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in Fhnologe , n-3, n°G-8, 199%, ppp. 14-3F Os.Argonautas do Pacifico Ocidental * ta Bronislaw Malinovski Introdugio: objecto, método e alcance desta investigagio As populagées costeiras das Ihas dos Mares do Sul, com muito raras excepg6es, so, ou eram antes da sua extincio, peritas em navegaco e comér- cio. Algumas delas desenvolveram excelentes tipos de canoas de navegacao em alto mar, nas quais embarcavam para expedigSes comerciais distantes ou incursées de guerra e conquista. Os Papua-Melanésios, que habitam a custa 2 as ilhas longinquas da Nova Guiné, nao sdo excepgdo a esta regra. Trata-se, de um modo geral, de marinheiros corajosos, artesdos habilidosos e nego- ciantes argutos. Os centros de manufactura de artigos importantes, como a cermica, instrumentos de pedra, canoas, cestaria fina ornamentos valiosos, distribuem-se por diferentes locais, de acordo com a habilidade dos habitan- tes, a tradigao tribal que herdaram ou as condicées propicias oferecidas pela regio; por isso, estes produtos so comercializados através de vastas regides, chegando a percorrer-se centenas de quilémetros. Entre as vdrias tribos estabeleceram-se formas de trocas definidas ao longo de rotas comerciais precisas. Uma das formas de comércio intertribal mais notdvel é a que existe entre os Motu de Port Moresby e as tribos do Golfo de Papua. Os Motu navegam centenas de quilémetros em canoas pesadas e desajeitadas chamadas lakatoi, que tém velas caracteristicas em forma de tena- zes de caranguejo. Trazem ceramica e ornamentos feitos com conchas ~e anti- gamente traziam laminas de pedra - para os Papuas do Golfo, dos quais obtém, em troca, sagti e as pesadas canoas escavadas em troncos de érvore, que mais tarde utilizam para a construgio das suas Jakatoi', Mais a Leste, na costa Sul, vive a populacdo maritima e diligente dos Mailu, que liga o extremo oriental da Nova Guiné as tribos da costa Central, através de expedigdes comerciais anuais’. Por fim, os nativos das ilhas e dos arquipélagos dispersos pelo Extremo Oriental, mantém constantes relagdes comerciais entre si. O livro do Prof. Seligman oferece-nos uma excelente des- crigdo deste tema, especialmente das rotas comerciais mais préximas entre as x eo 18° Ethnologia varias ilhas habitadas pelos Massim do Sul’. Existe, todavia, outro sistema comercial muito alargado e altamente complex, que inchui nas suas ramifi- cagées, nao s6 as ilhas préximas do Extremo Oriental, mas também as Luis{adas, a Iha de Woodlark, 0 Arquipélago de Trobriand e o grupo de Entrecasteaux, penetrando no continente da Nova Guiné e influenciando indi- rectamente varias regiées distantes, como a Ilha de Rossel e algumas partes da costa Norte e Sul da Nova Guiné. Este sistema comercial, o Kula, é o tema que me proponho descrever neste volume e tornar-se-4 evidente que se trata de um fenémeno econémico de considerdvel importancia tedrica. Reveste-se de um significado extremo na vida tribal dos nativos que vivem dentro do seu Gireito, Sendo a sua importincia totalmente reconhecia pelos préprios cus idelas, ambigies, desejos e vaidadies esto directamente relacionados com o 0 Antes de prosseguir com a descricio do Kula, serd conveniente fazer uma descrigéo dos métodos utilizados na recolha do material etnogrdfico. Em qual- quer ramo do conhecimento, os resultados de uma pesquisa cientifica devem “; Ser apresentados de maneira totalmente neutra e honesta. Nao ocorreria a nin- ” guém fazer uma contribuiggo experimental no Ambito da ciéncia fisica ou qui- mica sem dar conta detalhada de todos os passos das experiéncias que efec- tuou, uma descri¢o exacta dos instrumentos utilizados, da maneira como as observages foram conduzidas, do seu mimero, da quantidade de tempo que Ihe foi dedicado e do grau de aproximaco com o qual cada medida foi reali- zada. Nas ciéncias menos exactas, como na Biologia ou na Geologia, isto ndo pode ser feito de forma tdo rigorosa, mas qualquer estudioso fard o seu melhor de maneira a fornecer ao leitor todas as condigdes em que as experiéncias ou observagées foram efectuadas. Lamentavelmente, na Etografia, onde a apre- sentaggo desinteressada dessa informagio se toma talvez ainda mais necessé- ria, isto nem sempre tem sido devidamente explicitado e muitos autores limi- tam-se a apresentar os dados adquiridos, fazendo-os emergir, perante nés, a partir da mais completa obscuridade, sem qualquer referéncia aos processos utilizados para a sua aquisigao. - ; Seria fécil citar obras de grande reputacdo e de cunho cientifico reco- nhecido, em que somos confrontados com generalizagées por atacado, sem qualquer informacao relativa as experiéncias que conduziram os autores as suas conclusées. Nao encontramos af nenhum capitulo ou pardgrafo espe- cial dedicado & descrigdo das condigdes sob as quais as observagées foram ‘efectuadas e as informacées recolhidas. Ora eu penso que a linha que separa 0s resultados da observagao directa e as declaracées e interpretacies nativas das inferéncias do autor baseadas no seu senso comum e capacidade de penetragao psicoldgica‘ s6 pode ser tracada com base nessas fontes etno- graficas de inquestiondvel valor cientifico. Na verdade, um sumdrio como o else, que estd inclufdo no quadro abaixo (Div. IV deste capitulo), deveria ser sem- Pre exibido, de forma a que, num'olhar répido, o leitor possa avaliar com preciso o grau de conhecimento pessoal do autor sobre os factos que des- creve e formar uma ideia relativamente as condig6es de obtengao de infor- magio junto dos nativos. Se pensarmos na ciéncia histérica, nenhum autor esperaria ser levado a sério se envolvesse as suas fontes em mistério e falasse do pasado como se 0 estivesse a adivinhar. Na Etmografia, o autor é, simulianeamente, o seu pro- Ptio cronista e historiador; e embora as suas fontes sejam, sem duivida, facil- mente acessfveis, elas so também altamente duibias e complexas; nao estio materializadas em documentos fixos e concretos, mas sim no comportamento na meméria dos homens vivos. Na Etnografia, a distancia entre o material informativo bruto — tal como se apresenta ao investigador nas suas observa- ges, nas declaragdes dos nativos, no caleidoscspio da vida tribal - e a apr>- sentacao final confirmada dos resultados é, frequentemente, enorme. C Etnégrafo tem que salvaguardar essa distancia de anos laboriosos, entre 0 momento em que desembarca numa ilha nativa e faz as suas primeiras tenta- tivas para entrar em contacto com os nativos eo perfodo em que escreve a sua versio final dos resultados. Uma ideia geral e breve das atribulagdes de um. ales longa dace oe eaten mais ix oobpe eva queso ro que qualquer longa discussio em abstracto. Wy Imagine o leitor que, de repente, destin sbatnbo sims plata top cal, perto de uma aldeia nativa, rodeado pelo seu material, enquanto a lancha ‘ou pequena baleeira que o trouxe navega até desaparecer de vista. Uma vez que se instalou na vizinhanca de um homem branco, comerciante ou missio- nério, nao tem nada a fazer sendo comegar imediatamente o seu trabalho etno- gréfico. Imagine ainda que é um principiante sem experiéncia anterior, sem nada para o guiar e ninguém para o ajudar, pois o homem branco estd tem- Porariamente ausente, ou