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GRANDES DOUTRINAS BIBLICAS Volume 3 A Igreja e as Ultimas Coisas D. Martyn Lloyd-Jones Fes PUBLICACGOES EVANGELICAS SELECIONADAS Caixa Postal 1287 01059-970 — Sao Paulo — SP Titulo original: The Church and the Last Things Editora: Hodder and Stoughton Ltd., Londres Primeira edigao em inglés: 1998 Copyright: Lady E. Catherwood Ann Desmond O direito de Dr. Martyn Lloyd-Jones de ser identificado como o autor desta obra tem sido asseverado de acordo com o ato de Copyright, Designs e Patents 1988 Traducao do inglés: Valter Graciano Martins Revisao: Antonio Poccinelli Capa: Sergio Luiz Menga Primeira edicao em portugués: 1999 Impressao: Imprensa da Fé PYOfACIO wesssessseessssesssvessesesssessssessstesseessnscssessssessssessessnsesanens 7 1 A Igreja. 9 2 As Marcas e o Governo da Igreja.. 24 3 As Ordenangas — Sinais e Selos 39 4 O Batismo 51 5 A Ceia do Senhor 65 6 Mortee Imortalidade . 78 7 Imortalidade Condicional ou Segunda Chance? 89 8 A Segunda Vinda — Introdugao Geral 9 O Tempo de Sua Vinda — os Sinai: 10 O Plano de Deus para os Judeus . LL O Anticristo w....ceseesee A Interpretagdo de Daniel 9: 24. 2) Conclusao do Capitulo 9 de Daniel e o Arrebatamento Secreto O Livro do Apocalipse — Introdugao. Os Pontos de Vista Preterista e Futurista O Ponto de Vista Historicista Espiritual O Sofrimento e a Seguranga dos Redimidos As Trombetas... O Juizo Final O Ponto de Vista Premilenista. Pés-milenismo e 0 Ponto de Vista Espiritual A Ressurreigio do Corpo O Destino Definitivo .... PREFACIO Nas noites de sexta-feira, apds a guerra, o Dr. Lloyd-Jones passou a manter reunides de debates numa das salas da Capela de Westminster, em Londres. Os temas desses debates versavam sobre questées praticas da vida crist4, e as reunides eram freqiientadas por um grande ntimero de pessoas. As questées que surgiram demandavam um sélido conhecimento de todo tipo de ensino biblico. As vezes surgiam também problemas doutri- narios, com os quais “o Doutor” tinha que tratar, geralmente em sua conclusdo, no encerramento do debate. Em parte era resultado disso, e em parte porque o numero foi se tornando grande demais para a sala comportar, e talvez também porque as pessoas que lhe pediam informagoes sobre as doutrinas biblicas eram tantas, que ele comecou a sentir a necessidade de mudar a “reuniao noturna de sexta-feira” para a propria Capela, e ali ministrar uma série de prelecdes sobre esses grandes temas. Ele fez isso de 1952 a 1955, e entao deu inicio a sua magistral série sobre a Epistola aos Romanos, a qual deu seguimento até sua aposentadoria em 1968. As prelegées doutrindrias eram muitis- simo apreciadas pelas grandes congregagées que as ouviam; e, ao longo dos anos, muitos tém dado testemunho da maneira como, por meio delas, sua vida crista se fortaleceu. Mais tarde, 0 préprio Doutor se sentiu mais satisfeito em pregar sobre doutrinas como parte da exposi¢éo regular, como certa vez afirmou: “Se as pessoas desejam conhecer uma doutrina em particular, poderao encontré-la nos manuais de doutrina”. Masa grande forca de seus estudos doutrinarios consiste em que eles nao sio dridos compéndios de preleg6es. Ele era acima de tudo um pregador, ¢ isso se salienta em todas as suas prelecées. Ele era também pastor, e desejava que homens e mulheres compartilhassem de seu senso de admiracao e de sua gratidao a Deus pelos fatos poderosos do evangelho. Dai sua linguagem clara e destituida daquela complexa fraseologia académica. A semelhanga de Tyndale, ele queria que a verdade se revestisse de palavras “compreensiveis ao povo”. Outro desejo seu era que 0 ensino nao ficasse s6 na cabega, por isso ha em cada prelecio uma aplicagao para que se assegurasse que 0 coracao e a vontade também fossem tocados. A gléria de Deus era sua principal Motivagao na ministracdo destas prelecées. ~ Os que conhecem a pregacao ¢ 0s livros do Dr. Lloyd-Jones, ao lerem as prelegées, haverao de se lembrar que seus pontos de vista sobre alguns temas se desenvolveram ao longo dos anos, e que suas énfases provavelmente nem sempre eram as mesmas. Todavia esta constitui parte da riqueza de seu ministério, como o foi do ministério de muitos dos grandes pregadores do passado. N&o obstante, no tocante as verdades essenciais e fundamentais da Palavra de Deus, néo ha qualquer mudanga em sua proclamacao, e nenhum som incerto tem-se emitido. Temos encontrado certa dificuldade na preparagao destas prelegées para a publicagao. Elas foram ha muito tempo pronunciadas e gravadas em fitas, de modo que em certos lugares houve dificuldade em decifrarem-se as palavras, e algumas fitas se perderam. Além disso, s6 uma pequena parte das prelecdes foi taquigrafada, ¢ assim, num ou dois casos, nao temos nem fita nem manuscrito. Afortunadamente, contudo, o Doutor guardou suas anotagées pessoais de todas as prelegdes, e assim as temos usado, embora, naturalmente, significa que esses capftulos ndo se acham téo completos quanto os demais. As fitas do Doutor sao distribuidas pelo Martyn Lloyd-Jones Recording Trust, e de todas as suas fitas o maior nimero de pedidos consiste nestas prelegdes doutrinarias. A caréncia de conhecimento das verdades vitais da fé cristé é maior agora do que antes — com certeza ainda maior agora do que na década de 1950! Portanto nossa oragao é para que Deus use e abengoe estas prelegdes novamente, para o nosso fortalecimento e para a gloria dEle. Os Editores A IGREJA Chegamos agora a sexagésima prelecao em nosso estudo das doutrinas biblicas, portanto € provavel que este seja um bom lugar para lembrar-lhes dos varios passos ¢ est4gios pelos quais ja passamos. Tendo comegado com nossa consideragao do homem neste mundo, e tendo notado a futilidade de confiarmos somente em nosso préprio entendimento, chegamos a perceber, como as pessoas tém sempre percebido, a necessidade de uma revelagdo. Deus nos deu essa revelag&o: é uma revelacao de Si proprio em Sua Palavra. Entéo, havendo considerado 0 que a Palavra nos diz sobre Deus, prosseguimos considerando o que ela nos diz sobre homens e mulheres em suas necessidades, bem como a causa de suas necessidades — a qual introduziu a doutrina do pecado. Isso conduz 4 necessidade de salvagao que consideramos na Pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo, e em seguida na aplicagao de tudo isso a nés mediante a operagéo do Espirito Santo. E assim chegamos a uma nova segao: nova simplesmente no sentido em que reconhecemos certas divisdes 4 guisa de conveniéncia do pensamento; obviamente, porém, nova em nenhum outro sentido. Além disso, devemos observar nova- mente o maravilhoso modo no qual cada uma dessas doutrinas conduz 4 préxima, de uma forma totalmente inevitavel. A verdade é uma s6 € 0 propésito de Deus é um todo, de tal maneira que, ao terminarmos de discutir uma doutrina estamos, necessariamente, nos introduzindo na préxima. Na prelecao anterior, estivemos analisando juntos 0 ensino da Biblia concernente aos dons espirituais. Consideramos como Deus concede a Igreja apéstolos e profetas, pastores e mestres, os quais possuem os dons necessdrios. E vimos que varios outros dons especiais sio concedidos ao povo cristéo, tanto dons temporarios para os primeiros cristaos quanto outros dons que sao de carater permanente e sao concedidos a todos os cristdos em todos os tempos. Em todos esses casos, porém, observamos que os dons eram concedidos a Igreja e aos membros da Igreja. E assim chegamos, por meio de uma légica inevitavel e pela forga da propria verdade, a uma consideracdo da doutrina biblica da natureza da Igreja. Ora, esta doutrina costuma ser totalmente omitida nos livros que tratam das doutrinas biblicas, embora seja dificil de se descobrir 0 porqué. Isso € muitissimo lamentavel, pois se real- mente estamos interessados em discutir as doutrinas que aparecem na prépria Biblia, entéo precisamos analisar a doutrina da Igreja. A maioria das Epistolas neotestamentarias foi escrita a uma igreja, e seu ensino se volta mais para a Igreja. Por isso nao basta considerar as doutrinas da Biblia que tratam mais de nossas necessidades e experiéncias pessoais e individuais. Grande parte do Novo Testamento nao se destinaria a verdades concernentes 4 Igreja a no ser que isso fosse algo de vital importancia. O préprio cardter das Escrituras por si mesmo nos compele a considerar esta doutrina. Outra razao, sem diivida, é a grande proeminéncia que esta doutrina ja teve na hist6ria da propria Igreja. Tomemos, por exemplo, a hist6ria da Bretanha. Distingue-se proeminente- mente toda a questao da natureza da Igreja. Notamos isso na Reforma Protestante — uma daquelas grandes questdes decisivas acerca das quais todo mundo conhece~eem tudo 0 queaconteceu no século dezessete, inclusive certos aspectos da Guerra Civil. Ora, vocés nao podem visualizar essas coisas, mesmo pelo prisma secular, sem perceber que a doutrina é muitissimo importante. Nossos pais a consideraram como algo de importancia tao vital que estavam preparados para enfrentar as maiores dificuldades e sofrer a perda de quase todas as coisas em decorréncia de sua preocupagao pela doutrina da natureza da Igreja. Para eles, ela nao era algo que pudesse ser considerado com indiferenga. Qualquer que fosse a perseguig&o, ainda com 0 risco de suas vidas, muitos deles fundaram conventiculos e insistiam em reunir-se 10 neles. Portanto, se nao tivéssemos nenhuma outra razfo para considerar esta doutrina, seriamos compelidos a estuda-la por respeito aos nomes e a grandeza de nossos antepassados distantes. As pessoas no sofreriam assim pela verdade e por uma causa se ela fosse uma questao indiferente. Eevidente que hé ainda outra razao que nos leva a considerar esta questao, e é justamente a grande proeminéncia que est4 sendo dada na atualidade a Igreja Crista em conexéo com o que é conhecido pelo nome de movimento ecuménico. Os noticidrios teligiosos dedicam grande espago a isso e esta sendo propagado pelos expoentes do ecumenismo que a fungao particular da Igreja no século vinte é chamar a atengdo para a natureza da Igreja. Portanto, se porventura quisermos entrar em discussao com tais pessoas € sermos capazes de nutrir um inteligente interesse por essas discusses, cabe-nos conhecer algo acerca desta doutrina neotestamentéria. Além disso, porém, ha uma razao que, em certo sentido, é muito mais importante do que todas as outras juntas. Suspeito que ela constitui a deficiéncia do povo evangélico, particu- larmente durante os tiltimos sessenta a setenta anos, de levar a sério o ensino biblico concernente a natureza da Igreja, o que explica a maioria dos problemas que estamos enfrentando na atualidade. Por uma raz4o ou outra, nossos pais e avés imediatos sentiam que era suficiente formar movimentos sem pensar em termos da Igreja, com 0 resultado de que o testemunho evangélico se diluiu entre as grandes denominagées e o povo cristéo evangélico s6 se reune em movimentos em vez de reunir-se em igrejas. E assim, olhando por esse prisma, isso se constitui num tema de muita importancia. Se é verdade que nutrimos profundo interesse pela mensagem evangélica e sua vital importancia no mundo atual, entéo somos compelidos a considerar a doutrina da Igreja. Uma vez introduzidos no ensino biblico concernente a natureza da Igreja, permitam-me fazer minha costumeira observa¢ao introdutéria. Este € um tema em extremo contro- vertido — praticamente tem sido assim com todas as doutrinas. ll Acaso nao tem? A histéria, porém, por si s6, assegura-nos que esta é, provavelmente, a mais controvertida de todas. E no entanto é pura covardia deixar de tratar um tema simplesmente por ser controvertido. Qualquer que tenha sido nossa educagao ou histéria; quaisquer que sejam nossos preconceitos, é preciso que tentemos avaliar, com a mente mais aberta possivel, o que as Escrituras tém a nos dizer. Que todos nés nos esforcemos em fazer isso, orando para que Deus nos livre dos preconceitos para os quais todos nos nos inclinamos. Aproximemo-nos, portanto, de algumas palavras prelimi- nares de definicdo. A primeira pergunta que devemos encarar é esta: qual éa relacdo da Igreja com o reino de Deus? Encontramos na Biblia ensino sobre o reino e ensino acerca da Igreja. Ha entre 0s cristdos, com freqiténcia, muita confusdo acerca desses dois assuntos. Isso se deve grandemente ao fato de como a igreja catélica romana identifica os dois. No ensino catélico-romano, a Igreja é o reino de Deus, e os catélicos romanos sao absolutamente coerentes na maneira como resolvem isso, teivindicando o direito de governar e dominar toda a vida das pessoas em todos os seus aspectos. Vocés se lembram como, na Idade Média, a igreja romana costumava governar 0s reis, os senhores, os principes, as provincias e as autoridades com base na alegacdo de que ela era o reino de Deus, de que ela era suprema. E tal idéia tende, em certa medida, a persistir. Por isso temos de ser claros sobre a relacdo entre Igreja e reino. O que € 0 reino de Deus? Ele é melhor definido como o governo de Deus. O reino de Deus esta presente onde quer que Deus esteja reinando. Eis a raz4o por que nosso Senhor podia dizer que, em virtude de Sua atividade e Suas obras, “o reino de Deus esta dentro de vés” (Luc. 17:21). Disse ainda: “Mas, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os deménios, logo é chegado a vés 0 reino de Deus” (Luc. 11:20). Portanto, se considerarmos 0 reino de Deus como 0 governo e o reinado de Deus, entdo 0 reino esteve aqui quando nosso Senhor esteve aqui pessoalmente. Ele est4 presente onde quer que o Senhor Jesus Cristo é reconhecido como Senhor. O reino vird, porém, com maior 12 plenitude quando tudo e todos tiverem reconhecido Seu senhorio. E assim podemos dizer que 0 reino ja veio, o reino est4 entre nos e o reino ainda esta por vir. Qual, pois, é a relagao da Igreja com o reino? Seguramente é esta: a Igreja é uma expresso do reino, mas nao deve ser equiparada a ele. O reino de Deus é mais amplo e mais poderoso que a Igreja. Na Igreja, onde ela é verdadeiramente a Igreja, 0 senhorio de Cristo é reconhecido e confessado e Ele habita ali. Portanto, o reino esté ali nesse sentido. E assim a Igreja é uma parte do reino, mas apenas uma parte. O reino de Deus é muito mais amplo do que a Igreja. Deus governa em regides além da Igreja, em regides onde Ele nao € reconhecido, porquanto todas as coisas estao em Suas maos e a historia esté em Suas mos. Por isso a Igreja nao é co-extensiva com o Reino. Examinemos agora alguns dos termos que sao usados. A palavra grega que se traduz para “igreja” é 0 termo ekklesia, e ekklesia significa “aqueles que sao chamados”, nao necessaria- mente chamados do mundo, mas chamados da sociedade para alguma fung4o ou propésito particular; so “chamados conjuntamente”. Podemos traduzir ekklesia pela palavra “assembléia”. Se vocés lerem o relato em Atos, capitulo 19, sobre a extraordinéria reuniao que se deu na cidade de Efeso, reuniao que quase se transformou em motim, descobrirao que 0 secretario municipal da cidade a denominou de uma assembléia, uma ekklesia, pela qual ele quiz dizer que certo ntimero de pessoas se reuniram conjuntamente. Da mesma forma, em seu discurso em Atos, capitulo 7, Estévao refere-se a Moisés como estando “na igreja no deserto” (v.38). E assim os filhos de Israel eram uma igreja, um ajuntamento, uma assembléia do povo de Deus. Eraa ekklesia, a igreja do Velho Testamento. Esse € 0 significado fundamental da palavra “igreja”. Ora, nossa palavra “igreja”, e todos os termos e nomes cognatos, inclui um significado ligeiramente diferente. Usamos a palavra para significar que pertencemos ao Senhor. Nossa palavra “igreja” vem da palavra grega kurios, que significa “senhor” — tem a mesma derivagéo das palavras Imperador e 13 César. E importante termos isso em mente, visto que devemos manter estes dois significados juntos: a Igreja consiste daqueles que pertencem ao Senhor, que se retinem conjuntamente. Avancemos, porém, mais um passo, Analisemos algumas afirmacédes que as Escrituras fazem sobre a Igreja, e que sio realmente importantes. Na Biblia, a palavra ekklesia, quando aplicada aos cristaos, geralmente se usa em referéncia a um local de reuniao. A distingdo que ora faco é quanto a diferenga entre a Igreja considerada como uma idéia geral e a igreja considerada como idéia de localidade e particularidade. O termo que é quase invariavelmente usado nas Escrituras inclui este sentido de localidade. Por exemplo, em Romanos, capitulo 16, quando Paulo envia suas saudacées a Aquila e Priscila, ele faz uma referéncia a “a igreja que esta na casa deles” (v.5). Um grupo de cristaos se reunia na casa de Aquila e Priscila, e o apdstolo Paulo nao hesita em chamar de igreja aquele local de reuniao. Ele nao esta pensando em termos da idéia moderna ecuménica, segundo a qual a Igreja é o grande elemento. Em seguida, Paulo também enderega sua Epistola, por exemplo, “a igreja de Deus que esté em Corinto”. Ele escreve a Epistola aos Galatas “as igrejas da Galacia” (Gal. 1:12), nao “a Igreja da Galacia”. Paulo nao esté pensando numa s6 unidade dividida em ramos locais, mas nas igrejas, um grupo dessas unidades, na Galacia. Esta € uma questéo muitissimo significativa e importante. Ora, se vocés percorrerem as Escrituras, descobrirao ser esse 0 método apostdélico comum de lidar com 0 tema. Temos, porém, que observar que ha dois ou trés exemplos em que a palavra “igreja” € usada em vez de “igrejas”, e um deles é bastante interessante. Ele se encontra em Atos 9:31. HA certa diferenga aqui entre a Authorised (King James) Version e a Revised Version. A Authorised Version tem a redagao: “Entao as igrejas tinham descanso por toda a Judéia, a Galiléia e a Samaria, e eram edificadas.” A Revised Version, porém, traz o singular, “igreja”, e esta € indubitavelmente a melhor traducdo. Sim, mas mesmo assim devemos lembrar-nos que a referéncia é quase com 14 toda certeza aos membros da igreja em Jerusalém que haviam sido espalhados por toda parte em decorréncia da perseguigao. Portanto é provavel que Lucas nao estivesse se referindo a idéia de “a Igreja” como diferente de “as igrejas”, mas estivesse pensando numa sé igreja dispersa por varias regides e em paz. Entretanto, este nao é um ponto vital. Além disso, lemos em 1 Corintios 12:28: “E a uns pés Deus na igreja, primeiramente ap6stolos, e em segundo lugar profetas”. Paulo nao diz que Deus os pds “nas igrejas”, e, sim, “na igreja”. Ha ainda outra forma na qual se usa o termo “igreja”. Em certas passagens, como aquelas grandes passagens na Epistola aos Efésios, Paulo esté obviamente pensando na Igreja como incluindo nao sé os que estdo na terra, porém também os que est4o no céu. No final do primeiro capitulo, ele diz: “E sujeitou todas as coisas debaixo dos seus pés, e para ser cabeca sobre todas as coisas o deu 4 igreja, que é 0 seu corpo, o complemento daquele que cumpre tudo em todas as coisas” (Ef. 1:22,23). Semelhantemente, em outra parte da Epistola, ele diz: “Para que agora a multiforme sabedoria de Deus seja manifestada, por meio da igreja, aos principados e potestades nas regides celestiais” (3:10). E Paulo escreve a mesma coisa também em Efésios 5:23-32. Até aqui, pois, vimos que, geralmente falando, o termo ekklesia € usado no plural, e os escritores estio obviamente pensando nas igrejas individuais; nuns poucos exemplos, porém, ha uma concepgio mais ampla em que se usa o termo “a Igreja”. E em seguida devemos analisar os varios quadros ou ilustragdes que sao usadas a fim de ensinar a doutrina concer- nente 4 Igreja, e ha um bom numero delas muito interessantes. A primeira é a analogia de um corpo. Em diversas das Epistolas neotestamentarias somos informados que a Igreja é 0 “corpo de Cristo”. O classico exemplo, sem diivida, esté em 1 Corintios, capitulo 12, mas o encontramos também em Romanos, capitulo 12, em Efésios, capitulo 4, e noutros lugares. Outro quadro é 0 da Igreja como um templo ou como um edificio, onde o apéstolo se compara com um sdbio construtor 15 (1 Cor. 3:10). Em Efésios 2:20 ele fala da Igreja sendo edificada sobre o fundamento dos apéstolos e profetas; portanto ele pensa nela ali como um edificio que esté sendo erigido. Em Ef€sios, capitulo 5, Paulo se refere a Igreja como a noiva de Cristo, e essa imagem reaparece no livro do Apocalipse. Ainda outro conceito é aquele de um império. Em Efésios, capitulo 2, Paulo fala de nés como “concidadaos dos santos e da familia de Deus” (v.19). Essa, obviamente, foi uma analogia que de repente surgiu na mente do apéstolo. Provavelmente ja fosse um prisioneiro em Roma no tempo em que escreveu essa Epistola, e estivesse pensando nesse admiravel Império Romano. Ele sentia que havia algo no Império que era andlogo a Igreja, com todas as partes dispersas e ainda com uma unidade central. Fazendo uso de outro termo, podemos falar, como se tem feito ao longo de todos os séculos, da “Igreja militante” e da “Tgreja triunfante” (a Igreja terrena esta lutando por sua vida, pela doutrina e por cada elemento) a Igreja que se encontra além do véu, jubilosa e triunfante. Tomem, por exemplo, a grandiosa forma na qual isso é expresso em Hebreus 12:22-24. E assim, tomando todas essas idéias juntas, que conclusao tiramos? Obviamente, a Igreja é espiritual e invisivel. Todos os exemplos que tenho lhes apresentado da palavra empregada no singular pressupdem algo que nao pode ser visto, mas que possui uma realidade como entidade espiritual. Ao mesmo tempo, porém, a Igreja é também visivel e pode ser vista externamente ¢ pode ser descrita como existindo em Corinto, em Roma ou em algum outro lugar particular. E muito importante que tenhamos em mente essas duas coisas. O invisivel tem suas manifestagées locais. Uma boa analogia aqui € a alma. Nao podemos ver as almas humanas, mas sabemos que cada pessoa possui uma alma e expressa esse fato através do corpo, através do comportamento e da vida, o invisivel manifestando-se através do visivel. E isso € obviamente verdadeiro no que tange a Igreja Crista. Além das igrejas locais ha aquilo que se chama a Igreja. O corpo de Cristo € uma entidade, é algo real e vivo. 16 E muito importante que delineemos essas distingdes para que, a luz do que tenho dito, eu possa prosseguir e acrescentar 0 seguinte: ninguém pode ser cristéo sem ser membro da Igreja espiritual ¢ invisivel. E impossivel. Todos os cristios sio mem- bros do corpo de Cristo. No entanto, é possivel ser membro da Igreja sem ser membro de uma parte visivel da Igreja~ embora devesse ser. Alguém pode estar numa sem estar na outra. E possivel igualmente ser membro da Igreja visivel, de sua manifestagao externa, € néo ser membro da Igreja invisivel, espiritual. E assim vocés podem ver como é muito importante essa