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sínteses da cultura portuguesa

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sínteses da cultura portuguesa

UMA HISTÓRIA
DE FOTOGRAFIA
PORTUGAL 1839 A 1991

António Sena

COMISSARIADO PARA A EUROP ÁLIA 91- PORTUGAL


IMPRENSA NACIONAL- CASA DA MOEDA
INTRODUÇÃO

Em 1973, animado por um simultâneo desejo de desenhar e fotogra-


far dentro de Portugal - um território ocupado por coisas e pessoas
que me fascinavam - fui confrontado com uma estranha sensação de
ausência: as poucas imagens fotográficas que ia encontrando não tin-
ham referências e em lugar nenhum encontrei uma fonte sintética
que me desse pistas. Sentia uma necessidade de descobrir fios condu-
tores, tanto ao nível das imagens como dos seus autores. As primeiras
buscas acabaram por vincar essa insatisfação: não era só o
esquecimento de um passado distante mas a omissão de factos
recentes.
As características da fotografia como intermédia interdisciplinar
- ou seja, como algo que está na base de quase todos os média,
desde a edição litográfica às imagens infográficas, e que é utilizada
discretamente por todas as disciplinas, das artes à astrofísica - fazem
dela um corpo algo estranho, sujeito a tantos desprezos quanto a
apaixonadas convulsões.
Em Portugal, ainda se publicam fotografias· sem qualquer autoriza-
ção, sem a referência do seu autor, sem respeitar enquadramentos
originais. Compram-se arquivos aproveitando a ignorância dos seus
proprietários.
Estou convencido de que não é o desconhecimento - mais
voluntário do que parece- que possibilita o novo. Pelo contrário: a
radicalidade de qualquer inovação ou deslumbramento são paralelos
à radicalidade da pesquisa.
Por isso me lembrei de começar a juntar elementos, pensando
numa forma de os divulgar mais tarde ou mais cedo. Primeiro, através
de artigos e a partir de 1982 através da ETHER, uma associação sem
fins lucrativos com galeria dedicada ao estudo e à divulgação da
fotografia portuguesa.
Seria insensato continuar a falar de fotografias que ninguém via.
A constituição progressiva de exposições monográficas acompan-
hadas de catálogos completos era inevitável. Uma obra de síntese
i !ma História de Fotografia Introdução 7
6