entao impossibilitado ou sem interesse em perder tempo consigo. Isto descreve exactamente a minha primeira iniciagao no tra- balho de campo na costa Sul da Nova Guiné. Lembro-me bem das longas visi- tas que efectuei as povoagées durante as primeiras semanas e da sensacao de desanimo e desespero depois de muitas tentativas obstinadas mas intiteis com © objectivo frustrado de estabelecimento de um contacto real com os nativos ou da obtengio de algum material. Atravessei perfodos de des4nimo, alturas em que me refugiava na leitura de romances, tal como um homem levado a beber numa crise de depressio e tédio tropical. Imagine-se, agora, 0 leitor, entrando pela primeira vez na aldeia, sozinho ou na companhia do seu cicerone branco. Alguns nativos juntam-se em seu redor, especialmente se pressentirem ‘ue hd tabaco. Outros, mais distintos e 20 co Bald idosos, mantém-se sentados onde esto. O seu comparheiro branco tem a sua. forma habitual de lidar com os nativos e nao compreende, nem parece querer compreender, a maneira como voc, enquanto Etnégrafo, os teré de abordar. A primeira visita deixa-o com a esperanga de que, quando voltar sozinho, as coisas correrao melhor. Essa era, pelo menos, a minha expectativa. ~ Regressei na primeira oportunidade e depressa reuni uma audiéncia & minha volta. Umas saudagdes em pidgin-English* de ambas as partes e algu- mas trocas de tabaco instalaram uma atmosfera de amabilidade muitua. Tentei entio pasar ao assunto. Primeiro, para comegar com temas que nao levan- tassem suspeitas, comecei a «fazer» tecnologia. Alguns nativos estavam ocu- pados a fabricar um ou outro objecto. Era facil observé-los e obter os nomes das ferramentas e mesmo algumas expressdes técnicas sobre os procedimen- tos, mas logo se esgotou o assunto. E preciso nao esquecer que o pidgin- -English € um instrumento muito imperfeito para expressar ideias e que, antes de se alcangar um treino razodvel na construgao de perguntas e compreensao de respostas, a sensacdo é a de que nunca se vird a atingir uma comunicagio fluente com os nativos; e eu era incapaz de estabelecer qualquer conversa clara ou detalhada com eles. Estava ciente de que o melhor remédio para ultrapas- sar isto era empreender a recolha de dados concretos e, entdo, elaborei um censo da aldeia, registel genealogias, tracei planos e recolhi os termos que designam as formas de parentesco. Mas tudo isto era material morto que pouco adiantava para o conhecimento da verdadeira mentalidade ou com- nativo, uma vez que eu nem sequer podia adquirir uma boa inter- pretacdo local de nenhum destes temas nem alcangar aquilo que poderemos designar como o sentido da vida tribal. Relativamente as suas ideias sobre a religido e a magia, as suas crencas na feiticaria e nos espfritos, nada era con- seguido, para além de alguns temas superficiais de folclore deturpados devido a0 constrangimento do pidgin-English. ‘A informagio que recebi de alguns brancos residentes na regio, embora valiosa & sua maneira, foi mais desencorajadora do que qualquer outra relaci- ‘onada com o meu préprio trabalho. Ali estavam aqueles que, vivendo hé anos no local, com oportunidades constantes de observar os nativos e de comunicar com eles, pouco ou nada sabiam com exactidio a seu respeito. Como podia eu, entio, em poucos meses ou mesmo num ano, esperar superé-los e ir mais além? Além disso, a maneira como os meus informadores brancos falavam dos nati- vos e expunham as suas opinides era, naturalmente, a de mentes destreinadas ” pouco acostumadas a formular os seus pensamentos com algum grau de con- sisténcia e preciso, Na sua maioria, e quer se tratasse de um administrador ou de um comerciante, estavam, como seria de esperar, marcados por preconcei- Tniclalmente utilizado em contexto chinés, o pidgin-English refere-se genericamente a apropriagées locais rudimentares da lingua inglesa, para comunicagio entre ind{genas € forasteiros geralmente comerciantes. (Nota de revisto cientifica.) Malinowski: Os Argonautas do Pacifico Ocidental 2 tos e opiniées precipitadas, habituais no homem pratico comum mas tdo repug- nantes para uma mente que lutava por uma perspectiva objectiva e cientifica dos factos. O habito de tratar com uma frivolidade arrogante o que é realmente sério para o Etnégrafo e a negligéncia votada aquilo que, para este, é um ‘tesouro cientifico - refiro-me as peculiaridades e autonomia mentais e cultu- ais ~, estas caracterfsticas, comuns entre os escritores amadores de segunda, eram a tnica dominante no espirito da maioria dos residentes brancos’, De facto, foi apenas quando me encontrei sozinho na regido que a minha primeira obra de pesquisa etnogréfica na costa Sul comegou a avancar; des- cobri entdo, a minha custa, onde residia o segredo do verdadeiro trabalho de campo. Qual é, afinal, esta magia do Etnégrafo pela qual ele é capaz de evo- car o verdadeiro espirito dos nativos, a verdadeira imagem da vida tribal? ‘Como de costume, 0 sucesso 86 pode ser obtido através de uma aplicagio sis- temética e paciente de um determinado niimero de regras de bom senso e de Principios cientificos bem definidos e no através de qualquer atalho miracu- Toso que leve aos resultados desejados sem esforgo ou problemas. Os princf- pios do método podem ser agrupados em trés items principais: em primeiro lugar, como € ébvio, o investigador deve guiar-se por objectivos verdadeira- mente cientificos, e conhecer as normas e critérios da etnografia moderna; em segundo lugar, deve providenciar boas condigSes para o seu trabalho, o que significa, em termos gerais, viver efectivamente entre os nativos, longe de outros homens brancos; finalmente, deve recorrer a um certo nimero de méto- dos especiais de recolha, manipulando e registando as suas provas. Falemos um pouco destas trés pedras basilares do trabalho de campo, comesando pela mais elementar: a segunda. t Vv Condigdes adequadas ao trabalho etnogréfico. Como jé referi, 0 mais impor- tante é mantermo-nos afastados da companhia de outros homens brancos e num contacto o mais estreito possfvel com os nativos, o que s6 pode ser real- mente conseguido acampando nas suas proprias povoacées. E muito recon- fortante estabelecer uma base na propriedade de um branco por causa dos mantimentos e em caso de doenga ou saturagio da vida indigena. Mas ela deve estar suficientemente afastada de modo a nio se tomar no local onde se vive permanentemente e de onde se sai a horas fixas com o objectivo de ir «traba- Ihar na aldeia». Nao deve estar sequer tio préxima que permita um acesso rapido e a qualquer momento para distraceao. Isto porque o nativo nio é 0 companheiro natural de um homem branco, e depois de se ter estado a traba- Ihar com ele durante algumas horas, observando o modo como arranja os seus jardins, escutando as suas informagées sobre folclore ou discutindo os seus costumes, é natural que se anseie pela companhia dos nossos semelhantes. Mas se se estiver s6, numa aldeia com dificil acesso a outros brancos, sai-se para um 85 2 Banco passe soso de crea de ua hora regrets e dep de forma natural procura-se a convivéncia dos nativos, desta vez para resolver a solidao, como se faria com qualquer outra companhia. E, através deste relacionamento natu- tal, aprende-se a conhecé-los e a