disting&o biblica entre Igreja universal, que € Seu corpo, e suas manifestacoes visiveis ¢ locais. Portanto, em resumo: o sentido usual de “igreja” apresentado nas Escrituras é de um local de encontro dos santos onde sao reconhecidos a presenga e o senhorio de Cristo, Além de tudo isso, porém, nas igrejas locais, todas as pessoas que realmente nasceram de novo e s4o espirituais, sao também membros da Igreja espiritual invisivel, o genuino corpo de Cristo. Como j4 disse, isso é algo de grande importancia caso queiramos entender a presente discussao sobre a Igreja. E assim chegamos 4 préxima questao referente 4 unidade da Igreja. E este € o grande tema de hoje. Com toda seguranga, aqui se pode dizer certas coisas sem qualquer receio de contradicao. Se é para sermos guiados pelo ensino biblico, entéo devemos concordar prontamente que a unidade com a qual as Escrituras se preocupam é a unidade espiritual. O décimo-sétimo capitulo do Evangelho de Joao é com freqiiéncia citado equivocadamente! As pessoas simplesmente retiram uma frase de seu contexto. Dizem, citando o versiculo 21: “Para que todos sejam um”, e ficam nisso. Insistem também que diviséo na Igreja é o maior de todos os pecados. Ora, por certo que todos nés concordamos que divisio € algo deploravel; cisma é certamente pecado. Entretanto, quando interpretamos isso no sentido em que todo aquele que se chama cristao, nao importa qual a condi¢aéo ou forma, é alguém com quem devemos manter unido absoluta em todos os aspectos, 17 ent4o isso €é uma contradi¢éo do que Jodo, capitulo 17, ensina. Certamente, Jodo, capitulo 17, faz o carater dessa unidade muito simples e claro. Os termos de nosso Senhor so estes: “Para que todos sejam um; assim como tu, 6 Pai, és em mim, e eu em ti, que também eles sejam um em nds ... E eu lhes dei a gloria que a mim me deste, para que sejam um, como nés somos um” (vv. 21,22). Isso € totalmente espiritual. Nosso Senhor esta falando da relagao entre o Pai e o Filho e os que estao em Cristo, 08 quais estao no Pai e no Filho, e Ele j4 nos disse certas coisas sobre essas pessoas. Diz Ele: “Porque eu lhes dei as palavras que tu me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que sai de ti, e creram que tu me enviaste” (v.8). Por isso as palavras de nosso Senhor acerca da unidade sao aplicdveis unicamente as pessoas que créem nessa doutrina particular; e se alguém me diz que é cristdo, porém diz que Jesus era unicamente homem, entao eu nao tenho nenhuma unigo com ele. Nao pertengo ao mesmo grupo dele. Pode chamar-se de cristao, mas se n4o creu nem aceitou isso, no existe nenhuma base para a unidade. A unidade é de carater espiritual. Também em Efésios 4:3 Paulo fala acerca de “a unidade do Espirito no vinculo da paz”. Aquele grande capitulo 12 de 1 Corintios apresenta a mesma questao. Para a analogia do corpo ser absolutamente correta, deve haver uma unidade essencial, organica e espiritual. As partes nio podem funcionar em harmonia se nao se pertencerem reciprocamente, se nao tiverem em si a mesma vida, se o mesmo sangue nAo fluir através delas. Ainda em Efésios, Paulo diz: “Porque por ele ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espirito” (2:18). Portanto, o primeiro ponto que deve receber énfase é 0 Espirito. A unidade é espiritual. Nao é uma mera uniao biolégica de uma porgao de organismos nem um mero consentimento formal. Tampouco é uma liga de pessoas que divergem, mas que se uniram em favor de algum propésito comum. Isso nao é o que encontramos nas Escrituras. Esta unidade é algo mistico, algo espiritual; é vital; é uma comunidade cheia de vida. O segundo principio, porém, é igualmente claro nas 18 Escrituras, a saber: que essa unidade deve basear-se na doutrina; deve ser doutrinal. J4 lhes mostrei isso 4 luz de Joao, capitulo 17. Diz nosso Senhor: “Agora sabem que tudo quanto me deste provém de ti; porque eu hes dei as palavras que tu me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saf de ti, €creram que tu me enviaste” (Joao 17:7,8). Ora, as “palavras” as quais nosso Senhor Se referiu significam as palavras sobre ser Ele o unigénito Filho de Deus. Sao palavras acerca da encarnacio, acerca da Palavra que Se fez carne. Sao palavras nas quais Ele alega: “Antes que Abraio existisse, eu sou” (Jodo 8:58). SAo palavras que ensinam Sua miraculosa vinda ao mundo, Seu nascimento virginal. Referem-se aos Seus milagres, porque Ele mesmo faz referéncia a Seus milagres (Jodo 14:11), ao sobre- natural, ao propésito de Sua morte — dando Sua vida em resgate por muitos (Mat. 20:28) - e as palavras que Ele falou acerca da Pessoa do Espirito Santo, e assim por diante. E no entanto exige- -se que entremos em alguma grande uniao com pessoas que negam Sua deidade singular, as quais nao créem que Ele é 0 unigénito Filho de Deus, nao créem no Seu nascimento virginal e néo créem que Ele tenha alguma vez operado milagre — dizem que milagres sao impossiveis e que nao passam de folclore. Tais pessoas nao créem na expiacao substitutiva nem na Pessoa do Espirito Santo. Destacam bem esta afirmagao: “as trés Pessoas sao uma s6”, e ignoram todo este rico ensino doutrinal precedente. Falar de unidade com tais pessoas nada mais é que uma negac4o de Joao, capitulo 17. Joao, capitulo 17, porém, nao é 0 tinico exemplo desta verdade de que a unidade deve ser baseada na doutrina. Em Atos 2:42 somos informados que imediatamente apés o dia de Pentecoste, “perseveravam na doutrina dos apéstolos e na comunhao, no partir do pao e nas oragées”. As Escrituras sao verbalmente inspiradas. As palavras tém valor; o lugar e a posicio das palavras num versiculo sao de tremenda importancia. Nao nos é dito que os primeiros crentes perseveravam firmemente na comunhdo e na doutrina dos apéstolos. Nao! Perseveravam na doutrina e na comunhio dos apéstolos, no partir do pao e nas 19 oragdes. Noutros termos, antes que possa haver comunhao é preciso haver aceitacéo geral da doutrina. A comunhao tem por base a mesma f€, a mesma verdade, o mesmo discernimento. Se vocé pretende uma coisa ao falar de Cristo, e outra pessoa pretende outra coisa, seria possivel vocés terem comunhio real? Como seria possivel vocés irem a Deus através da mesma Pessoa, se uma pessoa cré que Ela é simplesmente homem, ¢ a outra diz: “Nao, nao, essa Pessoa é a substancia eterna que Se fez carne”? E preciso que haja a unidade de crenga, do contrario vocé se sentir4 pesaroso acerca da outra pessoa e cheio de dtivida quanto ao que ela pretende com seus termos. Atos 2:42 tem a doutrina dos apéstolos, em seguida a comunhao; hoje, porém, a comunhao € posta em primeiro lugar. Diz-se: “Cheguemos todos a um acordo. Entao podemos decidir sobre questées de fé”. Nos, porém, nao podemos ter comunhfo 4 parte desta unidade de doutrina. Hé ainda uma declaragao muito forte na Segunda Epistola de Joao: “Se alguém vem ter convosco, e nao traz este ensino, nao o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem o satida participa de suas mas obras” (2 Jo4o 10,11). Isso procede de Joao, o apéstolo do amor. A importancia que ele atribui 4 doutrina e& verdade é tao grande que na verdade ele esta dizendo: “Vocés nao devem receber um homem em sua casa, porque, se 0 fizerem, estarao estimulando-o. Se lhe derem comida e 0 despedirem em sua viagem, estarao estimulando sua falsa doutrina. Nao fagam isso”. Ese vocés lerem a Primeira Epistola de Joao, entio descobrirao que toda a sua preocupacio gira em torno da mesma coisa. Havia determinadas pessoas, diz ele, esses anticristos e seus seguidores, que “safiram de nosso meio”. Estavam entre nds, mas se foram. Evidentemente nado eram dos nossos (] Joao 2:19), Lembrem-se que essa € uma questao de doutrina, e que doutrina é essencial e vital 4 genuina comunhio. Portanto, quando estivermos discutindo a questo da unidade da ‘Igreja, € preciso que coloquemos nas primeiras posigées 0 carater espiritual e doutrinal da unidade. Nunca é coisa dificil 20 reunir um grupo de pessoas que nado créem em nada em par- ticular. Isso, porém, nao é unidade. Unidade é algo positivo. Nao €86 0 caso de pessoas se reunirem, visto que ninguém se preocupa muito com o que é dito ou crido. Unidade é uma vida, é um poder, é um entusiasmo. E 0 povo unido que se junta pelo que tem em comum. Isso é supremamente verdadeiro na Igreja de Deus. - Se vocés retrocederem ao Jongo da histéria da Igreja, descobrirao que ela amitide tem sido mais valiosa e mais usada por Deus quando tem havido apenas um punhado de pessoas que concordavam em espirito e em doutrina. Deus as tomou e as usou e fez algo poderoso através delas. Quando, porém, havia apenas uma Igreja em toda a Europa ocidental, que rumo ela tomou? A Era das Trevas. E no entanto, parece-me que essa grande licdo da histéria est4 sendo inteiramente esquecida ¢ ignorada neste tempo presente. Digo essas coisas, nao porque me sinto animado pelo espirito de controvérsia, mas porque sinto zelo pela verdade como a encontro nas Escrituras, e considero algo trégico notar como as Escrituras estéo sendo deturpadas e pervertidas no interesse de uma unidade que nao é unidade nenhuma. Finalmente, qual € a relagéo da Igreja com o Estado? Aqui, uma vez mais, esté um assunto extremamente controvertido, A idéia catélico-romana sempre foi que a Igreja é 0 Estado e controla tudo no Estado e, como lembrei-lhes no inicio, essa igreja sempre fez isso. No extremo oposto est4 o assim chamado ponto de vista “erastiano”, uma idéia inicialmente proposta por um homem chamado Erasto, 0 qual, lamento dizer, foi médico. Sinto o dever, em alguma ocasiao, de apresentar-lhes a histéria das desditosas intervengdes de médicos na histéria doutrinal da Igreja! Erasto, infelizmente, foi o homem que deu origem 4 perniciosa doutrina de que a Igreja é um ramo do Estado. Ora, esse é, naturalmente, o ponto de vista na Inglaterra com respeito A Igreja Anglicana. A Igreja da Inglaterra é erastiana, e a maioria das Igrejas Luteranas defende a mesma posigao. A Igreja Luterana na 21 Alemanha era erastiana, e creio que um bom argumento pode ser estabelecido, dizendo que, provavelmente, jamais teriamos ouvido a respeito de Hitler, ndo fosse o erastianismo da Igreja Luterana na Alemanha. Entretanto, esse é um ponto passivel de debate. O erastianismo, reitero, é a crenca de que a Igreja €é uma espécie de departamento do Estado, e que ela é administrada e governada pelo Estado, de forma que a cabega do Estado designa bispos e outros dignitarios ¢ funciondrios da Igreja. Na Inglaterra, em 1928, houve uma grande controvérsia na Casa dos Comuns sobre a proposta de um novo Livro de Oragao. A Igreja decidiu té-lo, porém o Parlamento tinha poder para indeferi-lo. Talvez vocés digam que foi algo muito bom que o Parlamento possuisse tal autoridade! De um ponto de vista, sim, mas olhando por outro prisma, nao, pois isso constitui uma espada que pode cortar de ambos os lados. Em 1928 deu certo, no entanto, o que dizer se 0 Parlamento de repente decidisse agir erroneamente? Nao nos esquecamos de que ele ainda tem o poder de agir assim. Eis, pois, os pontos de vista catélico-romano e erastiano da Igreja e do Estado. Mas contra estes sem diivida devemos concordat, se percorrermos cuidadosamente as Escrituras, que ha um terceiro ponto de vista que pode ser descrito como “os dois Estados”. As pessoas que defendem este ponto de vista créem que Deus é dono de tudo. Deus é 0 Senhor do universo, tanto quanto o Senhor da Igreja. Deus ordenou o Estado. Diz Paulo: “Porque néo ha autoridade que nao venha de Deus; e as que existem foram ordenadas por Deus” (Rom. 13:1). Os magistrados e outros tipos de governantes nao foram instituidos pelo homem, mas por Deus. Sim, porém ha este outro Estado, a Igreja, e os dois existem lado a lado. Um nfo controla 0 outro. Ambos sao separados e ambos se acham sujeitos a Deus. Esse, sugiro-lhes, € o quadro apresentado pelo Novo Testamento. Nao existe qualquer indicagao de algo vindo de algum lugar que se assemelhe a uma Igreja-Estado. Os primeiros crentes eram independentes dos governos. Reuniam-se sob 0 senhorio e na presenca de Cristo. De fora estava o grande Estado 22 ao qual pertenciam. Embora permanecessem cidadaos desse Estado, haviam entrado numa esfera que, em certo sentido, nao tinha absolutamente nada a ver com o Estado. E pelos séculos a fora esse tem sido o ponto de vista reformado da relagdo entre 0 Estado e a Igreja. Precisamente da mesma forma, nado podemos encontrar nas Escrituras tal coisa como Igreja “nacional”, sendo precisamente o inverso. Paulo escreve: “Onde nao ha grego nem judeu, circunciséo nem incircuncisdo, barbaro, cita, escravo ou livre, mas Cristo é tudo em todos” (Col. 3:11). A Igreja é algo diferente, éconstituida daqueles que nasceram de novo e tém vida espiritual, os quais sao, como j4 vimos, membros do corpo mistico de Cristo ese retinem em sua assembléia local — igreja - chame-a do que vocés quiserem, com Cristo como cabeca. Diferengas de nacio- nalidade, juntamente com distingdes sociais e raciais, s40 irrelevantes e jamais devem ser mencionadas em conexéo com a Igreja. Acrescentar tais qualificagées é seguramente fazer-se culpados de algo que nao é biblico. A Igreja é, nesse sentido, una, € seu povo € 0 mesmo em todos os lugares. Sabemos historicamente como as igrejas nacionais tém surgido em varios paises. Se estivermos, porém, preocupados com 0 conceito biblico, entao repito que eu, pessoalmente, nao consigo encontrar nada correspondente a tal condicdo referida em algum lugar nas paginas das Escrituras. Nao é argumento valido dizer que a nacao de Israel era a Igreja do Velho Testa- mento. Esse era 0 caso naquele tempo; agora, porém, disse Cristo aos judeus: “Portanto eu vos digo que vos serd tirado 0 reino de Deus, e serd dado a um povo que dé 0s seus frutos” (Mat. 21:43). Portanto, 0 que fica? Ea Igreja, como Pedro nos comprova no capitulo 2 de sua Primeira Epistola, onde aplica a Igreja as palavras que foram ditas a nagao de Israel. A Igreja é agora supra-nacional; ela tem o seu povo em todas as nagées. Ela € constituida pelo redimidos de Deus que vivem na terra em varias condigdes, mas que séo também cidaddos daquele reino que nao é deste mundo. 23 2 AS MARCAS E GOVERNO DA IGREJA Nosso préximo tema, ao continuarmos com a doutrina da Igreja, 6 o que geralmente se chama as marcas da Igreja, ou as caracteristicas da Igreja. Para qué a Igreja existe aqui? O que ela faz quando demonstra que é a Igreja? Eis ai uma importante pergunta, e varias respostas tém sido proferidas. Oensino protestante comum é que ha trés marcas principais da Igreja. A primeira é a pregacéo da Palavra. Essa é a tarefa principal da Igreja Crista: ela foi criada e chamada a existéncia para esse propésito. A pregacéo da Palavra é efetuada em dois aspectos principais. A Palavra é pregada na Igreja para edificar e estabelecer os santos, os crentes. Eles se reunem, como vimos, paraacomunhio. A Igreja éa comunhao daqueles que sao crentes em Cristo e confessam Sua lideranga e Seu senhorio, e a Palavra € pregada a fim de que sejam fortalecidos na fé. As Epistolas do Novo Testamento foram escritas para os crentes com esse objetivo especifico em vista, e os apéstolos os profetas tinham o mesmo propésito em sua pregacao. Quando homens e mulheres foram convertidos, isso era apenas 0 come¢o. Nasciam como criancinhas em Cristo, e careciam de instrugao; careciam de ser advertidos contra 0 erro e protegidos contra a heresia. Por isso a Igreja é essencial aos crentes. O segundo objetivo da pregagao é sem diivida a evangeli- zacao. E a tarefa especifica da Igreja Cristi pregar aos que nao sao crentes. Nosso Senhor, em Sua oragdo sacerdotal em Joao, capitulo 17, diz bem especificamente que, como o Pai O enviara ao mundo, assim também Ele estava enviando Seus seguidores imediatos e os que creriam nEle através deles. Eram enviados ao mundo como Ele fora. Ele veio trazendo a mensagem do reino, 24 € nds somos enviados portando a mesma mensagem. Faz parte da obra da Igreja pregar o evangelho aos que sao de fora a fim de que sejam convencidos e convictos do seu pecado, e para que sejam guiados a uma fé viva ¢ vital em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Essa, pois, éa primeira marca da Igreja—a pregacao da Palavra. A segunda marca e caracteristica da Igreja é a genuina administragao das ordenancas. Nao me deterei aqui agora porque pretendo tratar da doutrina das ordenangas em seu proprio lugar. Devo, porém, mencionar o assunto agora, visto ser ele uma das marcas da Igreja. A Igreja é um lugar onde as ordenancas sao correta e genuinamente administradas em conex4éo com a pregacdo da Palavra. A terceira marca da Igreja, aquela a que anseio mais enfa- tizar, uma vez que é téo lamentavelmente negligenciada, é 0 exercicio da disciplina. Ora, se tivéssemos perguntado no inicio: “Quais so as trés marcas essenciais da Igreja?”, fico pensando quantos teriam mencionado 0 exercicio da disciplina? Nao haa menor diivida de que esta doutrina é gravemente negligenciada. Alias, se me fosse pedido que explicasse por que as coisas sao como sao na Igreja; se me fosse pedido que explicasse por que a estatistica revela os ntimeros decrescentes, a falta de poder ¢ a falta de influéncia sobre homens e mulheres; se me fosse pedido que explicasse a raz4o de tantas igrejas parecerem incapazes de sustentar a causa sem recorrerem a jogos, dangas e coisas semelhantes; se me fosse pedido que explicasse por que a Igreja se acha em condig&o tao lamentavel, minha resposta teria de ser que a causa principal é a falha de exercer a disciplina. . Quando foi que vocés ouviram pela dltima vez uma referéncia feita de um ptlpito cristéo sobre o tema da disciplina? Quantas vezes vocés tém ouvido sermées ou discursos sobre o assunto? O termo ja foi quase riscado completamente da existéncia, e o que ele significa e representa j4 caiu no desuso. E, infelizmente, nao é sé a disciplina que € negligenciada, mas ha um grande ntiimero de pessoas que até mesmo tentariam justificar a negligéncia, e é por causa disso que quero tratar 25 detalhadamente do assunto. Ora, € com base biblica que sugiro que a disciplina deve ser exercida. Tomemos a passagem de Mateus, capitulo 18, comegando com o versiculo 15: “Ora, se teu irméo pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele s6; se te ouvir, ter4s ganho teu irm4o; mas se nao te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou trés testemunhas toda palavra seja confirmada. Se recusar ouvi-los, dize-o a igreja; e, se também recusar ouvir a igreja, considera-o gentio e publicano” (vv. 15-17). Essas sfo palavras de nosso proprio Senhor. Semelhantemente, em Romanos 16:17 lemos: “Rogo-vos, irmaos, que noteis os que promovem dissensdes e escandalos contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos deles”. A disciplina € o tema de todo o capitulo 5 de 1 Corfntios, que termina com estas palavras: “Tirai esse iniquo do meio de vés”. Nada pode ser mais explicito que isso. Vemo-la novamente em 2 Corintios, capitulo 2, especialmente os versiculos 5 a 10, onde Paulo fala sobre receber de volta uma pessoa que havia sido disciplinada; e também em 2 Tessalonicenses, capitulo 3, onde ele dé instrugées quanto ao que se deve fazer com membros de igreja que vivem de maneira desordenada. Entao em Tito 3:10 ha esta ordem explicita: “Ao homem faccioso, depois da primeira e segunda admoestagao, evita-o”. Como vimos na prelecdo anterior, este ensino também se encontra em 2 Joao, versiculo 10. E € natural que nas varias cartas As igrejas individuais no livro do Apocalipse haja exortagdes sobre o exercicio da disciplina. Apesar disso, porém, ha os que amitide tentam justificar a auséncia ou a falta de disciplina na igreja local; e, estranhamente, muitos agem assim com base na parabola do joio em Mateus, capitulo 13. “Vocé nao deve disciplinar os cristéos”, eles dizem. “Se tentar exercer a disciplina, e puser as pessoas para fora da igreja, vocé estard violando as instrugées de nosso préprio Senhor, pois quando os servos disseram: “Queres, pois, que vamos arranca-lo?”, o Mestre disse: “No, para que, ao colher o joio, n4o arranqueis com ele também o trigo. Deixai crescer 26 ambos juntos até a ceifa.” Além do mais, exatamente pelas mesmas razées, alguns contestam qualquer separacio do povo cristéo de uma igreja que possa ser considerada apéstata. Essa, porém, é uma grave e ma interpretacao das Escrituras, uma vez que a parabola do joio obviamente n4o se refere a Igreja, ¢ sim, ao reino. Todas as paraébolas de Mateus, capitulo 13 sao parabolas do reino, eé bom que vocés se lembrem que na prelegao anterior enfatizei que a Igreja e 0 reino n4o sao idénticos. A Igreja é uma express4o do reino; 0 reino, porém, é maior que a Igreja. E, por certo, nosso préprio Senhor diz explicitamente, em Sua interpretacdo particular desta parabola, que o campo no qual o trigo ¢ 0 joio sao semeados nao é a Igreja, e, sim, o mundo (Mat. 13:38). A boa semente sao os filhos do reino, mas 0 joio sdo os filhos do maligno. Portanto, a parabola do joio néo tem relagéo nenhuma com a questao da disciplina no seio da igreja local. Ela constitui um quadro do mundo inteiro que, uma vez que o mesmo pertence a Deus, pode, nesse sentido geral, ser considerado como sendo Seu reino. No bojo do mundo, porém, ha dois grupos — os que sao cristaos, os quais pertencem ao reino eterno, € os que pertencem ao diabo. Aplicar a parabola do joio a Igreja é, com toda certeza, cair no mesmo erro dos catélicos romanos; e € um erro no qual a maioria das igrejas que seguem essa igreja tem também se inclinado a cair. Eis por que, em certo sentido, nao ha disciplina na igreja catélica romana. Razao por que se torna possivel que pessoas sejam consideradas cristés perfeitamente boas, mesmo quando suas vidas sao dissolutas. Nao sao disciplinados; nao sao postos para fora da igreja. E, de fato, a mesma coisa é verdade com respeito a Igreja Anglicana. A Igreja Anglicana, também port causa da viséo que tem de si mesma, nao cré que deva disciplinar 0 membro individual. A imagem da Igreja, porém, que apresentamos na prelegao anterior, exige que haja disciplina. Além do mais, como jé vimos, a pratica da disciplina é algo acerca do qual somos exortados reiterada e veementemente nas préprias Escrituras. Ora, a disciplina deve ser exercida por duas formas princi- 27 pais. Antes de tudo, deve-se exercé-la em relagdo 4 doutrina. Lemos: “O homem faccioso, depois da primeira e segunda admoestagao, evita-o” (Tito 3:10). O apéstolo Joao diz que, se um homem nfo trouxer a verdadeira doutrina, ele nao deve ser de forma alguma recebido, nem mesmo em casa, muito menos na igreja. Deixem-me tornar isso bem claro. Isso nao significa que os cristéos nunca devam admitir um incrédulo em sua casa. Por certo que nao significa nada disso! O que significa é que, se um homem que alega nao sé ser cristéo, mas também mestre, est4 ensinando erro, com certeza vocés nao devem recebé-Jo em suas casas. E claro, porém, que vocés recebem o incrédulo em suas casas para que possam falar-lhe das verdades cristas. Paulo expressa isso perfeitamente em 1 Corintios 5:11, onde, por assim dizer, ele diz: “Em todas estas questées de disciplina, nao estou me referindo Aqueles que estao 14 fora no mundo, pois se vocés vao separar-se de todos desse tipo, significaria que teriam de sair totalmente do mundo! Nao. Nao estou dizendo isso, porém eu digo que se um homem que é um irmdo for culpado dessas coisas, entéo nao devem conviver com ele”. Portanto o Novo Testamento nos diz que realmente devemos estar preocupados pela doutrina na Igreja, e que devemos fazer algo acerca da falsa doutrina. E creio que toda a situagao com que nos defrontamos hoje é prova abundante das terriveis conseqiiéncias de ndo exercer a disciplina com respeito a doutrina. Nao hesito em asseverar que nossos avés e bisavés do século dezenove nao exerceram a disciplina que deveriam ter exercido quando a fatal Alta Critica comecou a chegar aqui, vinda da Alemanha. Foi em decorréncia de nao terem disciplinado as pessoas que creram e ensinaram tais coisas que estamos enfrentando a presente situagéo. Com equivocada tolerancia e, freqiientemente, com uma falsa compreensao do ensino da parabola do joio, permitiram entrar esse ensino erréneo, esperando que as coisas logo melhorassem; e falaram em manter um testemunho positivo e nao negativo! Nesta atual geraco, estamos acumulando as conseqiiéncias dessa tragica falacia por parte dos lideres da Igreja. 