começou entretanto a fazer-me falta. Um lugar onde pudesse reunir de situações não previsíveis de início. A fotografia, em particular, é
toda a informação disponível, devidamente ordenada, de modo a responsável por ele.
permitir - até para mim - o perseguir de pistas, o aclarar de uma - A fotografia e a fotomecânica andaram sempre ligadas, justifi-
suspeita ou correr o perigo atraente das surpresas. Que pudesse ser o cando que as imagens originais estejam sempre, mesmo quando as
ponto final de uma tarefa, iniciada em 1973, também ela essencial- dificuldades dos seus autores foram enormes, interdependentes de
mente transitiva. uma actividade editorial, em periódicos ou livros. Desenhadores, gra-
Este livro é o resultado desse estado de saturação de documentos vadores, impressores e fotógrafos continuam indissociáveis.
e fotografias que outros não viram, ou não querem ver e uma alterna- - Procurei referir fotógrafos de todo o País que me pareceram
tiva à impossibilidade de fazer - com a regularidade mínima- todas
importantes, de modo a possibilitar que as comunidades locais sai-
as exposições e catálogos indispensáveis, dada a ingratidão tão portu-
bam preservar as suas imagens e ajudar, entretanto, a fazer as suas
guesa de não dar atenção ao que se passa mesmo ao nosso lado, nessa
merecidas monografias, sem se sujeitarem ao «canibalismo» incense-
mão e olho que acabam assim por nada semear. quente de Lisboa.
«Uma história de fotografia em Portugal» para servir de base a um
corpus, mesmo que provisório ou transitivo, é a ambição deste livro. - A fotografia em Portugal passa tanto por fotógrafos portugue-
Não procurei fazer um livro de divulgação mas uma síntese de refe- ses que trabalharam por aqui ou em viagem como por estrangeiros
rências. que por aqui passaram.
A escolha do artigo indefinido «uma» para o título foi deliberada. - Raramente houve um sincronismo participante com movimen-
Com ele, dou a entender que não só há várias histórias possíveis, tos artísticos, literários ou pictóricos, sendo quase sempre atitudes
como e sobretudo, é fascinante pensar desde já, nas que ficam por dispersas ou marginais. Em Portugal, a fotografia nunca chegou a ser
escrever. Esta história da fotografia em Portugal levou em conta o objecto de história, crítica ou estética regular e consistente. A própria
facto de não haver qualquer outra publicada até à data. Nesse sentido, imprensa nunca teve qualquer papel credível na sua função divulga-
em lugar de fornecer modelos de leitura ou de sugerir hipotéticas dora, pelo que as fontes são dispersas e inseguras.
conclusões, preferi construir uma história de fotografia, baseada
fundamentalmente em documentos referenciados cronologicamente. - As instituições oficiais ou empresas comerciais nunca apoiaram
É assim que se reúne pela primeira vez um conjunto antológico de claramente as poucas iniciativas inovadoras, de investigação ou expe-
textos e imagens, na sua grande maioria inéditos para o leitor contem- rimentação, que se produziram na fotografia. Pelo contrário, ficaram
porâneo, muitas vezes de difícil localização e consulta, apoiado por sempre presas a toda a espécie de compromissos. Desde 1900 que os
uma bibliografia específica de forma a possibilitar a pesquisa e as produtos fotográficos são considerados mercadoria de luxo. A tenta-
contaminações mais imprevisíveis. tiva para se comercializarem placas negativas portuguesas na década
O leitor poderá, assim, relacionando textos e imagens contempo- de 1900 falhou. No entanto, desde 1932 que se apoiam toda a espécie
râneos uns dos outros, procurar soluções, desenvolver conjecturas, de concursos e salões, sem qualquer critério selectivo.
ou sonhar apenas. - A história em Portugal passa, tal como em muitos países, por
Gostava de referir algumas outras preocupações básicas que tive: uma periódica, e por vezes entediante, discussão sobre «ser ou não
Arte», sobre ser «Técnica» ou «Arte», sobre amadores e profissionais
- Todos os aspectos estéticos da fotografia estiveram -e ainda empenhados na mesquinhez dos concursos. As excepções só confir-
estão- ligados a uma técnica - química e física -, mesmo quando maram a regra.
essa técnica é voluntariamente desprezada, o que implica um vocabu-
- Apesar ·de todas as cíclicas discordâncias e disputas, nunca
lário especializado que não posso evitar sem correr o perigo da infor-
houve uma «secessão» em Portugal. Embora haja confrontações ou
mação superficial. É minha convicção de que as «máquinas», produto
diversidade de posturas estéticas, elas nunca se afirmaram por acções
de imaginação, constroem por sua vez um imaginário próprio através
8 Uma História de Fotografia

consistentes, teóricas ou práticas, demonstradas irregularmente num


universo fotográfico incipiente.
- O que não invalida a existência de fotografias fascinantes
(«discretas», como lhes chamo) que se sobrepõem a uma eventual his-
tória de fotógrafos ou movimentos.
I
1839-1849
AS PRIMEIRAS NOTÍCIAS
SUSTOS E SURPRESAS, ALGUMAS REVELAÇÕES

