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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTTAQÁO
DA EDIQÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO XI — N« 130
OUTUBRO DE 1970
ÍNDICE

Cada vez mais de cada vez menos I •í-"'

I. VERDADE, ONDE ESTAS?

1) "A teoría da relatividade de Einstein quer dizer que


nao há verdade absoluta ?

Nossos conceitos sao relativos. Seria ¡esta a última expressño


das ciencias físicas ?" i19

II. A PALAVRA DO DÍA

2) "Hoje em dia, quando muito se fala de mito, pergunta-se:


que é prbpriamente uro mito ? E que valor tem ?" iSO

III. CURIOSO INQUÉRTTO

.1) "Quo penanm un fíxpñwx don pnxtnreH prtilcuttinten a rcx-


peito de seu cuxumento ?

Estilo fclizcx ? Dexcnvlentes ?" 4-42

IV. FAMOSA FIGURA

i) "Que dteer sobre os jesuíta.* e o sen rdaehnamento com


u Mtirqitíx de Pombal ? Em ge ral, faz-se a apología de Pombal. _

Como julgar essa faceta da historia da Igreja ?" hUO

Correspondencia Miúda ¿62

Resentía de Livros ■*<?á

COM APROVAgAO ECLESIÁSTICA


CADA VEZ MAIS
DE CADA VEZ MENOS!
Um fato de experiencia vai-se-nos impondo: é, realmente,
impossível saber com profundidade tudo o que cada ciencia
propóe; a engenharia, a medicina, a química, a física se rami-
ficam mais e mais... Em conseqüéncia, o homem moderno,
para poder progredir nos estudos, deve especializar-se, esco-
lhendo seu setor próprio de pesquisas. Acontece entáo estranho
fenómeno: o estudioso contemporáneo sabe cada vez mais de
cada vez menos.
A especializagáo, no caso, é urna necessidade e um bene
ficio. Mas inegávelmente ela marca o homem: éste arrisca-se
a perder o interésse por outros campos do saber e da verdade;
escapa-lhe entáo a visáo de conjunto da realidade, e o estu
dioso se torna inconsciente ou insensível para o MISTERIO
ou para os valores transcendentais. O homem que sofra tal
influencia, deforma-se como personalidade humana; fica sendo
unidimensional ou menos homem.
Por isto tém-se ouvido vozes que em nossos dias, táo
preocupados com as conquistas da ciencia, da técnica, da eco
nomía, desejam nao se extinga entre os homens o cultivo do
que se chama «a sabedoria».
A sabedoria vem a ser a visáo do sentido último e defi
nitivo que tém as realidades déste mundo; ela relaciona os
valores particulares com as grandes aspiragóes do ser humano.
Cultivando-a, o homem nao se deixa absorver, escravizar ou
desfigurar por coisas pequeñas, mas, ao contrario, domina-as
de modo a se engrandecer mediante o uso das mesmas.
O Concilio do Vaticano II lembrou o problema: «Nota-se
o desequilibrio entre a especializagáo da atividade humana e a
visáo universal das coisas» (Const. «Gaudium et Spes» n» 8b).
E preconiza: «Esteja a cultura subordinada á perfeicáo inte
gral da pessoa humana, ao bem da comunidade e da humani-
dade inteira. Por isto é necessário cultivar o espirito de tal
maneira que se desenvolva a faculdade de admirar, ds pene
trar no íntimo das coisas, de contemplar, de formar um juízo
pessoal e de aperfeigoar o senso religioso, moral e social»
(ib. 59a). Ainda em outra passagem lé-se: «A nossa época,
mais do que os sáculos passados, precisa de sabedoria para que
se tornem mais humanas todas as novidades descobertas pelo

— 417 —
homem. Realmente estará em perigo a sorte futura do homem
se nao surgirem homens mais sabios» (ib. 15c).
Homens sabios... Homens que tenham consciéncia pro
funda, que vejam como Deus vé e amem como Deus ama; tais
homens jamáis seráo decepcionados, porque já se colocam no
ponto de vista definitivo; éles poderáo dizer, com o Senhor
Deus, a última palavra da historia.
Ao cristáo, particularmente, compete cultivar a visáo sa
piencial das realidades terrestres. Toca-lhe também transmiti-la
a seus irmáos.
Dirá, porém, alguém: «Mas aínda há audiencia no mundo
para a apresentacáo de consideragoes filosófico-religiosas e de
valores transcendentais?»
Parece que se pode dizer, sem favor, que SIM. O pessi-
mismo é exagero ou falsidade. O homem de hoje é o homem
eterno, o homem que, consciente ou inconscientemente, ainda
e sempre procura a Deus. Hoje, talvez mais do que nunca, o
homem tem ocasiáo de tomar consciéncia de estar cercado de
grandezas maiores do que ele, de dimensóes vertiginosas, de
realidades misteriosas, que acenam para urna Suprema Inteli
gencia e Suma Sabedoria. — Mesmo os que parecem mais apá
ticos, sao muitas vézes suscetiveis de dialogar e de reconhecer
dentro de si aspiracóes a algo de melhor do que as coisas que
passam.
Estas afirmagóes se baseiam nao somente ñas premissas
da fé crista (que é sempre otimista), nem apenas na experi
encia do dia-a-dia, mas também em verificacóes levadas a cabo
pela ciencia:
«A pesquisa científica, psicológica e filosófica... reconhece no
homem um setor capaz de perceber as relacOes especiáis que ligam o
homem, passiva ou ativamente, a urna realidade última... Esta dispo-
slcáo religiosa nao constituí algo de secundario ou marginal no homem,
mas insere-se ñas profundezas de sua vida e mesmo a domina toda
Intelra. Em outras palavras: o homem acha-se intrínsecamente aberto
e orientado para o sobrenatural, e tudo que o cerca atesta-lhe urna
realidade transcendente... Esta natureza religiosa, deu-a Deus ao ho
mem desde o momento da criaeáo a fim de que O procurasse e destar-
te alcangasse a sua finalidade e salvagao» (Secretariado da Santa Sé
para o Diálogo com os Nao-Crentes, «Para o encontró das ReligiSes»,
junho 1967). '
Nossos dias, portanto, nao háo de ser menos do que os
tempos passados os dias em que o homem será auténticamente
homem, encontrando-se com o seu Alfa e Omega. O que im
porta, é saber como falar ao homem de hoje — jovem ou
adulto —, de modo a ajudá-lo a chegar ao termo ao qual,
consciente ou inconscientemente, todos aspiram.
«SENHOR, FAZE QUE EU VEJA!» (Le 18, 41).
E B

— 418 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XI — N" 130 — OuHíbro de 1970

I. VERDADE, ONDE ESTAS ?

1) «A teoría da relatividadc de Einstein quer dizer que


nao há verdade absoluta?
Nossos conceitos sao relativos. Seria esta a última exprés-
sao das ciencias físicas?»

Em abítese: A teoría da relatividade de Einstein faz-nos tomar


consciéncla de que a nossa manelra de apreender a sucessao e a
duracao dos íatos depende de circunstancias varias: velocidade do
meló transmissor (luz, som,...), distancia entre o observador e o
aconteclmento... Por isto, quando dois acontecimentos nos parecem
ser simultáneos, éles nem sempre o sao na realidade ; quando lhes
atribuimos tal duracáo, outro observador talvez lhes atrlbua duracao
diversa. Todavía nesses casos trata-se apenas de relativismo no nosso
modo de apreender; veriíicando-o, Einstein de modo nenhum preten
día negar a realidade objetiva dos acontecimentos; a sua teoria flca
no setor da matemática, sem envolver a nocao de verdade objetiva,
que é própria da filosofía. De resto, as deficiencias do nosso modo de
apreender a realidade do tempo e da duracáo podem ser corrigidas;
as ciencias ditas «exatas» tém progredido notoriamente neste sentido,
de modo a nos libertar de falsas percepcoes.

Resposta: Albert Einstein (1879-1955) é o grande físico


e matemático que formulou a teoria da relatividade; proporcio-
nou notável incremento as ciencias naturais, mas, ao mesmo
tempo, deixou abertas algumas questóes filosóficas. A relati
vidade parece solapar a nogáo de verdade, pois esta é sempre
concebida como algo de absoluto (segundo o modo comum de
pensar, dois e dois sao quatro, em qualquer parte do mundo
e em qualquer fase da historia). Pergunta-se, pois: qual o
alcance da teoria da relatividade de Einstein? Que conseqüén-
cias filosóficas tem ela?

A respeito de Einstein e suas concepcoes religiosas, já fol publi


cado um artigo em «P.R.» 26/1960, pp. 47-51.

— 419 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 1

1. A relatividode segundo Einstein

Os estudos de Einstein nao versavam sobre a verdade


como tal, no sentido filosófico; mas tinham em vista certas
nogóes físicas como as de movimento, massa, simultaneidade,
tempo, duragáo...

Vejamos, pois, algumas das proposigóes de Einstein que


suscitam questóes filosóficas.

1.1. Tempo e simultaneidade

Os homens, em seu bom senso, estáo convictos de que


podem saber quando determinado acontecimento se dá e por
quanto tempo ele dura. Por isto enunciam datas precisas, em
que ano, mes, dia, hora, minutos, segundos sao exatamente
indicados. Segundo o senso comum, as indicagóes cronológicas
(a datagáo) e cronométricas (referentes á contagem do tempo)
tém valor objetivo, idéntico para todos os homens.

Ora as idéias de Einstein parecem por em xeque o signi


ficado absoluto e universal de nossos enunciados cronológicos
e cronométricos.

Eis como se desenvolve o pensamento do famoso físico:


Os fatos que situamos no tempo, ocorrem a certa distan
cia de nos, ... distancia que pode ser exigua (como no caso
da máezinha que contempla seu filhinho a dormir), como tam-
bém pode ser vultosa (como no caso de quem contempla as
estrélas separadas de nos por muitos anos-luz '). Para veri
ficar quando ocorrem os fatos, quer próximos, quer distantes
de nos, valemo-nos de certos meios de transmissáo e, muito
especialmente, da luz. É a luz que nos transmite as imagens
dos acontedmentos; dizemos que um gol nurna partida de fu-
tebol ocorre quando nos chega a respectiva imagem veiculada
pela luz, como dizemos que uma banda de música está tocando
quando e na medida em que nos chega o respectivo som.

A luz é considerada o meio transmissor mais veloz; atribui-


-se-lhe a velocidade uniforme de 300.000 km por segundo;
essa uniformidade de transmissáo é chamada isotropia da luz.

Hlra minuto-luz equivale a 60x300.000 km, ou seja, 18.000.000 km.


A hora-luz, por conseguinte, representa 1.080000.000 km. Um dia-luz
vem a ser 25.920.000.000 km. O ano-luz é essa distancia multiplicada
por 365.

— 420 —
RELATIVIDADE SEGUNDO EINSTEIN 5

(iren\) ^-v

A > P B

— 421 —
!L_ 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. J ___

Ora é evidente que a luz (ou o som ou qualquer meio


transmissor que nos permita julgar o «quando» dos aconteci
mentos) nos chega de maneiras diversas, influenciadas por de
terminadas circunstancias, a saber:
— estado de repouso ou de movimento do observador.
Imagine-se, por exemplo, urna linha ferroviaria em que um
ponto P esteja a igual distancia dos pontos A e B. Se A e B
emitem sinais luminosos e um observador parado em P os
percebe ao mesmo tempo, diz, sem hesitar, que os sinais sao
simultáneos. — Se, porém, no momento em que A e B emitem
seus sinais luminosos, passa por P um trem que se dirige de
A para B, um observador, colocado dentro do trem, dirá que
os dois sinais nao sao simultáneos, mas o de B é anterior ao
de A. Ésse observador dirige-se ao encontró da luz vinda de
B e afasta-se da luz proveniente de A; por conseguinte, verá
a primeira antes da segunda e, para ele, o raio B terá prece
dido o raio A; isto significa que os dois raios, simultáneos em
relagáo ao ponto fíxo P, nao seráo mais simultáneos em rela-
gáo ao trem, e vice-versa. Se, ao contrario, o trem se dirigisse
de B para A, o observador, viajando na segunda metade do
trajeto, diria que o sinal de A é anterior ao de B.

Veja-se a propósito a figura da p. 5 14211.

Leve-se em conta tambcm o


— estado de rcpouso ou movimcnto do corpo cm que o.corro
o fato. Se, além do observador, também o corpo emissor da
imagem está em movimento, é claro que a observagáo de si-
multaneidade se torna ainda mais complexa e relativa.
Em conseqüéncia, Einstein pos em evidencia que a simul-
taneidade ou nao dos acontecimentos depende da distancia que
nos separa dos pontos onde ocorrem. A simultaneidade assim
deixa de ser algo de absoluto; ela é essencialmente relativa as
circunstancias em que se processa a observagáo.

1.2. Cronometría

Também a nossa maneira de medir a duragáo dos aconte


cimentos ou o «quanto duram» é algo de relativo, segundo as
reflexóes de Einstein.
Com efeito. Suponha-se um observador que, na térra, acom-
panhe ou percorra os acontecimentos ocorridos do ano de 1800
ao de 1900. Ésses acontecimentos, para ele, duram naturalmente
cem anos.

— 422 —
RELATIVIDADE SEGUNDO ETNSTEIN

Admita-se, porém, outro observador colocado numa estréla


que diste cem minutos-luz da térra l. Ésse observador, a partir
do inicio de 1» de Janeiro de 1900, se move em diregáo á térra
com a velocidade da luz (percorrendo, pois, 300.000 km por
segundo). Durante o percurso, ele vai recebendo os sinais lu
minosos provenientes da térra. Em conseqüéncia, no decorrer
dos cem minutos de viagem ele vé a coroagáo de Napoleáo
Imperador em Paris (1804), a construgáo da primeira loco
motiva (1814), a proclamacáo da independencia do Brasil
(1822), a publicacáo do Manifestó de Karl Marx (1848), a
queda de Roma (1870), o advento da República no Brasil
(1889) e finalmente, a 100 minutos de viagem, a abertura do
novo sáculo em 1900. Para ésse observador, todos os aconteci-
mentos do sáculo XIX (de 1800 a 1900) duram apenas 100
minutos ou 1 hora e 40 minutos (de 0 hora do dia 1* de Ja
neiro de 1900 a 1 hora e 40 minutos do mesmo dia), ao passo
que, para o observador colocado na térra, as mesmas realidades
duram 100 anos.

O caso assim apresentado é utópico. Todavía ele desperta


a atencáo para a seguinte questáo: nao poderla haver situacóes
análogas na realidade terrestre, em que a medicjio da duracáo
oscilaría segundo as circunstancias em que se achassem os di
versos operadores?

1.3. Movimento

Dizíamos sob o n* 1 («Tempo e simultaneidades) que a


nossa maneira de apreender o «quando» é relativa; está em
dependencia do estado de movimento ou de repouso em que
se ache o observador ou em que se encontré o corpo observado.

Pois bem. A própria verificagáo do movimento é também


algo de relativo. De fato. Suponha-se alguém que se póe em
viagem dentro de um carro; está persuadido de que parte de
um estado de repouso para um estado de movimento. Esta
persuasáo, porém, só é válida se o viajante confronta entre si
o seu veiculo e a estrada que ele percorre. Se, porém, ele levar
em conta o fato de que se acha sobre o globo terrestre, o qual,
por sua vez, também está em movimento, verificará que tai-
vez, ao iniciar a sua viagem, ele terá entrado em repouso
(sim..., se a diregáo do seu deslocamento é contraria á da
rotagáo da térra).

