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DANÇA E CANÇÃO NA INDÚSTRIA CULTURAL:

O FORRÓ NO DISCURSO MÍDIATICO

Erotilde Honório Silva

Régia Chaves Honório

Resumo

A história da música nordestina como fenômeno nacional só se concretiza pela


atuação da mídia. O primeiro momento ocorre na década de 40 quando da
reelaboração da música primitiva pelo músico Luiz Gonzaga, coincide com o período
áureo do rádio que promove sua divulgação. No segundo momento, na década de
90, a televisão, a mídia fonográfica e mídia impressa, reincorporam o novo forró na
sua programação, com as características massivas nele introduzidas. As relações da
cultura de massa, o impacto sobre essa produção cultural oriunda da cultura popular
é o objeto de interesse desse trabalho.

As formas culturais não aparecem de repente, elas passam por um longo período de
gestação até a sua expressão como a conhecemos, nunca prontas, nunca acabadas
em definitivo. Existem em franco movimento, atreladas à dinâmica social sempre em
constantes releituras e reinterpretações, provedoras de outras formas. Assim, antes
que Luiz Gonzaga, considerado o pai do forró, fizesse a reelaboração do “forró-pé-
de-serra”, outros músicos, sanfoneiros e rabequeiros do Nordeste também exerceram
sua influência sobre essa manifestação da cultura do Nordeste do Brasil.

Luiz Gonzaga “inventa” o baião, ritmo que alcançou grande sucesso na década de 40,
tornando-se um fenômeno nacional. Nascia uma “nova” música a partir de elementos
das tradições ibéricas, africanas e indígenas. Autores como Câmara Cascudo (1988),
encontram as raízes do forró na mestiçagem de nossa formação cultural. Detectam
nas suas células musicais, elementos da batida forte do maracatu africano, do ritmo
sincopado das danças populares do Nordeste, e da languidez da música primitiva
trazida pelos colonizadores portugueses.

(...) a música de Luiz Gonzaga, enquanto expressão significativa da cultura


brasileira, é concebida como movimento cultural, que expressa combinações ou
recombinações de códigos e reelaboração de símbolos e valores vinculados também
a outras tradições, constituindo-se, assim, numa linguagem especial (VIEIRA,
1999:123)

A música de Luiz Gonzaga causou um grande impacto no público de todo o país,


apesar da existência de preconceitos em relação à cultura vinda do povo e em
especial do Nordeste, a região mais pobre, estigmatizada no Sul desenvolvido. Nesse
período a política nacional estava empenhada no fortalecimento e divulgação do
nacionalismo, exaltando e valorizando a cultura popular. A vida brasileira foi marcada
pela chamada “Era Vargas” que começa com a Revolução de 30 e termina em 1945,
com a deposição de Getúlio. O Estado intervém na economia e na organização da
sociedade, pela presença dos militares na política, caracterizando-se pelo
autoritarismo, domínio da administração pública, cerceamento da livre expressão,
enfim a centralização do poder. O crescimento da economia nacional atraía
investimentos estrangeiros que encontravam no Brasil um mercado promissor. O
aparecimento do rádio, fruto das inovações tecnológicas forjadas já a partir do séc.
XIX, no Brasil, tem seu desenvolvimento marcado politicamente pelo populismo e
nacionalismo que caracterizaram a Era Vargas. Com o rádio, veículo de maior alcance
à época, Vargas lançava a ideologia do Governo à classe operária, além de difundir a
cultura local e de desenvolver as formas de entretenimento, até então desconhecidas
no nosso meio. Com as inovações propiciadas pela tecnologia o rádio na década de
30 revolucionou a sociedade, ditou moda, modificou hábitos, interferiu no espaço e
no tempo. Na sala de estar, local das conversas com a família e convidados, ao lado
do piano, no caso das famílias burguesas, o receptor ganhou lugar de destaque, ao
redor do qual todos silenciavam e ouviam. O rádio transformou-se na maior atração
cultural do país e a Rádio Nacional do Rio de Janeiro foi um fenômeno de
comunicação de massa, impulsionando por meio da publicidade as vendas de
aparelhos receptores (os capelinhas), e conseqüentemente aquecendo a indústria
produtora como a Westinghouse e a Philips.