As primeiras notícias sobre o anúncio da fotografia são textos tão


indispensáv~is para a sua época como deslumbram ainda os autores
contemporâneos.
Em 1839, os periódicos O Panorama, de Lisboa, e a Revista Lite-
rária, do Porto, anunciaram respectivamente e com uma actualidade
invulgar as «descobertas» de Daguerre e Talbot, demonstrando a
influência francófona e britânica a sul e a norte, enquanto O Recreio
Nota. - Em Portugal, a investigação fotográfica é praticamente nula. Limita-se à
publica a carta de Hércules Florence, chegada do Brasil.
publicação de alguns artigos de jornal ou revista, comunicações dispersas sem o apoio
de qualquer sistematização bibliográfica ao nível de autores e ou obras. Salvo o artigo
pioneiro de Augusto Silva Carvalho no Boletim da Academia das Ciências, em «O INVENTO, ou descubrimento de que vamos fallar, merece
1940/41, onde se relatam as notícias dos primórdios do aparecimento da fotografia em um e outro título; a natureza e o engenho do homem, podem ahi
Portugal, todas as outras publicações são escassas em informações metodologica- apostar primasias. A natureza apparece retratando-se a si mesma,
mente organizadas.
copiando as suas obras assim como as da arte, não em paineis
Não esquecendo, no entanto, a publicação de António Pedro Vicente sobre Carlos
Relvas (1984), de uma resenha demasiado incompleta para a SUMMA ARTIS (1986); uma presenciaes, inconstantes e fugitivos, como eram e são os rios, os
tese de mestrado de José P. Borges, em 1984, sobre o repórter do início do século}os- lagos, as pedras e metaes polidos, mas em materia que retem o
hua Benoliel, ou uma· pequena resenha The photographers of Lisbon, 1886-1914 simulacro do objecto visível e o fica repetindo com a mais cabal
(1990) de Luís Pavão, a bibliografia existente pode resumir-se a artigos de Joaquim semelhança ainda depois de ausente: isto pelo que toca à natu-
Vieira e António Sena (a partir de 1980). reza. Agora pelo que respeita ao engenho do homem, foi elle quem
Para a fotografia do século xx pode destacar-se o catálogo da exposição Nível de
Olho (1989) onde se relatam os principais acontecimentos, tanto ao nível de exposi-
a forçou a este milagre novo e inesperado. Duas coisas nos dão
ções como de publicações. pena querendo escrever esta notícia; a primeira é que não possa-
Até hoje não houve qualquer retrospectiva da fotografia portuguesa desde os seus mos explica-la e circunstancia-la como cumprira, por fallecerem
primórdios. Inúmeras vezes foram anunciadas sem nunca se terem concretizado. As ainda as precisas e miudas informações; a segunda, que desse
fotografias que temos são feitas, assim, sobre a ignorância de um passado próximo e mesmo pouco com que um jornal de Paris, o Seculo, nos vem ace-
longínquo, sobre sucessivas omissões, voluntárias ou involuntárias, à custa de mode-
los estrangeiros superficialmente adoptados.
nando, não nos consente a índole e extensão da nossa folha apre-
As inquietações criativas da fotografia em Portugal são desconhecidas dos seus sentar senão o pouquíssimo.
fotógrafos. Desde 1978 que muitos dos fotógrafos que conheço me continuam a fazer «A camara luminosa ou optica, segundo vulgarmente se diz, é
a mesma pergunta absurda: •-Mas há alguma coisa para ver e dizer da fotografia em formosa recreação de nossa infancia, e nos permite viajar sentados
Portugal?• n'uma cadeira, no canto da nossa casa, por todos os portos, cida-
Uma História de Fotografia 11
10 As Primeiras Notícias

