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Resumo
As formas culturais não aparecem de repente, elas passam por um longo período de
gestação até a sua expressão como a conhecemos, nunca prontas, nunca acabadas
em definitivo. Existem em franco movimento, atreladas à dinâmica social sempre em
constantes releituras e reinterpretações, provedoras de outras formas. Assim, antes
que Luiz Gonzaga, considerado o pai do forró, fizesse a reelaboração do “forró-pé-
de-serra”, outros músicos, sanfoneiros e rabequeiros do Nordeste também exerceram
sua influência sobre essa manifestação da cultura do Nordeste do Brasil.
Luiz Gonzaga “inventa” o baião, ritmo que alcançou grande sucesso na década de 40,
tornando-se um fenômeno nacional. Nascia uma “nova” música a partir de elementos
das tradições ibéricas, africanas e indígenas. Autores como Câmara Cascudo (1988),
encontram as raízes do forró na mestiçagem de nossa formação cultural. Detectam
nas suas células musicais, elementos da batida forte do maracatu africano, do ritmo
sincopado das danças populares do Nordeste, e da languidez da música primitiva
trazida pelos colonizadores portugueses.
Gonzaga colocou toda a sua bagagem cultural nos acordes da sanfona, dando um
novo significado às experiências vividas e às adquiridas na sua nova condição de
migrante nordestino na cidade grande. Essa nova linguagem se reflete na letra, na
melodia, no ritmo, nos instrumentos e na forma de interpretar, ele cria um estilo
musical, marca uma época e faz escola.
A música de Luiz Gonzaga fala ritmicamente de uma terra que se estranha na alma e
no corpo do ouvinte, arrastando o seu ouvido, sua cintura, seus quadris, arrastando
os seus pés. Nordeste da dor que geme nas toadas, Nordeste da alegria que dança
no forró, Nordeste sensual no esfregar-se dos corpos no xote. Músicas que
agenciam, na verdade, diferentes experiências visuais e corporais, produzindo
diferentes decodificações, diferentes Nordestes (ALBUQUERQUE,199:160).
Uma música que remetesse à identidade nacional e ao seu “povo”, que fosse buscar
nas canções populares sua matéria prima, já que essas são vistas como reserva de
brasilidade; o elemento de reação à produção de uma música atrelada a padrões
estrangeiros (ALBUQUERQUE, 1999:153).
No entanto, esse sucesso só foi possível com a presença do rádio como veículo de
comunicação mais importante da época e de fundamental importância na divulgação
da música de Luiz Gonzaga. Nesse período a música erudita e a estrangeira estavam
em declínio no gosto popular e o samba era censurado pelo Estado Novo. Alguns
sambistas insurgiam-se contra o regime ditatorial e colocavam na “boca do povo”
críticas jocosas ao Governo Vargas que além de proibir expressões contrárias á sua
ideologia, abria espaço para a nova música de caráter regional, servindo aos
interesses de integração favoráveis ao regime populista.
(...) Talvez em nenhum outro país da América Latina como o Brasil a música tenha
permitido expressar de modo tão forte a conexão secreta que liga o ethos integrador
com o pathos, o universo do sentir. E que a torna, portanto, especialmente apta para
usos populistas (BARBERO, 1998:238).
Com a apropriação do forró assim como dos demais estilos musicais populares da
época tinha-se a intenção de se afastar a música estrangeira que era predominante
na sociedade.
Nesse período, c rádio, beneficiado pela revolução tecnológica em curso se fixa como
meio de comunicação e evolui de forma acelerada. Surge o rádio portátil ideal para
acompanhar a mobilidade do ouvinte, em especial, este ouvinte trabalhador
nordestino em São Paulo na década em questão.
A recepção portátil foi uma conquista da comunicação sem fio que alterou
profundamente a produção e transmissão de informações. Se o telefone e o telégrafo
inauguraram a era da comunicação eletrônica com a introdução do tempo real, a
tecnologia do rádio a complementou pela ubiqüidade. A compressão do espaço-
tempo do mundo humano se completou com ela, pelo menos como possibilidade
teórica, uma vez que na prática só se deu num lento processo de conquista de
territórios. Mas a portabilidade não era uma solução encontrada apenas na
comunicação, respondia a um problema maior -o da acelerada mobilidade da
população provocada pela revolução industrial- e já na virada do século os centros de
consumo mais desenvolvidos eram invadidos por toda a sorte de artefatos portáteis
(MEDITSCH, 2003:1).