1Cómo dito, a luz percorre 300.000 km por segundo; o minuto-luz,


portanto. equivale a 60x300.000 km, ou seja, 18.000.000 km.

— 423 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 130/1970, qu. 1

Da mesma forma, um pedestre que se coloque num tapete


rolante e comece ai a andar em sentido oposto ao do tapete...
Ele talvez julgue estar-se deslocando, quando, na verdade, es
tará imóvel.

Vé-se, pois, que a própria verificagáo de movimento é re


lativa..., relativa, sim, ao sistema de coordenadas ao qual
referimos o corpo observado. Quando estamos sentados em
urna sala, julgamo-nos imóveis; de fato, estamos imóveis em
relacáo as paredes da sala e aos objetos que nela se encon-
tram; nao estamos, porém, imóveis se tomamos consciéncia
de que o globo terrestre (no qual nos situamos imóveis) gira
em torno de si mesmo (ou do seu eixo imaginario) a veloci-
dade de 1.674 km por hora, na linha do equador. Ésse mesmo
globo nos leva consigo na sua órbita em torno do sol oom urna
velocidade 60 vézes, aproximadamente, mais rápida.

Tém-se ai alguns fatos que, inegávelmente, nos fazem ver


a relatiyidade de nossas medidas de tempo e de nosso conceito
de movimento. Einstein estendeu o seu campo de observagóes,
e formulou teorías sobre massa, espago curvo, espago-tempo...
Todavía os dados até aqui apresentados já sao suficientes para
sugerir-nos um problema filosófico de importancia capital: en-
táo nao se pode mais falar de verdade em sentido próprio? A
realidade nao é algo de objetivo, universal, mas, sim, um valor
subjetivo e relativo?

É o que examinaremos sob o título abaixo.

2. Relatividode : em que sentido ?

Urna breve distingáo pode elucidar o problema: a relati-


vidade apregoada por Einstein diz respeito as medidas efetua-
áas pelo homem; ela nao se refere aos objetos mesmos que o
homem mede um avalia.
Expliquemo-nos melhor:
1) Considerados em si mesmos, todo ser móvel e todo
acontecimiento tém urna posigáo própria, objetiva e bem defi
nida na sucessáo das coisas. Por conseguinte, todo ser móvel
e todo acontecimento podem ser simultáneos, anteriores ou
posteriores a outros entes movéis e a outros acontecimientos.
Mais: todo acontecimento tem sua duragáo determinada e
objetiva.
E por que se afirma isto?

— 424 —
RELATIVIDADE SEGUNDO EINSTEIN

Porque a objetividade da sucessáo das coisas (objetividade


do «quando») e a objetividade da duragáo dos acontecimentos
decorrenr da objetividade real do movimento. A menos que
queiramos cair nos sofismas de Zenáo de Eléia (séc. V a.C),
devemos dizer que o movimento implica urna sucessáo objetiva,
de caráter determinado, absolutamente irreversível e irrepetí-
vel; implica também urna objetiva extensáo continua. Assim,
por exemplo, podemos afirmar que o movimento de revolugáo
da térra em torno do sol que corresponde ao ano de 1070, é,
de maneira objetiva e absoluta, anterior a revolugáo terrestre
de 1970. Conseqüentemente, urna guerra realizada em 1070 é,
objetiva e absolutamente, anterior a outra guerra ocorrente
em 1970.

Também deve-se afirmar que o movimento de translagáo


da térra (em torno do sol) é mais longo do que o movimento
de rotagáo (em torno do próprio eixo). Por conseguinte, a
vida de urna crianga que seja táo longa quanto urna rotagáo
(24 horas), dura objetivamente menos do que a vida de outra
crianga que se prolongue por toda urna translagáo (365 dias).
Em outras palavras: urna crianga que vive um dia, vive menos
(365 vézes menos) do que outra que vive um ano.
2) A teoria da relatividade de Einstein nao afeta estas
proposigóes, ... proposigóes que tém valor filosófico e que sao
fundamentadas sobre válido raciocinio. A teoria da relativi
dade diz respeito ao nosso modo de apreender e exprimir as
realidades objetivas; levando em conta que, para as apreen
der, nos dependemos de meios de transmissáo, podemos dizer,
com Einstein, que nossas percepgóes tém valor relativo, condi
cionado pelas circunstancias em que apreendemos os objetos.
Em outros termos:
Embora a sucessáo das coisas e a duragáo dos aconteci
mentos sejam realidades objetivas e absolutas, nos nao estamos
sempre em condigóes de conhecer essa sucessáo e essa duragáo
objetivas, isto é, nao podemos afirmar que a sucessáo e a du
ragáo segundo as quais conhecemos as coisas e os aconteci
mentos corresponden! á sucessáo e á duragáo que as coisas e
os acontecimentos tém na realidade.
O que é relativo, nao é a simultaneidade (ou nao simul-
taneidade) nem a duragáo de um acontecimento, mas, sim, a
nossa maneira de perceber e avaliar simultaneidade e duragáo.
3) Deve-se, porém, acrescentar que a relatividade no
nosso modo de conhecer pode ser, em muitos casos, corrigida.
Para corrigi-la, será preciso levar em conta

— 425 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 1

— a distancia entre o observador e o acontecimento;

— a circunstancia de ser sempre igual essa .distancia


ou de aumentar e diminuir;

— neste último caso, a velocidade do aumento ou da


diminuigáo da distancia.

Quem conhece estes dados, faz os descontos ou acréscimos


necessários para passar de urna avaliagáo relativa (subjetiva)
a urna avaliagáo objetiva. Por exemplo,

Caso explodam bombas a alguns quilómetros de um obser


vador parado, éste poderá dizer exatamente quando se deu a
explosáo, desde que conhega a distancia da explosáo e a velo
cidade da transmissáo. A simultaneidade aparente deixará de
ser simultaneidade, pois o observador descontará o lapso de
tempo necessário para que o ruido chegasse das bombas aos
seus ouvidos.

Voltemos ao caso ficticia do observador situado numa es


tréla a 100 minutos-luz da térra, ... observador que a 0 hora
de 1' de Janeiro de 1900 comegou a viajar da sua estréla para
o nosso planeta, com a velocidade da luz. Se ésse observador
souber e puder calcular a dist&ncia inicial que o separa da
térra, e a velocidade com que se move na direcáo déla, con
cluirá que os acontecimentos observados se sucederam objeti
vamente entre os anos de 1800 e 1900, e nao entre a hora 0
de 1* de Janeiro de 1900 e 1 hora e 40 minutos do mesmo dia,
e duraram 100 anos em vez de 100 minutos.

Na prática, principalmente ém se tratando de grandes dis


tancias, póem-se dúvidas sobre a possibilidade de se fazerem
os cálculos de descontó ou acréscimo necessários para chégar a
objetívidade. As dificuldades, porém, váo sendo progressiva-
mente superadas. Com efeito,

a) mesmo as distancias astronómicas sao calculadas


com exatidáo crescente;

b) normalmente pode-se saber se um observador está


parado ou em movimento;

c) pode-se calcular a velocidade do meio transmissor


(luz, som...) bem como a velocidade com que o observador
se aproxima ou se afasta do lugar onde ocorre o fato.

Na realidade cotidiana, as diferengas entre as nossas no-


cóes de tempo e duracáo e a realidade objetiva sao mínimas

— 426 —
RELATIVIDADE SEGUNDO EfNSTEIN 11

e, por isto, desprezíveis. Sendo assim, ninguém duvida de que


o Imperador D. Pedro n foi posterior ao rei D. Joáo VI; todos
estáo certos de que a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi
mais longa do que a primeira (1914-1918).

4) Para salientar que a teoría de Einstein- nao pretende


levar ao relativismo filosófico e ao ceticismo, pode-se observar
que ela supóe dois dados absolutos, nao relativos: a isotropia
da luz (a igualdade constante da velocidade da luz) e a inercia
dos corpos (cujas leis podem ser assim formuladas: «um corpo
em repouso nao entra por si em movimento; um corpo em
movimento nao para por si, mas continua a se mover em movi
mento retilíneo e com a mesma velocidade»).

Impóe-se ainda a consideragáo de duas questóes comple


mentares:

3. A quarta dímensao

Já que o lapso de tempo dentro do qual um fenómeno nos


é transmitido, influi muito sobre a nossa maneira de avallar
o espago e o movimento, Einstein tinha o tempo na conta de
«quarta dimensáo». Esta linguagem tem valor nos setores da
física e da matemática. Todavia ela nada significa no campo
da filosofía, onde se consideram as realidades em si, em seu
valor ontológico intrínseco. A sa razáo so admite tres dimen-
sóes: comprimento, largura e profundidade.

Com efeito, nao pode haver outras dimensóes além daque-


las que se podem tragar a partir de um ponto numa diregáo
qualquer. Ora essas dimensóes todas, por mais variadas que
sejam, reduzem-se ao comprimento, k largura e a profundidade.
Assim adotamos a geometría eucüdiana, cujo postulado
básico reza: «Por um ponto existente fora de uma reta, pode-
-se fazer passar sempre uma paralela a essa reta, e nao mais
do que uma» ou ainda: «O espago é uma grandeza de tres
dimensóes». Houve, sem dúvida, tentativas de construir geo
metrías náo-euclidianas: assim, em 1829 o matemático russo
Lebatchevsyk aventou a hipótese: «Por um só ponto podem-se
tragar murtas paralelas a uma reta dada», e sobre ela cons-
truiu toda uma geometría, diversa da de Euclides e coerente
consigo mesma. Em 1S54, Riemann construiu outro sistema
geométrico, também muito coerente, sobre o postulado: «Por
um ponto existente fora de uma linha nao se pode tragar para
lela alguma a essa linha». Ora, se, na verdade, as geometrías

— 427 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970. qu. 1

náo-euclidianas sao coerentes e lógicas, a partir de seus postu


lados iniciáis, iáto nao quer dizer que tais postulados sejam
verídicos e válidos; sao meras hipóteses que lidam com objetos
ideáis (construidos pela mente apenas), e nao reais. De resto,
as fórmulas náo-euclidianas podem ser traduzidas por fórmulas
euclidianas correspondentes; toda tentativa de representar um
espago náo-euclidiano se faz, necessariamente, dentro do espago
euclidiano.

4. Movimento é algo de determinado?

1. Já Galileu (t 1642) observou que num sistema (ou


conjunto) de corpos, como é, por exemplo, um navio, todos os
fenómenos mecánicos se processam do mesmo modo, quer o
sistema esteja em repouso, quer esteja em movimento retilineo
uniforme. Quem está dentro de um navio que se move regu
larmente, pode perguntar a si mesmo se o navio está parado
ou em movimento. Semelhante será a dúvida de quem viaja
de trem, com velocidade retdlínea e uniforme. Mais: quando
um trem se póe em movimento, podem os passageiros indagar
se é realmente o trem que se está deslocando ou se sao os
homens existentes na estagáo ferroviaria que, parados como
estavam, se váo deslocando.

Einstein generalizou estas observacóes, estendendo-as a


qualquer movimento, até mesmo aos fenómenos eletromagnéti-
cos. Pensemos, diña ele, no nosso sistema solar, cuja posicjio
muda em relagáo a urna estréja ou a outro sistema solar. Nos,
que estamos sobre a térra, nao temos meios para definir se é
o nosso sistema solar que se desloca em relagáo á estréla ou
vice-versa.

Certos autores, aplicando tais idéias ao campo da filosofía,


afirmam que o movimento local nao é algo de determinado»;
nao é algo que afete o corpo que dizemos estar em movimento.
O movimento local seria apenas mudanga reciproca de posigáo;
por isto seria indiferente, e igualmente verídico, afirmar que
se move o corpo A em relagáo ao corpo B ou que se move o
corpo B em relagáo ao corpo A.

2. Que dizer a respeito?


Algumas observagóes vém a propósito:
a) Há, sim, urna diferenga real, ontológica, entre um
corpo em movimento e um corpo em repouso, embora nao se

— 428 —
RELATIVIDADE SEGUNDO EINSTEIN 13

possa sempre dizer com facilidade qual dos dois se está deslo
cando. E isto, por dois principáis motivos:

Em primeiro lugar: no corpo que se move, há urna enerva


ou um impeto, que nao existe no outro. Quando aumenta a
distancia entre um pássaro e urna árvore, há no pássaro urna
fórca locomotriz própria que nao existe na árvore. Quando urna
bala de revólver zuñe ao longo de urna fila de ciprestes, há na
bala o ímpeto que falta nos ciprestes.

Em segundo lugar: o corpo em movimento muda de posi-


cáo em relacáo a todos os outros; dai resulta que todos os
outros, reciprocamente, mudam de posicáo em relacáo a ele;
mas ésses outros, nem por isso, mudam de posicáo entre si. O
trem que viaja, muda de posicáo em relacáo a todas as árvo-
res, casas e postes que ele percorre, mas todas estas coisas
conservam entre si as mesmas posicóes anteriores.

Por conseguinte, em virtude de urna dupla realidade onto-


lógica se pode sustentar a diferenca objetiva entre o corpo que
se move e o corpo em repouso.

2) Esta proposigáo continuaría a ser verídica ainda que


jamáis pudéssemos determinar com certeza qual o corpo em
movimento. Sim; urna é a questáo da existencia ou nao de
diferenca entre corpo em movimento e corpo em repouso; outra
é a questáo subjetiva de sabermos se podemos determinar qual
o corpo em movimento e qual o corpo em repouso. Só a pri-
meira questáo interessa á filosofía; a outra é do dominio das
ciencias experimentáis. Alias, todos os homens estáo convictos
de que, na maioria dos casos, podemos determinar com certeza
qual o corpo» que se move; assim ninguém diría que é a árvore
que se move em relacáo ao pássaro ou que sao os postes (e nao
o trem) que viajam do Rio de Janeiro a Sao Paulo.

Quanto aos sistemas solares, mais e mais os astrónomos


penetram em seu relacionamento mutuo. Certo, porém, é que
nao há tempo nem espago absolutos. Na verdade, o espago é
a relacáo existente entre corpos; anteriormente aos corpos, nao
há espaco; éste é definido ou delimitado por corpos. Igualmente
nao há tempo anteriormente a corpos que se achem em movi
mento; o tempo é a medida do movimento dos corpos.

A propósito vejatn-se
F. Carosi, «Curso de Filosofía», vol. III. Sao Paulo 1963. Obra que
inspirou grandemente as consideracSes déste artigo.
R. Jolivet, «Tratado de Filosofía», vol. I: «Lógica e Cosmología».
Rio de Janeiro 1969.

_ 429 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 2

O. Vitela, «Iniclaciío Filosófica». Sao Paulo 1964.


Jean-Marie Aubert, «Philosophie de la Natura». París 1965.
M. Vigano, «Relativitá», em «Enciclopedia Filosófica» t. IV. Ve-
nezia-Roma 1957, colunas 11-22.
J. Gredt, «Elementa philosophiae aristotelico-thomisticae>, vol. I,
Freiburg i./Br. 1937, pp. 274s.
J. M. Bochenski, «Diretrizes do Pensamento Filosófico». Sao Paulo
1961.