28 Devemos, pois, exercer disciplina no tocante a doutrina, e devemos igualmente exercé-la no tocante 4 vida e a maneira de viver porque, se os membros da Igreja Crista forem negadores da doutrina dela em suas vidas e em sua pratica, quem ira crer nela? Sera a negagdo das palavras de nosso Senhor: “Para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que esta nos céus” (Mat. 5:16). Inconsisténcia ou vida pecaminosa por parte de um crente faz incalculavel dano & causa de Cristo. Nao importa quao ortodoxas sejam tais pessoas, se nao estado controlando e disciplinando seu temperamento, seus desejos, suas paixGes, suas Juxtrias, estao, em palavra e acaéo, negando a fé que pregam, e se tornam um obstaculo ec um escdndalo aos que sao de fora. Oensino biblico consiste em que, se um irm4o desobediente nao se corrige nem atenta para a corregdo, entdo precisa realmente ser afastado da igreja. E preciso “entrega-lo a satands”, frase usada por Paulo, “para a destruicao da carne, a fim de que 0 espirito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (1 Cor. 5:15). Nao sei exatamente 0 que isso significa, mas provavelmente signi- fique algo mais ou menos assim: vocés nao sé o eliminam do rol de membros, mas param de orar por ele. Vocés 0 cedem a satanas, por assim dizer, e satands o fara sofrer, provavelmente em seu corpo. Ele se tornar4 ignébil e miseravel, o que poderd despertar seus sentidos e salvar sua alma. Este é um assunto importante. Leiam a histéria da Igreja em qualquer época de reavivamento e despertamento — n4o importa quando — e descobrirao que, invariavelmente, uma notavel caracteristica de tal época € 0 exercicio da disciplina. Leiam, por exemplo, sobre Joéo Wesley. Se j4 houve um disciplinador na Igreja, foi esse homem! Em seu Journals, ele registra que em determinada ocasido saiu para visitar uma igreja — certas reuniées em Dublin - e quando chegou 1a, encontrou cerca de seiscentas pessoas. Entaéo comegou a examinar os membros da igreja, um a um; e quando terminou, alguns dias depois, a igreja tinha trezentos membros! Alguém poderia perguntar: se Joo Wesley voltasse hoje, o que ele faria? 29 Isso, porém, nao aconteceu sé com Wesley. Durante os periodos de avivamento ¢ despertamento, os lideres de todos os ramos da Igreja se preocupavam sempre com a pureza — necessariamente. Voltavam-se para o Novo Testamento e simplesmente tentavam viver uma vida de acordo com o ensino neotestamentario; e o Novo Testamento nos diz que o vaso, 0 instrumento, o canal que Deus usa deve seguramente ser puro. Portanto, o ensino nao é apenas de uma igreja “reunida”, mas também de uma igreja “pura”. Como seria possivel uma igreja misturada com o mundo em varios aspectos ser um canal do Espirito Santo? & algo quase inconcebivel! Por isso, a terceira marca da Igreja é a disciplina. Quando chegamos ao governo da Igreja, descobrimos uma vez mais que ele constitui uma questéo muitissimo discutivel e controvertida. E interessante observar que o Novo Testamento nao é muito especifico acerca do governo da Igreja. Ele nao nos ministra uma instrugao detalhada, como faz em relacao a muitas outras doutrinas, e indubitavelmente essa foi a raz4o por que o Novo Testamento foi escrito enquanto a maioria dos apdstolos ainda vivia, e assim eles e os profetas puderam ensinar e governar a Igreja. Ao lermos aquelas partes do Novo Testamento que foram as tiltimas a serem escritas, como as Epistolas Pastorais, notamos um aumento definido no ensino com referéncia 4 ordem e o governo eclesidsticos, o que é, sem dtvida, precisamente o que esperariamos. Ainda no livro de Atos, porém, encontramos os apdstolos ordenando lideres e dando instrugées sobre como a vida das igrejas seria ordenada. Portanto, embora tenhamos bem pouco ensino especifico, temos uma clara indicagéo dessa ordem em conexao com a qual o governo era crescentemente necessdrio. O que nos causa confusao, em nossa época e geragao, é 0 fato de que, subseqtiente ao periodo dos apéstolos e profetas, bem como subseqiiente ao ensino das Escrituras, a Igreja propriamente dita comegou a fazer coisas e acrescentar coisas, as quais nem sempre podem ser encontradas nas Escrituras, com isso criando uma tradigao que as vezes contradizia as Escrituras. 30 Quais, pois, so as idéias principais que, no transcurso dos séculos, tém sido correntes na propria Igreja com respeito a questéo do governo eclesidstico? Bem, antes de tudo sempre houve aqueles que néo créem absolutamente em qualquer governo eclesidstico, e ainda existem representantes desse ponto de vista na Igreja atualmente. Dizem que nao h4 necessidade alguma de um governo desse tipo, porque todos os membros, quando se retinem, sao obedientes ao Espirito. Isso geralmente surgiu como uma reag&o contra 0 que podemos denominar de eclesiasticismo, ou, se vocés o preferirem, é uma reagdo contra aquela terrivel idéia que se acha sumariada na palavra “cristandade”. Ora, admitamos com bastante franqueza que ha muito a ser dito em favor desse ponto de vista. Infelizmente, quando o Império Romano tornou-se cristéo, a Igreja Cristé decidiu chamar-se “cristandade”, e tomou por empréstimo muitas das idéias do Império Romano, inclusive seus sistemas de governo. E quanto a mim particularmente, permitam-me admiti-lo bem simples e claramente, nao consigo ver uma igreja catélica romana moderna nas Escrituras. Certa vez formulei esta questéo a um sacerdote catélico-romano com quem discutia estas coisas. Disse- -lhe: “Vocé pode dizer-me, bem honestamente, se vé sua igreja, como existe hoje, no Novo Testamento?” E ele admitiu que nao podia. Mas, naturalmente, acrescentou ele, como todos fazem: “Ah, sim, mas a revelagéo tem tido continuidade desde entio”. E para os catélicos romanos, a tradigdo é igual as Escrituras. Ora, podemos entender perfeitamente uma reagao contra todo eclesiasticismo, essa mescla de Igreja e Estado, bem como a elevagio de oficios, hierarquias ¢ a busca de poder. E muito facil de entender as pessoas reagindo tao violentamente contra isso, quando dizem: “Nao creio absolutamente em qualquer ordem; qualquer ordem é perigosa. Se vocés elevam um homem, ele logo acrescentar4 ao que lhe deram, e por fim teréo uma tremenda organizacéo que esmagara a vida do espirito”. Dizem que a m4quina sempre mata 0 espirito, que a organizacao apaga o espirito. A Igreja tornou-se tao complexa, mesquinha e 31 inflexivel, que ao Espirito Santo nao é dado qualquer oportu- nidade de operar. O resultado, historicamente, é que toda vez que ha um avivamento, quase que invariavelmente surge a formacao de uma nova denominacio, porque a antiga corporagao eclesiastica nao pode conter a nova. Esta era viva demais; tornou- se um elemento perturbador, e as pessoas, presas as velhas estruturas eclesidsticas, se viram fora. Portanto, hé muito a ser dito em favor dessa recusa em aceitar governo eclesiastico, e no entanto pergunto se este ponto de vista analisou bem tudo que é ensinado nas Escrituras, se os oficios definidos esto indicados ali, e as fungées atribuidas a tais offcios. Provavelmente o argumento final seja que, uma coisa é dizer que nao devemos crer em lideranga alguma, e outra coisa muito diferente é termos uma igreja em que, na pratica, nao haja lideres. Lideranga é inevitavel, e se nao pusermos isso no papel, alguém logo cuidaré que nela existam lideres autodesignados, Portanto, se é para termos na igreja lideranca e ordem, entaéo que as fundamentemos no ensino das Escrituras. A teoria que vem a seguir com respeito ao governo da Igreja € formulada pelos que defendem o ponto de vista erastiano, 0 qual, como j4 vimos, afirma que a Igreja é uma fungio do Estado, € que, portanto, o Estado governa a Igreja. O Estado designa os oficiais da Igreja, principalmente os altos dignitdrios, e estes, por sua vez, designam os demais. Poder algum é atribuido ao pregador local. Os membros comuns tém pouquissima participacéo. A disciplina, em ultima andlise, é exercida pelo Estado, e a Igreja ndo tem nem mesmo poder para exercer excomunhio. A idéia erastiana 6, como j4 vimos, 0 ponto de vista da Igreja Luterana e da Igreja da Inglaterra. O préximo ponto de vista, o qual tem alguma relagéo com 0 anterior, € 0 sistema episcopal: crenga no governo dos bispos. Os proponentes deste conceito ensinam que Cristo pessoal- mente delegou 0 cuidado da Igreja diretamente a determinados homens, uma “ordem” ou “colégio de bispos”, que sao descendentes dos apéstolos numa sucessao espiritual direta. Esse 32 € 0 ensino que Cristo designou os apéstolos, e eles tinham que perpetuar-se a si mesmos e sua ordem pela designagao de bispos, e que o governo da Igreja devia ser confinado exclusivamente aos bispos. Isso é ensinado pelas Igrejas Episcopais. Aqui também os membros na realidade tém pouquissima participao na ordenagao da vida da Igreja. O que dizer sobre isso? Bem, tudo que posso dizer a guisa de comentario é que o homem que langou mais luz sobre o tema é indubitavelmente o grande Bispo Lightfoot, que uma vez foi bispo de Durham. O Bispo Lightfoot provou, para a satisfagao de todos, que no Novo Testamento nao ha qualquer diferenca entre o bispo e 0 ancido — que bispo, ancio e presbitero sao termos intercambiaveis. Por exemplo, 0 apéstolo Paulo, escrevendo a igreja em Filipos, diz: “Paulo e Tim6teo, servos de Cristo Jesus, a todos os santos em Cristo Jesus que estao em Filipos, com os bispos e didconos” (Fil. 1:1). A palavra “bispos” €é ai equivalente a presbiteros e ancidos, e vocés podem observar que na igreja em Filipos havia nao apenas um, mas havia diversos bispos. De forma que, longe de haver sé um bispo sobre uma grande diocese, um bispo responsdvel por um grande grupo de igrejas, no Novo Testamento havia varios bispos numa s6 igreja. Portanto nao eram bispos segundo nossa compreensdo da palavra. Eram “ancidos” ou “presbiteros” — homens mais idosos a quem se delegava essa posic&o e funcao. Também parece-me que — e sinto-me feliz em dizer que concordo inteiramente com os cavalheiros a quem se denominam “eruditos” — nao ha no Novo Testamento qualquer autorizac4o para o ponto de vista episcopal do governo da Igreja Crista. Na verdade esta foi uma idéia que surgiu varios séculos depois do primeiro século, iniciada por um homem chamado Cipriano. E com isso, naturalmente, podemos facilmente perceber como ela veio 4 existéncia. Surgiram problemas na Igreja, acumularam-se as dificuldades e sentiu-se a necessidade de algum género de disciplina, algum género de corporacio para decidir as situag6es. E uma vez tendo tomado esse rumo, estamos no caminho do episcopado. E amitide se tem afirmado entre 33 nds que néo cremos num “colégio de bispos”, que cremos em bispos, sim, mas em bispos locais! Provavelmente haja alguma verdade em tal acusagao. No momento em que comegamos a exercer a disciplina, faz-se necessdrio algum padrao, de algum poder e de alguma corporacao que a ponha em priatica. E sé foi em conseqiiéncia dessa necessidade que a idéia de episcopado veio a existéncia, Desde entao, porém, por certo que foi a duras penas que a igreja catélica romana tentou tragar o episcopado a partir do apdstolo Pedro! Esse fato, pois, me conduz ao ponto de vista catélico- -romano, que é 0 episcopado levado 4 sua conclusio légica. Digamos 0 seguinte sobre ele: este ponto de vista € absolutamente légico e coerente. Se realmente cremos na ordenacao episcopal da Igreja, entao a conclusiao légica é a de um bispo acima de todos os demais, sendo ele o detentor de autoridade final. Ele fala ex cathedra; ele é infalivel; e sua prépria palavra provém definitivamente de Deus. Aqui esta a reivindicagao dos catélicos romanos. Sustentam que o papa nao somente é 0 bispo principal, porém que € 0 sucessor direto do apéstolo Pedro, e é, portanto, 0 vigdrio de Cristo na terra. Ora, ndo entraremos nos argumentos contra tudo isso — ha livros que podem oferecer-lhes a resposta completa. A resposta principal, porém, € que, historicamente, os catélicos rormanos nao tém nenhuma base. Ora, nao estou simplesmente fazendo uma afirmacao vazia; € algo que pode ser demonstrado. Se vocés quiserem um grande livro sobre o tema, entdo leiam The Infallibility of the Church (A Infalibilidade da Igreja), escrito por um homem chamado Salmond. Os catélicos romanos tém sido totalmente incapazes de responder o detalhado argumento de Salmond, por isso rejeitam o livro na sua totalidade. Nao podem responder-lhe porque nao ha nenhuma resposta. A proxima teoria do governo da Igreja é o ponto de vista presbiteriano. Os presbiterianos comecaram afirmando que a igreja local em si mesma é uma entidade, mas que, por causa da ordem e formalidade, para evitar-se 0 caos, é conveniente para as igrejas locais que se estabelega uma corporagéo que todos 34 reconhecerao e a qual todos se conformarao. Dai, um nimero de igrejas se englobava para formar um presbitério. Quando digo, “am niimero de igrejas”, nao quero dizer toda a corporagao da Igreja reunida, mas que cada igreja local numa determinada regiao designava delegados — um ministro e um ancido — e todos reunidos formavam um presbitério. Entéo solenemente undnimes concordavam que cada igreja local acatasse a deciséo do presbitério. Avancaram ainda mais e reuniram um nimero de presbiteros numa assembléia geral. Cada presbitério enviava um ntimero de delegados que constituiam a assembléia geral, ¢ os presbiterianos concordavam em acatar as decisdes dessa suprema corte, a assembléia geral. Af, entéo, est4a esséncia do sistema presbiteriano que tem sido, por exemplo, o método de governo da Igreja Presbiteriana; alids, nas igrejas em geral da Escécia desde o tempo de Joao Knox e da Reforma Protestante. E entio, finalmente, existe o ponto de vista de governo eclesidstico a que chamamos congregacional ou independente. E bastante dificil ratar deste tema hoje em dia, porque nenhuma das descricgdes que estarei apresentando é estritamente correspondente com o que realmente esta em voga hoje. Aqui passo a descrever independéncia ou congregacionalismo, mas existe hoje bem pouco de tal qualificagéo. Os congregaciona- listas — aqueles que créem no sistema congregacional — afirmam que cada igreja local é uma entidade em si, que tem poder supremo para decidir tudo sozinha. Eum agrupamento de cristaos que créem que o Senhor esta presente e é O Cabeca da Igreja, e créem que, quando O buscam e O aguardam, Ele, por meio do Espirito, os guiara e lhes dard a sabedoria de que necessitam para decidirem sobre doutrina e disciplina, e assim por diante. A igreja local é aut6noma, governa a si propria e nao reconhece nenhuma corporacao superior, seja um colégio de bispos, um presbitério, uma assembléia geral ou qualquer outra coisa. Pergunto, porém, quantas igrejas como tais existem hoje? Originalmente, a descrigao se aplicava aos assim chamados congregacionalistas e aos batistas, porquanto os batistas créem 35 na ordem eclesiastica congregacional, na independéncia do ponto de vista de governo. Hoje, porém, em linhas gerais, tanto os congregacionalistas como os batistas adotaram a idéia presbiteriana com seus fundos de sustento e seu controle sobre a igreja local através desses fundos. Nao so mais congregaciona- listas, sendo que se tornaram presbiterianos, com poder atribuido a uma corporacdo superior que pode influenciar a igreja local. Entretanto, ideal e originalmente no século dezessete, 0 congrega- cionalismo — ou a independéncia — se conformou ao padrao que acabo de descrever. Bem, historicamente, ai vocés tém os diferentes pontos de vista sobre a organizacao da Igreja. Sem davida muitos estao ansiosos por fazer uma pergunta neste ponto: serd que o senhor defende um sistema de governo em preferéncia a outro? Ora, nao tenho por que temer o desafio! Quando um homem se sente chamado por Deus para ensinar, é seu dever tentar fornecer orientagao. Nao quero ser hiper-dogmatico, mas sugiro que, quando pensamos nessas coisas 4 luz do ensino do Novo Testamento, esquecidos do que sucedeu na hist6ria, com certeza chegamos 4 conclusao de que a concepgio local e independente €a mais biblica. Sim, as igrejas locais, ainda nos tempos do Novo Testamento, se reuniam para a comunhiao, e seguramente devemos agir assim. Todos nés que somos cristéos desejamos ter comunhfo com os crist4os de outras igrejas. Sustentamos as mesmas convicgdes, cultuamos 0 mesmo Senhor, é bom nos reunirmos em conferéncias - sem diivida. Como entendo o ensino das Escrituras dos tempos neotestamentarios, porém, nenhum concilio possuia autoridade suprema. Tomem, por exemplo, 0 concilio que se reuniu em Jerusalém, o qual se acha descrito em Atos, capitulo 15. Ele n4o tinha poder de legislar para as igrejas locais; ele simplesmente enviou uma recomendacéo. Simplesmente disse: “Pareceu bem ao Espirito Santo e a nés” (Atos 15:28). O concilio nao podia compelir as igrejas locais; nao podia coagir. Ele disse: isto € 0 que entendemos. Este é 0 nosso conselho. E as igrejas locais podiam aceita-lo ou rejeité-lo. Por certo que, se uma igreja local 36 discordasse inteiramente, entao, quando tivessem sua préxima reunido de comunhdo, os outros cristéos tinham o poder de sugerir que talvez tal igreja nao tivesse o direito de participar da comunhao. Se nao estivesse de acordo, entéo nao haveria mais comunh4o alguma. Mas nao havia poder legislativo nem coercivo. E essa é a razao por que sugiro o ponto de vista local e independente; parece-me que 0 mesmo se aproxima mais estreitamente do padr4o neotestamentario. Cada igreja local seria auténoma e independente, mas sempre disposta a reunir-se em comunhao com aquelas da mesma doutrina e do mesmo espirito. Se vocés no aceitam o ponto de vista congregacionalista, e se adotarem qualquer um dos outros sistemas, eventualmente se acharao membros de uma corporagéo na qual os poderes controladores nao concordam com vocés em doutrina ou em pratica — e todavia vocés estaréo comprometidos a apoiar financeiramente um ensino que créem ser erréneo e perigoso simplesmente por pertencerem a tal corporagao. Isso é 0 que tem invariavelmente acontecido na historia, e essa é a posigéo de muitos evangélicos na atualidade. Pertencem a igrejas com as quais, em principio, nao s6 discordam, mas também nao tém simpatia, e contudo se acham sujeitos a tais poderes. Um clérigo evangélico, por exemplo, pode querer que um extremo bispo anglicano-catélico venha para confirmar seus proprios membros. Ou um evangélico pode achar-se numa igreja livre dando subvengoes para o sustento de ministros e ministérios que, segundo ele realmente cré, so a propria negacao da fé. Portanto, reitero, 4 luz do ensino neotestamentario, e seguramente também 4 luz da experiéncia ao longo dos séculos, parece-me que o ideal é a igreja local, pessoas que concordam, que estéo em comunhao com todos os demais que semelhante- mente concordam, mas sem qualquer obrigatoriedade, sem qualquer direito de impor coisa alguma sobre as igrejas, sem qualquer direito de obrigar a consciéncia. Esta comunhao de crentes da mesma doutrina, que se reinem para crescer na sua vida espiritual, se ajudam mutuamente o méximo que podem, contudo livre e voluntariamente. Sequer uma Unica igreja é 37 compelida a fazer coisas que sao contrrias a seus pontos de vista e de fato contrarias 4 sua consciéncia. Espero que ninguém sinta que este nao foi um tema espiritual. Estas coisas sao, para mim, de vital importancia, e se porventura alguém disser: “O governo da Igreja nada tem a ver comigo, sou uma pessoa espiritualmente consciente”, entéo a tinica coisa que tenho a dizer-Ihe é que vocé € uma pessoa muito antibiblica. Como membro do corpo de Cristo, é sua ocupagao, € seu dever, atentar para que a Igreja visivel de forma alguma contradiga a doutrina do proprio Senhor, da qual Ele nos fez administradores e guardiaes. 