familiarizar-se com os seus costumes e cren- gas de forma muito mais conveniente do que quando se recorre a um infor- mador pago e muitas vezes aborrecido. Existe uma diferenga enorme entre uma escapela esporédica na companhia dos natives e um contacto real com eles. O que significa isto? Da parte do Etndgrafo, significa que a sua vida na aldeia - no inicio uma aventura muitas -vezes estranha e desagradével, outras vezes intensamente interessante ~ assume depressa um curso natural em harmonia progressiva com aquilo que o rodeia. Pouco tempo depois de me estabelecer em Omarakana (Ilhas Trobriand), comecei, de certa forma, a participar na vida da aldeia, a esperar com impa- ciéncia pelos acontecimentos importantes ou festivos e a interessar-me pessoal- mente pelos mexericzs @ pelas pequenas ocorréncias locais. Acordava todas as manhas para um dia que se me apresentava mais ou menos semelhante ao de um nativo. Saia de debaixo do meu mosquiteiro e observava a vida da ‘aldeia despertando em meu redor ou aqueles que jé tinham comegado o seu «trabalho, consoante a hora ou a estagao do ano, pois as tarefas eram iniciadas de acordo com as necessidades do trabalho. A medida que dava o meu pas- seio matinal pela aldeia, podia apreciar detalhes intimos da vida familiar, de higiene corporal, cozinha ou culinéria; podia observar os preparativos para o dia de trabalho, as pessoas iniciando as suas incumbéncias ou grupos de homens e mulheres ocupados co: algumas tarefas artesanais. Brigas, piadas, cenas familiares, acontecimentos triviais, por vezes dramdticos, mas sempre significativos, constitufam a atmosfera da minha vida diéria, tal como a deles. Deve ser lembrado que o facto de os nativos me verem diariamente fez com que deixassem de se interessar, recear ou mesmo de ficar condicionados pela minha presenga, deixando eu de constituir um elemento perturbador da vida tribal que queria estudar, de alteré-la com a minha aproximago, como sem- pre acontece com um recém-chegado a uma comunidade selvagem. De facto, como sabiam que iria meter o nariz em tudo, mesmo onde um nativo bem edu- cado nfo sonharia fazé-lo, acabaram por me encarar como parte integrante das suas vidas, um mal ou um aborrecimento necessdrio, mitigado por donativos em tabaco, Mais tarde, durante o dia, qualquer coisa que acontecesse se tornava de facil alcance e dificilmente escapava ao meu conhecimento. Alarmes sobre a aproximagio do feiticeiro ao fim do dia, uma ou duas grandes brigas impor- tantes e desentendimentos dentro da comunidade, casos de doenca, tentati- vas de cura e mortes, ritos magicos que tinham de ser executados, tudo isto se passava mesmo A frente dos meus olhos, por assim dizer, 4 minha porta e, Por isso, ndo tinha de perseguir nenhum destes casos com receio de que me escapassem. E devo insistir que de cada vez que se passa algo dramético ou Malinowski: Os Argonautas do Pacifico Ocidental 2B importante é essencial investigé-lo no preciso momento em que ocorte, pois 08 nativos néo conseguem entio deixar de falar do assunto e esto demasiado excitados para se mostrarem reticentes e demasiado interessados para se tor- narem parcimoniosos nos detalhes. Também muitas e muitas vezes nio cum- pri a etiqueta, facto que os nativos, jé familiarizados comigo, nao hesitaram em apontar. Tive de aprender a comportar-me e, até certo ponto, adquiri «a sensibilidade» para o que entre os nativos se considerava boas ¢ més manei- ras. Foi gragas a isto, e 4 capacidade em apreciar a sua companhia e partilhar alguns dos seus jogos e cliversdes, que me comecei a sentir em verdadeiro contacto com os nativos. E esta é, certamente, a condicao prévia para poder levar a cabo com éxito 0 trabalho de campo. Vv 2 ae Mas 0 Etnégrafo nao tem apenas de langar as redes no local certo e espe- rar que algo caia nelas. Tem de ser um cagador activo e conduzir para ld a sua Presa e segui-la até aos esconderijos mais inacessiveis. Isto leva-nos aos méto- dos mais activos de persecugio dos testemunhos etnogréficos. Como foi men- cionado no final da Diviséo Ill, o Etnégrafo tem de inspirar-se no conheci- mento dos resultados mais recentes da pesquisa cientifica, nos seus principios e objectivos. Nao me vou alargar sobre este assunto, excepto numa chamad; de atengao, para evitar a possibilidade de equfvoco, Estar treinado ¢ actuali- zado teoricamente nao significa estar carregado de «ideias preconcebidas». Se alguém empreende uma missao, determinado a comprovar certas hipéteses, e + se é incapaz de a qualquer momento alterar as suas perspectivas e de as aban- , donar de livre vontade perante as evidéncias, escusado é dizer que o seu tra- balho seré imitil. Mas quantos mais problemas ele levar para o campo, quanto mais habituado estiver a moldar as suas teorias aos factos e a observar estes 1ltimos na sua relacdo com a teoria, em melhores condig6es se encontraré para trabalhar. As ideias preconcebidas sio prejudiciais em qualquer trabalho cien- tifico, mas a prefiguracao de problemas é o dom principal do investigador cien- tifico, e estes problemas séo revelados ao observador, antes de mais, pelos estu- dos tedricos. Em Etnologia, os esforgos iniciais de Bastian, Tylor, Morgan e dos Volker- psychologen alemies reformularam a informagio mais antiga e em bruto dos viajantes, missionérios, etc, e demonstraram-nos quo importante é a aplica- sae de concepgées mais profundas em detrimento de outras mais superficiais e equivocas®. O conceit de animismo substituiu 0 de «fetichismo» ou «culto demo- niaco», ambos termos sem significado. A compreensio dos sistemas de rela- es classificatérias abriu caminho as pesquisas de sociologia nativa mais recentes e brilhantes do trabalho de campo da escola de Cambridge. A and- lise psicoldgica dos pensadores alemaes proporcionou imensas informagSes a’ Ethnologia ; TAL hal hAGE cob Seiad ob valiosas a partir das recentes expedic6es alemis em Africa, na América do Sul e no Pacifico, enquanto as obras tedricas de Frazer, Durkheim e outros jd ins- piraram diversos investigadores de campo e continuarao, sem diivida, a fazé- -lo durante muito tempo, conduzindo-os ,. novos resultados. O investigador de terrena orienta-se fundamentalmente segundo a inspiracdo da teoria. claro que ele pode ser ao mesmo tempo um pensador e investigador teérico €, nesse caso, pode valer-se de si préprio para obter estimulo. Mas estas duas fungigs 40 diferentes e, por isso, na pesquisa efectiva tém de ser separadas, tanto no tempo como nas condigdes de trabalho. “Come sempre apontece quando o interesse cientifico se passa a debrucar sobre determinado terreno até af apenas explorado pela curiosidade de ama- dores, a Etnologia introduziu lei e ordem num mundo que parecia cadtico e caprichoso. Transformou para nés esse mundo fantdstico, bravio e indescriti- vel dos «selvagens» num certo ntimero de comunidades bem ordenadas, governadas por leis, comportando-se e pensando segundo principios consis- tentes. O termo «selvagemm, independentemente da sua acepgio original, é conotado com ideias de liberdade desenfreada, de irregularidade, de algo extraordindrio e extremamente bizarro. No pensamento popular, imagina-se que 0s nativos vivern no seio da Natureza, mais ou menos como podein e gos- tam, vitimas de