O rádio rápido desenvolveu uma linguagem própria caracterizada pela agilidade,


rapidez e a flexibilidade em se adaptar às demandas sociais fazendo circular a
informação e o entretenimento, renovando-se e acompanhando as novidades
tecnológicas no sentido de conquistar cada vez maior audiência.
Nesse contexto surge a música de Luiz Gonzaga, um nordestino, natural de Exu,
cidade do interior do Estado de Pernambuco, Nordeste do Brasil. Mais um retirante
em busca de melhores condições de vida, chega ao Rio de Janeiro, capital do país e
centro cultural na época. A sanfona era seu instrumento e dela se utilizou como
sobrevivência no trabalho noturno nos cabarés da Lapa, local de prostitutas e
boêmios. Ainda não criara o baião, tocava o que estava na moda: tangos, valsas,
boleros, polcas e até o samba. Algumas apresentações nos programas de calouros de
Ary Barroso no rádio o fizeram conhecido no meio de produção do entretenimento.
Nesse período ele se destaca após tocar o forró “Vira e Mexe, e logo em seguida foi
contratado pela Rádio Nacional e, com o sucesso da música “Baião”, torna-se artista
consagrado. Luiz Gonzaga, em 1943, assume nacionalmente uma identidade
regional, adota um vestuário típico do homem do sertão: o chapéu de couro, usado
pelos cangaceiros, e o gibão, roupa do cotidiano dos vaqueiros.

Em parceria com Humberto Teixeira, compositor cearense, nascido em Iguatu,


Gonzaga cria um novo ritmo dançante -o baião- mistura de muitos estilos. Além da
sanfona, instrumento principal na execução dessa música, incorpora outros
instrumentos de percussão como o zabumba e o triângulo, modificando de forma
inovadora a estrutura harmônica dos arranjos da música nordestinas primitiva,
apoiados na viola, no pandeiro e na rabeca.

O olhar preconceituoso da elite sobre as manifestações da cultura popular e entre


elas a música, é o referendo da diferenciação de classe. No Ceará o termo forrobodó
era aplicado aos bailes da periferia, das classes subalternas, da “canalha”, como
refere Câmara Cascudo (1954:653), citando Rodrigues de Carvalho. Nessa ocasião
de conjuntura social específica, surge o novo ritmo conquistando o Brasil de forma
inesperada, abalando o império do samba, preferência nacional. As composições da
música do “Rei do Baião” mostravam características do povo e da cultura nordestina,
abordavam entre outros temas, a relação do homem com a natureza, a religiosidade,
a beleza da mulher, a bravura do sertanejo e as peripécias dos cangaceiros.

Gonzaga colocou toda a sua bagagem cultural nos acordes da sanfona, dando um
novo significado às experiências vividas e às adquiridas na sua nova condição de
migrante nordestino na cidade grande. Essa nova linguagem se reflete na letra, na
melodia, no ritmo, nos instrumentos e na forma de interpretar, ele cria um estilo
musical, marca uma época e faz escola.
A música de Luiz Gonzaga fala ritmicamente de uma terra que se estranha na alma e
no corpo do ouvinte, arrastando o seu ouvido, sua cintura, seus quadris, arrastando
os seus pés. Nordeste da dor que geme nas toadas, Nordeste da alegria que dança
no forró, Nordeste sensual no esfregar-se dos corpos no xote. Músicas que
agenciam, na verdade, diferentes experiências visuais e corporais, produzindo
diferentes decodificações, diferentes Nordestes (ALBUQUERQUE,199:160).

Apresentando artefatos inéditos ele intercala recitação ao canto, exortações,


chamamentos, chistes do seu nicho cultural, dessa forma o criador do baião
reelabora e resignifica a cultura popular e torna possível uma aproximação com o
público, Estão presentes no baião, signos sonoros inovadores que reforçam na sua
narrativa a proximidade do ouvinte com a vida e as coisas do sertão. Os aboios,
gritos, bater de cancela, arrastar da chinela, estalidos de chicote, mugidos, latidos,
são símbolos usados com a intenção de fazer o ouvinte mais perto da realidade
criada artisticamente. O autor incorpora ainda efeitos teatrais, interpreta ações do
cotidiano, adquire um poder de comunicação marcante com o seu público. Na
verdade, esta foi a estratégia usada para conquistar a simpatia e a aproximação com
a platéia e o ouvinte.

Cantando a realidade nordestina com a voz carregada de paixão, dor, amor e


saudade, a música de Luiz Gonzaga transforma-se em símbolo regional, marca
inconfundível de uma cultura. O momento político requeria o reforço da brasilidade,
para tal recorria-se a algo mais do interior da cultura que se diferenciasse do meio
urbano industrializado, dominado pelos estrangeirismos e nada mais adequado no
momento do que essa música que surgia com o poder de mobilizar todas as regiões
do país e a quase totalidade dos segmentos sociais de classe.

Uma música que remetesse à identidade nacional e ao seu “povo”, que fosse buscar
nas canções populares sua matéria prima, já que essas são vistas como reserva de
brasilidade; o elemento de reação à produção de uma música atrelada a padrões
estrangeiros (ALBUQUERQUE, 1999:153).