des, ruínas, bosques e desertos do mundo_- mas, se taes peregrina- substancia como a elle sonhára, tão sensível à acção immediata da
ções nos não custam nem fadigas nem perigos, nem dinheiro e lar- luz, que esta lhe deixa os vestígios evidentes do seu contacto, d'esse
gos annos, também a idéa que nos trazem das coisas apartadas é . contacto tão sub til e inapreciavel. Estes vestígios ficam representa-
por demais incompleta ou falsa_- e todos esses quadros de mão. dos por côres que teem em cada ponto uma relação perfeita com os
humana são imperfeitos com tudo que d'ella sae. A camara lumi- diversos gráus d'intensidade da mesma luz.
nosa levava grandes vantagens á camara obscura em um sentido_ «Não se cuide, comtudo, haver nesta estampa as proprias côres
se em outro lhes cedia,· porque, se ahi o artista cercado de trevas via do objecto que ellas representam; não, as diversas côres dos origi-
descer o seu papel alvo e nú, as formas perfeitas, córadas e vivas naes só são denotadas e significativas na copia com uma extrema
das coisas externas, e dessas, todas as que lá por fora senão leva- exactidão, pela maior ou menor força da luz, isto é, pelo maior ou
vam e fugiam, as prendia com o lapis e pincel, e compunha, ou menor effeito da impressão da luz: vae do original à copia uma
antes copiava natural e verdadeiro o seu quadro,· por outra parte differença a este repeito bem comparavel com a que Jaz uma gra-
o alcance desta sua magica era sempre mui limitado: e de mais, vura optima d'um painel a oleo cujo ella fôr perfeitíssimo tras-
dado que as formas e cores que primitivamente baixavam ao seu lado.[ .. ]
papel fossem, nem podessem deixar de ser completas e exactas, «A delicadeza dos traços, a pureza das fórmas, a exactidão e
como o prendê-las era trabalho de mão e instrumentos humanos_- harmonia dos tons, a perspectiva aeria, o primor das miudesas,
ahi vinham tambem forçosamente as differenças, os erros e quando isso tudo se representa com a suprema perfeição. A lente, malsim
menos os desprimores. Da camara obscura saiam lindas recorda- terrível das melhores obras de desenho, que em todas encontra
ções abreviadas do mundo circumstante_- mas esses paineis que senões e desares inevitaveis para a arte, gire quanto quizer sobre
mais eram formulas representativas do que emanações reaes dos estas figuras, fite n'ellas, quanto tempo lhe agradar, o seu olho ine-
corpos_- mais retratos levemente desfigurados do que reflexos pro- xoravel, desesperar-se-ha de não descubrir senão perfeições, depois