temores incontrolados e crengas fantasmagéricas. A ciéncia moderna demonstra que, pelo contrério, as suas instituigSes sociais tm uma organizacao muito definida e que sio governados pela autoridade, lei e ordem nas suas relagies puiblicas ¢ pessoais, estando estas tiltimas, para além disso, sob 0 controlo de lacos extremamente complexos de parentesco e de pertenca clanica. De facta, encontramo-los emaranhados numa malha de deveres, fun- ses € privilégios que correspondem a uma elaborada organizacdo tribal comunitdria e de parentesco. As suas crengas e praticas nao carecem, de modo nenhum, de alguma consisténcia, e o conhecimento que possuem do mundo exterior € suficiente para os guiar na maior parte das suas arduas empresas e actividades. Da mesma forma, também as suas produgées artisticas nao care- cem, sob nenhum aspecto, de significado e beleza. Longe estd a posicéo do actual Etnégrafo relativamente a famosa resposta hd muito dada por uma autoridade representativa a quem foi perguntado quais eram as maneiras € costumes dos nativos, ao que terd respondido: «Nenhuns costumes € maneiras de animais»! O Etndgrafo, com as suas tabelas de termos de parentesco, genealogias, mapas, planos e diagramas, prova a existéncia de uma organizacao ampla e exaustiva, demonstra a constituicao da tribo, do la, da familia, e dé-nos um retrato dos nativos sujeitos a um cédigo apertado de comportamento e boas maneiras, perante o qual, por comparacio, a vida na corte de Versalhes ou no Escorial se apresentaria livre e facil’. Por tudo isto, a primeira meta do trabalho de campo etnogréfico é for- necer um esquema claro e firme da constituicao social, bem como destacar as. leis e normas de todos os fenémenos culturais, libertando-os dos aspectos nannena- RA Re ROSE Malinowski: Os Argonautas do Pacifico Ocidental 25 irrelevantes. O esqueleto firme da vida tribal deve ser estabelecido logo no inicio, Este objectivo impée, em primeiro lugar, a obrigacao fundamental de uma descricéo completa dos fenémenos, sem procurar o que é sensacional ¢ singular e ainda menos que ¢ risivel ou bizarro. J4 passou o tempo em que Podiamos tolerar relatos nos quais os nativos nos eram apresentados como uma caricatura distorcida e infantil do ser humano. Este quadro é falso e, tal como muitas outras falsidades, foi aniquilado pela Ciéncia. O,Etnégrafo de campo deve cobrir séria e sobriamente os fenémenos em cada aspecto estu- dado da cultura tribal, ndo estabelecendo diferencas entre aquilo que € lugar comum, monétono ou vulgar, e aquilo que o surpreende Por ser espantoso e Faro. Ao mesmo tempo, toda a amplitude da cultura tribal deve ser pesqui- sada em todos os seus aspectos. A consisténcia, a lei e a ordem que se revelam em cada aspecto contribui, simultaneamente, para a construgao de um todo coerente. O Etnégrafo que se predisponha a estudar apenas a religiio ou a tecno- logia, ou a organizagdo social esté a isolar artificialmente um campo de pes+ quisa, o que prejudicard seriamente o seu trabalho. VI € normas da vida tribal, tudo o que é permanente e fixo; deve dar conte da anatomia da sua cultura e da constituigao da sua sociedade. Mas estas coisas, embora cristalizadas e estabelecidas, nao esto formuladas em lado algum. Nao hé um c6digo de leis escrito ou explicito de qualquer outra forma, e toda 2 tradicao tribal, toda a estrutura da sociedade esté inscrita no mais escorrega- dio de todos os materiais: 0 ser humano. E nem mesmo na mente ou memé- ria humana estas leis se encontram definitivamente formuladas. Os nativos obedecem a forgas ou ordens do cédigo tribal sem as compreenderem, da mesma forma que obedecem aos seus instintos e aos seus impulsos, sendo incapazes de enunciar uma simples lei de psicologia. As normas das institui. ses nativas s4o um resultado automatico da interacgao das forgas mentais da tradigao e das condigdes materiais do ambiente. Tal como a um membro humilde de qualquer instituicdo moderna ~ quer se trate do Estado, da Igreja ou do Exército -, que the pertence e nela estd inserido mas nao tem a percepgao da acgio integral resultante do todo, e ainda menos a capacidade de discan. sar sobre ela, também a um nativo seria initil questionar em termos socio- logicos abstractos. A diferenca é que na nossa sociedade todas as instituigoes tém os seus membros pensantes, os seus historiadores, os seus arquivos e documentos, enquanto numa sociedade nativa no existe nada disto. Feita tal constatagao, é preciso encontrar um expediente Para ultrapassar esta dificul- 6G dade. E 9 expediente consiste, para um Etnégrafo, na recotha de testemunhos - concretos e na elaboracdo das suas préprias indugdes e generalizac6es. Assim vs Spgsentado, isto parece Gbvio, Mas a verdade € que néo foi resolvido, ou pelo a menos nao foi posto em prética na Etnografia até ao momento em que o tra- || balh6 de campo comegou a ser realizado por homens de ciéncia. Além do mais, >, Blo € fdcll conceber as aplicagées concretas deste métoda quando passado A \ Prética, nem pé-las em funcionamento de forma sistemdtica e consistente, | A : Embora nio possamos questionar os nativos relativamente a regras abs- «2 Mactas, podemos sempre inquiri-los relativamente ao modo como seria tratado | | . determinado caso, Assim, por exemplo, querendo indagar como lidariam com “0 crime, ou como o puniriam, seria indtil colocar a questéo nestes termos: «Como € que actuam e punem um criminoso?» — pois nem sequer seria pos- _ bfvel encontrar as palavras adequadas para expressar esta pergunta na lingua _ hativa, ou em pidgin. Mas um caso imagindrio ou, melhor ainda, uma ocor- _ Fencla real estimulardo 0 nativo a exprimir a sua opinido e a fornecer infor- i | (, Maso profusa, Um case seal desencadeard entre os nativos uma onda de dis- «, Cussbes, evocard expresses de indignacio, mostré-los-4 a tomar partido - ¢ ~ sada um dos depoimentos evidenciaré provavelmente uma riqueza de dife- “_fentes Pontos de vista, de censuras morais, revelando, ao mesmo tempo, 0 i Mecanismo social accionado pelo crime cometido. Com este procedimento, serd facil levé-tos a falar de outros casos similares, lembrando outros aconte. Gimentos, ou a discuti-los em todas as suas implicagées e aspectos, A partir deste material, que deve cobrir a maior gama de factos possivel, as conclusses . obtém-se por simples indugao. O tratamento cientffico difere do mero senso | Somum, em primeiro lugar, porque um investigador ampliaré muito mais a " Perfeigio e minticia do inquérito, de forma escrupulosamente metddica e sis- temética; em segundo lugar, porque a sua mente, treinada cientificamente, conduzird a pesquisa através de pistas realmente pertinentes, a metas de importincia efectiva. De facto, 0 objectivo do treino cientifico é dotar o inves- tigador empirico de um mapa mental pelo qual se possa orientar e definir 0 seu caminho, ! Regressando ao nosso exemplo, os varios casos discutidos revelaréo ao Eindgrafo a maquinaria social da punigfo. Esta é uma parte, um aspecto da autoridade tribal. Imagine-se que, para além disso e através de um método similar de ilagao a partir de dados concretos, ele obtém informagio sobre a lideranca na guerra, nos empreendimentos econdémicos, em festividades tri- bais ~ entdo terd afinal encontrado todos os