A música de Luiz Gonzaga muito contribuiu no processo de construção da imagem do


Nordeste. Até então, o país era percebido como o Norte e o Sul, o primeiro, pobre,
visto como fator de impedimento ao avanço mais rápido da economia do Sul. Não
havia o reconhecimento do Nordeste como região e é nesse período que começa a se
forjar nos setores econômicos e políticos uma visão mais clara da região com todas
as distorções que se verifica ainda na atualidade. A divulgação desse fenômeno -o
forró nordestino- a partir da década de 40 chamou a atenção sobre a região. Nesse
processo, o que era exclusivamente “local”, passou a incorporar elementos do
“nacional”, realizando uma reelaboração, uma reinterpretação a partir da intersecção
de dois diferenciados aspectos culturais. No entanto, o que se considerou à época,
genuinamente regional, não passava de uma mistura de características do Norte e do
Sul, resultando no baião, música com outro significado, uma nova linguagem.

À medida que se ampliava a difusão de seu trabalho, a suposta identidade regional


ou sertaneja foi assumindo características de identidade nacional, o baião faz
movimentos cruzando os espaços existentes entre os planos da música popular e da
erudita, assim como dos territórios regional, nacional e até mesmo, internacional. As
composições interpretadas por Luiz Gonzaga ultrapassaram os limites da
nacionalidade e foram executadas em outros paises como cultura representativa do
Brasil. A idéia de que as culturas nacionais se constituem em uma das principais
fontes de identidades culturais encontra espaço de reflexão em Stuart Hall (2002),
para quem a construção de uma cultura nacional perspassa fatores como, a
elaboração de um discurso de origens, de continuidades e de intemporalidade,
baseados na tradição e na criação de mitos fundadores. Para o autor essas
construções imaginárias encontram lugar em uma narrativa da nação exemplificada
na cultura popular, na literatura e nos meios de comunicação de massa que
representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos, as criações que dão
sentido à nação.

O baião urbanizou-se, penetrou em outros ambientes musicais, deixando de ser


somente um ritmo dançante. Assume aspectos diferenciados, a partir do momento
em que é executado em espaços que outrora o discriminara, passa a ser requisitado
em lugares de música requintada, cantado por renomeados artistas conhecidos
nacionalmente, executado por instrumentos diferentes da rabeca e da viola.

No entanto, esse sucesso só foi possível com a presença do rádio como veículo de
comunicação mais importante da época e de fundamental importância na divulgação
da música de Luiz Gonzaga. Nesse período a música erudita e a estrangeira estavam
em declínio no gosto popular e o samba era censurado pelo Estado Novo. Alguns
sambistas insurgiam-se contra o regime ditatorial e colocavam na “boca do povo”
críticas jocosas ao Governo Vargas que além de proibir expressões contrárias á sua
ideologia, abria espaço para a nova música de caráter regional, servindo aos
interesses de integração favoráveis ao regime populista.

O Brasil mostrou-se espaço propício para o desenvolvimento de uma cultura popular


de massa. Em busca de manifestações que pudessem ser utilizadas como identidade
nacional, foram apropriadas práticas e hábitos diferenciados daquelas às quais a
música primitiva se reportava.

(...) Talvez em nenhum outro país da América Latina como o Brasil a música tenha
permitido expressar de modo tão forte a conexão secreta que liga o ethos integrador
com o pathos, o universo do sentir. E que a torna, portanto, especialmente apta para
usos populistas (BARBERO, 1998:238).

Com a apropriação do forró assim como dos demais estilos musicais populares da
época tinha-se a intenção de se afastar a música estrangeira que era predominante
na sociedade.

O projeto do nacionalismo musical opera sobre um eixo interior e outro exterior.


Estabelecimento de uma “faixa de isolamento” que separe nitidamente a boa música
popular -a folclórica, ou seja, aquela que é praticada no campo- da ruim, a música
comercializada e estrategicamente que é feita na cidade. E o exterior: proporcionar
ao mundo civilizado uma música que, refletindo na nacionalidade possa ser ouvida
sem estranhamento (BARBERO, 1998:240).

Logo o artista do nordeste conseguiu liderar a audiência, conquistando o controle de


alguns programas de emissoras importantes. Em São Paulo, apresentou-se na Rádio
Record e, no Rio de Janeiro, na Rádio Nacional, onde comandava o programa “No
Mundo do Baião”, importante na divulgação do novo ritmo e na ampliação da
audiência. “A música de Luiz Gonzaga é dirigida, sobretudo, ao migrante nordestino
radicado no Sul do País”. (ALBUQUERQUE, 1999:154). No meio urbano em que vivia,
o homem sertanejo estava distanciado de suas práticas culturais; em sua terra, a
música era executada pelos próprios caboclos do sertão, nela ele se reconhecia e se
integrava, na cidade, só lhe restava ouvir os artistas itinerantes em raras ocasiões.