II. A PALAVRA DO DÍA

2) «Hoje em día, qnando milito se fala de mito, per-


gunta-so: que é propriamente um mito? E que vntór tem?»

Em sfntese: O mito é urna estória que pretende explicar a ori-


gem do mundo, do homem e de certas instituic5es da vida humana
(trabalho, casamento, educacSo dos filhos...). Era multas vézes asso-
ciada a ritos; celebrando estes ritos, o homem antlgo julgava prolon
gar em sua existencia a estória comemorada pelo mito respectivo.
O racionalismo e outras correntes de pensamento menosprezaram
o mito como sendo algo de infantil e irrisorio, indigno do homem
moderno. Eis, porém, que as mais recentes pesquisas tendem a valo
rizar o -mito; embora os estudiosos reconhecam como lendárlas as
estórias ai narradas, estimam que essas estórias sao a roupagem que
exprime intuieOes profundas e congénitas de todo homem; é Impos-
slvel, dizem, evitar os mitos; apenas o que se nota, é que éles se
inspiram hoje de acontecimentos e dados culturáis de nossos dias, em
vez de supor a cultura antiga. Esta posicáo mais recente é preferlvel
& anterior.
A Biblia rejeita claramente a mentalidade politeísta ou paga su-
posta pelos mitos antigos; desde o inicio, ela desmiüza, no sentido
de que corrige a falsa teologia. Isto nao impede que tenha suas ima-
gens, use vocábulos que pertenciam ao tesouro da linguagem mito
lógica e aprésente géneros literarios diversos (nem todas as narrati
vas aparentemente históricas da Biblia devem ser tomadas ao pé da
letra). Todavía jamáis a mentaltdade dos mitos é assumida pelos
autores bíblicos.

Resposta: A palavra «mito» é muito atual, mas nem sem-


pre igualmente entendida pelos estudiosos. Daí a necessidade
de se anaUsarem a etimología do vocábulo, os elementos consti
tutivos do mito e a valorizacáo que se lhe possa dar.
A respeito já foi publicado um artigo em «P.R.» 84/1964,
pp. 544-546. Ñas páginas que se seguem, procuraremos dar
mais ampio enfoque á questáo, citando inclusive opinióes di
versas a respeito do mito.

— 430 —
QUE É MITO? 15

1. Mito: que é?
1. Nao se pode afirmar com precisáo qual a raiz donde
se origina o vocábulo grego mythos: myo, myéo, mydh-?
Como quer que seja, ele significa originariamente «idéia, pen-
samento»; posteriormente, «palavra, encargo, noticia», e final
mente «narrativa» ou de fatos reais (historia) ou de ficcóes
(estória, tenida, fábula...).

No sentido de estória, que se tornou o mais comum desde


a antiguidade grega, o mito geralmente supóe dois elementos:
1) existe um mundo superior, habitado por deuses e semi-
deuses, os quais vivem suas aventuras;

2) ésses deuses aparecem agindo e sofrendo nos quadros


do espago e do tempo em que vivem os homens; sao descritos
em seu relacionamento com o céu, a térra e a regiáo infra-
terrestre. Associam-se assim intimamente o mundo dos deuses,
o dos semideuses e o dos homens.
O mito é sempre colocado na origem dos tempos, ou seja,
em épocas imemoráveis, fora da nossa historia. Pretende for-
necer a explicagáo dos fenómenos mais importantes da historia
e da vida do homem, reduzindo-os ao seu principio (arché) e as
suas causas (aitíai, em grego).
Em outras palavras: o mito pretende contar como, gracas
á intervenga© de seres divinos, determinada realidade veio a
existir, seja a realidade total (o Cosmos), seja apenas urna
parte déla: urna ilha, urna especie vegetal, o trabalho, um
comportamento humano (a alimentagáo, o vestir-se, a arte, a
morte...), urna instituigáo (a autoridade, a chefia, o casa
mento, a guerra, a educagáo...). Por conseguinte, o mito é
geralmente a historia de urna «criagáo»; refere como tal ou
tal entidade foi produzida ou comegou a existir. Assim os mitos
comunicam sempre urna >visáo sacral ou «sobrenatural» do
homem e das realidades, grandes e pequeñas, que cercam o
homem > é a irrupcáo do sagrado que funda o mundo e o torna
o que ele é hoje. Mais: é gragas á intervengáo de seres «sobre-
naturais» que, conforme os mitos, o homem é o que ele é hoje:
um ser mortal, sexuado e cultural.
2. Muitas vézes os mitos, no decorrer dos témpos, foram
assodados a ritos, que pretendiam atualizar a estória mítica;
participando désses ritos, os homens tencionavam reforgar o
caráter sagrado das suas experiencias e das principáis fases
de sua vida. As estórias dos mitos sao o modelo da atividade

— 431 —
16 tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 2

humana; ésse modelo, os homcns o apropriam a si mediante


os ritos adequados. Assim, por exemplo, nao poucos povos con-
tam que nos inicios da historia houve um combate entre os
poderes do mal e a Fórga Criadora; esta venceu, e a sua vitó-
ria (dizem) é atualizada pelos ritos do novo ano. O compor-
tamento humano, sacralizado pelos ritos, será a continuacáo
dessa Vitoria inicial.

Outras celebragóes de culto mítico pretendem fazer que o


homem viva antecipadamente os acontecimentos do fim dos
lempos ou da restauragáo de todas as coisas a ordem inicial.
3. Os mitos antigos podem ser distribuidos em diversas
categorías. Com efeito, existem:

1) mitos cosmogónicos, que referem a origem do mundo;


esta supóe geralmente luta entre os deuses ou emanagáo de
substancia a partir de urna Entidade celeste, de modo que o
mundo visível fíca Intimamente relacionado com o invisivel;
2) mitos antropogónicos, que tentam referir a origem do
homem;
3) mitos sobre o estado inicial da humanidade; descrevem
as condigóes de vida dos primeiros homens, seus enigmas, so-
frimentos, culpa, morte... Geralmente supóem urna idade de
ouro primordial, perturbada por desvio e queda moráis do
homem (narrados pelos mitos de transformacSo);
4) mitos de salvacáo, que introduzem um Novo Homem,
portador de restauracáo;
5) mitos escatológicos, que descrevem a renovagáo final
do mundo e do homem após grande catástrofe cósmica. Geral
mente afirmam que o fim já ocorreu no passado: um cata
clismo de proporgóes cósmicas (terremoto, incendio, desaba-
mento de montanhas, epidemias...) destruiu o mundo e a
humanidade, de sorte que esta recomecou a partir de um casal
ou de poucos sobreviventes. A historia presente acabará com
novo cataclismo, do qual procederá nova humanidade. Daí falar-
-se do «mito do eterno retorno».
4. Tem-se dito que o mito é a linguagem dos povos mais
rudimentares da historia. Esta afirmagáo merece reservas; os
mitos supóem certo desenvolvimento da cultura. Os povos pri
mitivos, animistas como eram, atribuiam alma (animus) a tudo,
admitindo em cada fenómeno natural a presenga atuante de
um espirito divino. Tal atitude fílosófico-religiosa nao é pro
picia ao mito. Éste supóe a distingáo entre o «santo» e o «pro-

— 432 —
QUE É MITO? 17

fano», entre o «transcendente» e o «imánente», entre o «divino»


e o «humano».
Passemos agora a importante questáo:

2. Mito : quanto vale ?

Pouoos conceitos e poucas realidades tém sido sujeitos a


táo diversas interpretagóes quanto o conceito e a realidade de
mito. Percorramos as principáis sentengas concernentes ao
assunto.

2.1. Correnfes avéssas

Principalmente no século passado e no inicio do atual, o


mito sofreu acerbas criticas, ctrjos principáis arautos foram
W. Wundt (1832-1920) e P. Ehrenreich (1855-1914). O racio
nalismo, inspirado pela «Aufklarung» (iluminismo) alema, cón-
siderou o mito como produto da imaginagáo, correspondente
a urna fase infantil e pré-cientifica do espirito humano. Se
gundo esta conceituacáo, o mito traduz simplóriamente os re-
ceios e as aspiragóes da sensibilidade; é propriamente a ex-
pressáo da ignorancia das verdadeiras causas dos fenómenos
atinentes ao homem e á sua historia. Dependente da imagina-
Qño irracional, o mito vai perdendo terreno á medida que as
ciencias e a cultura progridem.

As ciencias exatas de nossos días, descobrindo os porqués


dos fenómenos e as suas leis, tornam os mitos supérfluos, ultra-
passados e irrisorios. Também as ciencias históricas, a sociolo-
gia e a psicología, fornecendo esclarecimentos sobre os moti
vos, a origem e os condicionamentos da conduta humana, levam
a desprezar os mitos.
Por sua vez, a antropología filosófica dos nossos tempos
tende a desmitizar cada vez mais a figura do homem: éste nao é
o teatro da agáo de fórgas cegas divinas ou sóbre-humanas, mas
um ser responsável, que tende a se tornar mais e mais senhor
de suas capacidades, de seu destino e autor da historia da hu-
manidade.
L. Lévy-Bruhl (1857-1937) opóe ao homem moderno o
primitivo, o qual terá sido pré-lógico e, por isto, autor de mitos
irracronais.
Alias, faz-se mister observar, já a filosofía grega repudiou
os mitos, interpretando-os alegóricamente, de modo a passar

— 433 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 2

do myflios (fábula) para o lógos (a razáo e o estudo racional).


Xenófanes (565-470) foi o primeiro pensador grego que tenha
criticado e rejeitado as expressóes mitológicas utilizadas por
Hornero e Hesíodo; posteriormente o mito foi sendo despojado
de todo valor religioso e metafísico, designando «tudo o que
realmente nao possa existir». Foi com éste sentido pejorativo
que a palavra mito, passou para a tradigáo judeo-cristá.
Em conclusáo, eis como, segundo o historiador W. Nestle,
se resume a atitude avéssa aos mitos em nossos tempos:

«Mytbos e Lógos, é assim que designamos os dois polos


entre os quais oscila a vida do espirito humano. Representagáo
mítica e pensamento lógico se opóem. Aquela é imaginativa,
e, involuntariamente, cria e produz a partir do inconsciente.
Éste (o pensamento lógico) é dado aos conceitos; distingue e
une intencional e conscientemente. No principio da historia, as
representagóes míticas eram a única forma pela qual o homem
tentava tornar inteligivel o seu universo exterior e interior...
Assim como a superficie da térra estava originariamente re-
coberta de agua, a qual se retirou aos poucos e deixou emergir
ilhas e continentes, assim o universo que cercava o homem
primitivo estava recoberto por urna carnada de representagóes
primitivas, que foi cedendo devagar, de modo a deixar que o
pensamento racional iluminasse territorios sempre mais vas
tos» («Mythos und Logos». Stuttgart8 1942).

A tese segundo a qual os mitos sao desprezíveis e irrisorios,


tem sido revista nos últimos decenios, de modo a se porem em
foco modalidades da mitología que outrora eram menos consi
deradas. É o que se observará a seguir.

2.2. Novas perspectivas

Algumas correntes de estudiosos tém considerado o menos-


prézo dos mitos como expressáo de preconceitos racionalistas,
positivistas e superficiais; por isto procuram ilustrar o que
possa haver de válido nos mitos, ou seja, o sentido profundo e
duradouro dos mesmos.

1. A escola romántica, em virtude da sua orientagáo


pouco intelectualista, estava evidentemente propensa a reco-
nhecer no mito um conteúdo inacessivel a razáo, mas válido e
capaz de ser apreciado. Já no inicio do século XIX J. von
Gorres (1776-1848). G. F. Creuzer (1771-1858) e depois J. J.
Bachofen (1815-1887) interessaram-se pela questáo.

— 434 —
QUE É MITO ? 19

Os autores dessa corrente nao negam que as estórias nar


radas pelos mitos sao leridanas e mesmo irrisorias, desde que
consideradas em si mesmas. Mas julgam que essas estórias sao
mera roupagem, nao devendo ser consideradas em si apenas;
elas visam a exprimir verdades ou teses filosófico-religiosas.
Com outras palavras: o mito seria a expressáo das mais espon
táneas intuigóes e experiencias do género humano; essa ex
pressáo (dizem) se relacionaría de maneira auténtica e irre-
cusável com a verdade e transmitiría genuína percepcáo da
realidade. Todavia tal modo de exprimir fica impenetrável ao
pensamento empirista e positivista, como também ao raciona
lismo. O mito tentaría assim propor o sentido intimo das coisas
visíveis e a dimensáo mais profunda do cosmos e da historia.
A superacáo dos mitos e do modo de pensar a éles vinculado
nao significaría progresso, mas, antes, detrimento no nosso
modo de apreender a verdade. Por isto nao se pode pensar em
depreciar os mitos; o que se deve fazer, é interpretá-los. Ado
tando tal modo de ver, afirma o filósofo existencialista Karl
Jaspers: «O pensamento mítico nao está ultrapassado, mas nos
é inerente em todas as idades. É preciso utilizar o pensamento
mítico para nos conscientizarmos, de nova maneira, da rea
lidade».

2. É interessante a posicáo do filósofo Leopold Walk


(1885-1949); o mito nao supóe fase pré-lógica ou irracional
do género humano, mas depende de um processo lógico-racio
nal, o qual, porém, recorre a símbolos, metáforas e alegorías:
O mesmo também julga que o mito nao está necessariamente
vinculado á religiáo, como atestam as palavras abaixo:
«O mito é uma filosofía natural primitiva; em sua origem
e em sua essencia, nao é anti-religioso, mas a-religioso1. A
idéia de Deus e, com ela, a religiáo tém raizes em terreno di
verso do do mito (que é uma concepcáo do mundo> derivada
da filosofía natural). Quando alguém designa como mitos as
mais antigás tradicóes da humanidade definidas principalmente
pela idéia do Ser Supremo, negligencia ou desconhece o con-
ceito de mito... É lamentável que ainda em nossos dias a
nogáo de mito seja equívoca e nao esteja nítidamente deter
minada nem inserida em uma terminologia satisfatória. Es o
que se pode dizer sobre as relacóes entre o mito e a religiáo:
desde as origens da historia do pensamento humano, ambos
tém seu lugar. Embora apresentem origens e tendencias di-

1 isto é, indiferente á religiáo.

— 435
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 2

versas, religiáo e mito se tocam, se compenetram as vézes em


uma só massa, onde éles difícilmente se distinguem um do outro;
o elemento mítico entáo é geralmente dominante e o religioso
entra em recesso... Segundo a sua origem e a sua esséncia,
religiáo e mito sao distintos um do outro, sem que isto com
porte a minima oposicáo intrínseca e necessária* («Anthropos»
XLI-XLIV. Friburgo 1946-1949, p. 335).

Por conseguirte, na opiniáo de Walk, o mito é algo de


lógico-racional, nem religioso nem anti-religioso, mas a-reli
gioso.

