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O Jardim do Arquitecto
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O Jardim do Arquitecto
PRÓLOGO
Pedro Sánchez sabia de cor o destino. Por isso, quando o juiz lhe
ordenou ouvir de pé a sentença, nem um segundo confiou em mi‑
lagres. O caso era grave e os santos tinham mais que fazer. Há dez
sessões que Rafael Ríos — número um na nata dos advogados de
Sevilha — lhe atirava à cara resquícios do passado, testemunhos há‑
beis, aleivosos, acusações a dedo de um crime que não cometera.
É certo que nada tinha em seu abono. Estava longe do cadas‑
tro limpo, sobravam‑lhe tropeções na vida, às dezenas, dos mais va‑
riados no cardápio penal. Mas nunca o rapto de frágeis e inocentes.
Porque, ponto de honra, respeitava muito as crianças. Mesmo esta,
sendo filha de embaixador, não lhe aguçara o gesto da crueldade,
muito menos de assassiná‑la, quando o resgate foi público e recusa‑
do. Soube da história pelos jornais, pela TV, pelas conversas de rua.
Pela notícia gorda, em letras garrafais, semanas a fio.
Até que manhã cedo, visitado pela polícia, foi directo aos ca‑
labouços. Alguém se enganara ou quisera tramá‑lo. De nada serviu
esbracejar inocência e esgrimir álibis: Espanha inteira, e meio mun‑
do à volta, já dera o veredicto.
— O Tribunal considera provados os crimes de rapto e assas‑
sinato, condenando o réu à pena de vinte anos de prisão.
Castigo duro, muito duro, o pior de todos que já enfrentara.
Pelos anos e pela revolta. Pedro tinha a justeza e o brio dos delin‑
quentes que aceitam pagar dívidas. As suas, mas só essas. Por isso,
nesse primeiro de milhares de dias, jurou a si próprio que aquela
pena não era para cumprir.
Mesmo assim conteve‑se e foi tempo que lhe pareceu demais.
Um mês de cativeiro, a preparar o salto, a esboçar planos rascunha‑
dos na mente. Por fim decidiu‑se. Ia rever, ou pôr à prova, o ac‑
tor fugaz doutras vidas, antes da entrega aos apelos do crime. Para
quem pisou palcos à passagem dos vinte, simular dores — dessas
que ameaçam rebentar o coração — era tarefa fácil ao lado de um
texto de Beckett.
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PRIMEIRA PARTE
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CAPÍTULO UM
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nesse notável corrimão líquido que deu nome e fama à Escalera del
Agua.
Miguel Ríos quase sempre foi um apaixonado pela Arqueo‑
logia. Pelo menos desde os tempos em que alguns documentários
lhe aguçaram o apetite e passou a dedicar‑se às leituras do tema. Na
hora de avançar nos estudos a opção foi fácil e, ainda hoje, não está
arrependido do caminho que seguiu. Apesar de sentir na pele as
dificuldades de tecer uma carreira no mínimo estável, sem sobres‑
saltos financeiros.
Sempre teve consciência disso e foi bastante avisado. O pai,
distinto advogado de Sevilha, com nome feito na barra, terá so‑
nhado passar‑lhe a fama e o escritório. Em vão. Miguel estava lon‑
ge de rever‑se nos códigos e decretos, incapaz de rebuscar na lei
a vírgula que pode transformar culpas em inocência. Tinha uma
opinião muito crítica sobre a justiça dos homens. E depois de al‑
gumas insistências, o pai, que há muito percebera isso, desistiu da
cruzada.
Miguel bebeu da mãe um espírito profundamente religioso,
que o levou várias vezes à Praça de S. Pedro — em dias de encontro
papal — e lhe podia ter dado o estatuto de missionário nos confins
de África, se não fossem os apelos incompatíveis dos livros de Ar‑
queologia. Estava no último ano do curso quando ela sucumbiu ao
tumor voraz e implacável. Nessa hora, pela primeira vez, pôs em
causa se até no Divino a palavra justiça tem significado. E durante
dias e noites a fio, a imagem da mãe, definhada e apática no leito do
hospital, ocupou‑lhe a mente quase a tempo inteiro.
