Você está na página 1de 5

TEMPO COMUM. VIGÉSIMA TERCEIRA SEMANA.

QUINTA-FEIRA

97. O MÉRITO DAS BOAS OBRAS


– A recompensa sobrenatural das boas obras.

– Os méritos de Cristo e de Maria.

– Oferecer a Deus a nossa vida corrente. Merecer em bem dos demais.

I. O SENHOR FALA-NOS muitas vezes do mérito que tem até a


menor das nossas obras, se as realizamos por Ele: nem sequer
um copo de água oferecido por Ele ficará sem recompensa1. Se
formos fiéis a Cristo, encontraremos um tesouro acumulado no
Céu por uma vida oferecida dia a dia ao Senhor. A vida é o
tempo para merecer, pois no Céu já não se merece, mas
usufrui-se da recompensa. Também não se adquirem méritos no
Purgatório, onde as almas se purificam das sequelas deixadas
pelos seus pecados. Este é o único tempo para merecer: os dias
que nos restam aqui na terra.

No Evangelho da Missa de hoje2, o Senhor ensina-nos que,


para obter essa recompensa sobrenatural, as obras do cristão
devem ser superiores às dos pagãos. Se amardes os que vos
amam, que recompensa tereis? Porque os pecadores também
amam os que os amam. E, se fizerdes bem aos que vo- lo fazem,
que recompensa tereis? Também os pecadores fazem o
mesmo... A caridade deve abarcar todos os homens, sem limite
algum; não deve restringir-se aos que nos fazem bem, aos que
nos ajudam ou se comportam correctamente connosco, porque
para isso não seria necessária a ajuda da graça: também os
pagãos amam aqueles que os amam. O mesmo acontece com as
boas obras do cristão; não devem ser apenas “humanamente”
boas e exemplares, mas generosas na sua raiz por amor de Deus
e, portanto, sobrenaturalmente meritórias.

Deus assegurou-nos por meio do profeta Isaías: Electi mei non


laborabunt frustra3, os meus escolhidos não trabalharão nunca
em vão, pois nem a mais pequena obra feita por Deus ficará sem
fruto. Veremos muitos desses frutos já aqui na terra; outros,
talvez a maior parte, quando nos encontrarmos na presença de
Deus no Céu. São Paulo recorda aos primeiros cristãos que
cada um receberá a sua recompensa conforme o seu trabalho 4.
E insiste: Cada um receberá a recompensa devida às boas ou
más acções que tiver praticado enquanto estava revestido do
seu corpo5. Este é o tempo de merecer. “As vossas boas obras
devem ser os vossos investimentos, dos quais um dia recebereis
lucros consideráveis”6, ensina Santo Inácio de Antioquia.

II. ELECTI MEI non laborabunt frustra... As obras de cada dia –


o trabalho, os pequenos serviços que prestamos aos outros, as
alegrias, o descanso, a dor e a fadiga aceitos com garbo e
oferecidos a Deus – podem ser meritórias pelos infinitos méritos
que Cristo nos alcançou na sua vida terrena, pois da sua
plenitude recebemos graça sobre graça7. A uns dons
acrescentam-se outros, numa progressão sem fim, pois todos
brotam da única fonte que é Cristo, cuja plenitude de graça não
se esgota nunca. “Ele não tem o dom recebido por participação,
mas é a própria fonte, a própria raiz de todos os bens: a Vida, a
Luz, a Verdade. E não retém em si mesmo as riquezas dos seus
bens, antes os entrega a todos os outros; e, tendo-os
dispensado, permanece pleno; não diminui em nada por havê-los
distribuído aos outros, mas, cumulando e fazendo participar a
todos desses bens, permanece na mesma perfeição”8.

Uma só gota do seu Sangue, ensina a Igreja, teria sido


suficiente para a Redenção de todo o género humano. São
Tomás exprimiu-o no hino eucarístico Adoro te devote: Pie
pellicane, Iesu Domine, me immundum munda tuo sanguine...
“Bom pelicano, Senhor Jesus! / Limpai-me a mim, imundo, com o
vosso Sangue, / com esse Sangue do qual uma só gota / pode
salvar do pecado o mundo inteiro”. O menor ato de amor de
Jesus, na sua infância, na sua vida de trabalho em Nazaré, tinha
um valor infinito para obter para todos os homens – os
passados, os presentes e os que haviam de vir – a graça
santificante, a vida eterna e as ajudas necessárias para se
chegar a ela9.

Ninguém como a Virgem, Mãe de Deus e nossa Mãe,


participou com tanta plenitude dos méritos do seu Filho. Pela
sua impecabilidade, os seus méritos foram maiores – até mais
estritamente “meritórios” – que os de todas as demais criaturas,
porque, estando imune das concupiscências e de outros
entraves, a sua liberdade era maior, e a liberdade é o princípio
radical do mérito. Foram meritórios todos os sacrifícios e
pesares que teve de enfrentar por ser a Mãe de Deus: desde a
pobreza de Belém e a aflição da fuga para o Egipto até a espada
que atravessou o seu coração ao contemplar os sofrimentos de
Jesus na Cruz. E foram meritórias todas as alegrias e
satisfações que lhe causaram a sua imensa fé e o seu amor que
tudo penetrava, pois o que torna meritória uma acção não é a
sua dificuldade, mas o amor com que é feita. “Não é a
dificuldade que há em amar o inimigo o que conta para o seu
valor meritório, mas o modo como se manifesta nela a perfeição
do amor, que triunfa sobre essa dificuldade. Assim, pois, se a
caridade fosse tão completa que suprimisse completamente a
dificuldade, seria então mais meritória”10, ensina São Tomás de
Aquino. Assim foi a caridade de Maria.