dados necessérios para responder ‘a questées sobre governo tribal e autaridade social. No trabalho de campo efectivo, a comparagio dos dados e a tentativa da sua articulagdo revelario falhas e lacunas frequentes na informago, 0 que, por seu tumno, incitard 20 Prosseguimento da investigagao. Pela minha prépria experiéncia, posso dizer que muitas vezes os proble- ‘mas pareciam claramente resolvidos et comegar a escrever um pequeno ras- Malinowski: Os Argonautas do Pacifico Ocidental 27 cunho preliminar dos resultados. E era s6 nessa altura que me apercebia das enormes deficiéncias que me mostravam onde residiam novos problemas e me encaminhavam para novo trabalho. Na verdade, gastei alguns meses entre a taints primeira € a segunda expediclo e mais de um ano entre esta e a pos. terior, revendo o meu material e preparando-o para publicagio, Mas de cada Yez que o fazia estava ciente de que teria de voltar a reescrevé-lo, Este pro- Gesso de cruzamento entre trabalho construtivo e observacio pareceume par que 0 que foi dito até agora nao ¢ um programa vazio, mas sim resultedo de uma experiéncia pessoal. Neste volume, apresenta-se a descrigao de ums Brande instituicdo multifacetada e com a qual se relacionam varladissines . Retividades associadas entre si Para quem reflicta sobre o asounto, tomnar-se-4 Claro que a informacio sobre um fenémeno tio complexo e com tantas tana de vezes enquanto me encontrava no campo e nos intervalos entre as minhus expedigies, De cada vez que o fazia surgiam novos problemas e dificuldadles. jirecolha de dados concretos sobre uma vasta gama de factos & portant, do comum. Na investigacio relativa ao parentesco, 0 encadeamento das rela- foes umas nas outras leva, naturalmente, & construclo de tabelas genealdgicas, Jé praticado por autores fundadores reconhecidos como Munzinger e, se bem ‘me lembro, Kubary, este método veio a ser desenvolvido em plenitude nos tox balhos do Dr. Rivers, Também no estudo dos dados coneretos das transacySes econémicas ~ com vista a circulagéo e ao percurso histérico de um objecto valioso - o principio da perfeicdo e da profundidade permitiu a construgéo de tabelas de transacgdes semelhantes Aquelas que encontramos no trabalho do Prof. Seligman’, Foi seguindo o exemplo do Prof. Seligman nesta matéria que consegui estabelecer algumas das regras mais dificeis e detalhadas do Kula. Quando possivel, o método de redugio da informagio a cartas ou tabelas, sinép- ticas deve ser extensivo ao estudo de praticamente todos os. aspectos da vida nativa. Todos cr tipos de transacgdes econédmicas podem ser estudados 2B Ethnologia seguindo casos reais relacionados entre si e registados numa carta sin6ptica; também aqui se deve conceber uma tabela incluindo todas as oferendas e pre- sentes habituais em determinada sociedade, uma tabela que inclua uma defi- nigio sociolégica, cerimonial e econémica para cada item, Sistemas de magia, séries relacionadas de ceriménias, tipos de actos legais também podem ser registados de forma a que cada entrada possa ser definida sinopticamente sob vérins categorias. Além disso, os recenseamentos genealégicos de cada comu- nidade estudados mais em detalhe, mapas extensivos, planos e diagramas ilus- trando a propriedade de terra cultivada, os privilégios de caca e pesca, etc. ser- viro como documentos fundamentais de pesquisa etnogréfica. ‘Uma genealogia no é mais do que uma carta sinéptica de relagSes de Parentesco articuladas entre si. O seu valor como instrumento de pesquisa consiste no facto de permitir ao investigador formular questées a si préprio in abstracto, questées que podem, ao mesmo tempo, ser colocadas concreta- mente ao informante nativo. Como documento, o seu valor consiste no facto de fomecer diversos dados autenticados, apresentados segundo um esquema natural de associagSes. Uma carta sinéptica da magia preenche a mesma fun- 40. Como instrumento de pesquisa, utilizei-a com o fim de averiguar, por exemplo, as ideias sobre as caracteristicas do poder mégico. Com uma carta A frente, podia abordar de maneira fécil e conveniente diferentes tépicos e regis- tar as respectivas prdticas e crengas contidas em cada um. Assim, através de uma ilagéo geral para todos os casos |...]’, pude encontrar resposta para o meu problema abstracto. Nao posso aqui tecer mais consideragées relativas A dis- cussio desta questo, pois isso implicaria algumas precisdes no que respeita, Por exemplo, A diferenca entre o registo de dados concretos e reais, como a genealogia, e aquele que visa resumir os contomnos de um costume ou crenca, tal como seria 0 caso do registo de um sistema magico. Voltando mais uma vez a questdo da honestidade metodoldgica, jd dis- cutida na Divisio I, queria agora salientar que o procedimento relativo a apresentagao de dados concretos dispostos em tabela deve ser aplicado, antes de mais, as proprias credenciais do Etnégrafo. Ou seja, um Etnégrafo que pre- tenda ser respeitado deveré patentear clara e concisamente, sob a forma de tabela, aquilo que no seu trabalho resulta das suas Ppréprias observacdes directas e aquilo que, por seu turno, resulta de uma recolha indirecta de infor magio. A tabela seguinte pode servir de exemplo para este procedimento; ao mesmo tempo que permitird ao leitor aferir a credibilidade de qualquer decla- tagao que tenha especial interesse em verificar. Com a ajuda desta tabela e das muitas referéncias dispersas ao longo do texto relativas & forma, as cir- cunstancias e ao grau de exactidio com que alcancei cada dado concreto, espero ter eliminado qualquer eventual obscuridade relativa as fontes deste livro, PRIMEIRA EXPEDIGAO, Agosto de 1914-Marco de 1915, CO : ‘Margo, 1915. Na aldeia de Dikoyas (ha de Woodlark) observacao de Hi algumas oferendas cerimoniais. Obtengio de informacao preliminar. SEGUNDA EXPEDICAO, Maio de 1915-Maio de 1916, Junho, 1918. Uma visita kabigidoya chega a Kiriwina, vinda de Vakuta, A informagio recolhida foi constitufda pelo testemunho da sua ancora- gem e pelos homens observados em Omarakana, Julho, 1915, Vérios grupos Kitava desembarcam na praia de Kaulukuba, Observacdo dos homens em Omarakana. Muita informagio recolhida neste periodo, Setembro, 1915. Tentativa frustrada de ‘favegar até Kitava com To’uluwa, © chefe de Omarakana, Outubro-Novembro, 1915, Observagio da partida de trés expedigdes de Kiriwina para Kitava, De cada vez To'uluwa traz consigo umn espélio de muwali (braceletes de conchas), Novembro, 1915-Margo, 1916. Preparativos para uma grande expedigéo maritima de Kiriwina até as ilhas de Marshall Bennett. Construgio de mente baat Tenovasio de outra; fabrico de velas em Omarakana; langa- ‘mento a dgua; tasasoria na praia de Kaulukuba. Ao mesmo tempo obten. So de informagio sobre estes assuntos e outros com eles telacionados, Aquisiséo de alguns textos magicos sobre construgo de canoas e magia . Ir Kula. Malinowski: Os Argonautas do Pacffico Ocidental 29 i; TERCERA EXPEDICAO, Outubro de 1917-Outubro de 1918, Novembro, 1917 - Dezembro, 1917, Kula interior ; alguns dados obtidos no Tukwaukwa, Dezembro-Feverciro, 1918. Grupos Kitava chegam a Wawela, Recolha de informasio sobre o yoyooa. Recolha de informagdo relativa as yoyoua, i! Obtensio de magias e feiticos dos Kaygau. y Margo, 1918. Preparativos