prios, inteiros e absolutos, esses paineis, requeriam tempo, pacien- perfeições, e sempre em tudo perfeições. Não ha porque nos espan-
cia, arte e uso e uma palheta carregada de todas as cores do íris. temos: a luz, a propria luz foi a pintora.[ . .] Todavia, diz o noti-
D'ora ávante porém, sem palheta, nem lapis, sem preceitos artísti- ciador do Seculo, estas admiraveis representações da natureza,
cos nem, dispendio de horas e dias, que digo, sem mover a mão_ sem certamente por passarem por ellas mãos humanas, carecem do que
abrir os olhos e até dormitando, poderá o viajante enriquecer a quer que seja como objectos d'arte. Coisa admiravel! aquella
sua pasta com todos os monumentos, edifícios e paizagens das lon- mesma potencia que as creou parece ausentar-se logo d'ellas: estas
ges terras, e o amante mais hospede nas bellas-artes, obter por si obras da luz carecem de luz. Nos proprios pontos mais directa-
mesmo o retrato dos seus amores_- tão ao natural como o traz debu- mente clareados ha uma fallencia de vivesa e de lustre: e na ver-
chado no coração, e mais natural ainda porque não lhe faltarão as dade são umas vistas, que a despeito de todas as harmonias de sua
miudesas mínimas que. a vista não alcança e que só a lente lhe impecavel perfeição, como que apparecem sob um ceu denso e
poderia revelar. Os nossos leitores nos estão pedindo impacientes a boreal que as está esmorecendo e esfriando: parece que ao
solução de tão incrível problêma_- o que podemos é apontar-lha, coroarem-se pelo aparelho optico do auctor; todas á uma se reves-
isso vamos fazer. tem do aspecto melancholico do horizonte quando quer anoitecer.
<<Eis aqui o que o Senhor Arago relatou á academia franceza de [ ... ]
cuja é secretário: o Senhor Daguerre_ famigerado pintor de Diapo". «É inegável á vista do que levâmos apontado, que este invento,
rama, andava, largos annos havia, todo embebido em procurar um dos mais admiráveis de nossos tempos, terá largas consequen-
alguma substancia com todas as suas modificações e circumstan- cias em todas as artes do desenho, e contribuirá não só para o pro-
cias_- para este fim andou batendo à porta das varias materias e gresso do luxo util e ajormoseador da sociedade_ mas tambem para
interrogando todos os corpos e invocando toda a natureza. Em o maior aproveitamento das viagens, quer sejam scientificas, ou
tudo é a diligência mãe da boa ventura. Encontrou ao cabo uma artísticas, ou moraes, quer de simples divertimento e recreação.
12 As Primeiras Notfcias 13
Uma História de Fotografia