Só um ano mais tarde, quando conheceu Joane, outras ima‑
gens e pensamentos começaram a fazer sentido. A colega francesa
juntou‑se ao seu grupo de jovens arqueólogos, investigadores da
Universidade de Jaén, que buscavam vestígios da passagem dos mu‑
çulmanos pelo sul de Espanha. Também ela terminara há pouco o
curso, mas os seus vinte e quatro anos não surgiam, de imediato,
visíveis. Mesmo três anos passados, é difícil adivinhar‑lhe a idade:
o corpo pequeno e frágil, parece não ter ido além do início da ado‑
lescência, mas a face apresenta traços de uma mulher mais madura,
1
Significado do vocábulo Generalife para a maioria dos autores, que colhem a sua
origem nas palavras árabes djennat ( jardim, horta, paraíso ) e al‑arif ( arquitecto,
construtor ).
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CAPÍTULO DOIS
Agosto de 2005
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menina e não aceita a nossa relação. Mas sei pouco dele, nem se‑
quer o conheço. Se sou rejeitado, quero manter as distâncias.
O inspector Núñez teve alguma dificuldade em compreender
este desprendimento, este aparente desinteresse como Miguel lida‑
va com o passado e com as referências familiares de Joane.
— Parece‑me que também sabe pouco dela. Isso não o inco‑
moda? Não é curioso ou prefere nem saber?
— O que é que está a insinuar? — por momentos Miguel irri‑
tou‑se, ao adivinhar alguma ironia naquele inquérito.
— Fique calmo. O meu trabalho não é insinuar, é fazer per‑
guntas. E convenhamos que a situação não é muito comum.
— Pode não ser, mas não tenho razões para desconfianças.
Passado é passado, se não quer falar, não fala. Respeito isso e da‑
mo‑nos bem. Para mim é quanto baste.
— Está enganado! Se ela não aparecer temos um problema
sério.
E tinham. Com a tarefa difícil, o inspector pedira reforços e
cães‑polícia, mas já a tarde se esvaía e os agentes ainda vasculha‑
vam, sem sucesso, cada palmo da cidadela.
— Discutem muito? Como é que está a vossa relação?
— Bem, muito bem — garantiu Miguel — Não acredito que
ela quisesse terminar tudo, muito menos desta forma. Coragem não
lhe falta, sempre enfrentou os pais por causa da nossa relação.
— E não estaria a ser pressionada por eles? Ela fez algum co‑
mentário sobre isso?
— Já lhe disse que não faço muitas perguntas sobre as conver‑
sas com o pai. Mas, se assim fosse, ou ela me dizia ou, eu próprio,
já me tinha apercebido. Afinal de contas, eu assisto a muitos tele‑
fonemas!
— E quando ela vai a Toulouse, fica muito tempo?
— Pouco. Três, quatro dias, no máximo uma semana.
— Porquê? — insistiu Núñez — Não gosta do ambiente?
Dão‑lhe cabo da cabeça?
— Que eu saiba não é por isso, nunca fez esses comentários.
Não gostamos é de estar muito tempo separados.
— De facto, você desconhece muita coisa dela. É estranho,
muito estranho! — concluiu o inspector.
Quase oito da tarde, a Alhambra ia fechar as portas antes da
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CAPÍTULO TRÊS
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CAPÍTULO QUATRO
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Miguel remexeu minutos a fio no bilhete que lhe entrara quarto den‑
tro. Rabiscos de destinatário sem rosto, quase de certeza alguém que
compartilhava o hotel, cheio na ocasião. Portanto, mais anónimo
ainda. E esse era outro elemento estranho a juntar à história inacre‑
ditável que já vivera horas demais para serem só vinte e quatro.
Afinal, além dele e da polícia alguém sabia muito mais da fuga
de Joane, alguém que estava por perto para controlar a situação
e queria libertar‑se de uma presença incómoda ou, talvez, perigo‑
sa. Mas todo este cenário ia ao encontro da hipótese do inspector:
“Pode ter sido usado para uma tramóia qualquer”, vaticinara Núñez.