Nesse período, c rádio, beneficiado pela revolução tecnológica em curso se fixa como
meio de comunicação e evolui de forma acelerada. Surge o rádio portátil ideal para
acompanhar a mobilidade do ouvinte, em especial, este ouvinte trabalhador
nordestino em São Paulo na década em questão.

A recepção portátil foi uma conquista da comunicação sem fio que alterou
profundamente a produção e transmissão de informações. Se o telefone e o telégrafo
inauguraram a era da comunicação eletrônica com a introdução do tempo real, a
tecnologia do rádio a complementou pela ubiqüidade. A compressão do espaço-
tempo do mundo humano se completou com ela, pelo menos como possibilidade
teórica, uma vez que na prática só se deu num lento processo de conquista de
territórios. Mas a portabilidade não era uma solução encontrada apenas na
comunicação, respondia a um problema maior -o da acelerada mobilidade da
população provocada pela revolução industrial- e já na virada do século os centros de
consumo mais desenvolvidos eram invadidos por toda a sorte de artefatos portáteis
(MEDITSCH, 2003:1).

Com o apoio do rádio a música estabelece uma relação entre dois mundos: a cidade
e o sertão. Em suas locuções há sempre a referência a essa nova situação do
migrante. A sua música é “ (..) produtora e difusora de um conjunto de símbolos
capaz de interpretar esse aparente momento de transição, essa provisoriedade,
ajudando o retirante a enfrentar o caos” (VIEIRA, 1999, 259) do mundo urbano, do
mundo que para ele é novo, de características estranhas aos seus olhos.

Luiz Gonzaga cria uma linguagem própria pra referir-se a esse mundo novo e ao
velho mundo do retirante, expressando-se na forma falada, cantada, instrumental,
nos arranjos e ritmos. O “Mundo do baião” torna-se quase um ritual que ajuda a
construir uma identidade do homem sertanejo, enfatizando costumes, e trazendo ao
conhecimento do grande público brasileiro ritmos originais nunca escutados como o
coco, as toadas, os aboios e finalmente o baião, essa cria miscigenada.

Desse modo o rádio desempenhou papel de grande relevância na construção dessa


ponte entre as duas culturas, consolidando a música popular brasileira. “ (...) o rádio
foi fundamental não só para a vinculação das peças musicais em si, mas também
como mediador de todo um processo de criação e difusão de imagens... ele se fez o
grande mediador entre artistas e públicos” (VIEIRA, 1999:61). A partir dele Luiz
Gonzaga foi aceito conquistou o sucesso não apenas como músico regional, mas
como um intérprete, compositor e instrumentista, capaz de representar a cultura de
sua nação. O rádio contribuiu para que houvesse o surgimento e a consolidação de
uma nova cultura, um espaço propício para a construção de uma linguagem onde se
entrecruzam o tradicional e o moderno, carregada de significações.

No sertão, a divulgação da música regional dá-se por meio dos rituais característicos
como os “arrasta-pés”, nas feiras com os emboladores, os repentistas, as cantorias
de pé-de-parede, os cordelistas, nas festas juninas e outras manifestações sazonais.
A música de Luiz Gonzaga contém todos esses elementos além de incorporar as
experiências da modernidade e dos meios de divulgação do espaço urbano. Ao
mesmo tempo em que se quer uma música pura, com o intuito de preservar a
cultura nordestina, antimoderna e antiurbana, o produto desse contato se insere no
processo comercial, é parte da industrialização da cultura. As rádios tornam-se
indispensáveis ao seu trabalho, veículos capazes de colocá-lo em contato com a
massa de retirantes nordestinos, na sua maioria “bóias-fria” no mercado de trabalho
da indústria. São eles os maiores consumidores de seu produto. A divulgação pelo
rádio, a aceitação e o sucesso possibilitaram sua chegada às gravadoras e aí se
consolida o consumo.

Sua visão popular e tradicionalista, nascida de sua vivência de filho de camponeses


no Nordeste, foi aliada, ao mesmo tempo, a todo um trabalho de divulgação e
criação de formas musicais que partiam de matéria de expressão, vindas do
Nordeste, urbanizando-as, tornando-as formas destinadas ao mercado de discos e
shows (ALBUQUERQUE, 1999:158).

O artista, ao urbanizar a sua música, introduz no circuito comercial os componentes


da cultura folk, trazendo para esta um retorno que ao longo do tempo ocasionará
novos olhares, novas percepções na produção popular, como veremos no segundo
momento.

