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INTRODUCAO Este livro trata da populaggo kachin ¢ chan do nordeste da Birmania, mas pretende também fornecer uma contribuigio a teoria antropol6gica, Nao foi proje- ado como uma descrigio etnogréfica. A maioria dos fatos etnogréficos a que me refiro foram publicados anteriormente. Nao se deve, pois. procurar qualquer originalidade nos fatos de que trato, mas na interpretacio desses mesmos fatos. A populagio de que nos ocupamos é a que habita a regio assinalada com o nome KACHIN nomapa 1 emostrada em grande escala no mapa 2, Essa populagao fala diferentes linguas ¢ disletos, ¢ existem grandes diferengas de cultura entre uma outa parte da regido em questo. No entanto, é comum denominar-se a totalidade dessa populagio com os termos chan e kachin. Neste livro chamarei toda a regio de Regido das Colinas de Kachin. ‘Num nivel grosseiro de generalizago, os chans ocupam os vales ribeirinhos onde cultivam arroz em campos irrigados; sio um povo relativamente sofisticado, ‘com uma cultura algo semethante & dos birmaneses. Os kachins, por outro lado, ‘ocupam as colinas onde cultivam arroz usando sobretudo as técnicas de cultura itinerante através de derrubadas ¢ queimadas. A literatura publicada no século pasado quase sempre tratou esses kachins como selvagens primitivos e belicosos, to diferentes dos chans na aparéncia, na lingua ¢ na cultura geral que devem ser considerados de origem racial totaimente distinta!, 1. Por exemplo, Malcom (1837) lckstedt (1944) “s SISTEWAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA Sendo assim, est dentro das convengées normais da antropologia que as monografias sobre os kachins ignorem os chans e as monografias sobre os chans ignorem os kachins. Todavia, os kachins e os chans so em quase toda parte vizinhos préximos e esto bastante associados nas questées comuns da vida. Considere-se, por exemplo, 0 seguinte documento. Faz parte do registro textual do depoimento de uma testemunha num inquérito confidencial realizado nos Estados Chans do Norte em 1930, [Nome da testemunha: Hpaka Lung Hseng Raa: Kachin Lahtawng (Pawyam, pseudo-chan) dade: 79 Religifo: budista zawti Reside em: Man Hkawng, Mong Hko [Nascido em: Pao Mo, Mong Hko ‘Ocupaglo: Chefe aposentado Pai: Ma La, antigamente Duwa de Pao Mo ‘Quando eu era menino, cerca de setenta anos arés, o Regente (chan) Sa0 Hkam Hseng, que entéo reinava em Mong Mao, mandou um parente seu, de nome Hge Hkam, negociar uma slianga com os kachins de Mong Hko, Pouco tempo depois Nge Hkam estabeleceu-se em Pao ‘Mo e mais tarde trocou de nome com meu antepassado Hko Tso Li e meu avé MaNaw, ento uwas de Pao Mo; depois disso nos tomamos chans e budisls e prosperamos grandemente e, como membros do cld Hkam, sempre que famos a Méng Mao ficdvamos com o Regente, © inversamente, em Mong Hko nossa casa era deles. [..] Parece que essa testemunha considerava que nos dltimos setenta anos ou aproximadamente sua familia tinha sido simultaneamente kachin ¢ chan. Como kachin, a testemunha era membro da linhagem do cla Lahtaw(ng). Como chan, era bbudista ¢ membro do cla Hkam, a casa real do Estado de Mong Mao. Além disso, Méng Mao ~ 0 conhecido Estado Chan desse nome em territério cchinés ~ ¢ tratado aqui como sendo uma entidade politica do mesmo tipo e tendo quase a mesma situagéo de Mong Hko, que aos olhos da administragao britanica de 1930 nada mais era que um “eftculo” administrativo kachin no Estado Hsenwi do Notte. Dados desse tipo ndo podem ajustar-se prontamente a qualquer esquema etnogrifico que, em termos lingttisticos, situa kachins e chans em “categorias” raciais diferentes. © problema, contudo, nio é simplesmente o de distinguir entre kachins € chans; hé também a dificuldade de distinguir os kachins entre si. A literatura 2. Harvey & Barton (1930), p. 81 nro ucto discrimina diversas variedades de kachins. Algumas dessas subcategories séo principalmente lingifsticas, como quando se distinguem os kachins que falam jinghpaw, dos atsis, dos marus, dos lisus, dos nungs etc.; outras so sobretudo territoriais, como quando se distinguem os singphos de Assam dos jinghpahs da Birmfnia, ou os hkahkus da regio do Alto Mali Hke (Triangulo) dos gauris, aleste de Bhamo. Porém a tendéncia geral tem sido minimizar a importncia dessas distingdes € dizer que 0 essencial da cultura kachin é uniforme em toda a Regifio das Colinas de Kachin’ Livros com tftulos como The Kachin Tribes of Burma; The Kachins, their Religion and Mythology; The Kachins, their Customs and Tradi- tions; Beitrag zur Ethnologie der Chingpaw (Kachin) von Ober-Burma* referem- se por implicacao a todos os kachins onde quer que sejam encontrados, isto 6, a uma populacio de cerca de 300 mil pessoas escassamente espalhadas por uma regio de uns 130 mil quil6metros quadrados*. ‘Nao faz parte de meu problema imediato discutir até que ponto semelhantes generalizagSes sobre a uniformidade da cultura kachin sio efetivamente justificd- veis; meu interesse reside antes no problema de saber até que pontose pode afirmar que um iinico tipo de estrutura social prevalece ao longo da regiéo kachin. E legitimo pensar que a sociedade kachin é organizada em toda parte segundo um conjunto particular de prineipios, ou seré que essa categoria bastante vaga de kachin inclui muitas formas diferentes de organizagio social? ‘Antes de tentar investigar essa questio, devemos primeiro deixar claro 0 que se entende por continuidade e por mudanga com respeito aos sistemas sociais. Sob 4que citcunstincias podemos dizer de duas sociedades vizinhas A e B que “essas duas sociedades tém estruturas sociais fundamentalmente distintas”, enquanto entre duas outras sociedades Ce D podemos afirmar que “nessas duas sociedades a estrutura social 6 essencialmente a mesma”? No restante deste capitulo de abertura meu objetivo sera explicar o ponto de vista te6rico a partir do qual abordo essa questo basi A tese, em suma, & a seguinte. Os antropélogos sociais que, na esteira de Radcliffe-Brown, usam o conceito de estrutura social como uma categoria por meio da qual se pode comparar uma sociedade com outra pressupsem na verdade que as sociedades de que tratam existem durante todo o tempo em equilfbrio estével. Seré, ento, possivel descrever, por meio de categorias sociol6gicas comuns, sociedades. que presumivelmente ndo esto em equilibrio estavel? 3. Porexemplo, Hanson (1913), p. 13. 44 Carrapet (1929); Githodes (1922); Hanson (1913); Wehsl (1904) 5. Chaptndice 5. o

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