38 3 AS ORDENANCAS SINAIS E SELOS Estivemos analisando o significado e importancia da doutrina da Igreja — a qual é 0 corpo de Cristo — e suas caracteristicas e governo. Agora prosseguiremos analisando como, na Igreja, somos edificados em nossa fé santissima. Noutras palavras, chegamos a considerag&o dos meios da graca. Perguntamos: como seriam os cristéos edificados, fortalecidos, encorajados e estabelecidos? E essencial que abordemos 0 ensino biblico sobre as ordenangas por essa via, porque tém havido diferentes idéias no tocante a esses meios da graca. Em certo sentido, a igreja catélica romana reconhece um s6 meio da graga, € esse meio é os sacramentos. O ensino dessa igreja é que toda a graga vem ao crente através dos sacramentos - o batismo, a comunhao da Ceia do Senhor, bem como outros cinco sacramentos que os catélicos romanos reconhecem e os quais serao tratados depois. Eles, porém, dizem que a graca nos vem de uma forma mais ou menos mecAnica, através dos sacramentos. No extremo oposto do ensino catélico-romano sobre os sacramentos est4 0 ponto de vista que foi originalmente ensinado e aprofundado pelos quacres, e que ainda é defendido por eles, isto é, o ensino de que o Gnico meio da graga é a operacdo interna do Espirito Santo no crente. Os quacres acreditam que, se alguém experimenta a operacao desta “luz interior” ~ 0 Espirito de Deus no intimo — nada mais é necessario. Outro ponto de vista, o qual surgiu em reacdo tanto aos catélicos romanos quanto aos quacres, é aquele que diz nao haver nenhum outro meio da graga senao a Palavra de Deus escrita, as Escrituras. Sustenta-se que a Biblia s6, seja qual for a forma que 39 ela nos venha — falada, ensinada, pregada, lida - € 0 tinico meio da graga. Ora, nao nos é possivel penetrar tudo isso detalhadamente nesta série de prelegdes; contentemo-nos, pois, em expressé-lo assim: 0 ensino protestante tradicional sobre esta questo é que o crente recebe graga através da Palavra de Deus e da aplicagao da Palavra de Deus pelo Espirito Santo e através das ordenangas. Como veremos, as ordenangas jamais devem ser separadas da Palavra. Essa é a razao por que os pais protestantes disseram que a graga veio exclusivamente pela Palavra, porque, como eles mesmos corretamente realcaram, as ordenangas nada podem fazer sem a Palavra. Isso, porém, é um tanto extremado, ¢ portanto dizemos que os meios normais da graca so a Palavra — a pregacao, o ensino ow a leitura da Palavra sob a iluminagao e orientacgao do Espirito — e as ordenangas. Isso, pois, nos conduz a uma analise do ensino biblico concernente as ordenangas. A palavra “sacramento” tem sido usada pela Igreja Crista por muitos séculos, ¢ no entanto sinto- -me muito inclinado a concordar com aqueles que ensinam que é uma pena que esta palavra seja ainda usada. E um termo que no se encontra nas Escrituras, mas que foi introduzido na Igreja € em seu ensino nos séculos subseqiientes. H4 bem pouco para ser examinado na filologia ou na derivagao da palavra sacramento, exceto que nos ajuda a ver como a palavra veio a ser escolhida pela Igreja. Nossa palavra “sacramento” procede do latim sacramentum, termo este de cunho legal. Numa disputa legal ha sempre dois elementos —o acusador e 0 acusado. Ora, no mundo antigo era costume que ambas as partes depositassem certa quantia em dinheiro no tribunal; e entao, quando o caso fosse decidido, 0 dinheiro daquele que perdia a causa era entregue pelo tribunal para determinados propésitos religiosos. Esse depdésito em dinheiro foi chamado de sacramentum. E assim “sacramento”, significando um depésito, uma garantia, foi aplicado ao batismo ¢ & Ceia do Senhor. Infelizmente, a palavra latina, sacramentum, foi também 40 usada para traduzir a palavra grega “mistério”, a qual, nas teligides pagas, era a palavra usada para um rito secreto ou ceriménia de iniciacéo. Creio que ainda hoje determinados movimentos pagaos possuem ainda algum tipo de rito iniciatério de ingresso. Certamente esse era o caso das religides pagas de mistério do mundo antigo, e que essa idéia foi tomada por empréstimo pela Igreja Crist4 a fim de descrever os meios da graga que se apresentam ao povo dessa forma particular. Repito, é uma pena que a palavra “sacramento” seja ainda usada, mas foi assim que aconteceu, e talvez tenhamos que aceitar as coisas como elas sao. Pessoalmente, tento nao usar esse termo. Na igreja, nunca anuncio que “o sacramento da Santa Comunhdo” sera administrado. Em vez disso, digo: “Espero que nos encontremos a mesa da comunhio para participarmos da Ceia do Senhor”. E fago isso bem deliberadamente. O termo, (sacramento) contudo, é usado, e basta que sejamos conscientes do que as pessoas entendem por ele. Quais, pois, sio as definigdes dos sacramentos (das ordenangas) que foram formuladas no passado? No vigésimo quinto dos Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, lemos: “Os sacramentos ordenados por Cristo nao sao apenas sinais ou emblemas da profissao dos cristéos, mas, antes, sio testemunhos definidos, e sinais eficazes da graca e da boa vontade de Deus para conosco, por meio dos quais Ele opera invisivelmente em nés, e nao sé nos vivifica, mas também nos fortalece e nos confirma em nossa fé nEle”. A Confissdéo de Westminster traz esta definigéo: “Um sacramento é uma ordenanca santa instituida por Cristo em Sua Igreja para significar, selar e exibir Aqueles que estao dentro do pacto da graca os beneficios da Sua mediacdo para aumentar- -lhes a fé e todas as outras gragas, para coagi-los 4 obediéncia, a fim de testificarem e nutrirem o seu amor e comunhfo uns com 0s outros, e para distingui-los daqueles que est&o de fora”. Ele prossegue afirmando que as partes de um sacramento s4o duas: uma, “um sinal externo e sensivel usado segundo a propria determinagao de Cristo”; a outra, “uma graga interior e espiritual 4l presente”. As vezes um sacramento tem sido definido como “um sinal externo e visivel de uma graca interna e espiritual”. Ora, € muito importante que prestemos atengdo a estas definicdes, porquanto elas nos lembram que os sacramentos nao sféo uma invencio humana. E nosso proprio Senhor quem ordenou que Seu povo fizesse essas coisas. E nao pode haver a minima dtivida, sendo que seu propésito era recorrer ao auxilio de algo que pudesse ser visto, com 0 fim de ajudar 0 que tem sido ouvido. Ora, a maioria das pessoas é indubitavelmente ajudada ao ver coisas. Dai por que ensinarmos o alfabeto as criangas, geralmente fazendo uso de figuras. Dizemos: “M para maca”, e mostramos a figura de uma mag, e a crianga mentaliza a figura. As criangas séo sempre ajudadas por figuras; é mais facil aprender coisas tendo uma representagao visual do que apenas ouvindo. Neste ponto sinto-me tentado a fazer uma digressao, salientando que um triste aspecto da época em que vivemos é que ha um grande volume de evidéncia de que 0 povo, a despeito de sua educag&o e de sua jactanciosa cultura, acha mais e mais dificil absorver a verdade pela audigdo, e recorre cada vez mais a auxilios visuais. E uma confissio terrivel, mas parece ser a realidade. Indubitavelmente nosso Senhor, em Sua infinita bondade e condescendéncia, inclinou-Se para nossa fragilidade e providenciou auxilios visuais, algo que pudés- semos ver, com o fim de ajudar-nos a absorver 0 que ouvimos. Portanto, temos algo externo e visivel que conduz a uma graca interna. A pergunta, pois, que de imediato surge é: qual é a relacao entre o sinal externo ea graca por ele significada? Vocés percebem a importancia dessa pergunta? Qual seria a relag&o entre 0 pao e o vinho na Ceia do Senhor, e a 4gua no batismo, e a graga que é recebida? Eis uma pergunta que, no transcurso dos séculos, tem conduzido a grandes discussées e controvérsias. Na verdade, um grande volume de literatura tem sido dedicado a este tema tao fascinante e encantador. E, contudo, se alguém no for muito prudente, poderd gastar demasiado tempo examinando-o. 42 Tentemos, pois, sumariar os conceitos. Ora, espero que todos nés percebamos que estamos ponderando sobre algo muito pratico. Se vocé, meu amigo, nio concorda, permita-me fazer-lhe estas simples perguntas: qual é sua compreensao do que realmente sucede no batismo? Qual é sua compreensao do que vocé pessoalmente faz quando toma 0 pao eo vinho na celebragao da Ceia do Senhor? Qual é sua idéia acerca do pao e do vinho? O que significam? Esse é 0 tema que vamos analisar, ou seja: a relacao existente entre os simbolos, ou elementos, e a graca que representam ou simbolizam. Aqui, pois, estéo as idéias principais. Primeiro, temos o ensino cat6lico-romano, e n4o sé 0 catélico-romano, mas também, é evidente, 0 ponto de vista anglicano-catélico; na verdade, o ponto de vista de qualquer pessoa que se deleita no titulo “catélico”, porquanto na maioria das denominacées ha grupos que defendem o que chamam “doutrina sacramentalista”. A idéia catélica é que a graga est contida nos proprios elementos do sacramento: que a graca esta no pao e no vinho, bem como na 4gua. Com isso a graga é recebida no ato de tomar © pao e o vinho ou no ato da 4gua aspergida. E tao mecAnico quanto isso. E como tomar uma injegao. Se vocé come esse pao, seja qual for sua condigéo ou a condic&o da pessoa que Ihe administra 0 pfo, vocé, real ¢ necessariamente, esté recebendo a graca. Visto que a graca est4 na substancia, ela age automa- ticamente. O termo técnico para isso é que a graca age ex opere operato, ou seja, ela age, por assim dizer, em sua virtude e existéncia inerentes. O extremo oposto da doutrina do sacramentalismo é 0 ensino defendido por muitos hoje, mas que, originalmente, foi formulado por Zwinglio, um dos reformadores suigos. Zwinglio reagiu violentamente contra 0 ensino catélico-romano, e disse que os sacramentos nada sao sendo sinais ou simbolos externos. Sua tinica fungado é comemorar e trazer 4 lembranga algo que aconteceu no passado. Eles nada séo em si mesmos e em sentido algum nos conferem graca. Sdo simplesmente a ratificagdo externa de algo; séo puramente simbdélicos, principalmente 43 comemorativos, Portanto, quando tomamos o pio e o vinho, estamos simplesmente rememorando algo que nosso Senhor realizou uma vez. Ora, o ensino tradicional, protestante reformado, ndo é nenhum desses, mas que pode ser expressa assim: os sacra- mentos, assim chamados, nao s6 significam graca, porém, como o.expressa a Confisséo de Westminster, também selam a graca. Quando Paulo escreve sobre a circuncisio em Romanos 4:11, ele diz que Abraao “recebeu 0 sinal da circuncisio, selo da justiga da f€ que recebeu quando ainda nfo era circuncidado”. Ora, ele recebeu essa justica da fé antes de ser circuncidado. Por que, entao, foi ele circuncidado? Bem, a doutrina consiste em que a circuncisao lhe foi dada como sinal e como selo da justiga da fé, aqual ele j4 havia recebido. E essa € a base da definicao tradicional protestante do que significa um sacramento. E evidente que ele é um sinal externo, algo visual, como j4 vimos. Sim, porém € mais que isso, e € aqui onde nos separamos de Zwinglio. Além de ser um sinal, ele 6 também um selo. Ora, um selo é algo que autentica uma promessa. Quando uma pessoa apée seu selo num documento, ele néo acrescenta nada ao documento como tal, nao adiciona nada as declaragées do documento, mas é uma autenticacao adicional, confirma a verdade do que se afirma no documento. E foi nesse sentido que para Abrado a circuncisdo era, néo apenas um sinal, e sim, também um selo. O arco-iris € um selo exatamente no mesmo sentido, Deus deu 0 arco-iris, vocés se lembram, para confirmar a verdade que Ele j4 havia declarado com respeito & Sua relagéo com o mundo. Ele disse que a terra nunca mais seria inundada por um diltivio; todavia Ele nao sé disse isso, como também deu 0 arco-fris como selo, uma confirmagdo adicional (Gén. 9:8-17). Aqui chegamos 4 prépria esséncia do ensino genuinamente protestante com respeito a este assunto. Portanto, apresentarei outra ilustrag40. Pensem no uso de um anel ou alianga. Por que alguém sempre dé ou recebe um anel? Nao € essencial, mas é um costume, e existe algo nessa pratica. A importancia de um anel é 44 que ele é um selo. Sela 0 compromisso ja feito. Ele nao acrescenta nada ao compromisso; simplesmente diz a mesma coisa de uma forma diferente, e no entanto existe valor nele. A pessoa que tem o anel pode olhar para ele e lembrar do que 0 anel representa. O que quero enfatizar, porém, é que 0 ato de dar ou de pér esse anel é uma aco da parte de uma pessoa que esta selando uma promessa a outra pessoa. Portanto, os Trinta e Nove Artigos e a Confisséo de Westminster nos dizem que os sacramentos nao so simples sinais, como também selos da graca. Confirmam a gracga que j4 recebemos. Sim, mas avancaremos ainda mais? Eles aexibem, diz a Confissao de Westminster, significando que, em certo sentido, eles a transmitem. Ora, eis o lugar onde se deve ter cuidado, porque no momento em que dizemos que um sacramento comunica graga, alguém pode perguntar: “De repente vocé se tornou catdlico romano? Agora vocé vem dizendo que a graga € comunicada pelos meios e pelos simbolos?” Nao. Permitam-me mostrar-lhes a diferenga. O ensino catélico-romano é que a graca € apresentada mecanicamente nos simbolos; que o pao se transforma no corpo real de Cristo: ensino este que eles denominam de transubstanciacdo. E semelhan- temente se diz que a graga penetra a gua do batismo, de tal modo que a 4gua deixa de ser 4gua, e passa a conter graca em solugdo, por assim dizer. O que estou ensinando nao diz isso de forma alguma. Voltemos ao caso do jovem que se torna noivo de uma jovem. Ele j4 declarou seu amor franca e claramente; j4 0 repetiu; j4 expressou seu sentimento. Sim, mas nao seria verdade dizer que, quando a jovem recebe 0 anel de noivado, ela sente haver recebido algo adicional, algo extra? Ora, num sentido fundamental, ela nao recebeu mais nada. Ela j4 tem o amor do jovem, e ele nao Ihe tem dado mais amor. Entretanto, 0 recebimento do anel equivale o recebimento do amor de uma forma especial, de uma forma na qual ela ainda nao o havia recebido. Semelhantemente, © ensino protestante diz que os elementos sao realmente um 45 meio de comunicar-nos a graga. Noutras palavras, como j4 vimos, o anel é uma espécie de selo; e cada vez que ela olha para ele, a jovem encontra ali a certeza para confirmar o que jé cré e ja sabe, Esse é igualmente o valor de uma chave que permite o ingresso a um edificio. E 0 valor de uma escritura quando uma propriedade é transferida de uma pessoa a outra, e assim por diante. Como j4 vimos, a circuncis4o, portanto, nao era apenas um sinal; era também um selo da justica da fé. Essa 6 uma distingao biblica, e é muito importante que se preste cuidadosa atengdo a ela. Quando recebemos uma ou outra dessas orde- nancas, € preciso compreender que ela nao é meramente alguma representacdo externa, e, sim, verdadeiramente um meio da graga; e devemos estar conscios de receber algo que s6 nos vem por essa via especial. Vocés vero a relevancia de tudo isso quando estivermos tratando em separado do batismo e da Ceia do Senhor. Deixem-me, porém, realgar tudo o que tenho tentado dizer, expondo-o desta forma: o que uma ordenanga se destina fazer? Bem, primeiramente pretende significar, selar e comunicar, aos que estao dentro do pacto da graga, os beneficios da redengao de Cristo. Eles tém ouvido a proclamagao do evangelho, tém ouvido as declarag6es da graca em Cristo através da palavra pregada. Muito bem, € possivel que vocés indaguem: 0 que mais eles ainda podem ter? Podem ter esta ordenanga (sacramento). Deus, 0 proprio Senhor, a tem designado. Ele mesmo é quem nos ordenou que a guarddssemos. Quando as pessoas sao batizadas, devem estar cénscias de que a graca lhes é comunicada pessoalmente por esta via especial, de modo que, o que tém crido em geral, agora sabem ser seu. A graca vem avocé, pessoalmente, eamim. Da mesma forma, quando tomamos o pao e 0 vinho 4 mesa da comunhao, devemos considerar como se Deus estivesse dizendo: “Ora, este € 0 modo que escolhi para dizer-Ihe que minha graga lhe é dada em particular. Vocé € admitido a isto; vocé é membro do corpo; eeu estou dizendo-lhe através deste pao e através deste vinho que minha graga est4 chegando a vocé.” 46 Essa é Sua maneira de dizé-lo. Ele nao precisava ter decidido agir assim, mas o fez. Isso é 0 que Ele disse ao apéstolo Paulo, como lemos em 1 Corintios 11:23: “Porque eu recebi do Senhor 0 que também vos entreguei ...”. A ordenanga foi decretado pelo Senhor para ajudar-nos. O segundo propésito de uma ordenanga é que ela é também um emblema visivel ou sinal de nossa membresia da Igreja. Os que sao batizados e os que se chegam para tomar a Ceia do Senhor possuem um tipo de emblema ou indicacao do fato de que sao membros da Igreja. Por isso existem essas duas fungdes princi- pais; a primeira, porém, é a mais importante. Nossa préxima pergunta € esta: essas ordenangas (sacra- mentos) seriam absolutamente essenciais? Ora, é claro que depende do ponto de vista que vocés tém sobre elas. Se esposam © ponto de vista catélico, elas sio absolutamente essenciais, porque, se nao as receberem, no estarao recebendo a graca. E j4 que sao 0 tinico meio da graga, vocés néo podem de forma alguma negligencid-las. Podem negligenciar a pregacdo da Palavra € muitas outras coisas, mas ndéo podem receber a graca sem as ordenangas. O extremo oposto disso, como jd vimos, é a posi¢ao quacre, e também o ensino do Exército de Salvacao. Os que defendem este ponto de vista créem que as ordenangas nao sao absoluta- mente necessdrias. Nao interessam. A posigao reformada, protestante, € que cremos nestas ordenangas porque foram instituidas e ordenadas pelo Senhor Jesus Cristo pessoalmente. E um mandamento Seu, e participamos em obediénciaa Ele. Nao sé isso, mas vemos muito claramente no Novo Testamento que os préprios apéstolos obedeceram esse mandamento, e nossa posigdéo € que devemos construir sobre o fundamento dos apéstolos e profetas. Apressamos, porém, em acrescentar que as ordenangas nao sao essenciais, e que comemos 0 p4o e tomamos o vinho, nao porque cremos que sao essenciais, mas porque esta ordenanga foi ordenada e porque ela é um dos meios da graca ordenados pelo préprio Senhor. Dizemos que as ordenangas nao séo 47 esseniciais porque, por nossa propria definicao, nao acrescentam nada a Palavra. E nao existe qualquer graga particular, excepcional, que é comunicada exclusivamente pelas ordenangas. Eis por que sempre foi 0 ensino tradicional que as ordenangas e a Palavra jamais devem ser separadas, e que as ordenangas deve ser sempre observadas em conexao com a pregagao da Palavra. Nunca deve haver um culto exclusivamente como um encontro ao redor da mesa de comunhdo ou um culto exclusivamente para o batismo. Deve haver um culto religioso completo, e a Palavra deve ser proclamada, a fim de que nos salvaguardemos daquele grave perigo do catolicismo, que considera um sacramento (ordenanga) nao s6 como algo em sie por si mesmo, mas também como 0 supremo meio de receber a graca. Nao hesito em assumir minha posigdo ao lado dos grandes pais protestantes, que asseveraram que a pregacao da Palavra vem em primeiro lugar e esta acima de tudo mais. Evidentemente é essencial que quem quiser obter algum beneficio das ordenangas, precisa ser um homem ou uma mulher de fé, Est4 implicito em nossa definigéo que sem fé nao ha qualquer valor no batismo, nem na Ceia do Senhor. E por ja saber que ela é amada que uma mulher valoriza seu anel de noivado. De modo semelhante, a ordenanga é a confirmagio da fé; ela sela a f€. Portanto enfatizamos nao sé a pregacao da Palavra, mas a absoluta necessidade de f€ no recebedor. Os catdlicos romanos nao est&o interessados nisso. A graca est4 no sacramento ¢ deve, portanto, entrar em todos os que o recebem, nao importa qual seja a condig4o espiritual da pessoa. A luz de nosso ponto de vista, porém, a fé é essencial, e ndo h4 qualquer valor em nos achegarmos 4 mesa de comunhao e comermos 0 pao e bebermos 0 vinho, se ndo nos achegarmos com fé — nao ficamos diferentes nem melhores do que éramos antes. Todavia, se nos achegarmos com f€ genuina, compreendendo que Deus instituiu a ordenanga com o expresso propdsito de fortalecer nossa fé, entéo devemos estar cénscios de receber a graga, nao através do pao e do vinho como tais, mas através da compreensdo de que Deus nos esta falando algo mediante 0 pao 48 e 0 vinho, os quais Ele escolheu para nos falar assim. Isso nos conduz ao Gltimo ponto: quantas ordenangas (sacramentos) ha? Os catdélicos reconhecem sete: batismo, confirmagao, eucaristia, peniténcia, extrema uncao, ordem (isto é, a ordenagéo de um homem como didcono ou sacerdote ou bispo ou o que quer que seja) e, por fim, matriménio. Esta percepgdo do matriménio como sacramento fundamenta a atitude da igreja catélica romana e, em geral, a Igreja da Inglaterra, no tocante a toda a questéo do divércio. Determina no s6 a atitude geral dessas igrejas quanto ao divércio, mas, em particular, controla sua posicao com respeito ao novo casamento da assim chamada “parte inocente”. A posicao protestante tradicional reconhece apenas duas ordenangas: 0 batismo e a Ceia do Senhor. E a razao para isso € simplesmente que essas foram as tinicas duas a serem instituidas e ordenadas pelo Senhor pessoalmente. E nao hd, obviamente, quando percorremos a Biblia - e falo muito deliberada ¢ ponderadamente — nenhuma evidéncia a favor dos outros cinco como sacramentos. Esse foi um ensino que penetrou o seio da Igreja nos tiltimos séculos quando o poder dos sacerdotes cresceu ese desenvolveu a idéia sacramentalista. Tal desenvolvimento é muitissimo légico, uma vez que demos o primeiro passo em falso; mas a propria igreja catélica romana n4o afirma que tem por base evidéncia biblica. Entretanto, ela alega que este ensino adicional da igreja é tao inspirado quanto as Escrituras. E assim temos considerado a questéo das ordenangas em geral, e vimos que o grande e importante principio consiste na énfase sobre serem as ordenangas um selo. Agora, ao chegarmos & consideragéo do batismo e da Ceia do Senhor, simplesmente teremos que considerar 0 que é selado, e como exatamente é selado. Espero, porém, que sejamos esclarecidos sobre esta grande idéia central e entendamos que sua base est4 em Romanos 4:11. Seguramente, ndo podemos sendo sentir a sensagao de gratidao e louvor em nossos coragdes por Deus haver ordenado, decretado c instituido esses auxilios para nossa fé. E Deus em Sua infinita condescendéncia que atentou para nossa fraqueza e providenciou 49 algo tanto para os olhos quanto para os ouvidos. Estes sao meios da graga designados por Deus para que nao tivéssemos nenhuma justificativa caso fracassemos. Se dissermos que realmente nao conseguimos ouvir um serm4o que ultrapasse vinte minutos, e acharmos que talvez ainda um quarto de hora seja mais do que podemos agitentar neste século iluminado; se dissermos que é demais tentar absorver a verdade por esse meio, bem, aqui est4 — aqui temos este outro meio. Mas, acaso nao reconhecemos também a extraordindria presciéncia de Deus? Quao amitide tem ocorrido na histéria da Igreja que, quando os homens que tiveram 0 privilégio de estar nos ptilpitos, estavam ali nao pregando a verdade e a fé evangélica, mas estavam pregando uma espécie de humanismo ou moralidade, ou até mesmo pregando a igreja, quao freqiiente, pois, tem ocorrido que, quando no ptlpito tem sido esquecido 0 privilégio e o dever, o evangelho ainda tem sido proclamado aos que tiveram alguma compreens&o desse outro método, o método visual! E, portanto, “as ovelhas famintas” — fazendo uso das palavras de Milton — que tém vindo, mas nao tém sido alimentadas pela Palavra pregada, tém podido encontrar a nutrigao espiritual no pao e no vinho, ou na 4gua do batismo, e ali t€m se lembrado através de sua compreensio das Escrituras que Deus pode falar tanto por esse meio quanto pela pregacao. E assim nos maravilhamos uma vez mais, nao sé na bondade e condescendéncia de Deus que Se