3. Os estudiosos da historia e da fenomenología da reli-


giao também sao propensos a estimar positivamente a varie-
gada mensagem que os mitos exprimem. Tenham-se em vista
Mircea Eliade, R. Pettazzoni, K. Kérényi, W. F. Otto. Princi
palmente M. Eliade, autor rumeno nascido em 1907 e atual-
mente professor na Universidade de Chicago, insiste no valor
perene e indelével das imagens, dos símbolos, dos mitos:

«Hoje em dia vamos compreendendo algo que o sáculo


XIX jamáis pode conceber, a saber: o símbolo, o mito, a ima-
gem pertencem á substancia da vida espiritual; os homens
podem camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas nunca os ex-
tirparáo. Os mitos se degradam e os símbolos se secularizan!,
mas jamáis desaparecem, nem mesmo na mais positivista das
civilizagóes, que foi a do século XIX. Os símbolos e os mitos
vém de muito longe: fazem parte do ser humano e é impossível
nao os encontrar de novo em qualquer situagáo existencial
do homem dentro do cosmos» («Images et Symboles». París
1952, pp. 12-31).

Mircea Eliade observa que «o pensamento simbolista nao


é o dominio exclusivo da crianga, do poeta ou do desequili
brado: é consubstancial ao ser humano; precede a linguagem
e o pensamento discursivos. O símbolo revela certos aspectos
da realidade — os mais profundos — os quais desafiam qual
quer outro meio de conhecer» (ib., p. 13).
O mesmo autor fala de um inconsciente mais poético, mais
filosófico, mais místico do que o consciente (ib., p. 15). É por-
tanto na medida em que o mito vem a ser um símbolo ou uma
expressáo figurada de intuigóes da mente humana que M. Eliade
o estima. Éste autor, de resto, tornou-se benemérito na cata-
logacáo e classificacáo dos mitos.
4. Muito singular é o modo como o psicólogo Cari Gustav
Jung (1871-1961) enténde valorizar os mitos. Observando as

— 436 —
QUE É MITO? 21

imagens projetadas pelos sonhos como também as figuras e os


mitos das religiSes primitivas, das seitas de iniciados, da alqui
mia e mais ainda — os dogmas e símbolos de fé das reli-
gióes superiores, inclusive do catolicismo, Cari Jung vé entre
ésses elementos grandes semelhangas. Para explicá-las, admite,
além do inconsciente pessoal (de que fala Freud), o inconsci-
enet coletivo. Éste é o substrato mais profundo da alma hu
mana, no qual se encontram arquetipos ou imagens gerais ou,
ainda, disposigóes inatas que produzem representagóes seme-
lhantes; trata-se de estruturas da «psyché», análogas aos sis
temas dos cristais.

Ésses arquetipos se exprimem nos sonhos, como também


ñas tradigóes dos povos primitivos e nos mitos; até mesmo as
proposicóes de fé da religiáa católica sao julgadas por Jung á
luz désses arquetipos. A posigáo doutrinárfa de Jung respeita
a religiáo, embora ás vézes se mostré relativista e ambiguo
em relagáo a ela. Para ésse autor, o dogma representa um
valor vital, «impugnado pelos imprudentes e loucos, nao, porém,
por aqueles que se preocupam com a alma».
Do ponto de vista cristáo, devem-se fazer observagóes a
ésse relativismo de Jung: as proposigóes da fé crista nao sao
simplesmente expressóes da alma humana correspondentes a
arquetipos inatos, mas sao a verdade objetiva revelada por
Deus e colocada ácima de qualquer tipo de subjetivismo ou
relativismo. Todavía o que neste contexto interessa, é que Jung
valoriza altamente os arquetipos e suas expressóes, a ponto de
escrever: «Na verdade, nao se pode eliminar regitimamente o
fundamento arquetipal, a menos que se queira pagar o prego
de neurases, como também ninguém pode sem suicidio de-
sembaragar-se do corpo e de seus órgáos» (Jung-Kérényi,
«Einführung in das Wesen der Mythologie». Zürich 1951,
pp. 114)

No mito o homem se encontra consigo mesmo, diz Jung,


de modo que toda tendencia a destruir ou eliminar os mitos
vem a ser depauperamento ou mesmo a destruigáo da alma
humana.

2.3. Condusño

Como se vé, em nossos días a conceituagáo depreciativa


ou negativa do mito (o mito seria mera fábula, infantil e irri
soria para o homem evoluido) vai cedendo a urna valorizagáo
positiva: embora jamáis se possam tomar como históricas as

— 437 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 2

narrativas ou estórias dos mitos, muitos estudiosos modernos


reconhecem no mito algo de valioso; o mito é tído como elo-
qüente instrumento de expressáo da psyché humana ou, mais
precisamente, de intuicóes e aspiragóes espontáneas em todo
homem. Por conseguinte — dizem-nos —, já nao se pode
considerar o mito como ridicula aberracáo do espirito humano.
Ainda que as fíguras utilizadas pelos narradores de mitos sejam
muitas vézes inspiradas pela fantasía e o primitivismo, pode-se
ver nelas urna das manifestagóes mais pregnantes do que é a
alma humana e dos anelos mais genuinos da mesma.

Em conseqüéncia, pode-se dizer que os mitos tém sua men-


sagem, nao no plano histórico (pois éles sao vazados em estilo
fantasista) mas, sim, no plano filosófico. Sao a filosofía do
homem primitivo (filosofía, sem dúvida, suscetível de burila-
mento e aperfeigoamento). Constituem tentativas de responder
aos grandes quesitos concernentes a origem do mundo e do
homem, á consecugáo da felicidade e da plenitude da vida; por
éles se exprime a sabedoria dos povos. Como se compreende,
há diversos graus de valor na literatura mitológica; nem tudo
ai merece a mesma atengáo.

Note-se igualmente que o conceito de homem pré-lógico


é hoje em dia geralmente rejeitado; verifica-se que o «homo
faber» (homem fabricante de instrumentos lascados e primi
tivos) já é o homem lógico ou o «homo sapiens» (sabio), pois
a confecgáo de instrumentos adequados a determinado fim
supóe apreensáo de relacóes e proporcóes, ou seja, um trabalho
inteligente.

Eis, em síntese, como o exegeta Millar Burrows tenta


formular o que seja um mito na concepgáo dos mais recentes
estudiosos:

«O mito é a expressáo simbólica e aproximativa de urna


verdade que a mente humana nao pode perceber de maneira
precisa e completa, mas apenas vislumbrar e, por isto, nao
consegue formular em termos adequados e exatos... O mito
implica nao falsidade, mas verdade; nao um mal-entendido pri
mitivo e simplório, mas urna intuicáo mais profunda do que
as conclusóes que a ciencia e a análise lógica conseguem pro-
duzir. A linguagem do mito... é conscientemente inadequada,
pois é simplesmente urna tentativa de formular algo que vemos
obscuramente» (cf. «Dictionary of the Bible», by John Mc-
Kenzie S.J., London 1968, p. 599).

— 438 —
QUE É MITO? 23

3. Existem mitos na Biblia?

A grande questáo que se póe ao leitor da Biblia Sagrada,


é a seguinte: tendo sido as Escrituras redigidas nos sáculos
anteriores a Cristo e no primeiro sáculo da era crista, ou seja,
em épocas de pensamento fácilmente influenciável pelas nume
rosas narrativas mitológicas do Oriente, do Egito, da Grecia
e de Roma, nao se poderia crer qué a Biblia contém também
seus mitos? Nao apresenta ela narrativas aparentemente his
tóricas, mas totalmente destituidas de mensagem histórica, de
modo a ser meras expressóes da fantasía ou mente primitiva
dos seus antigos redatores?

A resposta requer urna distincáo:

3.1. A «teología» dos mitos

A «teología» pressuposta pelos mitos, politeísta, com seus


deuses e semideuses a viver aventuras e experiencias, está to
talmente ausente das páginas bíblicas. A mentalidade bíblica
é estritamente monoteísta, desde as suas primeiras narragóes;
também o conceito de historia na Biblia é radicalmente diverso
do conceito de historia da mitología.

Os autores bíblicos, em mais de urna passagem, manifes-


tam a consciéncia de estar apresentando algo que nao pode
ser confundido com mitos. É o que se depreende do uso da
palavra mythos ñas Escrituras Sagradas.

No texto grego do Antigo Testamento, o vocábulo mythos


ocorre em

Eclo 20,19 (Vg 21): «Como a cauda grossa de ovelha co


mida sem sal, assim é urna palavra (mythos) intempestiva».

Mythos, no caso, significa palavra, qualificada como intem


pestiva e assim colocada em má perspectiva..

Bar 3,23: «Os filhos de Agar conhecem a ciencia humana;


os negociantes de Madiá e Rema, que falam em proverbios
(mythóloffoi) e buscam a prudencia, nao conheceram o cami-
nho da sabedoria, nao encontraram as suas veredas».

Neste texto, o profeta, falando dos mitólogos árabes,


observa que nao souberam encontrar a via da sabedoria.

No Nfivo: Testamento, o termo mythoi (forma de plural)


é sempre empregado para designar teorías ou idéias que nada

— 439 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, gu. 2

tém a ver com a doutrina crista, mas, ao contrario, constituem


obstáculo a esta. Eis o repertorio completo dos textos que vém
ao caso:

1 Tim l,3s: «Pedi-te, ó Timoteo, quando partí para a Ma-


cedónia, que ficasses em Éfeso para impedir que certas pessoas
ensinassem doutrinas estranhas e se interessassem por fábulas
(mythois) e genealogías intermináveis, que ocasionam disputas
em Jugar de promover a obra de Deus, que se baseia na fé».
1 Tim 4,7: «Rejeita as fábulas (mythous) profanas, os
contos extravagantes das velhas, e exercita-te na piedade».
2 Tim 4,3s: «Vira o tempo em que os homens já nao su-
portaráo a sá doutrina. Desejosos de ouvir novidades, esco-
lheráo para si urna multidáo de mestres, ao sabor das suas
paixóes, e háo de afastar os ouvidos da verdade, aplicando-os
as fábulas (mythous)».
Ti l,13s: «Repreende-os severamente, para que conservem
urna fé sá e nao déem ouvidos as fábulas (mythous) judaicas
e a preceitos de homens que se apartam da verdade».
2 Pe 1,16: «Nao foi baseando-nos em fábulas (mythois)
engenhosas que vos demos a conhecer o poder e a vinda de
nosso Senhor Jesús Cristo».
Para designar a mensagem crista, a Biblia jamáis usa o
vocábulo mythos, mas, sim, lógos, palavra, doutrina.
Assim os pregadores do Evangelho sao tidos como os
«servidores da palavra», tou lógou (Le 1,2). O anuncio de Jesús
Cristo é «a palavra (lógos) da verdade» (Ef 1,13; Col 1,5),
«a palavra da salvacáo» (At 13,26), «a palavra de Deus» (At
4,31; 6,2; 1 Cor 14,36; Apc 1,2), «a palavra do Senhor» (At
12,24; 15,36; 1 Tes 3,1), «palavra da sua graca» (At 14,3;
20,32), ou simplesmente «a palavra» (At 4,4; 11,19; Gal 6,6;
1 Tes 1,6; 1 Pe 3,1). Segundo Sao Paulo, todo o Antigo Testa
mento é giobalmente designado como «ta logia tou Theou, os
oráculos de Deus» (Rom 3,2).
Note-se também que a Biblia é estritamente «dessacrali-
zante» no sentido de avéssa á concepeño de que existem deuses
e semideuses a reger os processos cósmicos e a vida dos homens
(«Tudo está cheio de deuses», dizia Tales de Mileto, no séc. VI
a.C). Nao obstante, a Biblia apregoa a santificagáo de tudo
que o homem faga; para o cristáo, nada há de neutro ou pro
fano ou indiferente aos valores sobrenaturais (cf. Col 3,17:
«Tudo quanto fizerdes, por palavra ou por obra, fazei-o em
nome do Senhor Jesús, dando por Ele grabas a Deus Pai»).

— 440 — /
QUE É MITO? 25

3.2. Imagens e vocabulario dos mitos

Ñas Escrituras encontram-se inegávelmente imagens que


correspondem em certo grau 'áquelas que os mitos apresentam;
acham-se também vocábulos e expressóes que tém seus para
lelos na mitología dos povos pagaos (os exemplos seráo indi
cados em próximo artigo de «P.R.»). Já que é inevitável ao
homem recorrer a figuras (as quais podem ser chamadas
mitos), estas se encontram na Biblia; o conteúdo, porém, ou
a mensagem de tais imagens nao se confunde com o da mito-
logia, como se verá em ulterior artigo de «P.R.».
Na Biblia encontram-se também géneros literarios diver
sos: assim os livros de Tobias, Judite e Ester sao considerados
como «historia edificante» (núcleo histórico adaptado á edifi-
cacáo dos leitores); o livro de Joñas pode ser tido como urna
grande parábola; os onze primeiros capítulos do Génesis des-
crevem a historia religiosa da humanidade primitiva, o que é
totalmente singular. Cada género literario bíblico transmite a
verdade cto seu modo; está longe, porém, do sabor politeísta
dos mitos.

Bibliografía :

Luis Cencillo, «Mito. Semántica y realidad». BAC n« 299. Ma


drid 1970.
Stahlin «Mythos», em «Theologisches Worterbuch zum Neuen
Testament» IV. Stuttgart 1942, pp. 769-803.
H Fries, «Mythos, Mythologie», em «Sacramentum Mundi. Theo
logisches Lexikon íür die Praxis», vol. 3. Freiburg 1969, pp. 661-670.
R. Marlé, «Mythe», em «Encyclopédie de la Foi» III. París 1966,
pp. 180-189.
J Henninger, «Mythe», em «Dictionnaire de la Bible. Supplément»
IV. París 1957, cois. 225-246.
G Lanczkowski, «Mythos», em «Lexikon íür Theologie und Kir-
che» VII. Freiburg 1962, cois. 746-750.
J. Schildenberger, «Realtá storica e generi letterari nell'Antico
Testamento». Brescia 1965.

— 441 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 3

III. CURIOSO INQUÉRITO

3) «Que pensam as esposas dos pastores protestantes a


respcito de seu casamento?
Estáo felizes? Descontentes?»

Em sintese: Um inquérito realizado por William Douglas, pas


tor presbiteriano e professor de Psicología nos E.U.A., aponta di
versos tipos de atitudes das esposas de pastor protestante:
1) Marta, colaboradora em tudo com seu marido;
2) Maria e Dorcas, mais sobrias;
3) Jane, alheia aos afazeres do esposo ;
4) Kate, revoltada contra essas ocupacdes.
Dois sao os principáis problemas que afligem a esposa do pastor:
1) éste exerce funcfies absorventes, que dificultam a convivencia no
casamento ; 2) a mulher do pastor tem que levar vida mais austera
do que qualquer outra, restringindo suas diversóes, sua vida social,
procurando dar o testemunho de caridade, justiga, abnegagáo, etc.
Sao mais felizes as mulheres que se engajam com o marido em
atividades missionárias. Tal caso tende a se tornar raro, visto que as
jovens esposas de pastor nao se sentem vocacionadas para o pastorado.
Sonriente depois de casada é que a mulher de pastor toma exata cons-
ciencia do que abragou ; alguns anos (entre dez c quinze) sao neces-
sários em muitos casos para que finalmente se sinta á vontade em
sua condicáo de esposa de pastor.