Será que o inspector tinha razão?
No entanto, ainda resistia forte a imagem da companheira
Joane, amiga, amante, acima de qualquer suspeita. Do olhar doce,
apaixonado, do corpo franzino (mas de viagens de sonho) com a
força rebuscada nas entranhas para ficar só com ele, desafiando a
família no projecto de vida que esboçara sem barreiras. Essa era a
“sua” Joane. A outra saíra, há escassas horas, deformada de um pe‑
sadelo. Assim nunca seria fácil reconhecê‑la.
Na cabeça de Miguel fervilhava um vulcão de contradições.
Mas nem por um segundo lhe ocorreu a ideia de partir da cidade
com o caso em suspenso. Era como entregar Joane à sua sorte, sem
conhecer uma sentença de culpa, da qual tinha motivos demais para
duvidar. Porém pressentia que, mais cedo ou mais tarde, iria pagar
um preço alto e imprevisível pela permanência ali, com a polícia
e alguém mais a controlá‑lo, passo a passo. Por isso, lá veio outra
noite praticamente em claro.
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CAPÍTULO CINCO
Ontem Juan Pablo esteve de folga, mas hoje cumpriu‑se o ritual di‑
ário. Às duas saiu de serviço na Alhambra, passou rápido por casa
para trocar de roupa e despir o ar de segurança, almoçou breve no
café vizinho e às quatro já ocupara o seu posto, no bar do hotel. É
assim o dia‑a‑dia. Metade de vigilância, metade a servir bebidas e
desabafos fortuitos, para saldar o mês com algum desafogo.
Quem lhe pergunte a preferência, não tem resposta fácil. Lá
em cima, na cidadela, veste a pose de autoridade, farda‑se de dis‑
tância e respeito. De certa forma, olhando para trás, esta nova pos‑
tura faz‑lhe bem ao ego. Mas no hotel reencontra‑se, revive outros
tempos. Sem espartilhos, ainda que contido ou às vezes formal, por
dever de profissão.
A regra quebra‑se de quando em vez, se ao fim da tarde che‑
gam clientes de hábito. Os vendedores de empresas que, pelo me‑
nos, uma vez por mês demandam Granada e, pela insistência, já
se sentem a “jogar em casa”. Nesses dias aumenta a receita de Juan
Pablo.
— Ainda tenho de passar num cliente, mas é coisa rápida. Liga
à Vera para esta noite.
— Tem estado fora, não sei se já voltou. Pode ser a Dora? —
Pablo puxava do cardápio para subir a comissão.
— Deixa‑te de histórias, cinco estrelas custam mais “papel”. Vê
lá se arranjas mamas ao natural, não preciso de silicone.
Acordo feito. Depois do contacto, a tarefa do costume: prepa‑
rar terreno para a visita discreta, via elevador da garagem. É esse o
seu trunfo, a alma do negócio, mas também o risco que lhe pode
custar caro. Pelo delito de proxeneta, acaba‑se o respeito e o em‑
prego.
— Eu faço de conta que não vejo, mas qualquer dia o negócio
das putas vai‑te dar chatice — o colega do bar já o avisara vezes sem
conta.
Juan estava descansado nessa testemunha incontornável, ami‑
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CAPÍTULO SEIS
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CAPÍTULO SETE
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dar o pecúlio. Antecipa o pedido, para que a noite fluia sem sobres‑
saltos ou hiatos. Mais uma vez, resultou na perfeição.
O que veio a seguir foi tarefa de profissional. Vera tinha ex‑
periência bastante para dominar as “deixas” e as marcações de uma
peça bem encenada. Protagonista num palco onde todos os passos
de sedução estavam ensaiados ao pormenor, sabia do ofício e en‑
tregava‑se como poucas, às vezes — raríssimas vezes — despida do
papel de actriz. Foi o caso. Miguel libertou‑se dos fantasmas e ela
própria dos seus. Deixaram‑se ir, quase adolescentes, extasiados,
numa viagem sem rota, ao fluir errático da caminhada completa.