inclina para nossa fraqueza, poderoso como Ele é, mas também em Sua extraordinaria provisao, garantindo que a verdade seria sempre proclamada, através da Igreja, e com freqiiéncia por homens cujas palavras negavam o que precisamente testemunhavam enquanto administravam as ordenangas. Os caminhos de Deus estao realmente além de nossa compreensio, porém sdo sempre perfeitos. Louvado seja Deus! 50 4 O BATISMO Estamos considerando os meios da graga que estd4o disponiveis na Igreja, e sio administrados pela Igreja para a edificagéo e fortalecimento do verdadeiro crente, e em nossa prelegdo anterior visualizamos em geral quais sao os apelidados sacramentos. Agora chegamos a uma consideragao detalhada das duas ordenangas que foram ordenadas pelo Senhor e as quais consideramos, portanto, obrigatérias: 0 batismo e a Ceia do Senhor. Em primeiro lugar, abordemos a doutrina biblica do batismo. Provavelmente seja até desnecessério mencionar 0 fato de que este € um tema sobre 0 qual tem havido grande controvérsia. Enquanto muitas pessoas tém sido, talvez, em grande medida, ignorantes sobre algumas das outras causas de dissensao, estou certo de que numa época ou noutra, todo cristéo professo tem se envolvido numa discussao sobre a questao do batismo. Pessoas piedosas, espirituais, cultas, sao igualmente encontradas defendendo as diversas opinides. Portanto, convém-nos uma vez mais dizer que devemos n4o sé abordar este tema com prudéncia, mas, 0 que € ainda mais importante, de uma maneira cristae no Espirito que alegamos ter recebido e a Quem nos submetemos. Em nenhum outro assunto é mais importante evitar meros rétulos, generalizagées voltiveis e pronunciamentos dogmaticos do que quando abordamos um tema como este. Nao seria plenamente ébvio, antes de darmos mais um passo, que este tema nao pode ser decidido em termos finais, que ele nao é um desses temas sobre os quais podemos apresentar uma prova absoluta e inequivoca? Se fosse possivel, jamais teria existido tanta controvérsia e nao existiria tantas distingdes denomi- nacionais. Citarei o exemplo do professor Karl Barth, o grande tedlogo 51 reformado (ainda que minha citagao n&o signifique que eu concorde com sua posig&o essencial). Barth foi educado de uma maneira tipicamente presbiteriana, mas experimentou uma grande mudanga em seu ponto de vista acerca do batismo. Tendo sido instruido a crer no batismo infantil, ele escreveu um livro para dizer que nao mais cria nisso, porém cria no batismo de adulto. Portanto, nao nos convém ser hiperdogmaticos e dar a impressao de haver apenas um possivel ponto de vista. Como vimos na prelegao anterior, o batismo nao é essencial 4 nossa salvacao. Nenhuma ordenanga é essencial a salvaco: se disserem que sim, entao estardo se enfileirando com os catélicos tomanos. Os protestantes sempre afirmaram que, embora 0 batismo e a Ceia do Senhor sejam mandamentos do Senhor, ¢ devemos, pois, praticd-los, eles no sao essenciais. Nao cooperam com a graga, simplesmente apontam para ela e no-la trazem de uma forma especial. Por isso devemos abordar 0 tema com bastante prudéncia e com espirito cristao. HA trés posigGes principais sobre este tema: os pedobatistas, os batistas ¢ o Exército de Salvacdo, juntamente com os quacres. Na Igreja Primitiva nao houve referéncia definida ao batismo infantil até 175 d.C. Esse siléncio nao prova, contudo, que o batismo infantil nao fosse praticado antes dessa data. Um importante exemplo de evidéncia vem de Tertuliano, que foi um grande homem na Igreja primitiva no final do segundo século. Ora, Tertuliano mudou seus conceitos acerca deste tema ¢ tornou- -se oponente do batismo infantil. E assim ha seguramente um exemplo muito forte para dizer que nos dias de Tertuliano nao se podia estabelecer que o batismo infantil fosse ensinado e praticado pelos apéstolos, pois se esse fosse 0 caso, um homem da estirpe de Tertuliano jamais teria falado contra ele da forma que o fez. Outra por¢ao de evidéncia muito importante é que o grande Agostinho, cuja mie era crista, nao foi batizado na infancia. E verdade que nao podemos dar demasiada importancia a esse argumento, mas ele é significativo no sentido em que demonstra que o batismo infantil nao era uma pratica universal. 52 Quando avangamos através dos séculos, descobrimos, em geral, que até chegar a Reforma Protestante sé havia batismo infantil. Os principais reformadores protestantes deram seguimento a essa pratica, porém no final do século dezesseis surgiu um novo grupo de pessoas que receberam 0 nome de anabatistas, pois criam que se devia rebatizar na confissao de fé (o prefixo ana significa “novamente”), quando alguém tinha idade bastante para ser capaz de fazer uma afirmacao pessoal. Essa breve andlise histérica nos leva 4 préxima pergunta: qual € 0 significado do batismo como ensinado nas Escrituras? Aqui a coisa significativa a ser observada é que a frase que geralmente se usa é “batizar em”. Existe, por exemplo, 0 famoso mandamento em Mateus 28:19: “Portanto, ide, fazei discipulos de todas as nagées, batizando-os em (dentro do) nome do Pai e do Filho e do Espirito Santo”. Exatamente a mesma frase se encontra, de uma forma ainda mais interessante, em 1 Corintios 1:13, onde Paulo diz: “Sera que Cristo esta dividido? Foi Paulo crucificado por amor de vés? Ou fostes vés batizados em (dentro do) nome de Paulo?” Dé-se 0 mesmo em 1 Corfntios 10:2, onde somos informados que os filhos de Israel “foram todos batizados em Moisés” — voltarei a fazer referéncia a isso mais adiante. H4 também a declaracdo de Romanos 6:3-6, onde Paulo argumenta: “Ou, porventura, ignorais que todos nés que fomos batizadosem Cristo Jesus fomos batizados na sua morte?” E lemos em 1 Corintios 12:13: “Pois em um sé Espirito fomos todos batizados em um s6 corpo, quer judeus, quer gregos”; e 0 mesmo se da em GAlatas 3:27 e em Colossenses 2:12. Jé consideramos uma série dessas declaracées quando tratamos da doutrina do batismo do Espirito Santo (ver volume 2, Deus o Espirito Santo). O que, entéo, aprendemos disso? Bem, com certeza a primeira coisa ¢ a mais importante sobre o batismo é que ele pressupée unido, ser posto dentro de algo: somos batizados no Espirito Santo, batizados em Cristo, batizados no corpo, batizados em Moisés. £ muito importante que tenhamos em mente que 0 significado primario de batizar nao é€ purificar, e sim, esta uniado que nos identifica com determinado contexto, que nos pde dentro 53 de determinada atmosfera. E, por certo, na citacéo de Mateus 28:19, somos informados que somos batizados na bendita Trindade, no Pai e no Filho e no Espirito Santo. Portanto, o significado primdrio do batismo é uniao, entretanto esse nado € 6 tinico significado. Existe também o sentido secundario de limpeza e purificagao. No batismo somos purificados da culpa do pecado, como vemos na resposta de Pedro, no dia de Pentecoste, ao povo que gritava, dizendo: “Que faremos, irm4os?” “Pedro entdo lhes respondeu: arrependei-vos, e cada um de vés seja batizado em nome de Jesus Cristo, para remissdo de vossos pecados” (Atos 2:37,38). Encontramos esse significado também em Atos 22:16, onde é dito a Paulo: “Levanta- -te, batiza-te e lava os teus pecados, invocando o nome do Senhor”; e em 1 Pedro 3:21, onde Pedro, referindo-se as pessoas que estavam na arca de Noé, diz: “que também agora, por uma verdadeira figura —- 0 batismo — vos salva, o qual nao é 0 despojamento da imundicia da carne, mas a indagacéo de uma boa consciéncia para com Deus, pela ressurreigéo de Jesus Cristo.” Noutras palavras, o batismo é uma garantia de que estamos livres da culpa do pecado, e também da contaminagao do pecado. Ha muitas declaragées desse fato. Em 1 Corintios 6:11 somos informados que alguns dos membros da igreja em Corinto se fizeram culpados de alguns pecados terriveis, no entanto Paulo diz: “mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados ...”, E nao ha divida de que “lavar” em parte se refere ao batismo. De igual modo, em Tito 3:5, onde Paulo fala de “o lavar da regeneracéo”, ha indubitavelmente uma referéncia 4 mesma coisa. Portanto, o significado do batismo é que ele nos poe nesta posicao de uniao, todavia para estarmos ai precisamos ser lavados e purificados da culpa e da contaminagao do pecado. Qual, entdo, é 0 propédsito do batismo, se esse € seu signi- ficado? Aqui devemos comegar com uma negativa. A funcao, o propésito, do batismo nao é purificar-nos do pecado original. Esse é 0 ensino da igreja catélica romana, e nao sé o dessa igreja, mas também o da Igreja Luterana, e de fato certas secdes da 54 Igreja da Inglaterra ensinam de maneira bem especifica que o proposito do batismo é purificar-nos do pecado original e regenerar-nos. Por isso falam da regeneracdo batismal. As pessoas as vezes n4o atinam de que esse é 0 ensino da Igreja Luterana e, em certo sentido, é 0 ensino oficial da Igreja da Inglaterra, ainda que haja nessa Igreja muitos que repudiam a sugestao. Nés, porém, dizemos que o propésito do batismo nao é livrar-nos e purificar- -nos do pecado original, e tampouco regenerar-nos. Pergunto, pois: qual é a funcao do batismo? Bem, como ja indiquei na prelecdo anterior, 0 batismo é um sinal e selo. Primeiro, ele é um sinal e selo da remissao de nossos pecados e de nossa justificagéo. Como jé vimos, o batismo é algo que fala a mim. Como 0 anel de noivado no dedo fala, assim o batismo fala aos que s&o batizados, dando-lhes a certeza de que sao justificados e seus pecados s4o perdoados . Nao sao justificados porque foram batizados; sao batizados porque sao justificados. O batismo nao €o0 meio de seu perdao e justificagao, e sim, a certeza deles. O batismo, porém, é mais que isso, e diria, especialmente, que ele é um sinal e selo da regeneragao, de nossa uniéo com Cristo e do recebimento do Espirito Santo. Ora, uma vez mais digo que ele é um sinal e um selo. Nao sou regenerado ao ser batizado; apenas tenho o direito de ser batizado por ter sido regenerado. O batismo me informa que estou regenerado; ele me certifica que j4 nasci de novo, que estou unido a Cristo e que o Espirito Santo habita em mim. E a selagem desse fato para mim. E a maneira de Deus conceder-me um penhor. Como Ele deu 0 arco-iris, e como Ele deu a circuncisio a raca eleita, assim Ele nos da um sinal e selo de nossa regeneracao no ato do batismo, E entao, em terceiro e tiltimo lugar, o batismo € um sinal de ser membro da Igreja, a qual é Seu corpo. E uma separagéo do mundo e uma introducao oficial, de uma maneira externa, no corpo visivel de Cristo. Ja estamos no invisivel, porém aqui entramos no visivel, e o batismo é um sinal ou emblema disso. Deixem-me, entéo, sumariar isso novamente e reenfatizd- -lo. O propésito principal, a fungao, do batismo é como um selo 55 para.o crente. Nao € primariamente algo que fazemos; € algo que é feito em nés. E algo do qual somos os recipientes passivos. Nossa profissao ¢ nosso testemunho seguem isso e sao-lhe conseqiientes. Ora, enfatizo isso porque creio que vocés concor- dardo que muito freqiieritemente é posto de modo contrario, ea énfase € posta em nossa ac4o, em nosso testemunhar, em nosso testemunho. Isso, porém, vem em segundo lugar. O elemento primordial e primario sobre 0 batismo é que ele é algo que Deus decidiu fazer conosco. E a concessao divina do selo de nossa regeneraco; e quando somos batizados, Ele esta nos falando e nos informando que estamos regenerados. E claro, porém, que, quando somos batizados, estamos incidentalmente dando nosso testemunho de que cremos na verdade. Secundariamente, pois, o batismo é uma forma de testificar, de dar testemunho. Mas € preciso uma vez mais realgar, como fizemos ao tratar das ordenangas em geral, que o batismo no nos comunica béncao alguma que a Palavra em si mesma n4o nos possa dar. Ele nao acrescenta a graca; nao nos faz algo que nao pode ser feito de outra maneira. Por isso n4o afirmamos que o batismo é essencial, embora afirmemos que ele é do maior valor possivel. E, seja como for, ele € obrigatério em virtude de nosso Senhor o ter ordenado, e nos furtamos deste selo particular das promessas de Deus feitas a nds, caso néo nos submetamos ao batismo. Primaria- mente, pois, ele se destina a assegurar-nos, a reassegurar-nos e a fortalecer e a aumentar nossa f€. Portanto, reitero: as pessoas se equivocam em extremo quando simplesmente consideram o batismo como uma ocasiao para testificar e como um recurso evangelistico, enquanto deixam de enfatizar que ele é, primeiro eacima de tudo, Deus em Sua infinita gragae bondade pondo- -Se em nosso nivel, fazendo algo objetivo, algo que pode ser visto e por esse meio estd nos selando as promessas de perdao e regeneragao, bem como a habitagdo do Espirito Santo. Ora, isso nos conduz a algo ainda mais controvertido: quem deve ser batizado? E aqui, por certo, hé uma grande divisdo entre os que dizem que as criancas devem ser batizadas e os que dizem que s6 os crentes convictos devem ser batizados. Eis 0 préprio 56 centro e ponto nevralgico da controvérsia. Comecemos avaliando os argumentos que se produzem em favor do batismo infantil. Em primeiro lugar, ha quem aponte para o incidente dos pequeninos que eram levados a nosso Senhor para que os abengoasse. Lucas nos diz que eram realmente criangas. Nosso Senhor as tomava em Seus bragos e as abengoava, dizendo: “Deixai vir a mim as criangas, e nao as impegais, porque de tais €o reino de Deus” (Luc. 18:16). A resposta, por certo, é que néo ha nenhuma mengio do batismo nesse ponto. Uma coisa é dizer que nosso Senhor pode abengoar as criangas; outra coisa muito diferente, porém, é dizer que Ele, portanto, ensinou que as criangas devam ser batizadas. O segundo argumento apresentado esta baseado em Atos 2:39, um versiculo a que ja fiz referéncia. Quando Pedro se poe a pregar no dia de Pentecoste, 0 povo clama e pergunta: “Que faremos, irm4os?” Entao Pedro responde: “arrependei-vos, e cada um de vés seja batizado em nome de Jesus Cristo, para remissao de vossos pecados; e recebereis o dom do Espfrito Santo. Porque a promessa pertence a vés, a vossos filhos ...”. Nessa passagem, 0 argumento prossegue, as pessoas séo informadas que o batismo se aplica tanto a seus filhos como a elas mesmas. Contudo, sempre que leio esse argumento em algum livro, noto que o resto do versiculo é sempre descartado: “e a todos os que estéo longe: a quantos o Senhor nosso Deus chamar.” Claramente, pelo termo “filhos” Pedro nao tem em mente descendentes fisicos, néo tem em mente os filhos dos que ouviam, mas é como se dissesse: “A promessa nao é somente para vocés que estao imediatamente aqui, agora, porém € paraa préxima geragao e para a geracao depois dessa, e depois daquela, econtinuaré a percorrer os séculos. E nao é somente para judeus, como também para os que estao longe” — os gentios, os que se acham fora da comunidade de Israel. Alias, é para “quantos o Senhor nosso Deus chamar”. O terceiro argumento emana de Atos 16:15 e 33. Somos informados que quando Lidia creu no Senhor, “Depois que foi batizada, ela e sua casa”. E Lucas escreve igualmente que 0 57 carcereiro de Filipos foi imediatamente batizado, “ele e todos os seus”. Argumenta-se que isso deve significar que as criangas e talvez mesmo os recém-nascidos de ambas as casas foram também batizados. A isso, naturalmente, a resposta € que nao temos noticia de haver qualquer crianga em uma ou outra das casas. Poderia ter havido, eu nao sei e ninguém mais sabe. Uma casa pode consistir de filhos adultos, e 4s vezes nem mesmo é necessério que os tenha. A casa bem que poderia consistir de servos. No caso do carcereiro, de qualquer forma, ha clara indicagao de que teriam sido adultos, j4 que somos informados que a palavra foi pregada nao s6 ao carcereiro, e sim,também a sua familia. Lemos: “Entao lhe pregaram (Paulo e Silas) a palavra, ea todos os que estavam em sua casa”. Os da familia parece que foram capazes de ouvir e receber a verdade. E assim uma vez mais nao hd um claro exemplo de batismo infantil. A evidéncia que se apresenta em seguida se encontra em | Corintios 1:16, onde Paulo diz: “E verdade, batizei também a familia de Estéfanas; além destes, nao sei se batizei algum outro”. Uma vez mais, 0 argumento é que deve ter havido criangas na familia. No entanto, se consultarmos 1 Corfntios 16:15, lemos 0 seguinte: “Agora vos rogo, irmaos, pois sabeis que a familia de Estéfanas é as primicias da Acaia, e que se tem dedicado ao ministério dos santos”. Essa é seguramente um pressuposto de que a familia de Estéfanas nao incluia criangas, mas adultos que creram na verdade e que agora estavam cooperando e ministrando aos santos. E por fim o itimo argumento da tese est4 em 1 Corintios 7:14, onde somos informados que os filhos de pais crentes sio santificados por seus pais. Aqui nossa resposta € que isso nao significa necessariamente que as criangas eram batizadas. Significa apenas que lhes era permitido entrar nos cultos da igreja e que desfrutavam de certos privilégios pertencentes 4 Igreja. Na verdade, a mim parece haver neste ponto uma resposta conclusiva, porque somos informados que um esposo incrédulo é santificado por sua esposa e que uma esposa incrédula é santificada por seu esposo crente. O mesmo termo é usado acerca 58 do esposo incrédulo ou da esposa incrédula como € usado acerca dos filhos. Evidentemente, pois, este versiculo nao esta de forma alguma tratando do batismo. Portanto podemos sumariar, dizendo que no Novo Testa- mento nao ha clara evidéncia de que as criangas eram sempre batizadas. Nao posso provar que nfo eram, mas estou certo de que nao ha evidéncia de que eram; n&o é possivel tirar uma conclusao definitiva. As afirmagées sao tais que nao nos permitem fazer um pronunciamento dogmiatico. A segunda linha de argumento em favor do batismo infantil é a analogia baseada na circuncisao. Somos informados de que 0 batismo no Novo Testamento corresponde 4 circunciséo no Velho Testamento, e sempre que um filho nascia ao judeu, ele era circuncidado quase imediatamente. E assim 0 apéstolo Paulo diz que foi “circuncidado ao oitavo dia” (Fil. 3:5). O argumento € que todos os filhos nascidos de pais israelitas eram introdu- zidos em Israel em cardter oficial e o sinal que recebiam era a circuncisao. Portanto, diz-se que, quando chegamos 4 era crista, indubitavelmente o paralelo no Novo Testamento deveria ser levado a efeito com as criangas. Nao ha dtivida de que em muitos aspectos este € um argumento muito forte. Contudo, minha dificuldade é esta: parece-me que ele ignora 0 ponto essencial que é 0 modo de se entrar no reino. Ora, o modo de se entrar no reino de Israel era através de descendente fisico, e somente por esse meio. O grande contraste entre o Velho e 0 Novo é a diferenga entre 0 fisico e 0 espiritual, e o Novo Testamento ensina que o modo de se entrar no reino de Deus nao é por meio de descendéncia fisica, e sim, pelo nascimento espiritual. Temos de nascer do Espirito antes de entrar no reino de Deus. Portanto, parece-me que esse argumento fracassa nesse ponto. As pessoas tém também argumentado em prol do batismo infantil com base no fato de que no Velho Testamento Deus entrou num pacto com Seu povo, e os meninos recém-nascidos eram circuncidados como um sinal desse pacto. No Novo Testamento, Deus inaugurou um novo pacto, e diz-se que os 59 filhos dos que estéo em relagdéo com o novo pacto devem, portanto, ser batizados. Esse argumento, porém, tem por base Atos 2:39, ¢ ja lhes sugeri que, dizer que esse versiculo se refere aos filhos fisicos é interpretar mal seu significado. Portanto, esse € outro argumento inconclusivo e na verdade falacioso. Mas, deixem-me dizer algo sobre 0 outro lado. Ha pessoas que parecem crer que podem resolver este problema de uma maneira muito simples. Dizem que o batismo infantil seria erréneo em virtude de o batismo ser o selo e o sinal da regeneracdo, ¢ assim nao sabemos ainda se uma crianga ser4 ou nao regenerada. Esse, porém, é sem ddvida um argumento muito perigoso, pois terfamos certeza de que 0 adulto est4 regenerado? Alguém pode dizer com certeza que ele cré no Senhor Jesus Cristo, entretanto isso provaria que ele é regenerado? Se vocés disserem que tém certeza que sim, porque ele diz que cré, entéo o que dizer quando mais tarde ele nega inteiramente a fé, como muitos tém feito? Nao, nado podemos ter certeza de que alguém esta regenerado. Nao nos compete decidir quem nasceu de novo e quem n4o nasceu de novo. Temos evidéncia presumivel, mas nao podemos ir além disso. Por conseguinte, esse argumento nao deve ser usado como base para o batismo de adulto. Semelhantemente, pessoas com freqiiéncia dizem algo mais ou menos assim: “Vejam as milhares de criangas que foram batizadas quando ainda recém-nascidas. Foram aceitas na Igreja Crista, mas subseqiientemente declinaram, provando que nunca foram realmente cristis”. Uma vez mais, a resposta, por certo, € exatamente a mesma. Esse tem sido o caso, infelizmente, milhares de vezes, com pessoas que foram batizadas sob confissio da fé quando adultas. Devemos ser prudentes quando lidamos com esses argumentos, visto que 0 mesmo ponto negativo pode ser usado em ambos os lados. Nao devemos basear nossos argumentos em observacées, e sim, nas Escrituras, como estivemos tentando fazer. 