Para garantir a sua inserção no circuito comercial competitivo, ávido por novidades
era preciso algo que o distinguisse que o caracterizasse. Com o propósito de ligar às
canções uma imagem de forte apelo, apropria-se de uma indumentária marcante e
compõe um personagem característico da cultura do Nordeste. O cantor adota o
vaqueiro nordestino como personagem, vestido a caráter, o gibão e o chapéu de
couro incorporam-se como símbolos às suas apresentações. Audaz, valente,
corajoso, trabalhador, fiel, amoroso e esperto, Luiz Gonzaga toma para si esse
personagem, “ (...) faz uma tradução emblemática do retirante ou migrante”
(VIEIRA, 1999:252), representando-o no palco. Na condição de sanfoneiro e
intérprete, associa a figura do migrante nordestino à elaboração do baião. Nessa
música, o retirante, representado aí pelo Rei do Baião, desfaz-se do chapéu de palha
rasgado, da roupa em remendos e exibe a nova vestimenta, resignificando o homem
do Nordeste, agora dignificado, vencedor, reconhecido, ocupando um lugar no mapa
do Brasil.

Processam-se, assim, recriações. Desse modo, na cabeça do sanfoneiro, coroando o


Rei do Baião, o chapéu de couro não traduz uma suposta genuína cultura do sertão,
nem tampouco é domínio do, por assim dizer, emergente contexto urbano-industrial.
Ele é, sem dúvida, uma “invenção”, fruto da criatividade e ousadia de um astucioso
artista-migrante, expressão de uma cultura-movimento, que parece acompanhar a
saga de retirantes despejados, diariamente, nos grandes centros urbanos do País,
naquela época (VIEIRA, 199:254).

O público encontrava na sanfona, instrumento inseparável que o artista carregava


consigo, uma carga simbólica, expressiva, referente à identidade, ao pertencimento
a uma região conhecida no restante do país pelo viés da seca, escassez e miséria. A
reflexão sobre identidades de grupos específicos no interior de comunidades
nacionais foi realizada por Maura Penna (1998), em seu livro, “O que Faz Ser
Nordestino?”. Para esta autora, o que faz ser nordestino não está na condição de
origem, de classes ou de gênero mas sim no modo como estas condições são
apreendidas e organizadas simbolicamente. Reforçava a imagem do sanfoneiro o
sorriso largo que lhe tomava o rosto, dando a impressão de homem sempre alegre,
disposto a cantar um sertão feliz, apesar dos recorrentes problemas climáticos,
estigma da região. O cantor administra a sua carreira com maestria na mídia. Era
constante a sua presença nos meios de comunicação como jornais, revistas,
tablóides, teatro, cinema e no rádio, daí a importante participação da imprensa na
construção do baião e de seu intérprete. Associando-se à empresas, vendia a
imagem construída como artista já famoso para divulgar produtos comerciais. Luiz
Gonzaga foi o primeiro artista da música popular brasileira a acertar contrato com
empresas particulares. “Em 1951, Gonzaga assina contrato com a Colírio Moura
Brasil (...), o que ocorrerá posteriormente com a Shell, que lhe patrocina uma
excursão de caminhão pelo interior do Brasil, apresentando-se em toda cidade com
mais de 400 habitantes” (ALBUQUERQUE, 1999:154). O artista cria um movimento
de trocas culturais inseridas à sua arte, forjadas pelo talento, criatividade e ousadia,
que o distingue, emprestando essa riqueza poética de compositor e intérprete às
normas da industrialização e urbanização. Ele mantém os aspectos tradicionalistas, e
exerce algo que pode ser chamado de resistência cultural e mesmo quando incorpora
elementos da cultura de massa à sua obra, reafirma e reatualiza suas raízes. A
cooperação comercial entre as gravadoras e as rádios foi a base de sustentação do
compositor nas paradas de sucesso no início de sua carreira. Essa função de
cooperação entre gravadoras e rádios transforma a música em produto comercial e
de mais fácil consumo, o disco passa a ser o grande cúmplice do rádio, sustentando
a sua audiência.

A música de Luiz Gonzaga perde a hegemonia a partir de 1954, não pelo fato de ser
nordestina ou por ter minguado a criatividade do autor, é que na dinâmica social
novos elementos políticos entram em cena. O populismo perde a força, o Presidente
Juscelino Kubitschek toma posse em 1956, no afã de modernizar o país abre as
portas ao capital estrangeiro, importa indústrias e tecnologia, acarretando uma
agravação no endividamento externo e na corrida inflacionária. Na seara artística,
paralelo à rebeldia do rock que já disputava as paradas de sucesso no rádio, surge
no Rio de Janeiro, um novo movimento musical, a Bossa Nova que se estabelece
como preferência no meio intelectual e na juventude classe média brasileira.

