràvista13, oferecendo espaço de
graça na Internet para conteúdos em língua portuguesa não comerciais.
O local escolhido para a instalação física do primeiro estaleiro, espaço público de
acesso à Internet e construção de páginas, foi o Instituto Superior de Educação na cidade
da Praia14. A sua instalação aconteceu quase por milagre, no contexto favorável de uma
visita oficial do primeiro-ministro português. Os computadores viajaram de Portugal
como bagagem acompanhada e sobreviveram à mudança de avião no Sal. Para além do
acesso à Internet, a própria linha telefónica foi obtida no prazo recorde de 24 horas,
contornando a burocracia normal da Telecom e ISP locais, ambos participados de
congéneres portugueses.

13
Ver evidentemente http://www.terravista.pt/
14
Ver http://www.terravista.pt/estaleiros/praia.cv/ ou enviar mail para : ise@milton.cv.telepac.net
Depois veio a questão do local da instalação. A direcção do ISE preferia uma
pequena sala fechada à chave, que recusámos argumentando que, na inauguração com os
primeiros-ministros, os jornalistas não caberiam. Os computadores ficaram na biblioteca.
Depois veio a formação. Pedimos aos professores para convidarem os alunos mas só eles
apareceram. Eram professores inteligentes. Perceberam o poder que terem acesso
exclusivo aos computadores ligados à Internet lhes dava.
Em poucos minutos tinham recebido a primeira resposta de um cabo verdiano
algures no Canadá. Em poucos minutos faziam, também eles, parte da aldeia global e,
como todos, iam fazendo uso do poder que a informação traz, naturalmente com ela.
Hoje, professores e alunos no ISE estão menos sós.
É claro que se podia passar em Portugal. O problema de estarmos a falar de uma
geração Um Ponto Zero é que essa geração, apesar de especialmente preparada para
sobreviver num mundo sobre-alimentado de conteúdos, não tem acesso aos mecanismos
de poder que gerem esse mundo. Até porque esses mecanismos funcionam a uma
velocidade demasiado lenta para serem interessantes em termos contemporâneos, os
termos dessa geração.
E aqui começamos a falar de exclusões. Em primeiro lugar, a maior fatia da
população jovem do planeta está nas suas áreas mais subdesenvolvidas, África, América
Latina, partes da Ásia. E não tenhamos dúvida, exerce neste momento uma pressão
demográfica imensa sobre o o hemisfério norte. Para tomar alguns exemplos clássicos,
temos a cintura sul latina dos Estados Unidos e o Magrebe e próximo oriente no caso
europeu.
E para além do problema da exclusão social, económica e tecnológica dessa
percentagem enorme da população mundial, a info-exclusão resulta também dos
problemas do acesso à tecnologia, que se articula entre a facilidade de utilização – a
maior parte dos PCs exige ainda um empenhamento considerável de aprendizagem –, as
possibilidades que oferece – não tenho dúvidas que Internet via televisão será menos
poderosa que Internet via PC – e, por fim, evidentemente, o preço, factor último de
massificação.
Portanto, quer falemos de um escala global, quer do micro-universo que é uma
pessoa em frente a um ecrã, as exclusões existem, complexas, a multiplos níveis e a nossa
incapacidade para as abordar e resolver colocará problemas graves ao nível do que serão
os conteúdos presentes e futuros das nossas redes.
Depois há o desprezo do senso comum que, como coisa mais bem distribuída do
mundo, dirá “isso da Internet é coisa de putos. É só pornografia! Além de que qualquer
miúdo de 13 anos faz uma página na Internet.” E esta exclusão preconceituosa é a pior de
todas e a que mais merece esclarecimentos.
Em primeiro lugar a Internet não é coisa de putos, é coisa de Um Ponto Zeros e eu
admiro sinceramente mais os que têm quarenta anos do que os que têm treze. Aos treze
ser assim é uma segunda natureza, aos quarenta exige frescura e abertura de espírito.
Em segundo lugar, existe de facto pornografia. Existe em Lisboa pelo menos
numa meia dúzia de cinemas, algumas sex shops, em video nos hipermercados, em papel
em alguns quiosques, a algumas horas tardias na televisão e, também, na Internet.
Surpresa, surpresa, na Internet existem também pessoas que escolhem o que querem ver,
como em todos os outros casos que referi. E quanto à protecção dos menores… às vezes
pergunto-me se não deveríamos era estar a proteger os adultos.
Por fim, não é, infelizmente, verdade, que qualquer miúdo de 13 anos faz uma
página na Internet, porque nem todos têm o acesso à tecnologia ou a formação mínima
para o fazer. As infra-estruturas são importantes, mas são só máquinas e cabos estúpidos,
se não tiverem pessoas ligadas a elas. Eu vou sentir-me realmente contente quando todos
os miúdos de 13 anos souberem fazer uma página na Internet, em vez de ficarem no sofá
a ver televisão. Isso não impede, evidentemente, que haja páginas e páginas, das mais
amadoras às que exigem equipas permanentes de dezenas de pessoas.
E as dezenas de pessoas levam-nos à última evidência. A indústria do
UmPontoZero, ou seja, a indústria da alimentação e re-alimentação permanente das
múltiplas redes de conteúdos que por sua vez se retrabalham permanentemente por acção
dos agentes inteligentes humanos, é a indústria do milénio, é a indústria do audiovisual,
do cinema, da música, da moda, do desporto, do espectáculo, da pornografia, das
telecomunicações, da informática, dos jogos, etc. etc.
Alguma vez poderemos fazer parte dessa indústria?
Ter os computadores é importantíssimo. Ter a largura de banda é fundamental.
Ligar as pessoas à(s) rede(s) é o passo complementar. Promover desde já conteúdos – e
logo pessoas, utilizadores – diversificados, de qualidade, em língua portuguesa é aquilo
que vai dar sentido à existência de infra-estruturas, é o que nos dará a nossa dimensão
Um Ponto Zero e só assim, com criatividade e atenção teremos hipóteses. Faltam-nos
dezenas de pessoas para produzir milhares de páginas. Ou talvez não faltem. Talvez falte
apenas criar as condições para que elas o façam.
Full rewind.
E voltamos ao Dragonball, ponto de partida deste percurso breve por uma rede de
ideias. A maior parte da população portuguesa está completamente alheada das coisas de
que aqui falei, ainda nem sequer é uma versão de testes, quanto mais Um Ponto Zero. Os
nossos jovens, contudo, cada vez mais, parecem estar preparados para passar ao próximo
nível, ganharem a próxima luta, serem super guerreiros do ciberespaço.
A cada letra que teclo o tempo escasseia mais. Até porque, como diz Laurie
Anderson, ainda na mesma música “We’re in record”.
Mantenham-se atentos.

Luís Soares, Março de 1998

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