em Sanaroa; preparativos nas Amphletts: a frota Dobu chega aos Amphletts. A expedicao wvalak Proveniente de Dobu seguiu para Boyowa. Abril, 1918. Chegada; recepsio em Sinaketa; as transacydes Kula; grande assembleia intertribal. Obtengdo de algumas formulas mégicas, ie Maio, 1918. Grupo Kitava observado em Vakuta, i Junho-Julho, 1918. Informagées relativas A magia e costumes Kula confire maclas ¢ desenvolvidas em Omarakana, com especial incidéncia nas suas ramificagSes orientais. . Agosto-Setembro, 1918, Recolha de textos mégicos em Sinaketa. wh Outubro,1918. Informagao obtida junto de alguns nativos de Dobu e do t distrito meridional de Massim (examinada em Samarai). i 304 Ethnologia Para resumir o primeiro ponto fundamental do método, digamos que cada feriimeno deve ser analisado tendo em conta toda a gama possivel das suas manifestagSes concretas, estudando cada uma através de uma investiga- go exaustiva de exemplos detalhados. Se poss{vel, os resultados devem ser 1 dispostos em tabela numa espécie de carta sindptica, visando a sua utilizagao simulténea como instrumento de estudo e como documento etnolégico. Com a ajuda destes documentos e da andlise dos dados reais é possivel perspecti- \ var com’clareza 0 contexto da cultura nativa, no sentido mais lato do termo, 4, bem como a sua constituic&o social. Este método pode ser designado como 0 método da documentagao estatistica através de provas concretas. snoss+ N&o 6 necessério repetir que, a este respeito, o trabalho de campo cienti- fico estd muito acima da melhor das produgdes de amadores. Existe no entanto ‘um ponto no qual estes tiltimos frequentemente se destacam. Refiro-me a des- crigo de alguns tracos intimos da vida nativa que nos trazem aqueles aspec- bs tos que 6 um contacto prolongado e de grande proximidade com os natives pode tornar familiares. Os resultados de alguns trabalhos cientificos - sobre- ‘studo aquelés habitualmente designados como «trabalho de prospeccdo» ~ apresentam; por assim’ dizer, um excelente esqueleto da constituicao tribal, Tuas faltz-the' came e o sangue, Aprendemoe nuito sdbreo enquadeamento «+ da sociedade em causa, mas nfo conseguimos aperceber-nos ou imaginar den- tro dele as realidades da vida humana, o fluxo rotineiro dos acontecimentos didrios, as ondas ccasionais de agitaglo provocadas por uma festa ou ceri- ménia-ou qualquer acontecimento particular. No momento de organizar as « normas e preceitos dos costumes locais, resumindo-cs a uma formula alcan- ‘gada através da recolha de dados e declaragdes dos nativos, acabamos por con- cluir que esta preciso ¢ estranha A vida real que nunca adere rigidamente a . qualquer norma. Torna-se entio necessdrio complementar este ponto de vista vatravés da cbservacao da maneira como determinado costume é posto em pré- tica, do comportamento dos nativos mediante as regras formuladas de modo » tio preciso pelo Btndgrafo e das muitas excepgSes que ocorrem quase sempre nos fenémenos Se todas as conclusées forem apenas baseadas nos relatos dos informan- tes ou deduzidas a partir de documentos objectives, torna-se claramente impossivel actualizé-las com dados efectivamente observados do comporta- mento real. E esta é a razo pela qual determinados trabalhos de amadores residentes a longo prazo - como comerciantes e agricultores instruidos, médi- cos e administrativos e, claro est4, ‘alguns dos missiondrios inteligentes e sen- satos aos quais a Etnografia tanto deve - ultrapassam em plasticidade e Tiqueza vivencial a maior parte dos relat6rios puramente cientificos. Mas se 0 investigador de campo treinado puder adoptar’as condig6es de vida acima Malinowski: Os Argonautes do Pacifico Ocidental a1 descritas, ficard em muito melhor posigio para entrar verdadeiramente em contacto com os nativos do que ‘qualquer outro residente branco, pois nenhum. dos outros vive efectivamente numa aldeia nativa, excepto durete Periodos muito curtos, dado que cada qual mantém as suas préprias Ocupagées, o que Thes absarve a maior parte do seu tempo. Além disso, 0 facto de as suas rela- ses com o nativo serem determinadas pelas posigdes Tespectivas de comer- menos no caso dos missiondrios e dos administrativos, Viver numa aldeia com o tinico propésito de observar a vida nativa per- mite acompanhar repetidamente costumes, ceriménias e transacydes e acu- Ele estd, entlo, apto para afirmar circunstancialmente se um acto € Publico ou Privado; para descrever como uma assembleia puiblica se comporta e qual a Sua aparéncia; pode, entio, julgar se um acontecimento é vulgar ou extraor- dindrio ¢ emocionante; se os natives o cumprem de forma sinters ¢ secon em tom de brincadeira, de forma superficial ou deliberada e com zelo, For outras palavras: existem vérios fenémenos de grande importancia que nio podem ser recolhidos através de questiondrios ou da andlise de docu- apenas por amadores, logo, de um modo geral, com um valor telativo, Na verdade, se nos lembrarmos que estes factos imponderdveis mas muito importantes da vida real fazem parte da verdadeira substancia do \ 2 Ethnologia* 3... tecido social, que sido eles que tecem os intimeros fios que mantém a coesio familiar, clanica, comunitéria e tribal, o seu significado torna-se claro. Os con- tornos mais cristalizados dos agrupamentos sociais, tais como determinados rituais, deveres econdmicos e legais, obrigaces, oferendas cerimoniais e ges- tos formais de reconhecimento, embora igualmente significativos para o estu- dioso, sio na realidade sentidos de forma menos pungente pelo individuo que os cumpre. Aplicando isto a nés préprios, todos sabemos que «vida familiar» significa antes de mais a atmosfera do lar: todos os pequenos actos incomen- surdveis e atencSes nos quais esto expressos a afeico, o interesse miituo, as pequenas preferéncias e as pequenas antipatias que constituem a intimidade. Factos como o de podermos vir a herdar de certa pessoa ou o de devermos acompanhar o carro funerdrio de outra, embora sociologicamente pertencam a definicdo de «familia» e de «vida familiar», s0 colocados em segundo plano quando encaramos a perspectiva pessoal daquilo que a familia significa ver- dadeiramente para nés. O mesmo se aplica a uma comunidade nativa, e se o Etnégrafo quer fazer chegar a vida real dessa comunidade até aos seus leitores, nao deve, sob qual- quer pretexto negligenciar estes factos. Nenhum dos aspectos - 0 fntimo e o legal - deve ser desprezado. No entanto, geralmente, os relatérios etnogréfi- cos ndo contemplam os dois, mas apenas um ou outro —e, até agora, os aspec- tos da intimidade tém sido os mais negligenciados. Muito para além do ambito estrito das relages familiares, este aspecto intimo, expresso pelos detalhes tipicos de interaccdo e pelos padrées de comportamento interpessoal, existe em todas as relagdes sociais, mesmo naquelas que ligam entre si os membros de uma mesma tribo ou de tribos diferentes, hostis ou no, que se encontram em qualquer situagéo social. Esta vertente é diferente da moldura legal da relagao definida e cristalizada e tem de ser estudada e afirmada nos seus pré- prios termos. Da mesma forma, quando se estudam os actos formais da vida tribal ~como qualquer tipo de ceriménias, rituais, festividades, etc. -, os detalhes e a variagao