Deve dar-nos uma grande alegria considerar com frequência


os méritos infinitos de Cristo, que são a fonte da nossa vida
espiritual. Do mesmo modo, deve fortalecer-nos a esperança e
reanimar-nos nos momentos de desânimo ou de cansaço a
contemplação das graças que Santa Maria nos alcançou.

“Dizias-me: «Vejo-me, não somente incapaz de andar para a


frente no caminho, mas incapaz de salvar-me – pobre da minha
alma! – sem um milagre da graça. Estou frio e – o que é pior –
como que indiferente: exactamente como se fosse um
espectador do ’meu caso’, que não se importasse nada com o
que contempla. Serão estéreis estes dias?

“«E, no entanto, a minha Mãe é minha Mãe, e Jesus é –


atrevo-me? – o meu Jesus! E há almas santas, agora mesmo,
pedindo por mim».

“– Continua a andar pela mão da tua Mãe – repliquei-te –, e


«atreve-te» a dizer a Jesus que é teu. Pela sua bondade, Ele
porá luzes claras na tua alma”11.

III. ELECTI MEI non laborabunt frustra. O mérito é o direito à


recompensa pelas obras que realizamos, e todas as nossas
obras podem ser meritórias, de tal modo que convertamos a
vida num tempo de merecimento. A teologia ensina12 que é
mérito propriamente dito (de condigno) aquele em que se deve
uma retribuição em justiça ou, pelo menos, em virtude de uma
promessa; assim, na ordem natural, o trabalhador merece o seu
salário. Existe também outro mérito, que costuma ser chamado
de conveniência (de congruo), em que se deve uma recompensa,
não por estrita justiça nem como consequência de uma
promessa, mas por uma razão de amizade, de estima, de
liberalidade; assim, na ordem natural, o soldado que se
distinguiu numa batalha pelo seu valor merece (de congruo) ser
condecorado: a sua condição militar pede-lhe essa valentia,
mas, se podia recuar e não recuou, se podia limitar-se a cumprir
a sua missão e esmerou-se nela, o general magnânimo vê-se
impelido a recompensá-lo superabundantemente –
ultrapassando o estipulado – por aquela acção.

Na ordem sobrenatural, os nossos actos merecem, por querer


de Deus, uma recompensa que supera todas as honras e toda a
glória que o mundo nos pode oferecer. O cristão em estado de
graça consegue com a sua vida corrente, cumprindo o seu
dever, um aumento de graça na sua alma e a vida eterna: pela
momentânea e leve tribulação, Ele prepara- nos um peso eterno
de glória incalculável13.

Cada dia, as obras são meritórias se as realizamos bem e com


rectidão de intenção: se as oferecemos a Deus ao começar a
jornada, na Santa Missa, ao iniciarmos uma tarefa ou ao
terminá-la. Serão meritórias especialmente se as unirmos aos
méritos de Cristo e aos da Virgem Maria. Apropriamo-nos assim
das graças de valor infinito que o Senhor nos alcançou,
principalmente na Cruz, e dos da sua Santíssima Mãe, que
corredimiu tão singularmente com Ele. O nosso Pai-Deus vê
então essas acções revestidas de um carácter infinito,
inteiramente novo. Tornamo-nos solidários com os méritos de
Cristo.

Conscientes desta realidade sobrenatural, procuramos


oferecer tudo ao Senhor?, tanto as acções corriqueiras de cada
dia como as circunstâncias que saem da normalidade: uma
doença grave, a perseguição, a calúnia? Nestes casos, devemos
recordar-nos especialmente do que líamos ontem no Evangelho
da Missa14: Alegrai- vos naquele dia e regozijai- vos, pois será
grande a vossa recompensa no céu. São ocasiões para amar
mais a Deus, para nos unirmos mais a Ele.

Ajudar-nos-á também a realizar com perfeição as nossas


tarefas o sabermos que – por mérito de conveniência, baseado
na amizade com o Senhor –, com essas obras feitas em graça de
Deus, por amor, com perfeição, podemos merecer a conversão
de um filho, de um irmão, de um amigo: assim fizeram os santos.
Não são motivos que nos incitam a procurar o rosto de Deus, a
glória de Deus, em cada uma das nossas acções?

“Dedicaremos todos os afãs da nossa vida – grandes e


pequenos – à honra de Deus Pai, de Deus Filho, de Deus Espírito
Santo.
“– Lembro-me com emoção do trabalho daqueles
universitários brilhantes – dois engenheiros e dois arquitectos –,
ocupados com muito gosto na instalação material de uma
residência de estudantes. Mal acabaram de colocar o
quadro-negro numa sala de aula, a primeira coisa que os quatro
artistas escreveram foi: «Deo omnis gloria!» – toda a glória para
Deus.

“– Sei que te encantou, Jesus”15.

(1) Cfr. Mt 10, 42; (2) Lc 6, 27-38; (3) Is 65, 23; (4) 1 Cor 3, 8; (5) 2 Cor 5, 10;
cfr. Rom 2, 5-6; (6) Santo Inácio de Antioquia, Epístola a São Policarpo; (7) Jo
1, 16; (8) São João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de São João, 14,
1; (9) cfr. R. Garrigou-Lagrange, El Salvador, pág. 365; (10) São Tomás,
Questões disputadas sobre a caridade, q. 8, ad. 17; (11) Josemaría Escrivá,
Forja, n. 251; (12) cfr. R. Garrigou-Lagrange, op. cit., pág. 366; (13) 2 Cor 4, 17;
(14) cfr. Lc 6, 20-26; (15) Josemaría Escrivá, Forja, n. 611.

(Fonte: Website de Francisco Fernández Carvajal AQUI)

Você também pode gostar