Resposta: O casamento dos padres tem estado muito em


voga dentro e fora da Igreja, propondo-se os mais diversos
argumentos tanto em favor como em oposigáo ao mesmo. No
tocante ao setor afetivo, há quem diga que o padre casado en
contraría em sua esposa um fator de tranqüilidade e equilibrio
emocionáis; outros, ao invés, prevéem divisáo de afeto e au
mento de preocupacóes...
A questáo pode ser, de certo modo, aclarada pela consi-
deracáo do que se dá ñas comunidades protestantes, cujos pas
tores sao casados. A experiencia dos ministros evangélicos há
de contribuir para se avaliar o que acontecería a um clero
católico casado. Ora a propósito pode-se citar um inquérito
efetuado nos E.U.A. por William Douglas, pastor presbiteriano
e professor de Psicología Religiosa na Universidade de Bostón:
a pesquisa tinha em vista averiguar o que pensavam as esposas
de pastores a respeito de seu casamento. Mediante tres ques-
tionários, cérea de cinco mil senhoras dentre as 160.000 es
posas de pastores que vivem nos E.U.A., foram interrogadas

— 442 —
ESPOSAS DE PASTORES EM INQUÉRITO 27

a propósito da motivagáo, das satisfagóes e decepgóes de seu


casamento. O inquérito abrangeu todas as denominagóes pro
testantes que contavam mais de 100.000 adeptos. Já que o
inquérito se dirigía apenas as esposas, compreende-se que nada
tenha sido apurado sobre as atitudes dos pastores e dos paro-
quianos frente as mulheres dos pastores.

A seguir, reproduziremos os principáis dados resultantes


désse inquérito.

1. Dois ponfos tranquilos

Antes do mais, convém indicar dois aspectos da questáo


que nao oferecem dificuldades.

1) As pessoas interrogadas manifestaran! nao conhecer


problema no tocante as relagóes conjugáis e as expressóes de
amor; estas sao as da familia norte-americana media, descrita
anos atrás pelo relatório Kinsey.
2) Também a vida de piedade das esposas de pastores
decorre normalmente. A maioria dessas pessoas é fervorosa e
procura no contato com Deus a fórga necessária para levar a
sua vida cotidiana; principalmente as senhoras batistas, mais
«ortodoxas», léem e estudam asslduamente a Biblia. Todas,
mesmo as mais liberáis, oram por ocasiáo de suas crises
pessoais.
Todavía merecem atencáo

2. Dois problemas

Verificou-se que o ministerio exercido pelos maridos inter


fería em termos marcantes na vida familiar. E isto por dois
motivos:
1) A profissáo do pastor, quando devidamente exercida,
é absorvente. Urna das queixas mais freqüentes aponta o fato
de que o marido, muito solicitado pelas suas fungóes pastorais,
parece nao dar a devida importancia a familia; raramente os
membros desta tém a ocasiáo de se encontrar todos reunidos.
Eis um dos testemunhos mais significativos:
«Durante semanas a fio, ele me responde: 'Tenho urna reu-
niáo' ou Tenho que visitar paroquianos', todas as vézes que
Ihe proponho urna saida a noite para irmos ao concertó ou ao

— 443 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 3

cinema. Imaginem entáo o que sinto quando, depois, os paro-


quianos vém oontar-me como é amável o meu marido por oca-
siáo das visitas a domicilio, ... como as mangas o adoram, ...
quanto bem nao faz trocar idéias com ele a respeito dos pro
blemas cotidianos, etc. Tenho entáo a impressáo de que ele
prefere ocupar-se com a sua grei a estar com a familia. Mais:
permitam-me esta confidencia assaz íntima: de noite, depois de
nos termos demonstrado o amor, descanso sobre o ombro déle;
para mim, nada mais existe no mundo a nao ser ele; sinto-me
amada e perfeitamente feliz. Pois bem; posso entáo ter a cer
teza de que o ouvirei dizer algo como: Tenho a intengáo de
propor o Sr. N.N. para ser diácono!'»
Verdade é que sao absorventes outras profissóes liberáis
(tenha-se em vista a do médico...). Mas o ministerio de pas
tor tem um conteúdo próprio que causa especiáis problemas &
esposa. Com efeito,
2) O pastor é, como o padre, um idealista por profissáo.
Sua fúngáo na sociedade consiste em fazer respeitar certos va
lores e, entre estes, muito especialmente o espirito servigal, o
desprendimento, a justica... Em conseqüéncia, espera-se da
mulher do pastor que ela cumpra fungáo semelhante. Isto a
obriga a levar urna vida austera, abstendo-se de nao poucas
reunióes agradáveis e diversóes. Com efeito; a mulher de um
pastor nao é a mulher de um anónimo; ela deve corresponder
ao ideal que, na opiniáo do público, ela abragou. Em multas
casos, é sómente após anos que ela aprende a dizer um Nao
amável a certos convites sociais que lhe fazem.
Os dados colhidos por Douglas em seu inquérito revelam
cinco tipos ou atitudes de mulheres de pastores perante a pro
fissáo ou o ministerio de seus maridos. Cada urna dessas ati
tudes é designada por um nome próprio e vem assim caracte
rizada por Douglas:
1) Marta1, a mulher que com seu marido constituí equipe
coesa em tudo. Representa 21% das pessoas interrogadas;
2) María, o sustentáculo discreto do esposo. Aceita cola
borar nao com o ministerio própriamente, mas com a pessoa
do marido; por isto assume certos compromissos de índole
social;

i Marta e María sño as duas irmás de Lázaro, mencionadas em


Le 10, 39-42, ambas fiéis ao Senhor. Marta procura servir ao Senhor
por suas varias atividades, ao passo que Maria se coloca junto a
Cristo e o ouve.

— 444 —
ESPOSAS DE PASTORES EM INQUÉRITO 29

3) IXorcas1 também apoia o marido, dedicando-se, porém,


a afazeres domésticos e manuais, nao própriamente missioná-
rios ou pastarais. «Maria» e «Dorcas» constituem 64% das
esposas de pastores;

4) Jane nao se senté envolvida pelas atividades profis-


skmais do marido, que ela faz questáo de ignorar. Corresponde
a 11% das interpeladas;
5) Kate chega a conceber revolta contra as ocupacóes
do esposo (4%).
Consideremos agora cada qual désses tipos de per si.

3. Cinco respostas á situajao

3.1. Marta

«Marta» vem a ser a esposa que se senté identificada com


o ministerio do marido e, por isto, também chamada ao servico
da Palavra. Em conseqüéncia, ela se encarrega da escola do
minical, de visitas aos doentes e do coro da igreja. É a secre
taria do esposo e zela pelo decoro do templo.
0 tipo «Marta» se encontra principalmente ñas denomina-
góes protestantes mais missionárias, como é a dos Batistas do
Sul, que acentuam o dever de «lucrar para o Senhor aqueles
que se perderam». Tais esposas provém do meio operario e
agrícola; adquirem instrugáo e prestigio relativos. Sao as mais
felizes entre as mulheres de pastores. Nao experimentan! difi-
culdade para se realizar na sua condicáo; ao contrario, julgam
que seriam prejudicadas se nao estivessem casadas com um
pastor. O fato de terem de «repartir» o seu marido com a
comunidade paroquial nao as torna invejosas nem ciumentas.
Sentem-se ditosas por ter que apontar aos outros o caminho
reto. A obrigagáo de dar sempre e em toda a parte o bom
exemplo nao as enfastia, mas, ao contrario, excita nelas agudo
senso de responsabilidade. Consideram-se privilegiadas; ao que
procuram responder com o que tém de melhor em si mesmas.
Estes dados nao impedem que Marta também conhega seus
momentos penosos. Nao raro ela se vé a bragos com dificul-
dades financeiras, dados os modestos proventos de seu marido.

1 Dorcas ou Tabita é a viúva encontrada por S. Pedro em Jope;


vivía beneficiando viúvas e pobres mediante a confeccao de túnicas e
mantos (cf. At 9, 3642).

— 445 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 3

O tempo lhe parece insuficiente para dedicar-se a si mesma e


ao lar. Caso o marido seja transferido muitas vézes, ela nao
consegue langar raízes em parte alguma. E, guando ele enve-
lhece, ela vai perdendo influencia na paróquia. Já que deve
estar ácima de qualquer partido, só pode ter algumas poucas
amigas íntimas fora do círculo de esposas de pastores da vizi-
nhanga. Nao lhe é fácil aparentar serenidade e bom humor
quando muitas vézes está tensa, cansada ou irritada pelo tra-
balho.

3.2. María e Dorcas

María e Dorcas nao se preocupam tanto com o ministerio


pastoral. Vivem mais as fungóes de esposa e máe. Aceitam co
laborar com o marido, mas nao se julgam chamadas a com-
partilhar diretamente os seus compromissos; estño prontas,
porém, a prestar servigos ocasionáis á pessoa do esposo, rece-
bendo visitas em casa, saudando os paroquianos após o culto,
cumprindo certas obrigagóes sociais... Sao mais intelectual
do que as «Martas» e mais ciosas de seu desabrochamento
pessoal. Todavía sao menos felizes do que aquelas, talvez pelo
fato mesmo de nao colaboraren! tanto. Encontram-se princi
palmente ñas comunidades episcopalianas (anglicanas), lutera
nas e presbiterianas.

Segundo a respectiva motivagáo, há pequeñas diferengas


entre María e Dorcas:
María quer ser sustentáculo discreto «a fim de permitir
á Igreja a realizagáo de seus objetivos». Tem origem social
ñas familias de nivel medio e de profissóes liberáis; nao raro
foi educada em urna denominagáo protestante diversa da de
seu marido.

Dorcas tem aspiragSes menos eclesiais; o que lhe importa,


é «fazer algo de útil», como a homónima dos Atos dos Apos
tólos. Dedica-se a ocupagóes domésticas e a contatos humanos
ou sociais. Receia as novidades; evita as controversias.
Nem Maria nem Dorcas experimentam dificuldades em
dar o bom exemplo. Todavia também tém suas pequeñas quei-
xas: a fim de se conservar imparciais, devem restringir o
círculo de suas amigas intimas; os horarios regulares de seus
esposos as molestam. Nao raro só após dez anos de casadas
confessam-se identificadas com o seu papel de «esposa de
pastor».

— 446 —
ESPOSAS DE PASTORES EM INQUÉRITO 31

3.3. Jane e Kate


t

Jane e Kate jamáis se sentiriam atingidas pelas atívidades


profissionais de seu esposo, quaisquer que elas fóssem.
Jane eré na Igreja; interessa-se por tudo que diz respeito
á fé crista; tem elevado ideal moral. Mas julga que a sua ta-
refa principal sao os afazeres domésticos. Em virtude das suas
concepcóes teológicas, julga que a neutralidade frente as ati-
vidades da Igreja corresponde exatamente ao papel do laica
to; a neutralidade, alias, lhe parece, muitas vézes, necessária,
porque tem filhos pequeños que tomam muito tempo. — Na
mor parte dos casos, está medianamente satisfeita com a sua
condigáo de esposa, embora lhe sejam necessários as vézes
quinze anos para se sentir a vontade em sua situagáo.
Jane senté vivamente o problema de conciliar sua perso-
nalidade com o titulo de esposa de pastor e com a obrigagáo
de dar sempre o bom exemplo.
Quanto a Kate, ela qitisera que seu marido lhe dispensasse
mais atengáo. Tem a impressáo de que ele considera tudo do
ponto de vista do trabalho e se deixa absorver por suas reu-
nióes. Parece-lhe que déla querem abusar quando, além do
mais, a paróquia lhe pede que auxilie o esposo, assegurando
a catequese. O espirito de revolta entáo leva-a a retirar-se de
toda atividade relacionada com o ministerio ou o culto. Sente-
-se frustrada pelas numerosas exigencias que o seu papel de
esposa de pastor lhe impóe; entedia-a o dever de dar sempre
o bom exemplo. Parece-lhe estar encerrada numa casa de vidro,
sem intimidade e sem possibilidade de se recrear alguma vez.
Se nao tivesse esposado um pastor, julga ela, gozaría de mais
tempo, mais dinheiro e mais liberdade, ao passo que, na sua
presente condicáo, ela nao vé como ser ela mesma. Eis o que
ela repete freqüentemente, como- toda pessoa insatisfeita.
Impóem-se ainda algumas observagóes complementares.

4. O fator «tempo»

Urna mulher nao se torna plenamente esposa de pastor


em um dia. É o que se depreende do fato de que a porcen-
tagem daquelas que se arrependem de sua escolha é prepon
derante entre as jovens. Em 80% dos casos, os cinco ou dez
primeiros anos sao os mais difíceis. Sómente depois de casada
é que a esposa de pastor toma consciéncia exata do que ela

— 447 —
32 tPERGUNTE E RESPONDEREMOS/» 130/1970, qu. 3

abragou: nao encontra campo em que se possam desenvolver


os seus talentos pessoais; muitas vézes ela deve-se desemba-
ragar de um certo tipo de idealismo. Se pudessem recomegar,
dizem muitas das jovens esposas que elas nao se casariam com
um pastor. Um pequeño número (nao se poderia dizer quan-
tas), diante das serias dificuldades que encontra, tenta induzir
o marido a mudar de mister e chega a encarar solugóes extre
mas, como o divorcio e o suicidio.
Isto nao impede que 20% das mulheres interrogadas de-
clarem ter-se sentido desde o inicio como um peixe nagua (sao
pessoas outrora educadas em ambiente muito fervoroso; 10%
sao mesmo filhas de pastores).
A adaptagáo da mulher ao marido é mais fácil, caso o
esposo já tenha terminado seus estudos e naja atingido certo
equilibrio profissional e afetivo. Por isto os casamentas sao
mais felizes quando o esposo é cérea de cinco anos mais idoso
do que a mulher. Assim o casal cujo marido é pastor, difere
do casal norte-americano medio, que geralmente é mais feliz
quando os cñnjuges tém a mesma idade.
Por último, pode-se notar que menos difícil é o caso das
esposas de pastor que exergam alguma profissáo, seja na es
cola, seja no escritorio.

5. A gerasao ¡ovem

As esposas de menos de trinta e cinco anos provém geral


mente de casáis protestantes cuja fé é menos forte do que a
dos lares donde procedem as mulheres de pastores mais idosos.
Em conseqüéncia, essas jovens esposas sentem-se pouco atingi
das pela profissáo de seus maridos. A idéia de «vocagáo» para
• colaborar no ministerio pastoral é entre elas cada vez mais
rara- interessam-se principalmente pela sua casa e cada vez
menos pelos afazeres do marido. Elas nao recusam apoiar o
esposo, mas rejeitam toda pressáo da parte da comunidade
paroquial paraassumir tal ou tal fungáo. Deve-se mesmo. acres-
centar que, fora o caso dos Batistas, elas come?am a mani
festar dúvidas a respeito da maior parte das atividades da Igreja
e da sua aptidáo pessooal a realizá-las. A nova geragáo e mar
cada tanto pela critica á Igreja institucional como pela ínsegu-
ranga psicológica. Caso estas duas notas se acentuem, as futu
ras esposas de pastor sentir-se-áo aínda mais frustradas e cer-
ceadas do que até o presente momento. A menos que as comu
nidades paroquiais diminuam as suas expectativas e pressoes

— 448 —
POMBAL E JESUÍTAS 33

sobre as esposas de pastor, pode-se crer que aumentará o


número das isoladas (tipo Dorcas) e das revoltadas (tipo
Kate).