dos comportamentos devem ser apresentados a par do enquadra- mento geral dos acontecimentos. A importancia deste procedimento pode ser ilustrada com 0 seguinte exemplo. Muito tem sido dito e escrito sobre o con- ceito de sobrevivéncia, Ora, 0 cardcter de sobrevivéncia de determinada ati- tude nao se pode expressar melhor do que nos aspectos acessérios de um com-_ portamento, na forma como ele é levado a cabo. Tomemos qualquer exemplo da nossa prépria cultura, quer se trate da pompa e circunsténcia de uma ceri- ménia de Estado ou de um costume pitoresco dos mitidos da rua; a sua mera «esquematizacao» nao nos dird se o ritual ainda vibra com vigor nos coracées, daqueles que o cumprem e da audiéncia ou se é encarado como um costume moribundo, apenas mantido em nome da tradigao. Mas se observarmos e registarmos os dados relativos ao comportamento, o grau de vitalidade do acto tornar-se-4 evidente. Nao h dtivida de que, do ponto de vista quer da Malinowski: Os Argonautas do Pacifico Ocidental 33 andlise sociolégica quer da psicolégica, em todas as perspectivas teéricas, 0 modo e 0 tipo de comportamento observado na representacao de um acto é da maxima importancia. O comportamento é um facto, um facto relevante, e como tal, pode ser registado. Insensato seria o homem de ciéncia que negli- genciasse toda esta classe de fenémenos, prontos a ser recolhidos, ainda que © fizesse por ndo vislumbrar a sua utilidade te6rical . E ébvio que, no que respeita ao método real de observacao e registo no trabalho de campo destes imponderabilia da vida real e do comportamento genu(no, a equagio pessoal do observador se torna mais proeminente do que na reco- lha de dados etnogréficos cristalizados. Mas também aqui o esforco principal deve ir no sentido de deixar os factos falarem por si. Se, ao fazer uma ronda didria na aldeia, determinados incidentes, formas caracteristicas de comer, de conversar, de trabalhar [...] so observados repetidamente, devem ser imedia- tamente apontados. E também importante que este trabalho de recolha e ano- tagéo das impressdes comece logo no inicio do trabalho em determinada Tegido. As peculiaridades subtis, que impressionam enquanto sio novidade, passaro despercebidas 4 medida que se tornem familiares, Outras, a0 con- trdrio, 66 se evidenciargo no decurso de um conhecimento mais profundo das condiges locais. Um didrio etnogréfico, levado a cabo sistematicamente 20 longo do tempo de trabalho numa regio, seria o instrumento ideal para este tipo de estudo. E se, a par daquilo que é o normal e tipico, o Etnégrafo ano- tar cuidadosamente os pequenos e grandes desvios A norma, ele estard a bali- zar os dois extremos entre os quais se movimenta a normalidade. . Ao observar as ceriménias ou outros acontecimentos tribais [...], é neces sdrio no sé apontar as ocorréncias e detalhes que so prescritos pela tradigio € costumes, apresentando-os como sendo 0 essencial do acontecimento, mas também registar cuidadosa e fielmente, uma apés outra, as accdes dos acto- tes e dos espectadores. Esquecendo por um momento que conhece e com- preende a estrutura destas ceriménias e os principais dogmas nelas subjacen- tes, o Etnégrafo deve simplesmente deixar-se envolver na ambiéncia de uma assembleia de seres humanos e observar se estes se comportam de forma séria u jocosa, com compenetraco ou com frivolidade, se se encontram com o estado de espirito habitual ou especialmente entusiasmados, e por af adiante, Concentrando-se constantemente neste aspecto da vida tribal e com o objec- tivo permanente de o registar e expressar em termos de factos reais, uma quan- tidade de material sdlido e significativo recheard as suas notas. Encontrar-se-é entao em condig6es de «colocar» correctamente o acontecimento no seio da vida tribal, quer dizer, de demonstrar o seu cardcter excepcional ou comum, de compreender se este implica ou nao alteragdes profundas no comporta- mento habitual dos nativos. Isso permitir-lhe-d ainda uma apresentagio clara e convincente de todo o material. Neste tipo de trabalho, é ainda aconselhavel que, de vez em quando, 0 Etnégrafo ponha de lado a maquina fotografica, c bloco de notas e o lépis e a en tate ap en engin nnn pe intervenha no que se est4 a passar. Pode participat nos jogos dos natives; pode ~ acompanhé-los nas suas visitas e passeios, sentar-se ouvindo e partilhando as * guas conversas. Nao sei se isto é igualmente fAcil para toda a gente ~ talvez a natureza eslava seja mais plistica e espontaneamente mais selvagem do que “a dos europeus ocidentais -, mas embora o grau de sucesso possa variar, todos devem tentar. Destes mergulhos na vida dos nativos - que eu empreendi fre- quentemente nao apenas devido ao estudo mas porque toda a gente precisa de companhia humana — emergia sempre a clara sensaco de que o seu com- portamento e a sua maneira de ser, em todos os tipos de operagies tribais, se tornavam mais transparentes e facilmente compreensiveis do que me eram antes. O leitor encontraré todas estas consideragdes metodolégicas ilustradas, mais uma vez, nos capfhilos seguintes. shoe - Vil; "©" Por fim, passemos ao terceiro e tiltimo objectivo do trabalho de campo ientifico, ao iiltimo tipo de fenémenos que devem ser registados com vista * a um.retrato completo e adequado da cultura nativa. Para além do contorno * firme da constituigéo tribal e dos temas culturais cristalizados que formam o esqueleto; para além dos dados da vida‘quotidiana e do comportamento comum, que sio, por assim dizer, a sua care e sangue, também 0 espirito — as visbes, opinides e expressies dos nativos - deve ser registado. Isto porque, em cada acto da vida tribal existe, em primeiro lugar, a rotina prescrita pelo costume e tradic&o, depois o modo como é levada a cabo e, por fim, o comen- tdrio que suscita, de acordo com a sua mentalidade. Um homem que se sub- mete a varias obrigagdes costumeiras e que actua segundo a tradicio, f4-lo impelido por certos motivos, acompanhado de certos sentimentos, guiado por certas ideias. Estas ideias, sentimentos e impulsos so moldados e con- dicionados pela cultura em que se encontra e, como tal, sio uma peculiari- dade étnica dessa sociedade. Logo, devemos esforcar-nos por estudé-los e registd-los. ‘Mas serd que isto é possivel? Serd que estes estados subjectivos no sio demasiado abstractos e inefaéveis? E mesmo partindo do principio de que as pessoas sentem, pensam ou experimentam realmente certos estados psicolé- gicos de acordo com a imposigao dos costumes, a verdade é que a maioria delas nao é certamente capaz de exprimir estas ideias por palavras. E da maior importa tir este ultimo ponto, e é talvez esta a verdadeira dificul- dade no estudo dos factos da psicologia social. Sem tentar resolver o problema teoricamente ou entrar demasiado no terreno da metodologia geral, passarei directamente A questdo dos meios praticos para ultrapassar algumas das difi- culdades que ele implica. Em primeiro lugar, hé que dizer que aqui nos restringimos a formas este- reotipadas de pensar e sentir. Como socidlogos, no nos interessa o que A ou Malinowski: Os Argonautas do Pacfico Ocidental 35 B possam sentir enquanto individuos, no decurso acidental das suas préprias experiéncias pessoais; apenas nos interessa o que sentem e pensam