Se as décadas de 40 e 50 foram consideradas como momentos de incipiência


industrial da sociedade de consumo, são os anos 60 e 70 que consolidam no país um
melhor desenvolvimento de bens culturais. É justamente nesse período que há uma
expressiva efervescência e criatividade, relacionadas ao processo da cultura. “O
Brasil desses anos realmente vive um processo de renovação cultural”
(ORTIZ,1987:101).

É evidente que esse crescimento não se deu de maneira uniformizada em todos os


setores. É assim que dentre os meios de comunicação, a televisão vem se
concretizar como veículo de massa na década de 60, já o cinema nacional só
consegue estruturar-se no âmbito industrial um pouco mais tarde, na década de 70.
Esse processo tardio também pode ser percebido em relação às outras esferas da
cultura de massa como a indústria do disco, a indústria editorial, a publicidade e
outros, que, apesar de já ter dado os primeiros passos nos anos anteriores, só nesse
período conquista maior espaço na sociedade.
É inegável o fato de que a cultura de massa se constitui a partir de diálogos com a
cultura popular e a cultura erudita. Nessa interrelação as matrizes culturais se
modificam e passam por um processo de adaptação à lógica da indústria cultural.

Longe da fórmula típica e tradicional do pé-de-serra, o forró, inserido no campo da


indústria cultural, ganha uma nova roupagem, adequando-se à dinâmica social e às
regras impostas pelo sistema capitalista. Entramos na segunda fase: o novo forró,
agora exibindo a guitarra, o baixo, o órgão eletrônico e a bateria, instrumentos
utilizados por bandas que executam um som típico do ambiente urbanizado, como o
rock. Foram apropriados pelo ritmo tradicional nordestino ou dele se apropriaram e
efetuam uma nova interpretação. Essa apropriação de instrumentos modernos deu-
se de forma gradativa. As bandas de forró, sentiram a necessidade de instrumentos
de maior potência sonora e aos poucos foram sendo introduzidas aparelhagem que
pudessem se adequar aos novos ambientes de apresentações. O órgão eletrônico foi
um dos primeiros equipamentos modernos a ser utilizado pelo forró, dada a sua
diversidade sonora. Os instrumentos modernos ganharam espaço no “novo” ritmo
que passou a ser conhecido por “forró eletrônico” ou “Oxente Music”. No entanto,
não foram apenas os instrumentos de ritmo urbanizado a novidade a invadir o
espaço do forró tradicional, outros sons considerados incompatíveis ao estilo musical
nordestino foram adequados ao novo estilo que ganha o saxofone, o trombone, o
piston, os metais e até a novidade mais recente, o violino. Esse instrumento da
música clássica, embora da mesma origem da rabeca, completa o conjunto de sons
que compõem a sinfonia do forró elaborado. O campo de pesquisa do presente
trabalho foi o Ceará e é na banda cearense “Must Forró” que encontramos essa
inovação.

Na sua mais recente formulação, o forró eletrônico alcança dimensões inéditas,


distinguindo-se da música tradicional de artistas como Luiz Gonzaga, que mesmo
fazendo um ritmo urbanizado, conservou as raízes da música sertaneja. Os
integrantes das novas bandas aderiram a um vestuário que obedece às regras que a
moda atual impõe. Os componentes dos grupos, geralmente os do sexo feminino,
usam roupas e adereços com a intenção de mostrar o corpo e explorar a
sensualidade, seguindo o padrão estabelecido pela estética divulgada pelos meios de
comunicação, em especial a televisão.
Considerado um estilo musical oriundo das classes subalternas, o forró consegue
atualmente fazer parte do mundo do repertório consumido por uma camada
elitizada. Essa aceitação assemelha-se bastante a que aconteceu no início do sucesso
da obra de Luiz Gonzaga durante a década de 40.

No decorrer do trabalho de campo por nós empreendido junto ás bandas e aos


produtores do forró eletrônico fica evidente que as mudanças se fazem no sentido de
cada vez mais adequar o forró eletrônico à indústria cultural, ampliando seu
consumo em todos as classes sociais, garantindo assim, o retorno financeiro aos
seus investidores.