7 O que, pois, podemos concluir neste ponto? E evidente que a pergunta crucial a fazer € esta: a que o batismo se destina? O que ele significa? Qual é seu propésito? Bem, eu j4 respondi a 60 pergunta. Se o grande ponto sobre o batismo consiste em que ele € uma selagem feita por Deus daquilo que estou certo que ja me aconteceu, ent&o com certeza ele € para um crente adulto. Nao pode ser um selo para uma crianga sem discernimento; isso € impossivel. Se o batismo fosse apenas um sinal, entao eu poderia ver um grande argumento para batizar uma crianga. Mas, como todos concordam, mesmo aqueles que defendem o batismo infantil, muito mais importante do que o sinal é a selagem. Por certo, entao, o batismo é somente para uma pessoa que sabe, que é cénscia do que esta acontecendo. Parece-me que quando examinamos 0 caso do eunuco etiope, ou mesmo o do préprio apéstolo Paulo, tudo indica que ambos foram batizados mais ou menos privativamente, o algo importante sobre 0 batismo é 0 selo. Quanto a mim, esse ultimo argumento é conclusivo. Isso me leva ao meu tiltimo ponto principal: qual deve ser o modo do batismo? Como deve ser ele administrado? Uma vez mais, vocés devem estar familiarizados com a grande discussao. HA duas escolas principais de pensamento: aspersdo e imersdo. O que teria a histéria a dizer sobre isso? Bem, ela tem muito a dizer, ndo obstante, infelizmente, nada decisivo! Entretanto, muito se pode dizer sobre bases histéricas. Durante os primeiros mil anos da Igreja Crista, 0 modo comum do batismo era a imersao. Mesmo 0s catélicos romanos dizem que 0 certo é quea pessoa seja imersa. Nao colocam isso na primeira posigéo, porém dizem que a imersao é legitima e dao instrugdes quanto a como ela deve ser feita. A Igreja Ortodoxa Grega e a Igreja Ortodoxa Russa ainda praticam a imers4o, e dizem que a imersio €0 modo — muitos de nossos amigos batistas ficaréo surpresos quando ouvirem que no sao os tnicos crentes na imersao! No Livro de Oragao da Igreja da Inglaterra de Eduardo VI, a imersao foi posta antes da aspersdo. A aspersdo sé era permitida como uma alternativa 4 imersao no caso de enfermos ou incapacidade de algum género. A presente pratica s6 foi introduzida no livro de oragéo de 1662. A Confissdo de Westminster diz que a forma correta de batizar é por aspersdo,e exclui a imerséo, mas € muito interessante notar que, depois de uma longa discussao na 61 Camara Jerusalém da Abadia de Westminster, os doutores de Westminster tinham um voto final. Vinte e cinco votaram pela exclusdo da imersdo, e vinte e quatro votaram contra sua exclusao, sendo sua deciséo consumada pela maioria de apenas um! Entao, quais s4o os argumentos? H4 quem diga que a palavra grega, baptizo, estabelece 0 argumento em termos absolutos. Mas no faz isso, porque os estudiosos se acham divididos sobre seu significado. A palavra baptizo nao prova tudo. Eis uma interessante porcao de evidéncia. Se lermos Lucas 11:37,38, descobriremos o seguinte: “Acabando Jesus de falar, um fariseu o convidou para almogar com ele; e havendo Jesus entrado, reclinou-se 4 mesa. O fariseu admirou-se, vendo que ele nao se lavara antes de almocar.” A palavra usada ali é baptizo, e eviden- temente nao significa que ficassem surpresos por Jesus nao ter efetuado um banho completo. Ao contr4rio, era 0 costume dos fariseus, antes de sentar-se para comer, meter suas maos em Agua corrente. Acreditavam ser essencial, e ficaram surpresos que nosso Senhor, nao enfiando suas mos em 4gua corrente, imediatamente sentou-Se. E assim hd ai a sugestio de aspersio. Uma vez mais o argumento em prol da imersdo é apresen- tado com base em Romanos, capitulo 6, e as passagens paralelas de que fiz meng&o anteriormente. Mas a resposta é que esses versiculos nao se referem necessariamente ao rito ou a ceriménia do batismo. Em todos esses versiculos, Paulo est4 argumentando em prol de nossa uniao com Cristo — ele nao sé argumenta que somos sepultados com Ele, como também que somos crucificados com Ele, que j4 morremos com Ele. O batismo no indica isso de forma alguma. Nao é verdade? “Mas”, dizem alguns, “ele indica 0 sepultamento e a ressurreigao.” Naturalmente, porém, Paulo também argumenta acerca da morte e crucificagéo. De forma que os que apoiam o batismo por imersdo estado dando ao argumento mais do que 0 apéstolo da. Hé ainda outro argumento com base no batismo de nosso Senhore naquele do eunuco etiope. Somos informados que nosso Senhor “saiu logo da 4gua” (Mat. 3:16), e que Filipe e o eunuco 62 também “sairam da 4gua” (Atos 8:39). Afirma-se que essa é uma prova conclusiva de que o batismo deve ser efetuado por imersao completa. Atos 8:39, porém, nao diz isso. Tudo o que ele nos diz € que Filipe e o eunuco estiveram na Agua e entao sairam dela, posto que se nos diz que ambos sairam da 4gua. E se se pretende provar que o eunuco foi totalmente imerso, entao Filipe também deve ter sido totalmente imerso. Nao; com certeza o versiculo simplesmente indica que ficaram em pé na agua, e nao nos diz exatamente como Filipe efetuou o batismo. E 0 mesmo se aplica no caso de nosso Senhor. Ha, porém, outra porgdo de evidéncia que parece-me ser muito importante. No Velho Testamento, as coisas eram postas A parte, purificadas, consagradas e santificadas por aspersio. Os cantos do altar eram aspergidos com sangue, e sangue era aspergido diante da cortina do Lugar Santo (Lev. capitulo 4). O pecado era remido por aspersao com 4gua, na qual se langava as cinzas de uma novilha (Num. capitulo 19). O autor da Epistola aos Hebreus usa esse simbolismo. Ele fala sobre “tendo nossos coragées purificados da ma consciéncia” (Heb. 10:22) - sao purificados por asperséo com o sangue de Cristo. O Velho Testamento faz uso da aspersao para purificar, o que me parece significativo e importante. E ha, finalmente, este argumento, pelo que vale: milhares de pessoas iam a Jodo Batista, atendiam sua pregagaéo e eram batizadas por ele. Certamente, se 0 batismo por imersio, no sentido em que é geralmente aceito hoje, era a método do batismo de Joao, entéo o problema fisico envolvido entra neste argumento. Sumariando, parece-me que, a luz da evidéncia das Escrituras, a pratica nos dias do Novo Testamento era mais ou menos assim: a pessoa a ser batizada e a que batizava se punham em pé juntas na Agua. Se era no Rio Jordao, se punham de pé no Jordao, e aquela que batizava a outra mergulhava sua mo na Agua e aspergia a 4gua sobre aquela que estava sendo batizada. Obviamente nao estou em condigao de apresentar qualquer evidéncia, mas nos escritos dos diversos Pais ha muito que o 63 sugere, e, como jd vimos, isso parece-me adequar-se perfeitamente com 0 que sucedeu ao eunuco. Entretanto, certamente néo ha como chegar a alguma conclusao final, e portanto o tinico ponto de vista, a meu ver, que vale a pena alguém adotar é 0 que admite ambos os métodos. O modo do batismo nao é o elemento vital. A coisa significada é © que importa; é a selagem que conta, e quanto a mim estaria disposto a imergir ou a aspergir o crente. Se hé um suprimento adequado de 4gua, tal como o de um rio, creio que o melhor método é ficar de pé na 4gua e batizar dessa maneira. Eu nao recusaria até mesmo imergir completamente. O de que estou certo é que dizer que a imerso total é absolutamente essencial nao é sé ir além das Escrituras, mas é tender para a heresia, se nao for ser realmente herege. E atribuir importancia ao modo, ponto de vista que jamais poder4 ser consubstanciado nas Escrituras, e certamente esté fora de sintonia com a pratica que foi consistente em todo o Velho Testamento. Em conclusao, até onde posso ver, os que se dispdem a ser batizados devem ser crentes adultos. Nao consigo ver compro- vacao, como j4 tentei demonstrar-lhes, para o batismo infantil. Quanto ao modo, porém, pode ser a aspersdo ou a imerséo ou uma combinacao de ambos, o que pessoalmente creio ser mais biblico e o método pelo qual grande evidéncia pode ser produzida historicamente. Mas, havendo dito muito sobre quem deve ser batizado e como tal pessoa deve ser batizada, uma vez mais enfatizarei a importancia de se discernir que é por esse meio que Deus decidiu nao s6 assinalar, porém também selar-nos a nossa redencao, nosso perdao, a remissao de nossos pecados, nossa uniao com Cristo, nosso batismo nEle e nosso recebimento do Espirito Santo. E assim Deus Se inclina para a nossa fraqueza, autentica nossa fé, nos da seguranga, nos fortalece e nos fortifica quando somos atacados pelo diabo, o qual tenta levar-nos a incredulidade. O batismo é determinagao de Deus ¢, seja qual for 0 modo, nos lembra a coisa que é significada, a coisa que é selada. 64 5 A CEIA DO SENHOR Passamos agora A consideragéo da Ceia do Senhor. Este, igualmente, tem sido o tema de grande debate e controvérsia na Igreja Crista durante muitos séculos, especialmente desde a Reforma Protestante, e grandes e poderosas obras tém sido escritas sobre ele. Seria facil entrar em tudo isso, mas decidi nao fazé-lo, porque a maior parte das controvérsias que se tém suscitado, realmente suscitou-se nao com base em qualquer ensino biblico, mas, antes, por causa das adicdes ao ensino biblico pelas quais a igreja catélica romana e seus seguidores se 1ém feito responsaveis. Noutras palavras (digo isso por causa daqueles que se sentem. interessados no método como algo diferente da matéria), hd uma diferenca bem real entre teologia biblica e teologia sistemAtica. Teologia biblica significa doutrina que nasce diretamente do ensino da prépria Palavra. Nio podemos, porém, entrar numa consideragdo sistematica da doutrina sem também considerar o que tem sido ensinado na Igreja ao longo dos séculos. Ora, nesta série de prelegdes, estivemos tentando tratar de doutrinas biblicas, mas tenho feito referéncias, de passagem, a outros ensinos, porque julguei que todos nés temos ouvido algo sobre eles, e gostariamos de saber como eles vieram 4 existéncia, por que cremos serem eles err6neos e como dar-lhes resposta. Tenho tentado o melhor que me é possivel (vocés serao os juizes do éxito que porventura eu tiver) ater-me 4 doutrina biblica e evitar entrar demais na histéria das doutrinas. Portanto, se vocés se sentirem desapon- tados por eu nfo tratar de uma forma detalhada do ensino cat6lico-romano sobre a transubstanciacao, esse € meu motivo. Do contrério, creio que nossa série de prelegdes sobre doutrinas biblicas se tornaria quase interminavel. E assim selecionarei agora o que considero como sendo de real importancia. 65 S6 ha dois pontos de vista com respeito 4 Ceia do Senhor. O primeiro € 0 ponto de vista tipicamente catélico - e quando digo “catélico”, nao me refiro simplesmente aos catélicos romanos, mas também aos anglicanos-catélicos, bem como outros que pertencem aos vérios movimentos ritualisticos, até mesmo em algumas das igrejas livres. Certas sociedades sacramentalistas e sacramentais estao vindo a existéncia, e todas elas podem ser incluidas no titulo genérico de catélico. Existem pessoas que de uma forma ou de outra créem nesse ensino que atende pelo nometransubstanciagéo. Créem que em resultado da agao do sacerdote, 0 pao se transforma realmente no corpo fisico do Senhor Jesus Cristo. Ora, essa é aquela doutrina que, durante a Idade Média, comecou a surgir na Igreja Ocidental, a qual era, entaéo, nada mais, nada menos, que a igreja catélica romana, porém a doutrina nao foi definida por ela até 0 século doze. A transubstanciag4o, pois, continuou sendo a doutrina oficial da Igreja Ocidental (mas nao da Oriental) até a Reforma; e, como eu disse, é ainda defendida pelos catélicos romanos e outros. Os catélicos romanos tém engendrado uma grande filosofia em torno da transubstanciacao. Caso alguém pergunte: “Como é possivel acontecer isso, uma vez que ainda continuo vendo algo que se parece com pao, é branco e tem a textura e o sabor de pao?”, eles respondem que isso é perfeitamente correto. Acrescentam, porém, que tudo o que se vé pode ser dividido em duas seg6es ou divisées principais — a substdncia e os acidentes. Ora, como eu ja disse, nao quero entrar nisso detalhadamente, mas creio ser importante que saibamos algo sobre o assunto, visto haver tantas pessoas hoje que dizem ter sido abencoadas por esse ensino. E vocés vao descobrir sempre que, quando 0 verdadeiro protestantismo se torna sem vida e letaérgico surge em algumas pessoas estranha atracao pelo ensino sacramental, no qual n&o se tem nada a fazer senao receber 0 pio, e ele atua quase que automaticamente. Portanto, esse ponto de vista diz que a cor do pao nao tem nada a ver com a substancia do pio, mas é um dos acidentes, como sao a textura e o sabor, e que a 66 subst4ncia pode transformar-se sem afetar os acidentes. Por isso cré-se que a substancia do pao nao é mais 0 que era, sen4o que, por um milagre, transformou-se no corpo real do Senhor. E, por certo, crendo que 0 pao é agora essencialmente o corpo do Senhor, os cat6licos romanos o depositam num célice especial; adoram- -no; dirigem-lhe suas oragdes; chamam-no “héstia” e carregam a héstia em procissao. Pois bem, nao h4 necessidade de prosseguirmos com o assunto, porque até mesmo a igreja catélica romana esta disposta aadmitir que a doutrina nao pode ser provada a luz das Escrituras. Tentam pér forte énfase no fato de nosso Senhor dizer: “Isto é 0 meu corpo” (Luc. 22:19). Esse “€”, dizem eles, € profundamente importante. Afirmam que Ele nao diz: “Isto representa o meu corpo”, mas: “Isto é 0 meu corpo”, e devemos tomar Suas palavras literalmente. Existem muitas respostas claras a isso. Ali estava ainda nosso Senhor em Seu corpo, como, pois, poderia significar que o pao que ora tinha diante de Si era realmente Seu corpo? Ele estava falando no corpo no exato momento em que havia pao em Sua m4o. Essa é uma resposta. Mas ha outra resposta e, em muitos aspectos, ainda mais poderosa, resposta essa que os catdlicos romanos nunca podem contestar. Nosso Senhor iria dizer mais adiante: “Este célice éa nova alianga em meu sangue” (Luc. 22:20), e poderemos dizer- -lhes que, se insistirem sobre o “é”, num caso, ent&o teraéo que insistir sobre o “€”, no outro caso. Portanto, o vinho nao teria a menor importancia, mas o que importa é 0 calice, visto que Ele disse: “este cAlice”, nao o vinho dentro do célice. Com certeza no existe resposta para isso. Noutros termos, a tentativa de basear a doutrina da transubstanciagdo nessa tinica palavra é néo apenas antibiblico, e sim, certamente irracional. O fato € que a doutrina como um todo teve ingresso na igreja catélica romana simplesmente para pér em realce a posigaéo ¢ o status dos sacerdotes. Unicamente 0 sacerdote é que pode operar esse milagre e, visto que unicamente ele é quem pode fazer isso, entéo ele se torna correspondentemente muito importante. Ora, cerca de 1830, John Henry Newman (posteriormente 67 Cardeal Newman), Keble e outros comegaram o movimento anglicano-catélico neste pais. Entéo, muito deliberadamente disseram e nao se envergonhavam de dizer que acreditavam que a tnica forma de salvar a Igreja Anglicana (visto ela estar, entao, em péssimas condigées) era exaltar a posigéo do ministro - 0 sacerdote. E escolheram um dos métodos da época mais honrados de fazer isso, a saber, adotaram a antiga doutrina da transubs- tanciagao. Vocés percebem que estou sendo tentado a fazer 0 que nao quero-— e estou pondo em pratica a muito recomendavel graga restringedora — porém devo manter minha palavra e refrear-me de entrar em detalhes adicionais. Essa, contudo, em sua esséncia, € a posicao. Ora, os luteranos tém um ponto de vista ligeiramente diferente. Nao créem na transubstanciacio, e, sim, naquilo que chamam de consubstanciagdo. Dizem que os catélicos estao errados, € que nao existe nenhuma mudanga na substancia do pao. O pao continua sendo ainda pao, mas 0 corpo do Senhor se junta a ele (con significa “com”, dai con-substancia). Portanto créem que possuem a ambos: 0 pao ¢ o corpo do Senhor, a um sé tempo; 0 corpo de nosso Senhor est4 com e sob o pao. Por certo que isso ndéo muda muito a posigdo, e € muitissimo insatisfatéria. Lutero, tendo visto no inicio esse fato claramente, depois fraquejou e, sendo influenciado por alguns de seus amigos, retrocedeu a um compromisso muito prejudicial e insatisfatério com a antiga posigao catélica. Acho que seria interessante, também, observar 0 ponto de vista diferente defendido pelos reformadores protestantes. Devo lembrar-lhes que ja fiz referéncia ao ponto de vista de Zwinglio relativo 4s ordenangas (capitulo 3). Ora, Zwinglio foi coerente consigo por considerar que a Ceia do Senhor é simplesmente um sinal e uma comemoracaio. Mas quando chegamos ao ponto de vista reformado, descobrimos uma vez mais, como j4 vimos no batismo, que a ordenanga nao é apenas um sinal, e sim, também um selo. JA discorremos satisfatoriamente esse ponto quando focalizamos as ordenancas em termos gerais, e agora temos simplesmente que aplicar esse 68 ensino a Ceia do Senhor. E assim formulemos a pergunta vital: o que significa a Ceia do Senhor? E nAo existe dificuldade alguma em responder a isso. A primeira coisa implfcita é a morte do Senhor. Paulo afirma isso explicitamente em 1 Corintios, capitulo 11. Diz ele: “Porque todas as vezes que comerdes deste pao e beberdes do calice estareis anunciando a morte do Senhor até que ele venha” (v. 26). O partir do pao e o tomar ou o beber do vinho séo uma represen- tagdo do corpo partido de nosso Senhor, Seu sangue derramado. Essa é a coisa primaria que se acha implicita nesse ato, e em 1 Corintios, capitulo 11 Paulo, especificamente, nos manda fazer isso porque é dessa forma que proclamamos a morte de nosso Senhor. E, outra vez, quero sublinhar algo que consideramos anteriormente. Porventura néo vemos aqui uma maravilhosa provisao feita pelo proprio Senhor? Pois tém havido perfodos na historia da Igreja nos quais a morte do Senhor foi raramente proclamada dos ptlpitos. Ela tem sido negada; tem sido mal entendida e mal usada. Sim, mas nosso Senhor dera este mandamento — como diz Paulo: “Porque recebi do Senhor o que também vos entreguei” (1 Cor. 11:23)- como também Ele ordenou aos outros apéstolos nos mesmos termos (Luc. 19,20). Ainda que 0 ptlpito haja fracassado, a Ceia do Senhor continua ainda declarando, proclamando, pregando a morte do Senhor, e com freqiiéncia tem havido grande desar-monia, para nao dizer contradic&o, entre a pregacaéo do homem e a pregacao do pao e do vinho a4 mesa da comunhio. A Ceia do Senhor, porém, é igualmente uma declaragiio e um sinal da participagéo do crente no Cristo crucificado. Estamos em comunh4o com Ele. Ela nos lembra da nossa unido com Ele e, portanto, de nossa participagéo em Sua morte. Vocés se lembram do rico ensino sobre isso em Romanos — que estamos em Cristo e, devido estarmos em Cristo, morremos com Ele, fomos sepultados com Ele e ressuscitamos com Ele. Mas, além disso - e isto é extremamente importante — a Ceia do Senhor nos €é um memorial e uma declaragio de que afinal participamos dos beneficios da nova alianga. Isso, uma 69 vez mais, emana das palavras do apéstolo em 1 Corintios 11:25: “Semelhantemente também, depois de cear, tomou o calice, dizendo: este célice € 0 novo pacto no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memoria de mim”. Ora, quando discorremos sobre a morte do Senhor e da doutrina a ela concernente (ver volume 1, Deus o Pai, Deus o Filho), demonstramos como o derramar do sangue na morte do Senhor foi também a ratificagéo do novo pacto. Lemos sobre esse novo pacto na Epistola aos Hebreus, no oitavo capitulo, no décimo capitulo, em particular, e indubitavelmente também no nono. Assim, pois, a Ceia do Senhor nos é memorial que em e através de nosso Senhor Jesus Cristo, Deus fez com os crentes um novo pacto. Cristo é o mediador do novo pacto. Ele é 0 cabeca e representante da humanidade nesse novo acordo, nesse novo e maravilhoso pacto que Deus fez com os homens e as mulheres. Em Hebreus, capitulo 8, deparamos com esse notavel contraste entre os dois pactos, ¢ é muito interessante notd-los, “Porque repreendendo-os, diz: eis que virao dias, diz o Senhor, em que estabelecerei com a casa de Israel e com a casa de Jud4 um novo pacto. Nao segundo o pacto que fiz com seus pais no dia em que os tomei pela mao, para os tirar da terra do Egito; pois néo permaneceram naquele meu pacto, e eu para eles nao atentei, diz o Senhor. Ora, este € 0 pacto que farei coma casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor; porei as minhas leis no seu entendi- mento, e em seu coracao as escreverei; eu serei o seu Deus, e eles serio o meu povo; e nao ensinar4 cada um ao seu concidadao, nem cada um ao seu irmao, dizendo: Conhece ao Senhor; porque todos me conhecerdo, desde 0 menor deles até o maior. Porque serei misericordioso para com suas iniqilidades, e de seus pecados nao me lembrarei mais” (Hebreus 8:8-12). E assim, toda vez que nos reunimos para celebrarmos a Ceia do 70 Senhor, estamos declarando este novo pacto e o contetido do novo pacto do qual somos lembrados ali em Hebreus, capitulo 8. Vocés percebem quao tremenda coisa é reunir-se 4 mesa e tomar 0 pao e o vinho? - Sim, mas nao paramos nem ai. Demais disso, somos lembra- dos, através da participacéo do pao e do vinho, que nés, como crentes, recebemos do Senhor Jesus Cristo pessoalmente vida e forca para vivermos a vida crista. Os versiculos que nos dizem isso se encontram em Jodo, capitulo 6. Ora, esta segio do Evangelho de Joao tem sido a causa de considervel controvérsia devido ao seguinte: estaria ou nao aqui nosso Senhor Se referindo a Ceia do Senhor? Defendo 0 ponto de vista de que Ele nao estava fazendo referéncia 4 Ceia, e por esta boa razio: naquela ocasiao, os discipulos eram claramente incapazes de receber tal ensino. Nosso Senhor sé comega realmente a tratar disso no fim do Seu ministério, no cendculo. Os catélicos romanos, contudo, dizem que Joao, capitulo 6, é uma referéncia 4 Ceia do Senhor — ela se ajusta ao argumento deles — e assim procedem os que os seguem. Mas ainda que Joao, capitulo 6, nao seja uma referéncia @ Ceia como tal, expressa-se uma verdade nos versiculos 56 e 57 que certamente pode ser aplicada nesta altura. Nosso Senhor diz: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como 0 Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, quem de mim se alimenta, também viver por mim”. Ora, nosso Senhor mesmo continua a explicar que isso € apenas uma figura: “Mas, sabendo Jesus em si mesmo que murmuravam disto os seus discipulos, disse-lhes: isto vos escandaliza? Que seria, pois, se visseis subir o Filho do homem para onde primeiro estava? O espirito € o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito sao espirito e sdo vida” (vv. 61-63). De fato Ele esté dizendo: “Vocés devem comer-Me. Devem comer Minha carne e beber Meu sangue. Isto é, devem viver em Mim. Como 0 Pai Me enviou, e Eu vivo pelo Pai, assim também Eu os estou enviando, e vocés devem viver por Mim.” Essa era uma participacdo espiritual. Ele nao diz que 7 Se alimentava literalmente da substancia de Seu Pai celestial, claro que nao! E uma concepcdo espiritual: “(Minhas palavras) sao espirito e sao vida”. Portanto devemos viver do Senhor Jesus Cristo. Ele é nossa vida. E assim 0 pio e 0 vinho nos fazem Jembrar dEle. Represen- tam-nO, séo uma figura, um retrato dEle. Quando realmente tomamos o pao e 0 comemos, quando bebemos o vinho e 0 absorvemos, devemos dizer: “Sim, eu devo alimentar-me do Senhor como Ele me disse. Devo viver dEle. Devo participar dEle. Como Ele participava do Pai, assim eu me alimentarei dEle, nao num sentido fisico, e sim, espiritual. O pio e o vinho me fazem lembrar que devo comer a carne e beber o sangue do Filho do homem num sentido espiritual, caso eu queira ser um cristaéo forte, viril e vitorioso”. Ha algo mais que é representado pelo pao e pelo vinho, e € 0 seguinte: a uniao dos crentes uns com os outros. Estéo todos eles nao sé unidos a Cristo; estdo todos eles unidos uns aos outros. Ora, o apéstolo Paulo ensinou isso em 1 Corintios, capitulo 10, em cujo capitulo devemos sempre prestar detida atengao. Escreve ele: “Porventura 0 célice de béngdo que abengoamos, nao é a comunhao do sangue de Cristo? O pao que partimos, nao € porventura a comunhao do corpo de Cristo?” A seguir, observem