Com o apoio do rádio a música estabelece uma relação entre dois mundos: a cidade
e o sertão. Em suas locuções há sempre a referência a essa nova situação do
migrante. A sua música é “ (..) produtora e difusora de um conjunto de símbolos
capaz de interpretar esse aparente momento de transição, essa provisoriedade,
ajudando o retirante a enfrentar o caos” (VIEIRA, 1999, 259) do mundo urbano, do
mundo que para ele é novo, de características estranhas aos seus olhos.
Luiz Gonzaga cria uma linguagem própria pra referir-se a esse mundo novo e ao
velho mundo do retirante, expressando-se na forma falada, cantada, instrumental,
nos arranjos e ritmos. O “Mundo do baião” torna-se quase um ritual que ajuda a
construir uma identidade do homem sertanejo, enfatizando costumes, e trazendo ao
conhecimento do grande público brasileiro ritmos originais nunca escutados como o
coco, as toadas, os aboios e finalmente o baião, essa cria miscigenada.
No sertão, a divulgação da música regional dá-se por meio dos rituais característicos
como os “arrasta-pés”, nas feiras com os emboladores, os repentistas, as cantorias
de pé-de-parede, os cordelistas, nas festas juninas e outras manifestações sazonais.
A música de Luiz Gonzaga contém todos esses elementos além de incorporar as
experiências da modernidade e dos meios de divulgação do espaço urbano. Ao
mesmo tempo em que se quer uma música pura, com o intuito de preservar a
cultura nordestina, antimoderna e antiurbana, o produto desse contato se insere no
processo comercial, é parte da industrialização da cultura. As rádios tornam-se
indispensáveis ao seu trabalho, veículos capazes de colocá-lo em contato com a
massa de retirantes nordestinos, na sua maioria “bóias-fria” no mercado de trabalho
da indústria. São eles os maiores consumidores de seu produto. A divulgação pelo
rádio, a aceitação e o sucesso possibilitaram sua chegada às gravadoras e aí se
consolida o consumo.
Para garantir a sua inserção no circuito comercial competitivo, ávido por novidades
era preciso algo que o distinguisse que o caracterizasse. Com o propósito de ligar às
canções uma imagem de forte apelo, apropria-se de uma indumentária marcante e
compõe um personagem característico da cultura do Nordeste. O cantor adota o
vaqueiro nordestino como personagem, vestido a caráter, o gibão e o chapéu de
couro incorporam-se como símbolos às suas apresentações. Audaz, valente,
corajoso, trabalhador, fiel, amoroso e esperto, Luiz Gonzaga toma para si esse
personagem, “ (...) faz uma tradução emblemática do retirante ou migrante”
(VIEIRA, 1999:252), representando-o no palco. Na condição de sanfoneiro e
intérprete, associa a figura do migrante nordestino à elaboração do baião. Nessa
música, o retirante, representado aí pelo Rei do Baião, desfaz-se do chapéu de palha
rasgado, da roupa em remendos e exibe a nova vestimenta, resignificando o homem
do Nordeste, agora dignificado, vencedor, reconhecido, ocupando um lugar no mapa
do Brasil.
A música de Luiz Gonzaga perde a hegemonia a partir de 1954, não pelo fato de ser
nordestina ou por ter minguado a criatividade do autor, é que na dinâmica social
novos elementos políticos entram em cena. O populismo perde a força, o Presidente
Juscelino Kubitschek toma posse em 1956, no afã de modernizar o país abre as
portas ao capital estrangeiro, importa indústrias e tecnologia, acarretando uma
agravação no endividamento externo e na corrida inflacionária. Na seara artística,
paralelo à rebeldia do rock que já disputava as paradas de sucesso no rádio, surge
no Rio de Janeiro, um novo movimento musical, a Bossa Nova que se estabelece
como preferência no meio intelectual e na juventude classe média brasileira.