Conclusao

O inquérito realizado por William Douglas fomece um


quadro assaz matizado e fiel de como a mulher de pastor vive
o seu casamento nos Estados Unidos da América. Quanto mais
a comunidade protestante é ortodoxa, mais as esposas parti-
cipam das atividades de seus maridos. E é na medida dessa
participaeáo que elas se sentem satísfeitas e úteis ao próximo.
Na base de tais resultados, pode-se prever algo do que
se daría, caso o matrimonio fosse um dia concedido aos pres
bíteros católicos: o bom éxito désses casamentes dependería,
em boa parte, do afinco com que a esposa assumisse as ativi
dades da Igreja. E ésse afinco seria tanto maior quanto mais
ortodoxa fósse a mulher na sua doutrina. Donde se segué urna
profecía assaz paradoxal: as esposas dos padres tradicionalistas
seriam mais felizes do que as consortes dos presbíteros avan-
cados.
Mas os padres tradicionalistas optariam pelo casamento?...
Os dados contldos neste artigo foram publicados pelo periódico
«Supplément de la Vie Spirituelle» n« 83, novembro 1967, pp. 66WJ3,
sob o título «La Femme du pasteur>, por obra de W. de Bont O.P.

IV. FAMOSA FIGURA

4) «Que dizcr sobre os jesuítas e o sen relacionamento


oom o Marques do PombaJ? Em gemí faz-se a apología de
Pombal.
Como julgar essa faceta da historia da Igreja?»
Em Bfntesc: O século XVH1 fol profundamente marcado pelo
absolutismo do Estado na política, assim como pelo jansenismo e o
galicanismo na religiáo católica. Os jesuítas se opunham a essas ten
dencias ; pelo que granjearam para si, além de numerosos amigos,
também grande multidáo de adversarios. Devese outrossim notar que
o zélo missionário e apologético dos jesuítas nem sempre fol bem ins
pirado, de modo que em alguns casos sofreram censura por parte da
própria Santa Sé.

449
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 4

O Marqués de Pombal, pela sua formagáo na Inglaterra e sua


estada na Austria, é auténtico representante do absolutismo estatal.
Passou a combater os jesuítas a partir de 1755, servindo-se de argu
mentos destituidos de consistencia: os jesuítas estariam criando um
Estado teocrático com os indios do Paraguai; estariam exercendo
comercio ilícito; seriam infiéis as suas Constituic5es, teriam tomado
parte no atentado contra o rei D. José I (em 1758)... Em 1759 foi
decretada a expulsao de todos os jesuítas de Portugal e colonias; os
maus tratos entao infligidos aos padres, seja em viagem marítima,
seja no cárcere de S. Juliáo em Lisboa, sao reconhecidamente ignó-
beis; embaixadores estrangeiros em Lisboa e historiadores fidedignos
o atestam.

Com a expulsao dos jesuítas, o Brasil perdeu poderoso fator cul


tural e civilizador; principalmente o ensino se ressentiu da falta dos
Colegios e educadores da Companhia de Jesús. Por conseguinté, num
juizo sereno, merece repudio a acSo sectaria e brutal do Marqués de
Pombal contra os jesuítas.

Resposta: A atitude de Pombal em relagáo aos jesuítas


de Portugal e do Brasil está envolvida em um quadro geral
de historia da Igreja, que oonvém, antes do mais, reconstituir
brevemente a fím de se poder compreender melhor o episodio
focalizado.

A propósito há um artigo afim em «P.R.» 20/1959, pp. 343-351,


onde se estuda a supressáo da Companhia de Jesús no séc. XVIII.

1. Os antecedentes do episodio

A Companhia de Jesús foi fundada por S. Inácio de Loiola


(t 1556) e aprovada pela Santa Sé em 1540. Instituida para
atender as necessidades da Igreja nos tempos modernos, a
Companhia tomou a índole de milicia sacra. Desde os primor
dios de sua historia, os Religiosos de S. Inácio ou jesuítas se
dedicaram ardorosamente as mais arduas tarefas: magisterio,
estudos teológicos, controversias com protestantes, jansenistas,
missóes no Oriente, na América, etc., tornando-se inegável-
mente beneméritos da fé católica; em seus institutos educacio-
nais, os jesuítas dos séculos XVII/XVIII formaram geragóes
e geracóes de grandes homens. Para se avallar quanto a Com
panhia correspondía as necessidades dos tempos modernos, re-
corde-se a rápida propagagáo da mesma: em 1749 contava
22.600 membros distribuidos por 39 provincias, 669 colegios,
cerca de 800 residencias, 300 postos de missáo.

— 450 —
POMBAL E JESUÍTAS 35

Todavía a penetracáo dos jesuítas na vida religiosa e so


cial dos sáculos XVII/XVin Ihes granjeou, juntamente coni
muitos amigos, numerosos adversarios, principalmente entre os
jansenistas1, os galicanos2, os protestantes e os incrédulos.
Com efeito, os jansenistas e galicanos, desejosos de constituir
igrejas nacionais ou independentes do Sumo Pontífice, viam
nos jesuítas um baluarte da fidelidade á Sé Apostólica ou «a
sentinela avancada da Curia Romana» (no dizer do rei Fre-
derioo n da Prússia); consideravam-na, por isto, um dos mais
tenazes obstáculos á realizacáo de seus planos separatistas. Os
filósofos racionalistas e ateus dos sáculos XVII e XVIII,
opondo-se simplesmente á Igreja, nao podiam deixar de com-
bater em primeira linha a Companhia de Jesús: «Táo logo
tivermos destruido os jesuítas, escrevia Voltaire, fácil será a
luta contra a infame».

No seu afá de defender e propagar a fé católica, os je


suítas cederam por vézes a excesso de zélo, entrando em cho
que com homens e instituigdes. Foi o que se deu notadamente
no chamado «litigio das acomodagóes»: ñas missóes da China,
varios padres da Companhia procuravam adaptar-se o mais
possivel aos costumes dos chineses, a fim de facilitar-lhes a
conversáo á fé crista; todavia essa atítude nao encontrou por
toda a parte a devida ressonáncia, de modo que os jesuítas
foram tidos como demasiado tolerantes, e viram-se censurados
pela Santa Sé no inicio do sáculo XVHL Néste sáculo XVm,
portanto, a Companhia conheceu lutas e tormentas nao poucas
provocadas em parte pelos adversarios, em parte pelo zélo
(oportuno e, &s vézes, pouco oportuno) dos próprios jesuítas.
É sobre estes precedentes que se coloca a agáo do Marqués
de Pombal contra a Companhia em Portugal e no Brasil.

2. Pombal e a Companhia: kféias e fotos

Nos sáculos XVII e XVm os monarcas das principáis na-


góes européias se imbuiram de principios absolutistas: cederam

J-Os Jansenistas sao cristSos que, cedendo ao rigorismo e ao pes-


simismo om relagáo á natureza humana, desfiguraram o Evangelho
nos séc. XVTI/XVIII. Opunham-se-lhes especialmente os jesuítas, que,
no seu zélo missionário, procuravam romper todos os obstáculos &
salvagao, adotando mcsmo urna casuística por vézes sutil. Pasca!, Jan
senista, escreveu acirradas cartas contra os jesuítas.
3 Os galicanos adotavam o nacionalismo na Igreja, pretendendo
constituir igrejas mais ou menos independentes de Rama. Associavam-
•se, em muitos pontos, aos jansenistas.

— 451 —
36 tPERGUNTE E RESPONDEREMOS> 130/1970, qu. 4

ao cesaropapismo, declarando-se revestidos de poder recebido


mediatamente de Deus. Tal foi o caso de Luís XIV da Franga,
o «Rei-Sol». Tal foi o caso também de D. Joáo V (1706-1750)
e D. José I (1750-1777) de Portugal.
Fixando-nos em Portugal, encontramos sob o reinado de
D. José I a figura ascendente do ministro Sebastiáo José de
Carvalho e Mello, nascido em Lisboa aos 15 de maio de 1699,
nomeado Conde de Oeyras aos 16 de junho de 1759 e Marqués
de Pombal aos 17 de setembro de 1770. Passou os primeiros
anos de sua carreira pública em Londres, onde nao pode deixar
de sorver o racionalismo do século XVm. Em 1745 tornou-se
representante de Portugal em Viena da Austria, onde se casou
em segundas nupcias com a sobrinha do marechal Daun;
tornou-se entáo discípulo do médico holandés Van Swieten,
católico de tipo jansenista, que passara a residir em Viena na
qualidade de médico imperial e tratara do enviado portugués
quando certa vez se achava enfermo. Van Swieten se mostrava
pouco amigo da Companhia de Jesús, dado como era a idéias
absolutistas.

Quando Sebastiáo José regressou a Lisboa em 1749, a voz


do povo o designava como futuro Secretario de Estado. A sua
ascensáo a tal cargo, de fato, se deu poucos meses depois.
Pombal pudera apreciar na Inglaterra a prosperidade material,
a intensa atividade comercial, o destemor dos empreendimen-
tos, o progresso da cultura, que estavam em aberto contraste
com a situacáo geral de sua patria. Era trabalhador zeloso e
hábil; D. José I, que se entretinha prazenteiramente em mú
sica teatro e caga, confiou-lhe ampia liberdade de iniciativa,
de modo que Pombal, com seu temperamento ambicioso e seu
espirito decidido, se tornou o verdadeiro senhor do país. As
suas idéias absolutistas nao tolerariam urna Igreja livre em
Portugal, mas haveriam de procurar mais e mais restringir
os direitos da mesma, de sorte a té-la sob a tutela e o con
trole absolutos do Estado. A fim de nao causar perplexidade
no povo cristáo, o Ministro Pombal quis realizar a sua cam-
panha antieclesial mediante as próprias autoridades da Igreja
em Portugal; para tanto, colocou nos mais importantes e in
fluentes cargos eclesiásticos parentes e outras pessoas de sua
serventía.
Animado por suas idéias políticas, Pombal devia conside
rar a Companhia de Jesús como entrave particularmente forte.
Com efeito, os jesuítas tinham cinco confessores na corte;
dedicavam-se ao magisterio e á cura de almas em favor das

— 452 —
POMBAL E JESUÍTAS 37

diversas classes da sociedade, e em suas missóes ultramarinas


exerciam notável influxo sobre as populagóes brancas e abo
rigénes.

Até a morte da rainha-máe (1754), que era favorável aos


jesuítas, Pombal mostrou-se até mesmo zeloso defensor da
Companhia. Urna vez, porém, desaparecida aquela figura e,
mais aínda, após o terremoto de Lisboa (l/XT/1755), ocasiáo
para que D. José I aumentasse sua confianga em Pombal, o
Primeiro Ministro comecou a manifestar suas intengóes mais
ocultas. O pretexto para o rompimento com a Companhia fo-
ram acontecimentos ocorridos no Paraguai e no Maranháo,
cuja historia pode ser assim resumida:
Em 1750 fóra firmado o Tratado de Madrid entre Espa-
nha e Portugal, determinando a permuta da colonia portu
guesa de Sacramento pelas térras espanholas ditas «dos Sete
Povos das Missóes». Em conseqüéncia, os indios deviam emi
grar; revoltaram-se, porém, e foram dolorosamente trucidados.
Gomes Freiré de Andrade, encarregado de executar o tratado
em nome de Portugal, nao conseguía decidir-se pela permuta.
No Norte do Brasil, tratava-se da demarcagáo de fron-
teiras com a Espanha. Pombal nomeou comissário o seu irmáo
Francisco Xavier de Mendonga Furtado, o qual, com verdadeira
fórca militar «para impressronar o espanhol», se estabeleceu
no Rio Negro. Durante dois anos, Mendonga Furtado perma-
neceu em lugar inóspito com seus soldados a espera do repre
sentante da Espanha a fim de estudarem a questáo das fron-
teiras; a comitiva de Furtado ressentiu-se de maus tratos,
graves doengas e miserias; pelo que em margo de 1757 os
soldados abandonaram Mendonga Furtado. Éste entáo quis
obrigar os missionários jesuítas a colocar os indios, redundes
a escravos, no lugar da tropa desertora. Os jesuítas resistiram-
-lhe, dificultando-lhe víveres, transportes e informagóes. Muitos
indios entáo também fugiram, e a lavoura parausada ocasio-
nou tome. Mendonga, desamparado, langou a culpa sobre os
jesuítas, acusando-os no Reino de fundadores de «teocracias^
ou Estados que minavam a unidade da colonia.
Pombal, em conseqüéncia, resolveu desencadear a sua
campanha contra os jesuítas, recorrendo, antes do mais, á ca-
lúnia e difamagio: passou-se a falar da «república» ou do
«imperio teocrático do Paraguai», «dos canhóes do rio Ma-
deira», da «paz dos Amanajós», do «Imperador Nicolau I com
suas falsas moedas». Pombal, acusando os jesuítas de procedi-
mento tiránico, comercio ilícito e revolugáo, dizia ao Nuncio

— 453 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 4

papal em Lisboa que tinha ñas máos provas désses males e


que as exibiria desde que pudesse passar urna manhá inteira
oom o Legado pontificio. Entrementes, afirmava ele, era ne-
cessário coibir os jesuítas, pois, se isto nao se fizesse, em dez
anos a Companhia seria táo poderosa que nem todos os exér-
citos da Europa reunidos lograriam vencer as centenas de
milhares de escravos dominados pelos jesuítas. Com o auxilio
de engenheiros europeus, revestidos da roupeta jesuíta, os
padres da Companhia teriam fundido canhóes de grande cali
bre, estabelecido fortalezas militares e preparado os indios
para a guerra (noticias colhidas em carta do Nuncio Acciaioli,
de Lisboa, ao Cardeal Archinto, Secretario de Estado, datada
de 14 de outubro de 1757).
Os rumores disseminados por Pombal contra os jesuítas
impressionaram até mesmo as autoridades eclesiásticas, como
o Nuncio Acciaioli e o Secretario de Estado Pontificio, que
demonstraran!, em conseqüéncia, indecisáo e timidez diante da
campanha difamatoria. Todavía em um ou outro tópico da
correspondencia do Nuncio em Lisboa transparece a descon-
fianca do prelado frente as noticias infamantes: assim aos 8
de margo de 1757, depois de referir em carta as acusagóes de
Pombal contra os jesuítas do Maranháo, escrevia o Nuncio
que tinha motivos para nao dar crédito a tais noticias, pois
sabia que Pombal possuia interésses financeiros ñas novas
Companhias do Comercio1; além do que, o Govemador do
Maranháo era irmáo do Primeiro Ministro (na verdade, Pom
bal recebia tres florins por cada barril de vinho que se ven-
dia; o que resultava numa renda de 60.000 a 75.000 florins
anuais).
Pombal, desejoso de extinguir a Companhia de Jesús por
vias «legáis», obteve do rei D. José I, fraco como era, coni-
véncia no caso. O monarca mandou que Almada, seu embai-
xador em Roma, fósse ter com o Papa Bento XIV: aos 9 de
marco de 1758, o Legado dizia ao Pontífice que, se éste nao
aplicasse enérgicos recursos contra os jesuítas, o rei mesmo
se encarregaria de o fazer, utilizando os meios violentos que
tanto o Direito civil como o eclesiástico lhe reconheciam; ter-
minava pedindo, para os jesuítas, «ou total extingáo ou huma
riguroza reforma». Em resposta, o Papa nomeou Visitador e
Reformador dos jesuítas o Cardeal Francisco Saldanha, que
era párente de Pombal, submisso instrumento ñas máos do

>O Direito Canónico proibc aos clérigos o cxercicio do comercio.