isto: “Embora muitos, somos um s6 p&o, um s6 corpo; porque todos participamos de um mesmo pao” (1 Cor. 10:16, 17). Ora, vocés percebem o que Paulo est4 ensinando af? Ele diz que, ao participarmos de Cristo, nos tornamos um; nos tornamos, se vocés preferirem, um s6 pao. H4 quem diga que 0 versiculo 17 deve ser traduzido assim: “Pois, sendo muitos, somos uma sé massa” — nao um sé pao — “e um 86 corpo”. Por isso, quando celebramos a Ceia e 0 pao é partido, somos lembrados a um e a0 mesmo tempo das partes e do todo. O termo comunhdo, portanto, representa nao s6 nossa comunh4o com o Senhor, mas também nossa comunhdo uns com os outros. Somos jungidos com Ele porque estamos todos nEle, e essa é a razdo por que, no capitulo 11, 0 apdstolo prossegue para nos dar o ensino que ele nos da. Na verdade diz ele: “Vocés 72 estéo negando o préprio principio da comunhao. Alguns de vocés estéo comendo demais, enquanto outros nado tém o suficiente para comer. Vocés sao egoistas, sdo divididos, mas todos vocés devem ser um so. Devem esperar uns pelos outros”. “Acaso nao percebem”, pergunta o apéstolo, “que estao negando uma das coisas centrais ensinadas pela Ceia do Senhor — que vocés sio todos um? Devem levar as cargas uns dos outros, devem compartilhar uns com os outros 0 que possuem, porque s4o todos partes da mesma massa, do mesmo pao. E é inttil dizerem que tém comunhfo com Ele se nao estéo em comunhao uns com os outros.” Paulo fala acerca das divis6es e das heresias, e os condena porque contradizem tudo o que é representado pela Ceia do Senhor. Ai, entao, est&o as coisas principais que estéo implicitas ou retratadas pela comunhao da Ceia do Senhor. Mas, gragas a Deus, nado para ai. Esse ato, essa comunhio, essa ordenanga, nao s6 significa, mas também sela, todos os beneficios a que tenho me referido; por isso, quando tomamos a Ceia, nao apenas nos lembramos de algo, estamos nao sé nos dedicando a um ato memorial ou comemorativo, nem estamos meramente colo- cando nossos distintivos de membros de igreja, ainda que estejamos fazendo isso. Mas, muito mais que isso, quando recebemos o pao eo vinho, Deus esté nos dizendo que somos participantes dos beneficios desse novo pacto. Ele (o pacto) sela a todos nés. Sela todas essas promessas de Deus. Asseguram-me que Ele morreu por mim, que estou jungido a Ele, que morri com Ele e que ressuscitei com Ele, E como entregar-me um documento com um selo nele: “Ai esta, € todo seu”. O novo pacto de Deus com o homem me pertence. Ele o fez comigo. Ele o esté entregando a mim. Ele o esté dando a mim. Como um anel de noivado ou de casamento é uma garantia a pessoa que o esta usando, do amor do outro, assim 0 pao eo vinho séo uma especial garantia a nés dada por Deus em Seu amor e condescendéncia, a fim de que, quando os tomarmos, saibamos que Ele nos esta concedendo todos esses beneficios. Qu4o vital e importante é que compreendamos isso ao 73 achegarmo-nos 4 mesa da comunhao! Todo ministro lhe contar4 que é freqiientemente interrogado sobre a importancia da Ceia do Senhor. Pessoas tém vindo a mim e dito: “Sabe, eu nao sei como agir na Ceia do Senhor”. E tenho conhecido pessoas que, por essa razao, tém visto nela uma ceriménia até mesmo penosa. Elas tém observado que na Ceia do Senhor certas pessoas choram silénciosamente, e me dizem “eu nunca chorei e nem mesmo o consigo”. Vocé tem experimentado isso? E claro que me lembro de quando era jovem cristéo, tentava produzir lagrimas pois cria ser esse um procedi- mento correto, e descobri que me era impossivel. As vezes ha muito sentimentalismo a respeito, e as pessoas ficam desesperadas porque nao compreendem o que est4 acontecendo, e porque sentem que é preciso haver alguma sensag4o singular. Ea resposta est4 nesta doutrina que ora consideramos juntos. Ao tomarmos 0 pio e 0 vinho juntamente na Ceia, estamos declarando “a morte do Senhor até que ele venha” (1 Cor. 11:26). Sim, mas é preciso lembrar que no estamos apenas represen- tando essas coisas; Deus esté também declarando-nos coisas. Ele est4 selando-nos coisas. Lembrem-se disso, individualmente. Diga: “Deus aqui esta dizendo-me que estou no novo pacto, que sou filho dEle, que Ele me adotou, que todas as béngéos e os beneficios desse novo pacto em Cristo me pertencem e estéo vindo a mim, e nesse momento eu agradeco a Deus por eles”. Noutras palavras, vocé deve sempre sentir gratidéo nessa ceriménia. H4 quem achame de Eucaristia, eo termo “eucaristia” significa “acdo de gracas”. Nao permitam que os catdlicos lhes roubem esse termo. Assim como 0 jovem d4 um anel ao objeto de seu amor, Deus escolheu esse método de expressdo para nos comunicar: “Dou-lhes os beneficios da morte de Meu Filho e de Sua vida, tomem livremente dEle, vivam dEle e compreendam o que estou fazendo por vocés nEle e através dEle.” Assim como tomamos 0 pao e 0 vinho, lembremo-nos de que eles selam para nos todas essas gloriosas e maravilhosas coisas, Finalmente, quem deve participar da Ceia do Senhor? Aqui uma vez mais a resposta é perfeitamente definida e clara: somente 74 os crentes. Se nao discernimos 0 que estamos fazendo, nao h4 nenhuma razéo nem propésito no ato. Todo o nosso ponto de vista desta ordenanga, bem como também da outra ordenanga, consiste em que ela depende da f€. Nao cremos que esta age mais automaticamente do que o batismo, N&o cremos na teoria da igreja catélica romana que esta opera em sua propria forca e através de seu inevitavel poder, ex opere operato, porque a graca esta nela - absolutamente nao. Nao ha valor em comer 0 pio e beber o vinho, se nao agimos assim pela fé. Como j4 vimos, nio ha nada no péo, no ha nada no vinho como tais. A fé é essencial, por isso a Ceia € somente para os crentes. Sim, mas para crentes fracos, até mesmo para crentes pecaminosos. Nio temos que ser perfeitos para podermos participar. Existe uma histéria maravilhosa acerca do famoso Rabino Duncan, aquele grande escocés, professor de hebraico que ensinava no New College em Edinburgo no século dezenove. Em certa ocasiao ele ministrava a Ceia do Senhor, e passou a observar 0 que sucedeu quando os anciaos safram a distribuir os elementos. Observou uma mulher angustiada na congregagao que chorava copiosamente, mas quando os elementos chegaram a ela, os recusou. Ele a viu recusar 0 pao; viu-a recusar 0 vinho; €, a0 notar isso, ele entendeu exatamente o que sucedia. A mulher tinha tal consciéncia de seus pecados, que sentiu nAo ter o direito de participar daqueles elementos. Entao ele foi, tomou 0 cAlice, foi até ela e lhe disse: “Mulher, tome-o; tome-o porque Ele morreu pelos pecadores”. Isso é perfeitamente correto. A mulher estava arrependida. Um pecador que sente-se arrependido tem pleno direito, como qualquer outro, de tomar o p4o e o vinho — talvez com mais direito. Sim, mas isso é algo bem diferente de viver em pecado. O apéstolo condena os que tomam 0 pio ¢€ o vinho quando estéo vivendo em pecado e nao esto arrependidos. Ele proibe tal procedimento, como tem feito a Igreja ao longo dos séculos quando exerceu a disciplina. Mas quando vocés se arrependem, e em seu arrependimento se lembram das coisas que lhes sao seladas pelo pao e 0 vinho, e se o fazem sinceramente, entdo 75 terminarao agradecendo a Deus ~ ela sera para vocés uma genuina Eucaristia. E prosseguirao seu caminho com alegria. E cada um dir4 a si mesmo: “Sim, viverei em Cristo. Comerei Sua carne e beberei Seu sangue pela f€. Doravante viverei nEle e nao cairei em pecado”. Portanto vocé se vai com sua consciéncia purificada, com alegria em seu coragdo por haver sido perdoado dos pecados € com a certeza de nova forga, vida e poder, dos quais vocé antes nao tinha consciéncia. Portanto dizemos que esta ordenanga deve ser recebida legitimamente pela fé; e se no podemos recebé-la pela fé, entdo € melhor abster-nos, porque Paulo ensina que, se as pessoas nao se examinarem, se nao se examinarem, nAo se julgarem, nao se condenarem e nao deixarem seus pecados, serao julgadas. Diz ele: “Por causa disto — por nao se examinarem — ha entre vés muitos fracos e enfermos, ¢ muitos que dormem” (1 Cor. 11:30). Ele est4 especificamente ensinando que alguns membros da igreja em Corinto eram fracos e outros eram doentes porque nao se julgavam como deveriam, e nao se purificavam; vinham, porém, a mesa do Senhor indignamente, ¢ 0 resultado era que Deus os havia disciplinado. Paulo diz que, se julgarmos a nés mesmos, nao seremos julgados. Mas quando Deus nos julga e nos disciplina, somos “disciplinados pelo Senhor, para que nao sejamos condenados com o mundo” (v. 32). Isso significa que, se nao dermos ouvidos 4 pregagdo e 4 exortac4o, entao podemos tornar-nos fracos; podemos tornar-nos doentes; podemos ser lembrados da morte e encher-nos de temor. Entéo comecaremos a perguntar: “Por que esté acontecendo isso?” E enfrentaremos nosso pecado, arrependidos e reanimados, e assim evitaremos a condenagao futura. Existe ai, alids, uma frase misteriosa: “e muitos que dormem” (1 Cor. 11:30), a qual significa que muitos morreram porque nao julgaram-se a si préprios. Néo entendemos isso, todavia é claramente ensinado aqui que essas pessoas morreram porque Deus as castigou dessa forma. Nao quer dizer que se perderam, mas significa que Deus as disciplinou mesmo através da prépria morte. Por isso sofrerfo algum tipo de perda na 76 eternidade. Lemos em 1 Corintios, capitulo 3, que as obras de alguns se queimarao — as de “madeira, feno, palha” (v. 12). Sofrerao perda, mas sero salvos “como que pelo fogo” (v. 15).O ensino de Paulo em 1 Corintios 11:30 provavelmente signifique algo semelhante a isso. Por conseguinte, quando nos achegamos a essa mesa, 4 Ceia do Senhor, devemos trazer todas essas coisas 4 mente, e ao agirmos assim, ela nos sera um veiculo de imensuravel béngao. Sim, entretanto lembremo-nos de que esta ordenanga nao faz mais do que faz a Palavra. Nada faz além da pregacao. Eu disse isso do batismo; devo ainda dizé-lo. Nao ha na Ceia do Senhor nenhuma graga nova ou adicional. Nao, o que ela faz é selar a eficdcia da Palavra; ela confirma nossa recepgao da graca. Nao ha nenhuma graga especial. Nao ha ai nada que vocé nao possa ter em qualquer outro lugar. Ha quem diga que aceriménia suprema na Igreja é a Ceia do Senhor; eu, porém, nao encontro qualquer evidéncia biblica para isso. Nao, a ordenanca suprema — se preferirem chamé-la assim — 0 supremo meio da graca na Igreja, é a Palavra, a Palavra pregada e ensinada. Este é apenas outro meio de fazer isso. E um meio notavel e especial, mas nao nos confere uma graca extra, especial. O que ela faz é intensificar a graca, fazé-la mais eficaz em nés. Voltem 4 minha ilustrago: 0 homem que poe o anel no dedo de sua amada nao a ama mais nesse momento do que a amava antes, e no entanto ela esté recebendo algo nessa intensa maneira que suas declaragées nao transmitem. E é exatamente o mesmo que sucede com a Ceia do Senhor e com a participacaéo do pao e do vinho. E um dos meios que Deus usa para fazer Sua palavra eficaz em nés. E um retrato, é algo que os olhos podem ver. E assim agradecemos a Deus esta ordenanga, e sempre nos levantamos dela sentindo- -nos fortalecidos, edificados, estabelecidos na fé e triunfantes em nossa grande salvagao. 77 6 MORTE E IMORTALIDADE Nos cinco estudos anteriores estivemos analisando a doutrina das ordenangas da Igreja. Passamos agora a analisar outra grande area do ensino biblico, que éa doutrina das iltimas coisas, ou, fazendo uso do termo técnico, escatologia. O termo “escatologia” vem da mesma raiz que a expressio “escada rolante”: vocé sobe para as iltimas coisas, o climax, o fim. Escato- logia é uma doutrina biblica muito importante, e todos nés nos sentimos curiosos e preocupados com ela. Essa é uma reagao totalmente inevitével. Quer gostemos, quer nao, temos de encarar a morte, e podemos dizer com reveréncia que, se 0 ensino biblico nao tratasse do assunto das ultimas coisas, entao ele seria incompleto. Contudo, essa é a grandeza e a maravilha deste livro. Ele tem recursos para a totalidade da vida, todo aspecto, toda 4rea, toda fase. Nao ha nada que pertenca 4 vida da humanidade que nao encontramos tratado nas Escrituras, e tratado de maneira cabal . Aqui, pois, estao algumas das perguntas que estaremos analisando: o que é a morte? O que sucede depois da morte? Ao que nossa vida conduz? O que é 0 futuro? Que diremos do futuro? Analisaremos essas questdes de duas formas principais. Todos nds queremos conhecer nosso préprio destino e 0 futuro pessoal. Mas, além de tudo isso, estamos naturalmente interessados na questéo mais importante: o que esta para acontecer ao mundo inteiro? Geragéo sucedendo geracao. Isso prosseguiria inter- minavelmente, para todo o sempre, ou haveria um limite para tal processo? Esse € 0 destino ao qual todaa doutrina das tltimas coisas nos leva. Por isso, quando visualizamos essas questées, nao somos estimulados por algum mero interesse teérico ou académico. Cada um desses temas é intensamente prtico, e é 0 dever do cristéo familiarizar-se com o ensino biblico a respeito. 78 Hoje ha um novo e vivo interesse com respeito a essa secao da doutrina biblica. Durante a primeira parte do século vinte e fins do século dezenove, houve pouco interesse sobre escatologia. Ao falar assim, estou me referindo 4 Igreja Crista em geral, porque uma das coisas que tém diferenciado os cristaos evangélicos dos outros, é que os evangélicos sempre deram grande importancia a esta doutrina. Para a grande maioria do povo cristéo, porém, toda a idéia do reino de Deus se aplicava somente 4 vida neste mundo. O povo cristéo gastou seu tempo em falar sobre a “introdugio do reino”, significando com isso a melhoria das condigées sociais neste mundo. Por varias razées, sendo uma das principais, naturalmente, 0 avango do conhecimento cientifico e as falsas deducdes desse conhecimento, as pessoas chegaram & conclusio (falando de modo geral) que nao ha vida apés a morte, que esta é a tinica vida e este o Gnico mundo. Sentiam que as pessoas sao, afinal, meros animais, e quando alguém morre se assemelha 4 morte de um animal. E essa, diziam elas, é€ o fim da historia. E assim nao havia qualquer interesse nessa proeminente questao do futuro do mundo. A vida era mais ou menos serena ¢ confortavel. As condigées eram mais ou menos présperas e todo © mundo estava interessado neste mundo. Quando veio a Primeira Guerra Mundial, porém, ea vida que parecia tao segura, tao estavel e tao bem estruturada evidenciou-se ser algo ilusdrio. Tudo tornou-se incerto e desestruturado novamente, e a Segunda Guerra Mundial, claramente acentuou tudo isso. O advento da bomba atémica deu grande impulso aos estudos sobre as iltimas coisas. Todo o mundo hoje sente que a totalidade da vida é completamente incerta, de modo que as pessoas passaram a perguntar outra vez: que é isso? E como terminar4? Que é morte? Nao parece haver muita esperanca neste mundo — haveria mais esperanca no proximo? Existiria um mundo vindouro? A questio toda vem novamente 4 tona. Cabe-nos, pois, conhecer o ensino biblico acerca dessas questées a fim de podermos responder as perguntas das pessoas, ¢ nesse tempo de inseguranca ajudé-las a conhecerem exatamente o que a Biblia diz. Com efeito, no tempo 79 presente, este tema constitui indubitavelmente um dos meios mais frutiferos de evangelismo. _ Antes de tudo, focalizemos este problema do Angulo pessoal, individual. Creio ser essa a ordem natural. As pessoas comegam consigo mesmas e dizem: “Aqui estou. O que vai acontecer comigo? Minha vida esté cheia de incerteza; ent4o, o que vai sobrar para mim? Antes de comegar a pensar no que esta para acontecer ao mundo todo, qual éa verdade em relagio a mim?” E isso nos pée imediatamente face a face com a questéo da morte e com o ensino biblico acerca da morte. Nao é extraordinério como as pessoas detestam e evitam este tema? E muito natural, sem duvida, no caso dos incrédulos, porquanto nao tém nenhuma esperanga com respeito A morte, mas é espantoso que cristéos também tendam a evitar o assunto da morte. O que a Biblia nos diz sobre a morte? A primeira coisa € esta: a morte no é mera cessag4o de existéncia. O conceito comum defendido pelo mundo é que a morte € apenas o fim da-vida. Morte significa, dizem, cessag&o de existéncia. Uma pessoa existe; ela morre; ela deixa de existir e esse é o fim de tudo. Esse, porém, nao é de forma alguma 0 conceito biblico! Na verdade, 0 ensino biblico € precisamente 0 oposto, como tentarei mostrar-lhes. Os escritores biblicos anelam asseverar e enfatizar que a morte ndo significa cessagao de existéncia. Morte, segundo a Biblia, é simplesmente a separacdo entre a alma e o corpo fisico. Aqui estamos vivendo esta vida, e a alma e 0 corpo estéo intima-mente conectados; séo uma unidade. Minha alma age em e através do meu corpo. Quando eu morrer, minha alma deixaré 0 corpo. Meu corpo ser4 ainda deixado aqui neste mundo; minha alma continuard. E assim a morte €a separacéo entre a alma e 0 corpo, mas de forma alguma significa a cessagao de existéncia. Ora, eu poderia apresentar-lhes muitos textos. Dois muito importantes encerram toda a questao. O primeiro é Lucas 12:4,5. Aqui nosso Senhor diz aos discipulos: “Digo-vos, amigos meus: nao temais os que matam o corpo, e depois disso nada mais 80 podem fazer. Mas eu vos mostrarei a quem é que deveis temer; temei aquele que, depois de matar, tem poder para langar no inferno; sim, vos digo, a esse temei”. Ou, como lemos na passagem paralela, Mateus 10:28: “temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”. Existem certas pessoas que podem destruir 0 corpo. Nosso Senhor diz que nao devemos temé-las. Devemos temer, sim, Aquele que pode destruir tanto a alma como o corpo, E 0 ensino do nosso Senhor em Lucas, capitulo 16, sobre Lazaro e 0 rico obviamente ensina a mesma coisa. O rico morre; o pobre, Lazaro, o mendigo junto a sua porta, também morre. Ambos deixam seus corpos para tr4s; suas almas, porém, estéo 14, existindo naquela outra esfera: é a separag4o entre a alma e o corpo. Essa é a definicao biblica fundamental da morte. E assim, a proxima pergunta é esta: por que morremos? Por que existe inevitavelmente essa coisa chamada morte? Aqui, o ponto de vista popular, o ponto de vista filoséfico, é que a morte é inerente a vida, que a morte é uma parte do processo da vida. A vida vem a existéncia: ha um comego, uma germinacao. E isso € seguido de um processo: a vida se desenvolve, desabrocha, amadurece, alcanca sua plena maturidade, e entéo comeca a decair. Por qué? E porque a vida se destina a avangar até certo ponto, mas nao além disso, e quando atinge seu topo, ela comega a descer 0 outro lado da colina. Portanto, o conceito consiste em que, quando a vida foi constituida, ela trouxe em seu seio 0 germe, a semente, da morte. Isso, todavia, uma vez mais esté longe de ser 0 ensino biblico. De acordo com a Biblia, a morte n&o faz parte da vida, nado é algo inerente a ela, e sim, é o castigo devido ao pecado. Foi introduzida por causa do pecado. Descobriremos isso em Génesis 2:17: “porque no dia em que dela comeres, certamente morrer4s” — ou, “morrendo, morrerds”. Jé analisamos isso no inicio destas prelegdes (ver volume 1, Deus 0 Pai, Deus o Filho). Achamos exatamente 0 mesmo ensino em Génesis 3:19. E o achamos no Novo Testamento, em Romanos, capitulo 5, onde o apdéstolo Paulo mostra como a morte entrou 81 em virtude do pecado de Addo: “Portanto, assim como por um s6 homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porquanto todos pecaram” (v. 12). Vejam vocés que a morte veio através do pecado. Ha outra declaragéo muito importante do mesmo ensino na Epistola de Tiago: “Cada um, porém, é tentado, quando atraido e engodado pela sua propria concupiscéncia; ent&éo a concupis- céncia, havendo concebido, dé 4 luz o pecado; e 0 pecado, sendo consumado, gera a morte” (Tiago 1:14,15). Portanto, o ensino biblico é que a morte foi introduzida como castigo de Deus por causa do pecado. Nao existia a morte até que o homem pecou, e jamais existiria a morte se o homem nio tivesse pecado. Eis aqui um principio biblico vital, e ele contraria totalmente a popular filosofia moderna que domina o ensino da vasta maioria das pessoas. JA vimos, pois, que morremos como resultado do pecado, e ja vimos o que morte significa. Neste ponto, porém, muitas pessoas se encontram em dificuldade. Elas dizem: “Tudo bem, eu aceito isso, mas o problema que trago comigo ainda é este: “Por que um cristéo, um crente no Senhor Jesus Cristo, tem de morrer?” Diz ainda tal pessoa: “Admito que a morte era 0 castigo pelo pecado, mas, afinal, se j4 cri no Senhor Jesus Cristo, meus pecados estéo perdoados. Estou justificado. Estou reconciliado com Deus. “Agora, pois, j4 nenhuma condenagao hd para os que esto em Cristo Jesus.” (Romanos 8:1). Por que, pois, um cristao tem de morrer?” Ora, essa € uma questéo muitissimo interessante e importante, e ha para ela certa subdivisio. Muitas pessoas argumentam exatamente da mesma forma, dizendo que 0 cristéo nao deveria jamais adoecer, porque a morte de Cristo na cruz tratou de todas as conseqiiéncias do pecado. Esse mesmo argumento tornou-se a base dos movimentos populares e modernos da “cura pela fé” — bem como das seitas. Os que créem nisso afirmam que o cristao jamais deveria adoecer, porque a cura é uma parte da expiagao, e citam Mateus 8:17, que é, por 82 sua vez, uma citagao de Isaias 53:4, a qual declara que Cristo levou sobre Si nossas enfermidades. Dizem que, quando Cristo morreu na cruz, Ele cancelou todas as conseqiiéncias do pecado. Portanto, é importante que retenhamos juntas essas duas idéias, porque é indubitavelmente certo que a morte, nesse aspecto, nao foi atingida na expiagao. Com respeito 4 morte fisica, 0 verdadeiro crente tem de morrer, tanto quanto o incrédulo. Estamos aguardando “a redengdo do corpo”, significando que aguardamos que 0 corpo seja libertado da morte, do pecado e da enfermidade. Todos fazem parte da mesma categoria — séo mortais. Aprouve a Deus permitir que a enfermidade persista, que a morte persista e que o pecado persista, mesmo no cristéo. Ele poderia ter-nos tornado imediatamente perfeitos, caso tivesse decidido pro- ceder assim. Poderia ter abolido a morte e toda enfermidade imediatamente, mas Ele n4o decidiu agir assim. O ensino das Escrituras é perfeitamente claro nesses aspectos, e dizer que a expiacao ja tratou de todas as conseqiiéncias do pecado, sem restrigao alguma, é mal entender a expiagdo tanto com respeito a4 enfermidade quanto a morte. A expiacdo fez isso por alguns de imediato. Por fim, ela faré isso por todos os remidos. Portanto, parece claro que os cristéos permanecem ainda sujeitos ao sofrimento, 4 doenca e a morte, como parte do processo de sua santificagao. Eles