O Ceará que antes não atuava na área fonográfica, passa a ser um centro de
excelência no Nordeste, implantando várias empresas gravadoras para absorver o
gênero. Uma das gravadoras pioneiras foi a SomZoom Gravações e Edições Musicais
Ltda. De propriedade do empresário Emanuel Gurgel, a gravadora surgiu em
conseqüência do seu envolvimento com bandas de forró em Fortaleza. Na verdade,
atribui-se a esse produtor a criação do fenômeno “forró-eletrônico” ou, como ele
próprio denomina, de “New Forró”, pelo fato de ter sido o primeiro investidor nesse
novo mercado musical. Freqüentador assíduo de festas locais, Emanuel, que na
época trabalhava com confecção, tornou-se proprietário do grupo “Arroz com Fumo”,
uma espécie de equipe de som que manipulava a programação musical de bailes em
clubes da cidade. O forró estilo Luiz Gonzaga havia entrado em decadência nos
meios de comunicação mas o experiente produtor percebia que o ritmo ainda
agradava aos freqüentadores dos bailes. Foi aí que ele resolveu investir em bandas
que executassem o estilo com instrumentos modernos a partir de 1989. Comprou a
patente da “Banda Aquárius”, em novembro de 1990, formou a sua banda de maior
sucesso, “Mastruz com Leite”. Divulgando o trabalho por todo o Estado, o Grupo
“Mastruz com Leite”, conseguiu grande sucesso no Ceará no ano de 1992,
alcançando fama no ano seguinte por todo o Nordeste e, logo mais, em todo o país.
Durante os 12 anos de existência, a banda lançou no mercado 32 CDs, sendo a sua
vendagem estimada em cerca de 4 milhões de discos em todo o Brasil. O CD de
maior venda foi “Meu Vaqueiro, meu Peão”, gravado em 1993. Compõem os CDs as
composições de artistas da música popular brasileira como Luiz Gonzaga,
Dominguinhos, Roberto Carlos, Trio Nordestino, Peninha, Jackson do Pandeiro, além
da produção dos compositores das bandas e de outros músicos locais.
Com o sucesso obtido com “Mastruz com Leite”, e a demanda surpreendente, o
empresário criou novas bandas que seguiam o mesmo modelo. Nasce a partir daí,
“Cavalo de Pau”, “Mel com Terra”, “Catuaba com Amendoim”, “Àquarius”, “Calango
Aceso” e “Rabo de Saia”. Hoje a SomZoom grava discos ligados ao moderno forró
nordestino, obtendo um número mensal de vendas estimado em 200 mil cópias, uma
média que oscila entre 150 a 300 mil, a gravadora tem uma vendagem anual que se
aproxima de 2 milhões e 400 mil discos em todo o Brasil.

Encontrando dificuldades para divulgação do seu produto nas rádios locais, Emanuel
Gurgel investiu nesse meio de comunicação com a finalidade de obter melhor
divulgação para o seu produto. Hoje, é dono de uma rede de rádio, a SomZoom Sat.
Suas filiais estão espalhadas por quase todas as regiões do Brasil, tendo como
principal gênero musical veiculado o “forró eletrônico”.

Estimulados pelo sucesso rápido do empresário Emanuel Gurgel, outros grupos


começaram a investir no novo forró e foram surgindo outras gravadoras, como a For
All, a Som Legal, a AM Produções, Herm Som, Lamparina’s e Águia Records. Ao
penetrar no mundo moderno e urbano, o forró é produzido pelas regras do
capitalismo, atendendo a todas as imposições que o transformam em objeto de
venda. É apropriado pelo processo de estandardização e torna-se produto voltado à
comercialização. “(...) a música deixara de ser simplesmente arte, expressão da
alma do povo, para se transformar numa indústria gigante, sustentada por
vendagens astronômicas e capaz de recompensar os vendedores com muito dinheiro
e fama” (NEPOMUCENO, 1999:22).

Essa proliferação de músicos do novo ritmo fez com surgissem programações


midiáticas especiais destinadas ao consumidor. Mais uma vez é o rádio o principal
veículo divulgador da nova fase, a do forró eletrônico que rápido conquista um lugar
privilegiado entre os programas de maior audiência das emissoras locais.

No meio radiofônico cearense, um dos programas destinados ao forró, de audiência


reconhecida é o “Forrozão 93”, transmitido diariamente pela rádio FM 93, empresa do
Grupo Edson Queiroz. A emissora tem ainda em sua grade de programação o matinal
“Informasom”, no qual também o forró é a única atração. Seguindo a mesma linha, a
Rádio 100FM apresenta, no período da tarde, o programa “Forró Mania”, a FM 101.7,
ligada à rede Brasil Sat, produz diariamente o “Forrozão da 101” e transmite, via
satélite direto de Teresina, o programa “Acorda Brasil”, divulgador do forró com
alcance em todo o Nordeste. A rede SomZoom Sat no início da década de 90,
arrendou um horário na 99 FM destinado ao programa “FM Forró”, em 93, comprou
espaço na rádio Casablanca que passou a ter parte de sua programação voltada para
o ritmo. Em Pernambuco, adquiriu emissores em Recife, Caruaru e Pesqueira.