Por isto, Pombal os acusava de comerciar.

— 454 —
POMBAL E JESUÍTAS 39

Primeiro Ministro 1. Junto com o Breve de nomeagáo, Bento


XIV, mediante o rei D. José I, enviou ao Cardeal Saldanha
instrugóes para o exercicio de suas fungóes: nao fechasse os
olhos aos erros, mas usasse sempre de moderagáo e mansidáo,
segundo o espirito da Igreja, máxime por ser a Companhia
urna Sociedade que até o presente momento gozara de grande
estima. Caso tivesse que punir, nao fósse além das penas pre
vistas pelo Direito e se deixasse inspirar pela prudencia e a
caridade crista; nao desse ouvidos a pessoas que sugerem con-
selhos apaixonados; a fim de evitar os escándalos, procedesse
Saldanha com discrigáo; a fiel observancia de tais recomen-
dagóes seria o penhor de se evitarem desordens e abusos. Sal
danha devia fornecer á S. Sé relatos fiéis sobre os jesuítas,
depois de ouvir os padres e irmáos da Companhia; em parti
cular, devia apurar se o famigerado comercio dos jesuítas era
o que o Direito Canónico proibia ou apenas a venda ocasional
de produtos excedentes de suas térras (venda esta permitida
ás demais Ordens Religiosas, principalmente em territorios de
missáo). Pergunta-se se Saldanha jamáis pode ler tais instrucóes
pontificias.

3. O desfecho

Aos 3 de setembro de 1758 deu-se em Lisboa um atentado


contra o rei D. José I. As primeiras noticias diziam que S. Ma-
jestade, desejando descer aos seus jardins durante a noite,
havia caído ñas escadas escuras e ferido as espáduas. Outro
rumor, posteriormente, dizia que na noite de 3 de setembro
o rei voltava da casa da jovem marquesa Da. Teresa de Tá-
vora, com quem tinha intimidades, quando fóra atingido por
disparos... Na base de suspeitas, o Governo mandou prender

i Francisco Saldanha era um homem bondoso, de costumes irre-


preensíveis, mas pouco prendado culturalmente. Em 1755 Pombal con-
seguiu íazé-lo cónego da igreja patriarcal de Lisboa, em 1756 Cardeal,
em 1759 Patriarca. Um irmáo de Saldanha fóra nomeado embaixador
em Madrid ; outro, constituido conde ; dos primos de Saldanha, um
era vice-rel em Goa; outro, reitor da Universidade «Sapiencias em
Coimbra; um terceiro, Governador da ilha da Madeira. Outro párente
de Saldanha foi por Pombal constituido bispo de Elva; mais outro,
bispo de Miranda.

Em conseqüéncia, Saldanha se sentía profundamente obrigado e


devedor a Pombal; nao lhe resistiría em hipótese alguma, mas apenas
darla foros de legalidade aos despropósitos do Ministro.

— 455 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970, qu. 4

o Conde de Aveiro, o velho marqués de Távora e sua esposa,


com outros familiares e com serventes domésticos; após pro-
oesso muito irregular, formam doze pessoas condenadas á morte
aos 12 de Janeiro de 1759 e enforcadas no dia seguinte; da
janela de um castelo de recreio, Pombal contemplou o espe-
táculo, que durou das 7 h da manha as 3 h da tarde.
Todavía, pouco tempo depois do atentado, o Senador Iná-
cio Ferreira Souto comegou também a espalhar a noticia de
que os jesuítas o tinham provocado. A principio ninguém deu
importancia ao rumor. Éste, porém, foi utilizado pelo Govérno
como pretexto para reprimir os padres da Companhia; as sete
casas dos jesuítas em Lisboa foram revistadas por soldados,
que nelas nada encontraran! de suspeito. Nao obstante, dez
jesuítas foram presos na noite de 11 para 12 de Janeiro de
1759. Pombal chegou a aplicar a tortura a alguns detidos, a
fim de extorquir confíssóes sobre o atentado. Nada, porém, se
apurou que oomprometesse os padres; em conseqüéncia, os
jesuítas foram condenados na base do seguinte raciocinio:
«Nao se pode admitir que alguém cometa um crime sem
ter interésse néle. Paralelamente pode-se presumir que quem
tenha interésse em algum crime, naja cometido ésse crime,
enquanto ele nao provar que foi outra pessoa que o cometeu.
Ora os jesuítas, que o reí dispensara do oficio de confes-
sores da corte e a quem proibira o comercio, tinham grande
interésse em que o reí morresse. Por conseguinte, pode-se
admitir, com suficiente base no Direito, que os jesuítas tenham
tido parte no atentado a D. José I».
Todavía os historiadores, protestantes e católicos, que tém
estudado o assunto, sao unánimes em reconhecer a iseneáo
de culpa dos jesuítas. Por seu lado, os próprios jesuítas, depois
da queda de Pombal, pediram revisáo do processo que os con
denara.

Aos 19 de Janeiro de 1759, foram decretados o confisco


dos bens da Companhia e a internaeáo de todos os jesuítas em
suas casas; para sustentar-se, cada um passou a receber do
Govérno um tostáo por dia. Apesar dos protestos de Roma, os
maus tratos continüaram.
Aos 20 de abril de 1759, o reí escrevia ao Papa Clemen
te XIII, dizendo-lhe que, tendo provas de que os jesuítas eram
infiéis ás suas Constituicóes, fautores da guerra no Paraguai
e hostis a pessoa de S. Majestade, ele havia irrevogávelmente
decidido eliminá-los de Portugal. Pedia, pois, licenga a S. San-

— 456 —
POMBAL E JESUÍTAS 41

tidade para constituir urna «Mesa de Consciéncia», ou seja,


um tribunal habilitado a julgar e condenar clérigos. O Papa re-
solveu conceder a faculdade; lembrava, porém, ao monarca os
grandes beneficios prestados pelos jesuítas a Portugal e ao
Brasil, e rogava-lhe instantemente nao executasse o seu plano
de expulsar os padres, pois isto acarretaria má fama para o
reí e profunda dor para o Pontífice.
Antes que chegasse a resposta do Papa as máos do rei,
Fombal iniciou a retirada dos jesuítas de Portugal. Com a data
de 3 de setembro de 1759, o primeiro Ministro publicou um
edito que degredava todos os membros da Companhia de Por
tugal e das colonias. Oito ou nove naves portadoras de jesuítas
partiram de Lisboa para Civitavecchia, nos Estados Pontifi
cios. Os jesuítas do Brasil foram enviados primeiramente para
Portugal e, depois, para a Italia. A travessia do Atlántico levou
dois meses: os padres tiveram que se conservar o tempo todo
no interior da respectiva nave, suportando calor aflitivo, sem
poder respirar sobre o tombadilho da embarcagáo; a racáo
alimentar diaria constava de legumes e tres jarros de agua
para cada um. Em condigóes semelhantes foram transportados
os jesuítas da india para Portugal durante cinco meses de
viagem; em conseqüéncia, morreram vinte e tres dentre estes
em viagem, e, dos 119 que chegaram a Lisboa, a maioria estava
táo doente que so 46 puderam seguir viagem para a Italia.
Aconteceu, porém, que a maioria dos jesuítas estrangeiros,
assim como os mais influentes dos jesuítas portugueses, foram
encerrados no cárcere de S. Juliáo em Lisboa, onde perma-
neceram anos a fio em cubículos subterráneos, sem Missa nem
sacramentos. O embaixador alemáo von Lebzeltern, que jul-
gava exagerados os relatónos dos missionários, conseguiu en
trar, camuflado, no referido cárcere; após o que escreveu suas
impressóes em um relatório datado de 8 de abril de 1777:
«Eu mesmo vi as prisóes. Só posso esbogar urna pálida
imagem de tanto sofrimento, pois éste ultrapassa todas as con-
cepgóes que a fantasía possa imaginar; a simples visáo de tan
ta dor paralisa o sangue, por médo e pavor. Vi buracos em
quadratura de quatro palmos, cavados em espago subterráneo,
mal iluminados por tochas; neles passava um córrego de agua
de dois palmos de altura. Eis o triste local em que os infelizes
viveram dezoito anos de maneira surpreendente, tendo por ali-
mentagáo diaria apenas meia-libra de pao e, como roupa, urna
camisa por ano» (cf. Duhr, «Pombal», p. 164).
Como espécimen da difamagáo movida contra os jesuítas,
pode-se citar o seguinte particular: aos 23 de agosto de 1759,

— 457 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970. qu. 4

a imprensa de Lisboa publicou uma noticia vinda de Ñapóles,


segundo a qual o Cardeal-arcebispo desta cidade fóra, com
um oficial do Estado, revistar o quarto do jesuíta Padre Pepe,
que dias antes havia morrido em odor de santidade. Tena
entáo encontrado ai 600 oncas de ouro em barras e em pó,
uma letra de crédito de 56.000 ducados, 1.600 libras de cera,
10 latas de fumo holandés, tres despertadores, 200 lencos de
seda e 300.000 florins em especie. O Padre Pepe teria man
dado confeccionar para a igreja da Imaculada Conceicáo uma
grande estatua de Nossa Senhora de prata macica e haveria
doado ao santuario uma omamentacáo bordada completa. Tal
noticia da imprensa foi transmitida pelo Nuncio Acciaioli ao
Pe. Torrigiani, Geral dos Jesuítas, aos 4 de setembro de 1759.
Aos 11 de outubro de 1759, Torrigiani respondía ao Nuncio
que toda a estória nao passava de mentira e invengáo.
Particularmente dolorosa foi a sorte do Pe. Gabriel Ma-
lagrida S.J., que trabalhara mais de trinta anos ñas missSes
do Brasil e do Maranháo com dedicagáo modelar. De volta a
Portugal, interpretou o terremoto de 1755 em Lisboa como
sendo advertencia da justica divina aos homens. Em conse-
qüincia, foi tido como falso profeta, hereje, louco, perturba
dor de consciéncias e traidor da patria. Levaram-no ao tribunal
da Inquisicáo, ao qual presidia Paulo Carvalho, irináo do Mar
qués de Pombal, após terem sido afastados homens retos que
compunham o júri (o que bem mostra que a Inquisicáo nao
era órgáo do govérno da Igreja naquela época). Foi entáo
condenado á morte e queimado vivo aos 20 de setembro de
1761 em presenga do rei, de todo o Ministerio e do corpo di
plomático acreditado em Lisboa.
Também merece atencáo o que se deu com o arceblspo
da Bahia Dom José Botelho de Mattos. Aos 2 de novembro
de 1759, o rei D. José I comunicou á Santa Sé que o arcebispo
renunciara e que ele, rei, havia nomeado para o cargo D. Ma-
noel de Sant'Inez, bispo de Angola; S. Majestade pedia a con-
firmagáo do novo prelado da Bahia. Antes de responder, a
Curia Romana solicitou o documento de resignagáo do arce
bispo; Almada, embaixador de Portugal em Roma, prometeu
apresentá-lo sem demora; diante do que, o Papa mandou adiar
a Bula de confirmacáo do novo arcebispo. Na verdade, o
documento de resignagáo nunca chegou a Roma, pois o arce
bispo da Bahia nunca pensara em renunciar. Eis o que acon
tecerá própriamente: como legado do Cardeal Saldanha junto
aos jesuítas, D. José Botelho de Mattos publicara o decreto
de Saldanha concernente á proibicáo de comercio dos jesuítas,

— 458 —
POMBAL E JESUÍTAS 43

mas nao suspenderá os padres nem Ihes confiscara os bens


como se estes tivessem sido adquiridos ilícitamente ou por co
mercio ilegal; um mquérito judiciário tinha-o convencido da
retidáo dos jesuítas. Por conseguinte, mandou para Lisboa um
relatório de seu procedimento ou um «sincero atestado» assi-
nado por oitenta pessoas das mais eminentes da Bahía, ne
gando a culpa dos jesuítas. Éste gesto provocou, da parte do
reí, a ordem de afastar o arcebispo da sua residencia na Bahia;
os bens do prelado seriam detidos, e os cónegos de S. Salvador
elegeriam um Vigário Capitular até que o rei nomeasse novo
arcebispo. Dom José de Mattos, com oitenta anos de idade,
ficou 'k mercé da caridade pública.

O episodio deu ocasiáo a que o embaixador Almada de


Portugal em Roma acusasse o Cardeal Secretario de Estado
de lesa-majestade, pois nao dera crédito imediato á palavra
do rei.

O Papa Clemente XHI respondeu com protestos ao de


creto de expulsáo dos jesuítas. Em represalia, o Govérno lusi
tano despediu o Nuncio residente em Lisboa e o embaixador
Almada deixou Roma (7 de julho de 1760). As relag&es entre
Portugal e a S. Sé ficaram interrompidas por dez anos, apesar
da insatisfacáo da familia real e da grande maroria do povo
portugués.

4. ReflexSo final

O Marqués de Pombal é expressáo típica do espirito anti


clerical, ou melhor, antieclesial que abalou a filosofía e a poli-
tica do século XVII. O Ministro investiu nao sómente contra
os jesuítas, mas também contra mitras Ordens Religiosas de
Portugal.

O antijesuitismo de Pombal nao foi feliz nem para Por


tugal nem para o Brasil.

Em nossa patria, após a expulsáo dos jesuítas, as povo-


agóes do Sul cairam em ruinas; os indios voltaram a vida sel-
vagem; as aldeias da Amazonia despovoaram-se. Segundo o
visconde de S. Leopoldo, inaugurou-se um período de terrivel
ignorancia em nossa térra, de Norte a Sul.