— Queres que fique o resto da noite? Acho que precisas de
ouvidos para desabafar e não me perguntes porquê, digo‑te já. Não
és o tipo de homem que ande por aí a pagar a mulheres para com‑
panhia de hotel, portanto…
— Nota‑se muito?
— Claro que nota, aposto que é a primeira vez que estás me‑
tido nisto. Ou muito me engano, ou temos história de “uma” para
esquecer.
Para esquecer? Impossível, de momento. Enquanto não vis‑
lumbrasse além dessa nuvem de enigmas, estava tudo em aberto: o
mistério da vida e morte de Joane. A acreditar em Juan Pablo, o que
é que Vera, prostituta de luxo, poderia saber? Agora ou nunca, tinha
de arriscar. Mentiu descaradamente e fez um esforço para estender
o tapete.
— Perdeste a aposta. Já pensaste que esta noite pode não ter
acontecido por acaso?
— Como assim? — De repente, Vera sentiu desconforto.
Não esperava a resposta e receou esta súbita segurança de Mi‑
guel. A experiência de vida já lhe ensinara o perigo: quando menos
se espera, dorme‑se com o inimigo. Uma noite, num hotel de cinco
estrelas, saíra‑lhe na rifa um deputado e a companheira. Vera viu
gente a mais e não era o seu estilo. Foi porta fora e a recusa fez
mossa. Quase lhe custou a volta à Baía, se não fossem, por cami‑
nhos enviesados, outros galões políticos além da prosápia de um
mero figurante de bancada, desses que gastam, anónimos, os anos
da legislatura.
— Tem calma — fez de conta estar seguro de si próprio — não
sou polícia dos bons costumes. Preciso é da tua ajuda.
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Parou para pensar: Seria bom ir por ali? E se ela recusasse a abor‑
dagem? Afinal de contas não passava de uma profissional.
— Ajuda? Estás a querer dizer‑me que não foi só sexo?
— Estou a dizer‑te que não foi principalmente sexo. Acho que
conheces uma história que é demasiado importante para mim.
— Achas como? Que história é essa e quem é que te contou
isso?
De súbito, fez‑se luz.
— Já sei! O Juan Pablo vai ter de me ouvir.
— Não te precipites. Conversámos por acaso, ele nem sabe
que esta história me interessa.
Foi mais que a sensação de ter caído numa armadilha. Vera
percebeu que era este o momento para sair de cena. Saltou da cama
e começou a vestir‑se.
Estúpido! Estragas‑te tudo. Ela não pode ir‑se embora.
— Espera. Não sou quem tu pensas e preciso muito de ajuda.
Por favor, acredita em mim! — não tinha tempo a perder, foi directo
— O que é que sabes da Joane? Da Alexandra?
Vera ficou petrificada. De pé, meio nua, despida de defesas,
fixou‑o sem acreditar no que ouvira. Ou és polícia ou jornalista. Mes‑
mo fugindo, vou ter problemas. Raios partam esta noite! Restava‑lhe o
jogo do contra‑ataque.
— Joane, Alexandra? Não faço ideia. Porque diabo é que eu
devia conhecer essas duas?
Do outro lado, a mesma insegurança. Miguel sentia as per‑
nas a tremer, mas ganhou do esforço uma pose estóica para im‑
pedir‑lhe a saída. Na verdade, nem sabia bem porquê. Juan Pablo
confidenciara que Vera, estranhamente, ficara muito abalada com
aquela morte. Como se soubesse algo que queria ocultar. E logo
ela, vendedora de prazeres fugazes. Mais um motivo de inquieta‑
ção: onde é que Alexandra, ou a “sua” Joane, entrava nestes cami‑
nhos cruzados?
— Conhecer mesmo, não sei. Mas foi assassinada e não se fala
de outra coisa em Granada. Desculpa lá, é só ler, está em todos os
jornais!
Porra! Falta de jeito, foi forte demais. Se ela sabe alguma coisa, vai
fingir‑se ofendida e sair porta fora.
— Tudo bem, vou fazer de conta que não percebi. Ficas avisa‑
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