Atualmente a SomZoom Sat tem 97 emissoras espalhadas por 15 estados, dentre os


quais : Rio Grande do Norte, Maranhão, Paraíba, Alagoas, Pernambuco, Bahia, Pará,
Piauí, Rondônia, Sergipe, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, e Tocantins, além
do Ceará. Participando ativamente do espaço radiofônico cearense, essa rede possui
15 emissoras no Estado. Em Fortaleza, é dona da Capital FM e Tropical FM, rádios
com grande parte da programação destinada ao forró. No interior, suas filiais estão
presentes em 13 cidades. Assim como no rádio, o forró conseguiu conquistar um
espaço exclusivo na televisão. É o caso de programas como “Meu Xodó”, veiculado
semanalmente pela TV Jangadeiro e o programa “Forrobodó”, transmitido pela TV
Diário, emissora do Grupo Edson Queiroz. Mesmo nos programas locais que não se
destinam exclusivamente à divulgação do forró ou da cultura nordestina, há sempre
espaço para as bandas e cantores mostrarem seus trabalhos. Dentre esses
programas, estão o “João Inácio Show”, “Ênio Carlos” e “Talentos da Terra”,
veiculados pela TV Diário, e o programa “Na Boca do Povo”, também transmitido pela
TV Jangadeiro.

Ainda com o objetivo de divulgar o forró, assim e a cultura nordestina foi criada a
revista “Conexão Vaquejada”, veículo constituído basicamente de informações sobre
essa manifestação cultural. A iniciativa de se criar um espaço na imprensa escrita
destinado ao forró foi do Grupo Emanuel Gurgel. A revista, além de abordar o tema
das vaquejadas e eventos similares tem um espaço reservado à divulgação do forró.
Ainda como estratégia de divulgação o leitor recebe gratuitamente, em todas as
publicações, um CD de uma banda de forró. A revista que nasceu em 1997, é
publicada mensalmente com uma tiragem de 20 mil exemplares distribuídos em
todas as capitais do país, especialmente as do Nordeste.

Ao ser inserida no circuito comercial a música nordestina tornou-se um bem de


consumo, perdendo aspectos de sua origem de expressão da cultura regional e como
todo bem industrializado, é absorvido seguindo as normas do sistema, tendo
percorrido um caminho de grande sucesso e no final da década de 50, entrado em
decadência. Após ser esquecida volta a ser reelaborada pela cultura de massa.
Mergulhado na indústria cultural, o forró encontra um vasto campo para sua
divulgação, torna-se padronizado e produto de consumo. Não estamos com essa
observação condenando esse processo, adotamos o ponto de vista de Canclini
(1997:227), para quem “a adoção da modernidade não substitui necessariamente
suas tradições”. Diferente do período de Luiz Gonzaga o novo forró não tem como
princípio a relação com o passado, é essencialmente urbano e a mídia é o seu mais
forte aliado. No entanto, não se pode negar a sua origem e a cultura que representa.
Nesse momento ele expressa mais uma reelaboração e é passível de sofrer tantas
outras como qualquer atividade cultural nesse processo de hibridação.

Ao final desse trabalho a reflexão que nos instiga pode ser expressa pelas seguintes
questões: Qual o papel da mídia na recomposição da memória coletiva na
contemporaneidade? A força de uma manifestação artística desse porte pode
funcionar como um catalizador na construção de uma identidade? E em que medida?
Mas esse é um tema para uma próxima oportunidade.

Biliografia

ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:
Cortez Editora, 1999.

BARBERO, Jesus Martin. Dos meios às mediações. Barcelona: Editora UFRJ, 1987.

CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,


1997.

CASCUDO, Luís Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro,


1959.

CASCUDO, Luis Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,


2002.

MEDITSCH, Eduardo. A recepção portátil da informação no rádio: especificidades do


meio que inaugurou o jornalismo eletrônico. Trabalho apresentado na SBPJor.
Brasília: 2003.

NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira. São Paulo: Editora 34, 1999.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1987.


PENNA, Maura. O que faz ser nordestino? São Paulo: Cortez, 1998.

PIMENTEL, Mary. Terral dos sonhos: elementos para o estudo regional na música
popular brasileira. Fortaleza, UFC, 1992.

VIEIRA, Maria Sulamita de Almeida. Luiz Gonzaga, o sertão em movimento.


Fortaleza: UFC, 1999.

DATOS DE LAS AUTORAS

Erotilde Honório Silva

Professora Dra. Titular da Universidade de Fortaleza, UNIFOR.

Régia Chaves Honório

Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará – UFC.

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