No setor do ensino em particular, Pombal mandou pros-


crever os sistemas de instrugáo dos jesuítas, proibindo os livros
e métodos da Companhia. A colonia caiu entáo em um período

— 459 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970. qu. 4

de obscurantismo, como afirmou Calmon: «No Brasil desor-


ganizou (Pombal) o ensino existente sem o melhorar, sem
sequer substitui-lo por outros1 sistemas que o suprissem. Fe
chados os colegios dos jesuítas, as aulas de filosofía e gramá
tica em grande número, aínda em 1760, logo decairam e se
encerraram» (citagáo colhida na «Historia da Igreja» de Bihl-
meyer - Tuechle - Silveira Camargo, vol. m, p. 413).
Em 1795, o Governador do Maranháo, Fernando Antonio
Noronha, afirmava: «Nao é conveniente haja mais do que a
cadeira de gramática latina, ler e escrever, porque o abuso dos
estudos superiores so serve para nutrir o orgulho próprio dos
habitantes...» — A Cámara de Sabara pedirá em 1768 urna
aula de cirurgia. O procurador da República recusou-a, ale
gando: «Que se lembrava de ter lido que algumas das nagóes
européias se arrependerain mais de urna vez de artes estabe-
lecidas ñas suas colonias da América» (citagóes transcritas da
fonte ácima indicada).
Os estudantes brasileiros, tanto eclesiásticos como leigos,
foram obrigados a ir estudar na Universidade de Coimbra, que
Pombal havia reformado, imbuindo-a de principios liberáis
político-religiosos, jansenistas e galicanos.
Langando um olhar retrospectivo sobre a atividade dos
jesuítas no Brasil, escreve o Baráo do Rio Branco:
«Em 1759, os jesuítas foram cxpulsos do Portugal e do todas as
posscssóes portuguesas. Apesar das dificuldades que nos últimos tem-
pos éles tinham suscitado ao Govérno de Lisboa, principalmente quando
os comissários portugueses e espanhóis procuravam executar o tratado
de limites de 1750, nao podemos deixar de reconhecer que ésses Re
ligiosos prestaram os seus servicos ao Brasil. A conquista e a coloni-
zacáo da América portuguesa nos séculos XVI e XVTI é, em grande
parte, a obra déles. Como missionários, éles conseguiram trazer para
a civilizacáo milhares de indios, e a raga indígena tornou-se, gracas ao
seu devotamento, um fator considerável na formaeSo do povo brastleiro.
Éles sempre foram os defensores da liberdade dos Indios e os edu
cadores da juventude brasileira que procurava instruir-se» (Baráo
do Rio Branco, «Obras VHI — Estudos Históricos». Rio 1948, pp. 77s).
Diogo A. P. de Vasconcelos, na sua «Historia Media de Minas
Gerais», observa a seu turno:
«A primeira época das Minas, consumida no bruto afa de se
amansar o sertao, educando-se os selvagens e lidando-se com colonos
corrompidos, ou forasteiros ignóbels, oferece-nos um lado que ameniza
o aspecto geral e que indigita a estreita ponte entre abismos por onde
se transportou felizmente o paládio da civilijac&o. É que os paulistas,
primeiros povoadores, pioneiros, que nem brenhas, nem serras, nem
bárbaros, nem feras detiveram no avanco da conquista, foram estu
dantes, e nessa bagagem luminosa, enquanto se estabeleciam nos ser-
t6es, guardavam o amor com que mandavam os filhos para onde pudes-

_ 460 —
POMBAL E JESUÍTAS 45

sem receber instrugáo. Devenios éste milagre aos Jesuítas. Onde quer
que se estabeleceram, íundaram seus Colegios e Escolas de Artes,
íaróis primeiros do nosso destino. Ésses Padres admiráveis, reconhe-
cendo o mundo como feito para ser dominado pelo espirito e vencido
pela doutrina, implantaram na consciéncia dos pais o dever de educar
os filhos» («Historia Media de Minas Geraisx.. Rio 1948, pp. 128s).

Em suma, sejam citadas ainda as palavras de Lucio de


Azevedo referentes a Pombal e seus feitos:

«Decorrido mais de um sáculo, excluida a suposigáo de


impostura, as palavras de Voltaire, acerca da execucáo, ficam
como o definitivo julgamento da posteridade sobre quem a
ordenou: o excesso do ridiculo e do absurdo juntou-se ao ex-
cesso do horror» («Os Jesuítas no Grao Para», p. 364).

Parece, pois, que num julgamento objetivo e sereno nao


se pode deixar de reconhecer o partidarismo sectario do Mar
qués de Pombal, que (com quais intengóes, só Deus sabe julgar)
escreveu urna página obscura na historia de Portugal e do
Brasil.

Na confeccSo déste trabalho foram utilizados:

L. Fr. von Pastor, «Geschichte der Papste» XVI, 1. Freiburg


i./Br. 1931.

Serafim Leite. «Historia da Companhia de Jesús no Brasil» VII.


Rio de Janeiro 1949.

Bihlmeyer-Tuechle-Silveira Camargo, «Historia da Igreja> III. Sao


Paulo 1965.

Estévao Bettenoourt O.S.B.

ERRATA

Em «P.R.» 128/1970, p. 39 [363], linhas 1 e 2, leia-se:


«... no espirito sobrenatural. Um certo naturalismo perpassa
nao poucas dessas fichas, o que as torna ineptas para a cate-
quese».

— 461 —
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970

CORRESPONDENCIA MIÚDA

L B. (Jundiai): O livro «Eram os deuses astronautas?» já foi abor


dado em «P.R.» 126/1970, pp. 25-33 (257-265). Temos éste fascículo em
estoque. — O autor é um jornallsta alemáo que, em suas viagens, colé-
cionou interessantcs dados arqueológicos, geográficos e históricos. Pro
curando interpretá-Ios, von Daniken dá curso á fantasía e á íicgáo. Ñas
passagens em que se refere a Biblia, mostra-se totalmente estranho á
mentalidade e ao estilo déste Livro; fica á margem da exegese seria
e científica — o que é grave lacuna, pois a Biblia nao se interpreta
segundo o parecer subjetivo do leitor, mas de acordó com normas lite
rarias objetivas. Em suma, o livro «Eram os deuses astronautas?» vem
a ser urna provocagSo á reflexao; nao constituí, porém, urna condusao
da ciencia.

RESENHA DE LIVROS

Reflex5es sobre o problema do pecado original, por Pedro Grelot;


traducüo de Henr. Perbeche. Colecto «Rcvelacao e Teología» n' 9. —
Edicdes Paulinas, Sao Paulo 1969, 145 x 210 mm, 151 pp.

O autor é abalizado teólogo que, no livro ácima, cstuda um tema


assaz delicado e controvertido. Nao nega a realidade de urna culpa
inicial dos primeiros país, culpa que constituí o fundo de cena da obra
da Redencao efetuada por Jesús Cristo (tenha-se em vista o capitulo
final do livro). Procura, porém, situar a realidade dessa falta dentro
do quadro da pré-história e das teorías evolucionistas; leva em conta
a linguagem figurada ou antropomórfica dos capítulos 2 e 3 do Génesis,
onde Deus é descrito como Oleiro (2,7), como Jardinelro (2,8), como
Cirurgiao (2,22), ... onde Deus «passeia á brisa da tarde» (3,8). Após
doutas consideraefies, Grelot sugere tenha o autor bíblico tencionado
transmitir aos leitores urna historia matizada, de tipo singular, ou
seja, urna historia sagrada: «É preciso reconhecer que Gen 3 faz parte
de urna obra de conjunto cuja intencjto geral é histórica, num sentido
diferente da historiografía moderna; sejam quais fórem as etapas re-
dacionais percorridas por éste texto, pertence ele a urna sintese da
historia sagrada, a mostrar como o designio de Deus se realizou no
vir-a-ser do mundo e da humanidades (p. 43). Esta historia sagrada,
porém, nao fornece «urna descríelo realista da orlgem da raga humana
e do drama que pode ter-se nela desenrolado, como se fdra possivel
observá-los do exterior» (p. 43). Mais precisamente: o texto de Gen 2-3
oferece urna reflexao sapiencial, em que historia e teología se com-
pletam mutuamente.

Em suma, o livro de Grelot nao pretende esgotar o assunto, nem


proferir teses definitivas, como o próprlo autor diz no seu prefacio
(cf.p. 5-8)- £ um livro de pesquisa válida mais do que de catequese.
A quem n&o esteja familiarizado com os trámites dos estudos bíblicos,

— 462 —
RESENHA DE LIVRÜS

talvez pareca difícil; será útil, porém, a quem, iniciado era exegese
escrituristica, deseje aprofundar-se no assunto.

A coneepcño crista do hometn, por J. L. Segundo. Colecáo «Liturgia-


-Mundo» n» 3. — Editora Vozes, Petrópolis 1970, 125x180 mm, 97 pp.

Livro relativamente pequeño, mas denso. Tenta apresentar a nocao


de homem inspirada pelo Cristianismo e confronta essa nocáo com a
do pensamento marxista e a do existenclalismo.

Segundo, partindo da idéia bíblica de que Deus é Amor, concebe


o homem como portador e doador de amor. Todo homem, antes e fora
do Cristianismo, é isso. O Cristianismo velo tornar consciente em todos
os individuos a necessidade do amor fraterno: «A revelagáo (crista)
dá aos que a compreendem e aceitam pela fé a consciéncia reflexa do
que antes era só espontáneo» (p. 48). A Igreja, nesta perspectiva, vem
a ser a engrenagem social necessária para se transmitir a todos os
homens a mensagem do amor. Os sacramentos sao ritos que possibi-
Utam aos crlstaos viver com todos os homens a mensagem do amo."
«de forma consciente e meditada, e nao só espontánea» (p. 49). Ao
mesmo tempo que o autor fala da necessidade da Igreja, admite que
a Igreja possa escravizar e que o cristáo se liberte da Igreja (p. 50).
Assim pretende Segundo dialogar com o marxismo e o existencialismo,
mostrando a um e outro o que o Cristianismo lhes pode apresentar
de nfim ou comum.

Verifica-se que Segundo quer acautelar o leitor contra toda especie


fie concepeáo mágica, de religiao mecaniclsta que seja passaporte para
a vida eterna e que dispense o homem de se empenhar em favor de
scus semelhantes, nutrlndo néle urna falsa acomodagáo ou tranquil!-
dade. Esta preocupacao é válida. Mas o autor nao lhe dá a expressao
auténticamente crista; ele tende a reduzir o Cristianismo a um vasto
sistema de promocáo humana e de organizacáo dos valores terrestres.
Nao realca suficientemente o relacionamento direto do cristáo com
Deus e com a vida trinitaria; a regeneragUo batismal e o consorcio da
vida divina ficam empalidecidos, se nao apagados, na perspectiva do
autor. Na verdade, o Cristianismo nao é sámente urna tomada de
consciéncia de valores latentes em todo homem; é muito mais do que
isto; é elevacSo do homem a urna ordem de coisas nova, sobrenatural.
Por isto o livro de Segundo merece serias reservas; é um eco de natu
ralismo c humanismo alheios & genuina concepeáo crista. Nao há
oposicáo entre as tarefas terrestres do cristáo e o seu relacionamento
com Deus no plano sobrenatural.

Obediencia e Llberdade pessoal, por Tullo Goffi; traducáo do ita


liano por Fr. Estévfio Nunes O.P. Colecáo «Revelacao e Teología»
n» 12. — Edicoes Paulinas, Sao Paulo 1970, 145 x 210 mm, 359 pp.

As questóes de obediencia sao hoje ardentemente estudadas, pois


tocam de perto a formacáo e o respeito devidos á personalidade humana;
por sua vez, o dito «confuto das geracOes» contribuí para agucar as
dificuldades em torno do assunto. O livro de Goffi aborda exaustiva-
mente a obediencia sob os seus variados aspectos (teológico, moral,

— 463 —
48 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 130/1970

jurídico), procurando manter o equilibrio entre as exigencias da boa


ordem e da íé, de um lado, e as do respeito á personalidade, de outro
lado. Merecem atencáo particular as consideragóes do autor relativas
a educacáo: esta tenda a formar o jovem para o uso da liberdade
pessoal; procure fazer do educando o agente primario na educacáo;
aprésente os preceitos como expressóes do amor. Goffi admite a «obje-
cao de consciéncia», ou seja, a recusa de servico militar por motivos
religiosos ou filosóficos, ficando, porém, o objetante obrigado a pres
tar servicos sociais. No tocante ás relacdes entre o profetismo (os
carismas pessoais) e a hierarquia, o autor atribuí o primado á hierar-
quia: «Nao poderia vir do Espirito Santo um profetismo oposto a
hierarquia, ... destruidor da estrutura eclesiástica. Nao existe pro
fecía válida na Igreja a nao ser dentro do esquema da apostolici-
dade... Disto, porém, nao se segué a hierarquia deva desconhecer o
profetismo, pois ele tem urna missáo constante na Igreja» (p. 199s).
Em relacao á obediencia religiosa, o livro apresenta úteis reflexdes,
que repelem a massificacáo ou despersonalizagáo do subalterno, sem,
porém, derrogar á genuína visáo sobrenatural: «Esteja o Religioso táo
desapegado do seu egoísmo que seja capaz de cumprir com serenldade
qualquer preceito, mesmo difícil, mas também tenha urna personali
dade forte, capaz de torná-lo apto a assumir qualquer responsabilidade
pessoal e social* (p. 322).

O livro muito se recomenda a educadores e, principalmente, a


Religiosos.

Nao estou só, por Lucia Jordao Vilela. Colecáo «Fonte de Vida»
n» 1. — Editora Vozes, Petrópolis 1970, 115 x 150 mm, 32 pp.

Nossa bibliografía precisa de livros e opúsculos que iniciem o pú


blico a vida de oragáo. Orar é algo que se aprende, embora multas
vézes a oracao brote espontáneamente do coragáo do homem.

Acudindo, em parte, a esta necessidade, surge a colegSo «Fonte de


Vida», que tenta apresentar. para cada dia um tema de reflexáo e
oragáo. «Nao estou só» é um. conjunto de 32 considerares breves e
profundas sobre temas. bíblico» e moráis. A autora se tornou conhe-
cida e benemérita por numerosas outras obras, inclusive pelo trabalho
denso e valioso que vem desenvolvendo na redagáo da revista «Reno-
vacáo Crista». Só se pode desejar ampia divulgagáo ao livrinho ácima,
cheio de profundas sugestóes.

Hoje será melhor. Diálogo e debates com os Jovens, por Rodolfo


Jesoirens e Sylvia Villac. — Sono-Viso do Brasil, Rio de Janeiro 1970,
160x230 mm, 126 pp.

Os autores da obra adqulrlram ampia experiencia no contato com


a juventude, de modo a poder publicar agora em um volume onze
planos de aula e um esquema de celebragáo penitencial e Missa dos
jovens. O roteiro escolhido para aulas e debates segué um ritmo pro-
gressivo e dinámico: parte dos problemas do En («quem sou eu?>),
passa para quem é mais próximo ao Eu («para que ouvir os mais
velhos?», amor e casamento); aborda os problemas do mundo («que

— 464 —
tenho eu que ver com os outros?»), e finalmente chega ao encontró
com Deus (plano de Deus, Cristo Amigo, Igreja somos nos, vivencia
crista). O conteúdo do livro é substancioso e atual (estatisücas
motivantes); a apresentacao técnica, muito agradável e vivaz. Os es
quemas de aula obedecem a dinámica de grupo apta a tornar os
debates atraentes e frutuosos. Realmente o livro será instrumento útil
de trabalho. É necessário, porém, que ao adotá-lo, o mestre tenha a
preocupado de chegar ao fim do roteiro, onde se fala própriamente
de Cristo e dos valores cristáos; em caso contrario, nao transmitirla o
que há de mais característico e necessário na mensagem crista, mas
apenas daria formacáo moral e cívica. Os cursos de formacáo crista
nao devem perder sua tonalidade própriamente religiosa e sobrenatural;
devem levar os discípulos a um relaclonamento vivo com Deus, com
Jesús Cristo, com a Igreja e a Eucaristía.

E.B.
NO PRÓXIMO NÚMERO :

Escola. católica vale ?

Cursilhos de Cristandade

Catolicismo holandés

Zé Arigó : urna reportagem

'¿ Celibato do clero visto por budista

Morte encarada por un cristqo

Freirás indianas

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

, r porte comum CrS 20,00


Assínatura anual I v
1970 1 porte aéreo Cr$ 25,00
Número avulso de qualquer mes e ano .... Cr$ 2,00

Número especial de abril de 1968 ?? Cr$ 3,00


Volumcs encadernados: 1957 a 1969 (prego unitario) .. Cr$ 20,00
Índice Geral de 1957 a 1964 Cr$ 10,00
Índice de qualquer ano Cr$ 2'00
Encíclica ^Populorum Progressio» Cr5 i-00
Encíclica «Humanae Vitae» (Regulacáo da Natalidade). Cr$ 1,00

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