enquanto membros de uma determinada comunidade. Ora, nesta qualidade, os seus estados mentais so marcados por um cunho especifico, tornam-se estereoti- pados pelas instituigdes onde vivem, pela influéncia da tradicdo e do folclore, * pelo préprio veiculo do pensamento, ou seja, pela linguagem. O ambiente social e cultural em que se movem forca-os a pensar ea sentir de determinada maneira, Assim, um homem que viva numa comunidade poliandrica néo pode experimentar os mesmos sentimentos de citime que um monégamo estrito experimenta, embora potencialmente o sentimento possa existir. Um homem que viva dentro da esfera do Kula no pode tornar-se permanente e sentimentalmente ligado a alguns dos seus bens, embora os valorize acima de tudo. Estes so exemplos simples, mas ao longo do texto deste livro encon- traremos outros melhores, Assim, poderemos resumir o terceiro mandamento do trabalho de campo da seguinte forma: encontrar os modos tipicos de pensar e sentir, correspon- dentes as instituigdes e A cultura de uma determinada comunidade, e formu- lar os resultados da forma mais convincente. Qual serd o procedimento para isso? Os melhores escritores etnogrdficos ~ mais uma vez a Cambridge School com Haddon, Rivers e Seligman na primeira linha dos Etnégrafos ingleses - sempre se esforcaram por citar verbatim os depoimentos de importancia fun- damental. Os mesmos autores insistem ainda na utilizagao dos termos nati- vos de classificacao, termini technici sociolégicos, psicolégicos e industriais, yna transmissio, tao precisa quanto possivel, da descricdo verbal do pensa- mento nativo. O Etnégrafo pode dar um passo importante nesta linha a0 ‘aprender a lingua indigena e ao utiliz4-la como instrumento de pesquisa. Trabalhando em Iingua «Kiriwi» deparei, de inicio com dificuldades, quando registava as minhas notas jd traduzidas. Muitas vezes a traducio roubava ao texto as suas caracteristicas significativas ~ omitia os seus pontos de vista -, de forma que, gradualmente, fui impelido a escrever algumas frases impor- tantes tal como eram faladas na lingua nativa. A medida que o meu dominio da lingua progredia, passei a escrever cada vez mais em lingua «Kiriwi», até que, por fim, dei por mim a escrever exclusivamente nessa lingua, tirando notas rapidamente, palavra por palavra, de cada afirmacao. Mal cheguei a este Ponto, apercebi-me de que, ao mesmo tempo que estava a adquirir um mate- Hial lingufstico abundante, recolhia também uma série de documentos etno- gréficos que deviam ser reproduzidos tal como os havia registado, indepen- dentemente da forma como os utilizasse na elaboragdo do meu trabalho final", Este corpus inscriptionum Kiriwiniensium pode vir a ser utilizado néo apenas Por mim mas por todos aqueles que, pela sua maior acuidade e habilidade de interpretagao, possam encontrar pontos que escaparam & minha atencio; isto & semethanga do que se passa com outros escritos que constituem a base das varias interpretagGes de culturas antigas e pré-histéricas; s6 que estas inscri-\ oe ; 36 Ethnologia es etnogréficas sio todas decifréveis e claras, foram quase todas traduzidas completamente e sem ambiguidades e guarnecidas com comentérios cruzados dos nativos ou scholia procedentes de fontes vivas. Nada mais a acrescentar sobre este tema, uma vez que mais a frente um capitulo inteiro (Capitulo XVIII) serd dedicado a este tema e & sua ilustragio com varios textos nativos. O Corpus serd obviamente publicado posteriormente. x As consideracies feitas até aqui indicam entdo que o objectivo do traba- Tho de campo etnografico deve ser alcangado através de trés vias: . 1) A organizagio da tribo e a anatomia da sua cultura deve ser registada num esquema firme e claro. O método de documentagio concreta e estatistica € 0 meio a utilizar para a definigo desse esquema. 2) Dentro desta trama, devem ser inseridos os imponderabilia da vida real 0 tipo de comtportamento. Os respectivos dados devem ser recolhidos através de observagGes minuciosas e detalhadas, sob a forma de uma espécie de did- tio etnografico, s6 possivel através de um contacto intimo com a vida nativa. 3) Deve ser apresentada uma recolha de depoimentos etnogréficos, nar- rativas caracteristicas, ocorréncias tipicas, temas de folclore e formulas mégi- cas sob a forma de um corpus inscriptionum, como documentos da mentalidade nativa. Estas trés linhas de abordagem levam ao objectivo final que um Etnégrafo nunca deve perder de vista. Este objectivo 6, resumidamente, o de com- preender o ponto de vista do nativo, a sua relacdo com a vida, perceber a sua viséo do seu mundo. Temos de estudar o Homem e devemos estudar o que mais profundamente o preocupa, ou seja, aquilo que o liga a vida. Em cada cultura, os valores so ligeiramente diferentes; as pessoas aspiram a fins dife- rentes, seguem impulsos diferentes, anseiam por diferentes formas de felici- dade. Em cada cultura encontramos diferentes instituig6es através das quais o homem persegue os seus interesses, diferentes costumes pelos quais satis- faz as suas aspiracées, diferentes cédigos de leis e moralidade que recom- « pensam as suas virtudes ou punem os seus erros. Estudar as instituigdes, cos- tumes e cddigos ou estudar o comportamento e a mentalidade sem o empenho na compreenso subjectiva do sentimento que as move, sem perceber a essén- Gia da sua felicidade é, em minha opiniao, desprezar a maior recompensa que podemos esperar algum dia obter a partir do estudo do Homem. O leitor encontrard estas consideragées gerais ilustradas nos capitulos seguintes, Ai encontraremos o selvagem esforgando-se por satisfazer algumas das suas aspirages, tentando cumprir os seus valores, perseguindo a sua pré- pria ambicio social. Acompanhé-lo-emos nas suas dificeis e perigosas empre- sas, movido por uma tradigéo de missées mégicas e herdicas, enleado no seu préprio romance. E possivel que, ao lermos o relato destes costumes remotos 8 feed Sone Sea eecppatane samme Malinowski: Os Argonautas do Pacifico Ocidental 37 Sejamos invadidos por um sentimento de solidarledade para com as diligen- cas ¢ ambicées destes nativos, Talvez a mentalidade do Homem chegue até Nés_nos seja revelada através destes caminhos nunca antes percorridos. Pode ser que, percebendo a natureza humana sob uma forma muito distante e estra- nha para nés, se acenda alguma luz sobre a nossa. Se assim for, e 86 assim, Poderemos pensar que 0 nosso esforgo para entender estes Nativos, as suas instituigdes e costumes valeu a pena, e acreditar que, também nés, tirémos algum proveito do Kula. Seligman, Cambridge, 1910, cap. VIL 2 a etn The Malbun, in Tenactin of the R oct of. Ausra 1915, cap, 1V, 4 pp. 612 a 629. Ob. cit, cap. XL, oF i i I ! I | : 1 i i . rans srimla desde ¢ que howve algumas agradével excepste, para mencionar ape de pero gages Billy Hancock nas Trobriand, M. Ratfael Brado, outro comercie to de pérolas, ¢ 0 missionério, St. M. K. Gilmour. . seateseem hbito dtl da teminologia centifica, ulizl o termo Etnograia para o2 Fas epee Pics e descritives da cénca do Homem, © termo Einologia prec tor ras especulativas e comparativas, diz: «Enainamos estes homens sem lela ser obedientes, estes a amar, ana mts Selvagens a mudar» Bains:

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