O Ceará que antes não atuava na área fonográfica, passa a ser um centro de
excelência no Nordeste, implantando várias empresas gravadoras para absorver o
gênero. Uma das gravadoras pioneiras foi a SomZoom Gravações e Edições Musicais
Ltda. De propriedade do empresário Emanuel Gurgel, a gravadora surgiu em
conseqüência do seu envolvimento com bandas de forró em Fortaleza. Na verdade,
atribui-se a esse produtor a criação do fenômeno “forró-eletrônico” ou, como ele
próprio denomina, de “New Forró”, pelo fato de ter sido o primeiro investidor nesse
novo mercado musical. Freqüentador assíduo de festas locais, Emanuel, que na
época trabalhava com confecção, tornou-se proprietário do grupo “Arroz com Fumo”,
uma espécie de equipe de som que manipulava a programação musical de bailes em
clubes da cidade. O forró estilo Luiz Gonzaga havia entrado em decadência nos
meios de comunicação mas o experiente produtor percebia que o ritmo ainda
agradava aos freqüentadores dos bailes. Foi aí que ele resolveu investir em bandas
que executassem o estilo com instrumentos modernos a partir de 1989. Comprou a
patente da “Banda Aquárius”, em novembro de 1990, formou a sua banda de maior
sucesso, “Mastruz com Leite”. Divulgando o trabalho por todo o Estado, o Grupo
“Mastruz com Leite”, conseguiu grande sucesso no Ceará no ano de 1992,
alcançando fama no ano seguinte por todo o Nordeste e, logo mais, em todo o país.
Durante os 12 anos de existência, a banda lançou no mercado 32 CDs, sendo a sua
vendagem estimada em cerca de 4 milhões de discos em todo o Brasil. O CD de
maior venda foi “Meu Vaqueiro, meu Peão”, gravado em 1993. Compõem os CDs as
composições de artistas da música popular brasileira como Luiz Gonzaga,
Dominguinhos, Roberto Carlos, Trio Nordestino, Peninha, Jackson do Pandeiro, além
da produção dos compositores das bandas e de outros músicos locais.
Com o sucesso obtido com “Mastruz com Leite”, e a demanda surpreendente, o
empresário criou novas bandas que seguiam o mesmo modelo. Nasce a partir daí,
“Cavalo de Pau”, “Mel com Terra”, “Catuaba com Amendoim”, “Àquarius”, “Calango
Aceso” e “Rabo de Saia”. Hoje a SomZoom grava discos ligados ao moderno forró
nordestino, obtendo um número mensal de vendas estimado em 200 mil cópias, uma
média que oscila entre 150 a 300 mil, a gravadora tem uma vendagem anual que se
aproxima de 2 milhões e 400 mil discos em todo o Brasil.
Encontrando dificuldades para divulgação do seu produto nas rádios locais, Emanuel
Gurgel investiu nesse meio de comunicação com a finalidade de obter melhor
divulgação para o seu produto. Hoje, é dono de uma rede de rádio, a SomZoom Sat.
Suas filiais estão espalhadas por quase todas as regiões do Brasil, tendo como
principal gênero musical veiculado o “forró eletrônico”.
Ainda com o objetivo de divulgar o forró, assim e a cultura nordestina foi criada a
revista “Conexão Vaquejada”, veículo constituído basicamente de informações sobre
essa manifestação cultural. A iniciativa de se criar um espaço na imprensa escrita
destinado ao forró foi do Grupo Emanuel Gurgel. A revista, além de abordar o tema
das vaquejadas e eventos similares tem um espaço reservado à divulgação do forró.
Ainda como estratégia de divulgação o leitor recebe gratuitamente, em todas as
publicações, um CD de uma banda de forró. A revista que nasceu em 1997, é
publicada mensalmente com uma tiragem de 20 mil exemplares distribuídos em
todas as capitais do país, especialmente as do Nordeste.
Ao final desse trabalho a reflexão que nos instiga pode ser expressa pelas seguintes
questões: Qual o papel da mídia na recomposição da memória coletiva na
contemporaneidade? A força de uma manifestação artística desse porte pode
funcionar como um catalizador na construção de uma identidade? E em que medida?
Mas esse é um tema para uma próxima oportunidade.
Biliografia
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:
Cortez Editora, 1999.
BARBERO, Jesus Martin. Dos meios às mediações. Barcelona: Editora UFRJ, 1987.
PIMENTEL, Mary. Terral dos sonhos: elementos para o estudo regional na música
popular brasileira. Fortaleza, UFC, 1992.