O auctor, porém, ainda não declarou o seu segredo; e esta immensa descoberto, antes de ler a tal memoria, o meio de vencer tamanha 21
revolução, para arrebentar e espalhar-se por todo o mundo, só difficuldade, e de fixar a imagem de maneira que elle podesse
guarda uma pallavra d'elle, o seu fiat lux. » expor-se á luz sem se destruir ou deteriorar.[... ] !e
«Architectura e Paisagem. A applicação do meu methodo aos í-
O Panorama, Lisboa, 16 de Fevereiro de 1839. casos de que aqui vou faltar é talvez a mais admirável; pelo menos
foi a que assombrou mais as pessoas que examinárão a minha col- ,,
lecção de desenhos feitos à luz do sol. ~

DEZENHO OBTIDO PELA LUZ, «Não há ninguem que ignore os bons effeitos que se obtem da
OU PROCESSO SEGUNDO O QUAL OS OB]ECTOS camara obscura, e que não tenha admirado a facilidade com ella
POR SI MESMOS SE DEZENHARÃO reproduz com todas as cores os objectos collocados da parte de
SEM SOCORRO DE LAPIS.(*) fora: muitas vezes meditava eu no irtteresse que este apparelho offe-
receria se chegassem a fixar-se no papel as engraçadas vistas que
«Na primavera de 1834, diz M Talbot, comecei eu a ensinar um por momentos nelle se pintão, ou mesmo se somente fosse poss{vel
methodo, que ja ha mais tempo eu tinha tenção de experimentar, fixar os contornos e as sombras dos objectos ainda que privados de
com o intento de applicar a um objecto util a propriedade tão todas as cores que os matizão. A facilidade com que eu tinha che-
curiosa que tem o nitrato de prata de corar quando se expõe aos gado a fixar as imagens engradecidas pelo microscopia solar, deu-
raios violentos da luz do sol. Eis o que eu me propuz fazer para -me esperanças de poder pelo mesmo processo obter a imagem dos
aproveitar esta propriedade, que os chimicos ja desde muito tempo objectos co !locados fora da camara obscura, posto que fossem illu-
Unhão descoberto. minados por uma luz muito menos viva. Como na aldea eu não
«Pareceu-me que devia primeiramente estender sobre uma folha tivesse camara obscura fil'-a d'uma grande caixa a que adaptei
de papel sufficiente quantidade, de nitrato de prata, e expor uma uma lente objectiva, a qual enviava a imagem dos objectos exter-
sombra bem Umitada. A luz cahindo, no resto do papel devia faze l- nos para o lado opposto ao em que estava situada. Este apparelho
-o negro, em quanto as partes assombradas se conservarão brancas. provido d'uma folha de papel sensitivo foi collado a 100 varas
Esperava eu que daqui resultasse um dezenho ou imagem que repre- pouco mais ou menos de distancia d'um edifício favoravelmente
sentasse até certo ponto o objecto que a tinha produzido; mas ao allumiado por um sol, de verão ao meio dia. Passada uma hora
mesmo tempo me lembrava que tinha de conservar estes desenhos em achei sobre o papel uma imagem bem distincta d'est edifício,
uma pasta, e que não os podia ver senão a uma luz artificial. excepto das partes que estavam á sombra. Em bem pouco tempo
«Tal foi o meu primeiro projecto antes de ser ampUado e corri- vim a conhecer por experiencia que com pequenos apparelhos era
gido pela experiencia. Só passado tempo, e já depois de ter obtido o effeito produzido em menos tempo, e desta sorte cheguei a obter
resultados inteiramente novos, é que me lembrei de indagar se este com pequenas caixas, e com pequenas lentes muito convexas, dese-
methodo tinha ja sido practicado ou proposto por alguem: soube nhos de notavel exactidão, mas em tão pequenas proporções, que
que com effeito ja tivera sido tentado, mas sem perseverança, e em parecia não poder ser senão o resultado do trabalho d'algum
pequeno numero de cazos: nem mesmo pude descobrir documentos artista lilliputiano, sendo precizo serem examinados com uma
satisfactorios, que foi uma memoria de Sir Humphrey Davy publi- lente para distinguir todos os objectos mínimos que em si se encer-
cada no primeiro Volume do Jornal da Royal lnstitution. A primeira ravão.·
idea destes ensaios parece ser devida a Wedgwood, que, junto com «NO verão 1835 obtive grande número de desenhos da minha
Sir H. Davy, fez grande numero de experiencias, todas baldadas. casa de campo. O methodo que adaptei era o seguinte. Depois de
Um dos maiores obstaculos que estes dous experimentadores en- adaptar uma folha de papel sensitivo ao foco de cada uma destas
contrárão, foi o não poderem jazer com que se deixasse de fazer pequenas camaras obscuras, levava comigo umas poucas que ia
suppor inexequivel o meu projecto, se por fortuna eu não tivesse collocar em differentes posições ao redor da caza; depois de meia
14 Uma História de Fotografia As Primeiras Notfcias 15