fazem parte do castigo divino ~ver Hebreus 12:3-13 - para que 0 cristéo diga hoje, como disse o salmista no Salmo 119: “Foi-me bom ter sido afligido”, e “Antes de ser afligido, eu me extraviava” (vv. 71 e 67). Hé também aquele ensino em | Corintios, capitulo 11, relativo 4 Ceia do Senhor, 4 qual nos referimos na prelegdo anterior, que devido algumas pessoas nao se examinarem elas tornaram fracas e doentes. A doenga faz parte do processo de disciplina divina. Nao significa que toda vez que adoecemos estamos necessariamente sendo castigados pelo pecado. Mas € possivel que esse seja 0 caso. Nao h4 a menor sombra de diivida de que a morte, assim como a doenga, é um dos meios que Deus utiliza para santificar- -nos. Constantemente o medo da morte tem sido uma béng&o 83 para o povo cristéo. Tem havido cristéos que, arrebatados pelo sucesso neste mundo, comegaram a desviar-se, esquecendo-se de Deus e do seu relacionamento com Ele. Mas, subitamente foram assaltados pela enfermidade ou viram alguém morrendo, e isso os fez lembrar da morte e os fez retroceder, e Deus os livrou de seus desvios. Parece-me que Deus decidiu usar a enfermidade e a morte da mesma forma que Ele usou as nacdes que deixou ficar na terra de Canad com 0 intuito de aperfeigoar os filhos de Israel, quando os fez sair do cativeiro egipcio. Mas, apresso-me a acrescentar que, embora 0s cristaos estejam ainda sujeitos 4 morte, sua visdéo da morte deve ser inteiramente diferente da visdo que tém os incrédulos. Por qué? Por causa do que eles sabem. Por exemplo, vocés podem ver isso naquela grande afirmagio de 1 Corintios 15:55. Cada um de nés deve ser capaz de olhar na face da morte e dizer: “Onde esta, 6 morte, a tua vitoria? Onde est4, 6 morte, 0 teu aguilhio?” Em Cristo, sabemos que “o aguilhao da morte é 0 pecado; e a forca do pecado éa lei. Gragas a Deus, porém, que nos dé a vitéria por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 56). Isso néo quer dizer que falamos da morte de forma displicente, vaga e desrespeitosa; significa, sim, que sabemos que seu aguilhdo ja foi arrancado pela morte expiatéria de Cristo e pela satisfagéo que Ele deu & lei. Sabemos também que 0 ensino do apéstolo Paulo sobre a morte € que ela é “lucro”: “Tendo desejo de partir eestar com Cristo”, diz ele, “ que é muito melhor” (Fil. 1:21-23), enquanto Apocalipse 14:13 nos diz: “Bem-aventurados 0s mortos que desde agora morrem no Senhor”. Portanto, até aqui estivemos analisando a questio da morte propriamente dita, e ponderamos sobre por que 0 cristo tem que morrer. A préxima questo que se segue é esta: 0 que sucede ap6s a morte? E aqui nos pomos face a face com a idéia da imortalidade. Isso tem com freqiiéncia provocado calorosa controvérsia. Seria a alma humana imortal? Ela possui ou néo imortalidade inerente, essencial? Grandes volumes tém sido escritos sobre esse tema; mas, geralmente o maior nimero de suas paginas sio dedicadas a uma discussao filoséfica do tema, 84 e nao creio que seja parte da minha tarefa enfadd-los com isso. Comegamos dizendo com muita franqueza que a Biblia nao usa 0 termo “imortalidade”; ela nado faz nenhuma afirmacao explicita de que a alma humana é imortal. Mas, embora nao exista qualquer afirmac&o explicita, sugiro-lhes que ninguém consegue ler-a Biblia de uma maneira imparcial sem receber a impressao de que ela por toda parte pressup6e que a alma humana é imortal. Por exemplo, se ninguém nunca lhe dissesse que a imortalidade da alma é duvidosa, entao jamais se despertaria qualquer divida em sua mente, ao ler a Biblia. Mas, primeiramente permitam-me alinhar os argumentos contra a crenca na imortalidade da alma. Existe em 1 Timéteo 6:16 uma declaragéo de que Deus é “o tinico que possui a imortalidade”. Portanto se diz: “Ora, se existe alguma coisa clara, ei-la af. Ai est4 uma afirmac4o especifica do fato de que unicamente Deus é imortal”. Ora, a resposta € que tal afirmagdo é perfeitamente procedente. Deus é 0 tinico que possui a imortalidade em e por Si mesmo. Mas 0 fato de que tal coisa € verdadeira sé no tocante a Deus nao significa que Ele ndo tenha decidido conceder tal dom a homens e mulheres. Ninguém reivindicaria que, em si e por si mesmo, é inerentemente imortal ou pode, sem duvida, conquistar a imortalidade. A resposta, porém, daqueles que, como nés, aceitam a imortalidade da alma € que Deus em Sua infinita sabedoria, condescendeu em dotar a alma humana com o dom da imortalidade. Ele nao tinha que fazer isso, mas Ele quis fazé-lo. Portanto podemos dizer que Deus € 0 nico que possui a imortalidade em Si e por Si mesmo como direito Seu e possesséo Sua, todavia quis concedé-la As almas de homens e mulheres como uma dadiva. Analisemos, porém, outros argumentos. Diz-se que, quando lemos o Velho Testamento, nao nos deparamos com a sugestio e com o ensino de que a alma humana seja imortal. Tudo parece indefinido; tudo parece envolto em sombras. O autor do livro de Eclesiastes o expressa: “porque é melhor 0 cao vivo do que 0 ledo morto” (9:4), como se dissesse, quando morremos, é 0 fim, 85 chegamos 4 reta final. Diz-se que o Velho Testamento parece indicar que a morte é precisamente o fim. Ora, a resposta que se dé a esse argumento € que existe nas Escrituras uma espécie de revelacao progressiva, e que as idéias sao muito mais claras e mais completas, por exemplo, no Novo Testamento do que no Velho Testamento. A medida que vamos examinando as Escrituras, descobrimos uma espécie de desen- volvimento de doutrina. As coisas vdo se aclarando, vao se tornando cada vez mais nitidas, e entéo mais nitidas, e por fim absolutamente nitidas. Alias, as Escrituras nos dizem que é tao- -somente o Senhor Jesus Cristo, através de Sua ressurreigéo, que “trouxe 4 luz a vida e a imortalidade pelo evangelho” (2 Tim. 1:10). Mas estavam ali antes; essas sugestGes estavam ali; todos esses delineamentos estavam ali. Cristo trouxe a vida ea imortalidade 4 plena luz do dia. Mas quando dizemos isso, no devemos concluir que nao existia nada antes. Existia, sim, mas era incipiente, incompleto. Era mera sugestdo e, portanto, existia um desenvolvimento no ensino do Velho Testamento. Por exemplo, o Velho Testamento declara com muita clareza que existe um lugar chamado Sheol, um estado para onde os mortos vao. O Velho Testamento ensina que a morte nao é 0 fim, senao que os mortos continuam vivos, e que todas as pessoas, quer boas ou mas, descem juntas ao Sheol ou — fazendo uso do termo grego — ao Hades. Nao sé isso, mas certas afirmacées especificas do Velho Testamento ensinam a imortalidade da alma. Os versiculos 10 e 11 do Salmo 16 dizem: “Pois nao deixar4s a minha alma no Seol, nem permitirds que o teu santo veja corrupgdo. Tu me fards conhecer a vereda da vida; na tua presenga ha plenitude de alegria; 4 tua mao direita ha delicias perpetuamente.” E se avangarmos para o préximo Salmo, novamente descobrimos a imortalidade expressa muito claramente no versiculo 15: “Quanto a mim, em retidéo contemplarei a tua face; eu me satisfarei com a tua semelhanga quando acordar”. E impossivel que tenhamos algo ainda mais forte e mais explicito do que isso. Os Salmos 16 e 17 so de muitissima importdncia neste 86 aspecto, e essa é a raz4o por que s&o citados repetidas vezes no proprio Novo Testamento. No livro de J6, este declara: “Pois eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantara sobre a terra. E depois de consumida esta minha pele, entaéo fora da minha carne verei a Deus” (19:25,26). E existe uma afirmag4o muito forte da crenga na imortalidade no Salmo 73, onde o salmista diz que sua esperanga esté em Deus, que nao possui ninguém na terra senaéo Deus, e ainda diz: “Tu me guias com o teu conselho, e depois me receberas em gléria” (v. 24). Ai esté. E ha muitos outros versiculos. Se percorrerem 0 Velho Testamento e destacarem esses versiculos, entéo descobrirao que a evidéncia é muito poderosa. Muitos livros tém sido escritos, os quais coletam toda essa evidéncia, sendo um dos melhores The Immortality of the Soul (A Imortalidade da Alma), escrito por um homem chamado Salmond. Além de toda essa evidéncia, h4 mais um elemento de evidéncia que sempre me pareceu ser muito importante. Ea proibig&o que existe no Velho Testamento contra consultar os espiritos familiares. Essa proibigéo é naturalmente uma referéncia 4 assim chamada pitonisa de Endor que, quando consultada por aquele homem tragico, Saul, o primeiro rei de Israel, foi capaz de produzir a presenga do profeta Samuel. Ora, existe uma grande porg&o de ensino veterotestamentario contra aconsulta aos espiritos familiares e contra recorrer ao espiritismo ou espiritualismo, e tal proibigéo é em si mesma um poderoso argumento a favor da imortalidade da alma. Se os espiritos de homens e mulheres nao persistissem apés a morte do corpo, nao haveria necessidade alguma para tal proibigao. Finalmente, pois, acheguemo-nos ao ensino neotesta- mentério, o qual € muitissimo notavel. Existe aquela afirmagao em Lucas 12:4,5, a qual ja lhes citei, ou seja, que devemos temer Aquele que nao s6 pode destruir 0 corpo mas que pode também langar a alma no inferno, sugerindo que, ainda que o corpo seja destruido neste mundo, o espirito permanece. E ent&o existe a evidéncia produzida pelo evento que se deu no Monte da 87 Transfiguragao, quando Moisés e Elias apareceram e se puseram a conversar com nosso Senhor. Isso demonstra que Moisés e Elias permanecem ainda em existéncia (Mat. 17:1-8). Observemos ainda 0 uso que o nosso Senhor fez da declaracgéo: “Eu sou o Deus de Abraao, e o Deus de Isaque, eo Deus de Jac6” (Mat. 22:32). Ele estava sendo questionado por um homem inteligente que tentava confundi-lO com respeito a questdo da imortalidade da alma, a continuagdo da vida apés a morte. Quando a questéo maliciosa Lhe foi apresentada, essa foi Sua resposta, e Ele prosseguiu: “Ora, ele nao é Deus de mortos, mas de vivos”. Noutros termos, 0 argumento de nosso Senhor consistia em que Abraao, Isaque e Jacé estavam ainda vivos, e que Deus continuava ainda sendo o seu Deus. Em seguida, olhemos novamente o relato do rico e Lazaro, em Lucas, capitulo 16. Lazaro est4 14 no seio de Abraao. O rico também esta 14: ele esté morto, sim, mas permanece ainda ativo; est4 consciente; esté vendo; est4 preocupado. A morte nao é 0 fim. Eis uma evidéncia muito definida e especifica de que a alma continua depois da morte. 88 7 IMORTALIDADE CONDICIONAL ou SEGUNDA CHANCE? Ja descobrimos nas Escrituras que a alma continua depois da morte. Temos também nas Escrituras ensino sobre a ressur- reigdo. Portanto, eis a proxima pergunta: o que ocorre entre a morte e a ressurreigéo? Isto é o que se chama a doutrina do estado intermedidrio. Qual € nossa condigdo entre a morte neste mundo e a ressurreicéo vindoura? Muito se tem escrito e discutido sobre isso, portanto permitam-me tentar tratar da doutrina o mais sucintamente possivel. Nao discutirei 0 ensino catélico-romano com respeito ao purgatério, pela boa razdo de que nao ha evidéncia biblica de sua existéncia. Esta é uma das doutrinas que os catélicos romanos acrescentaram, como tantas outras através dos tempos — como ja vimos. Fora isso, porém, ha certas idéias erréneas com respeito ao estado intermedidrio. Hé quem pense que ele é um tipo de estado vago de existéncia. Na literatura cldssica das antigas Grécia e Roma encontramos a crenga de que a alma continua existindo numa condicdo vaga, indefinida, na qual tudo é nebuloso e indistinto sem qualquer definigdo. Ora, espero mostrar-lhes que tal coisa na verdade esté muito longe de ser o ensino biblico. Outra idéia as vezes ensinada é que, apés a morte, 0 crente eoincrédulo transpdem algum lugar comum chamado Hades ou Sheol, onde ha dois tipos de compartimentos para os mortos. Um é 0 seio de Abraao, e 0 outro, o lugar de sofrimento. Pois bem, poderfamos gastar muito tempo com esse assunto, mas néo julgamos ser isso proveitoso. A confusdo tem surgido com freqiiéncia porque a mesma palavra — Sheol — é usada por uma série de idéias diferentes. As vezes simplesmente significa “sepultura”. Lemos de “descer ao Sheol”, quando o que se acha 89 implicito é “descer 4 sepultura”. Ou as vezes a palavra significa nada mais nada menos que estar no estado de morte. Noutras ocasides 0 contexto indica que “Sheol” se refere ao lugar de castigo. Se vocés olharem detidamente 0 contexto, creio que n4o terao nenhuma dificuldade acerca do significado. Outra idéia, portanto, e talvez a mais importante, é 0 ensino com respeito ao assim chamadosono da alma. Os defensores desse ponto de vista dizem que, quando morremos, entramos num estado de sono, perfodo em que ficamos inconscientes, e que permanecemos nesse estado de inconsciéncia até 4 ressurreicdo. Alega-se que existe evidéncia biblica em apoio dessa afirmagao. Por exemplo, 0 apéstolo Paulo, em 1 Corfntios 15:51, diz: “Nem todos dormiremos”. Seu ensino ali € que alguns estarfio ainda na terra quando nosso Senhor regressar, e seus corpos serao transformados. Esses, diz ele, nao dormirao, inferindo com isso que outros dormirao. O Salmo 115 é também citado em apoio do “sono da alma”. Aqui lemos: “Os mortos nao louvam ao Senhor, nem os que descem ao siléncio” (v. 17). E vocés encontrarao essa afirmagao feita muitas vezes em diferentes formas no Velho Testamento. Mas, propor o “sono da alma” é entender mal as Escrituras, porque a Biblia ensina muito claramente uma existéncia consciente apés a morte e antes da ressurreicao. Eis um principio importante na exposig&o biblica. Jamais devemos elaborar uma doutrina numa afirmagdo isolada, e essa doutrina esta de fato fundamentada nesse versiculo de 1 Corintios, capitulo 15: “Nem todos dormiremos”. Mas é suficientemente claro que o sono ali se refere simplesmente ao fato de que as pessoas nao mais estao vivas. “Sono” € um eufemismo para a morte. Em vez de falar abruptamente, Paulo o expressa em termos de dormir. Como eu disse, ha evidéncia definida de que a alma nao fica inconsciente apés a morte. Primeiro e acima de tudo, voltamos novamente ao incidente que ocorreu no Monte da ‘Transfiguragdo, quando Moisés e Elias conversaram com nosso Senhor. Evidentemente, eles néo se achavam numa espécie de estado inconsciente; nao padeciam esse sono da alma, aguardando 90 a ressurreigéo. Mas existe aquele ensino ainda mais especifico de nosso Senhor na pardbola do rico e Lazaro, em Lucas, capitulo 16. Lazaro e 0 homem rico estéo ambos conscientes, do contrario nao haveria nenhum sentido na parabola, cujo tnico propdsito € mostrar que esse rico nao sé continua existindo, mas esté plenamente consciente do estado de seus irmaos que ainda permanecem vivos na terra. E obviamente Lazaro esta igualmente vivo, de outra forma o rico nao poderia pedir a Abraao que fosse permitido a Lazaro ir até onde ele estava com 0 fim de alivia-lo. Uma afirmagao ainda mais importante de uma existéncia consciente apés a morte se encontra na palavra de nosso Senhor ao penitente na cruz: “Hoje estarés comigo no paraiso” (Luc. 23:43). Isso é vital. E também ha afirmagées que o apéstolo Paulo faz em 2 Corintios, capitulo 5. Atentem para suas palavras: “Temos bom animo, mas desejamos antes estar ausentes deste corpo, para estarmos presentes com o Senhor” (v. 8). Ora, isso indica claramente uma existéncia consciente na presenca do Senhor. Ainda mais notdveis e explicitas, provavelmente, sio aquelas extraordinérias afirmagdes em Filipenses, capitulo 1, onde o apéstolo diz: “Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” (v. 21), e “Mas de ambos os lados estou em aperto, tendo desejo de partir e estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor” (v. 23). Muito bem, nao se pode argumentar dizendo que é “muito melhor” estar num estado de sono, coma alma em estado de inconsciéncia. Tampouco isso seria “muito melhor” que a comunhao consciente do crente com nosso Senhor neste mundo. Paulo est4 desfrutando de sua presente comunhao: “Porque para mim o viver é Cristo”, diz ele. Viver num estado de inconsciéncia nao pode ser melhor que isso. Ao contrario, Paulo diz que morrer é muito melhor porque significa que ele estaria com Cristo e desfrutaria de Sua presenga face a face. Significaria isso, do contrario 0 argumento de Paulo nao teria valor algum. Igualmente, em Apocalipse 6:9-10 somos informados que as almas dos que haviam sido mortos por perseguigéo se encontram 91 debaixo do altar, pleiteando e orando para que o fim venha e pela vinganga de Deus a ser aplicada sobre seus cruéis opressores. E assim existe abundancia de evidéncias para comprovar que a doutrina do sono da alma apés a morte é totalmente antibiblica. A alma nao esté adormecida. Podemos avangar mais e dizer que tanto 0 crente quanto 0 incrédulo estarao num estado de consciéncia — 0 crente desfrutando de béngao e alegria indiziveis; e o incrédulo, de um estado de miséria. Precisamos agora prosseguir para um ensino que esta crescendo em popularidade e freqiientemente atribula as pessoas. Chama-se imortalidade condicional ou aniguilacionisma, isto é, a crenga de que as almas dos incrédulos seraéo completamente destruidas e elas deixardo de existir, totalmente. O ensino é mais ou menos o seguinte: o homem n4o é naturalmente imortal, porém € mortal, e o dom da vida eterna, que é interpretado em parte como sendo o dom da imortalidade, é dado aos que créem no Senhor Jesus Cristo. Com respeito aos demais, suas almas deixarao de existir. Ora, os proponentes desse ponto de vista estao em desacordo entre si. Ha diferentes escolas de pensamento. Alguns dizem que as almas dos incrédulos serao destruidas no momento em que morrem. Outros dizem que os incrédulos serao mantidos vivos por uma certa extensao de tempo, e que durante esse tempo sofrerao e serao castigados. Entretanto seu periodo de castigo e sofrimento terd um fim, e que entao sero finalmente destruidos, simplesmente deixando de existir definitivamente e para sempre. Que argumento tais pessoas tém para essa idéia? Bem, gostam de citar aquela afirmagdo a que me referi na prelecio anterior: Deus é 0 “tinico que possui a imortalidade” (1 Tim. 6:16). Dizem que isso significa 0 que expressa: que Deus é 0 tinico imortal. Mas, como ja indicamos, embora devamos aceitar e concordar com isso, necessariamente n4o obsta o fato de que Deus concedeuo dom da imortalidade a todos os homens e mulheres, A imortalidade, afirma-se, é referida nas Escrituras como um dom — “Porque 0 salario do pecado é a morte; mas o dom de Deus é a vida eterna por Cristo Jesus nosso 92 Senhor”, diz Paulo em Romanos 6:23. Mas o argumento primario em prol da imortalidade condicional se centraliza em termos como “destruicaio”, “perecimento” e “morte”. Ora, afirma-se, destruigao significa realmente destruigao, e € inconceb{vel que algo continue sendo destruido interminavelmente. Destruicdo significa completa desintegragao, o fim de alguma coisa. “Perecimento” e “morte” igualmente devem significar 0 fim de existéncia. Por isso, se vocés citarem 2 Tessalonicenses 1:9, que fala de “eterna destruigdo”, sao informados que tal coisa é impossivel. O que dizer sobre esse ensino? Bem, sugiro-lhes que 0 sentido e ensino geral das Escrituras séo absolutamente contra ele. Se vocés fossem iniciar com o primeiro versiculo de Génesis e percorressem toda a Biblia, vocés jamais receberiam a impressao (nem mesmo entraria em suas mentes) que nenhuma outra coisa é ensinada nas Escrituras senao que o mundo é dividido entre aqueles que sao crist&éos e aqueles que n4o sao; entre aqueles que pertencem a Deus e aqueles que nao Lhe pertencem, e aqueles que Lhe pertencem desfrutarao de eterna bem-aventuranga, e os que nado Lhe pertencem sofrerao eterno castigo e destruicaéo. E preciso que sejamos muito cuidadosos para nao chegarmos a qualquer conclusao que esteja em oposicao ao teor e sentido gerais do ensino biblico, e diria que 0 ensino das Escrituras como um todo nao 86 nao pressup6e, mas € positivamente contrario 4 teoria do aniquilacionismo. Aqui as Escrituras estaéo em harmonia com 0 que podemos descrever como sendo 0 instinto comum da raga humana, ou seja, de crer que depois da morte a alma continua viva, e viva para sempre. Permitam-me extrair das Escrituras uma ilustragio. Lemos em Hebreus 2:14,15: “Portanto, visto como os filhos sdo participantes comuns de carne e sangue, também ele semelhantemente participou das mesmas coisas, para que pela morte derrotasse aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo; ¢ livrasse todos aqueles que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos 4 escravidao”. Toda a raga humana tem medo da morte, ¢ esse medo € devido ao castigo 93 que sobrevird ao pecado depois da morte. Crenca num Deus supremo é um instinto que todas as pessoas tém em comum. Todos quantos nascem neste mundo possuem esse instinto. De igual maneira, existe um instinto na natureza humana de que a morte deve ser temida. Por qué? Nao devido ela significar extingao e aniquilamento — muitas pessoas ficariam realmente muito felizes em crer que essa é a verdade. Diriam: “Nao importa, pois, o que fizermos neste mundo, porque quando morrermos esse seré 0 fim de tudo. Nao, os homens ¢ as mulheres estéo com medo da morte porque possuem uma convicgao inata de que existe juizo depois da morte, como as Escrituras ensinam, e de que existe sofrimento e castigo que durarao para todo o sempre. Vivem cativos por causa do medo da morte. No entanto, ha outros argumentos que séo ainda mais poderosos. Tomem a palavra “eterno”. Destruicao eterna, destrui- cdo interminavel: eis os termos biblicos. Ora, é perfeitamente verdadeiro que As vezes a palavra “eterno” tem referéncia sé a uma €poca, e os que créem na imortalidade condicional ficam muito satisfeitos em dizer que 0 castigo “eterno” apenas significa certa medida de tempo. Deixem-me, porém, lembrar-lhes de que essa mesma palavra “eterno” é usada para a existéncia de Deus 0 Pai, Deus 0 Filho e Deus 0 Espirito Santo: 0 Pai eterno, o Filho eterno, o Espirito eterno. E nesse caso, obviamente, ha 0 sentido de infindavel, interminavel, A mesma palavra “eterno” é também sempre usada nos paralelos e contrastes que sao extraidos das Escrituras entre os crentes e os incrédulos. Eles enfrentam ou a vida eterna ou a destruicéo eterna. Provavelmente, o melhor exemplo desse fato €0 tltimo versiculo de Mateus, capitulo 25: “E irao estes para o castigo eterno, mas os justos, para a vida eterna” (v. 46). O contraste entre os injustos e os justos € 0 contraste entre castigo eterno e vida eterna. E se eterno em relagao ao castigo significa apenas certo tempo e ent&o a exting4o, por que o eterno nao significaria a mesma coisa quando se descreve os justos ea vida que herdaréo? Nao ha excegao nisso. Nas Escrituras, 94

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