hora tirava-as todas achando em cada uma desenhados em minia- «Outra descoberta minha conhecida tambem nesta villa, e por
tura os objectos diante dos quaes esteve collada. algumas pessoas no Rio de janeiro, é a Photographia; o escripto
«Esta descoberta parece-me que deverá ser util aos viajantes que que foi enviado a Paris (1839) levava no fim estes dois títulos: Des-
não souberem desenho, ou também ao artista que nem sempre pode coberta da Photographia, ou impressão pela luz solar. Indagações
ter tempo para reproduzir com o seu (apis todos os objectos, que sobre a fixação das imagens na camara escura pela acção da luz. Um
elle reputa dignos de fixarem a attenção. Posto que a imagem desenho photographado por mim foi apresentado ao Príncipe de
obtida por este trabalho de natureza diffira da que o artista deze- ]oinville e posto no seu album por uma pessoa a quem devo este
nharia, e não possa realmente substituil-a, todavia deve ella ter-se favor. Acabo de ser informado que na Allemanha se tem imprimido
em muitos cazos por feliz podendo obter em tão curtos momentos pela luz, e que em Paris se está levando a fixação das imagens a
a representação d'ojectos, de que nem a lembrança poderia conser- muita perfeição. Como eu tratei pouco da photographia, por preci-
var.[ .. ]» sar de meios mais complicados, e de sufficientes conhecimentos
chimicos, não disputarei descobertas a ninguem, porque uma
Revista Litteraria, Porto, Março de 1839. mesma idéa póde vir a duas pessoas, porque sempre achei
precaridade dos factos que eu alcançava, e a cada um o que lhe é
devido; mas antecipo esta declaração a respeito da Polygraphia,
DESCOBERTA DA POLYGRAPHIA que tem tão bellas propriedades, para que a todo o tempo se con-
heça o seu inventor.» (Diário do Brasil.)
«Ao que acaba de ler-se ácerca dos trabalhos de Breyer em Liege,
devemos accrescentar o artigo seguinte, que, debaixo do titulo de O Recreio, Lisboa, Abril de 1841.
<<Descoberta da Polygraphia>> se lê na Phenix de S. Paulo de 26
d'Outubro, onde apparece assignado por Hercules Florence, genro
do nobre Deputado o Sr. Alvares Machado. Comparem os leitores as
datas, e decidão se o Mundo deve a descoberta da Photographia, ou
pelo menos da Polygraphia, à Europa ou ao Brasil.
«Ha nove anos que trabalho neste novo modo de imprimir, e ha
mais de seis que o exercito nesta villa, tendo tambem desempenhado
encomendas da capital e de outros pontos da província. É pois bem
conhecida esta descoberta entre os Paulistas. Mesmo no Rio de janeiro,
algumas pessoas que tem alta representação publica, alguns distinc-
tos artistas e negociantes bem conhecidos, estão informados de que
inventei a Polygraphia, e, se fosse preciso, daria o nome de muitas pes-
soas respeitáveis. Não tenho dado ampla publicação a esta descoberta,
por querer aperfeiçoa-la, e é bem claro que nesta villa de S. Carlos eu
devia precisar de muitos recursos para adianta-la mais depressa.
Senefelder teve que trabalhar muito anos sem fructo, na Allemanha, • O interesse que estão actualmente excitando as experiencias de M. Daguerre
tão abundante de recursos, luctando com a perspectiva da miséria; sobre a arte de fixar os desenhos na camara obscura faz com que copiemos a memoria
e lithographia levou 17 annos para passar daquelle paiz à França! de M. Talbolt, em que nos dá a história de todos os ensaios que sobre este objecto
tinha feito. Se, como parece, ele obteve resultados menos brilhantes que os que
«A Polygrapbia é já um Jacto averiguado que as artes vão chegou a alcançar o sabio artista francez, tem todavia o merito de reconhecer que
adquirir; a prova é, como já disse, que jazem 6 annos que imprimo havia muito campo a descobrir de indicar o caminho que seguio, e por onde se devia
por ella para o publico desta província. [ ..f marchar. - N. dos RR.
11
1850-1879
OS PIONEIROS DA TÉCNICA DO CÍCLOPE:
TÉCNICAS, ARTES E CIÊNCIAS

Os daguerreotipistas/retratistas espalharam-se por Portugal na década


de 1850. Wenceslau Cifka (1815?-1883), vindo de Praga, foi um dos
pioneiros ao instalar um estúdio em Lisboa em 1848, mas a verdade
é que em Évora, através do periódico Chronica Eborense, já se anun-
ciavam «Retratos ao Daguereotypo, nos Lóios», em 1847 -exemplo
entre muitos da popularidade dos retratistas ambulantes, portugueses,
es!_Janhóis e franceses, até c. 1860.
Em contrapartida, a actividade de calotipistas em Portugal parece
ter sido muito limitada. Além da obra praticamente desconhecida do
Barão de Forrester (1809-1861) por terras do Douro entre 1854-1857,
temos o acervo precioso de calótipos que Frederick Flower (1815-
-1889) realizou no norte entre 1845-1859 (v. Joaquim Vieira, Um calo-
tipsta ... 1980) e J. Silveira, em Lisboa, entre 1849-1856, participante
e premiado na 3. 3 Exposição Universal de 1862, em Londres.
As litografias que ilustram o livro de 1846 de William Barclay, Le
Portugal pittoresque et architectural déssinée d'aprés nature (v. A.
Silva Carvalho, Subsídios... ), dev~rão ter sido feitas com base em
daguerreotipos, constituindo, provavelmente, um conjunto único
ainda não descoberto. Segundo A.S. Carvalho, devem-se a William
Barclay os primeiros dagerreotipos feitos em Portugal, em 1841.
Paul Jean Jacques Plantier (1762-1847), francês que veio para Por-
tugal em 1832, editor e livreiro em Lisboa a partir de 1839, expôs o
livro Excursions Daguerriennes, de Lerebours, na sua livraria da Rua
do Ouro, em 184 3. .
A primeira publicação portuguesa sobre fotografia conhecida até à
data é a de P. K. Corentin (v. António Sena, A Arte... , 1980), retratista
que veio do Porto para Lisboa, c. 1851, propondo-se dar aulas de
daguerreotipia:
Técnicas, Artes e Ciências
19
18 A História da Fotografia
No Porto, salienta-se o trabalho com daguerreotipos do pintor
ALGUMAS PALAVRAS AO LEITOR João Baptista Ribeiro (1790-1868) e, sobretudo, de Miguel Novaes com
a sua participação pioneira na Exposição Trienal da Academia de
«De todas as descobertas uteis, a Photographia é sem duvida, Belas Artes, em 1854, sendo uma das imagens um retrato de Alexan-
uma das mais vastas e mais fecundas. dre Herculano.
«Os immortaes Newton e Galileo não se aproximam sequer do O colódio albuminado seco (Taupenot, 1855) e o colódio seco
sonho do fantastico Hoffmann, que desejava vêr a imagem da sua (Russel) foram rapidamente adaptados pela facilidade que traziam no
amante fixada sôbre o seu espelho! seu tratamento sobre o colódio húmido (Archer, 1850).
«Esta sciencia, que exerce nos domínios da arte uma influencia Francis Frith ou um dos seus colaboradores deverá ter passado
immediata e profunda, offerece aos artistas inesgotaveis recursos por Lisboa durante este período. Há notícias da formação de um pri-
imprevistos.
meiro Club Photographico no Pátio do Pimenta, em Lisboa, nos finais
«Vêde como o Photographo se apodera, com a velocidade do pen-
samento, da expressão, a mais característica, a mais fugitiva! Um da década de 1860, «cujo fim era o estudo e applicação dos vários
segundo lhe basta para reproduzir o sorriso ou a pequena nuvem trabalhos, insaios e estudos photographicos, que de fóra nos chega-
que, affectando o pensamento, entristece ou anima a physionomia!! ram» (v. Photographia, 1884).
«Notae o raio intelligente que o anima quando o seu modêlo vae . À imagem das publicações (a partir de 1852) de Blancquart-Evrard
fallar - assim é que o methodo de reproduzir a expressão se torna e aproveitando a fotografia como fonte de documentação do patrimó-
para nós o sublime da arte. nio arquitectónico, é publicada a «Revista Pittoresca e Descriptiva de
«Quem se conservará pois indifferente em presença do desenvol- Portugal», sob a direcção de Joaquim Possidónio Narciso da Silva
vimento de tão extraordinarios phenomenos, quando se pensar que (1806~1896), arquitecto que estudou e trabalhou em França e Itália
com o auxílio de duas unicas substancias chimicas, se póde obter entre 1821 e 1834. Foi lançada em fascículos a partir de 1862 e con-
com a mais exacta precisão, em caracteres indeleveis, e em propor- tém algumas das fotografias mais deslumbrantes da década de 60.
ções determinadas, segundo o nosso desejo, uma paisagem, um Um projecto semelhante,· mas sem o apoio histórico do anterior é
monumento, as feições da pessoa que amâmos? [. .. ] o de Augusto Xavier Moreira, que começou a editar um conjunto
«Phantasia. documental- Álbum Lisbonense- em 1865. Seguiram-se os traba-
«Um de nossos collegas imaginou um dia collocar o seu retrato
lhos de Henrique NÚnes, até 1868, no levantamento dos Monumentos
sobre os seus bilhetes de visita, em lagar do nome. Esta lembrança
engenhosa achou tantos imitadores, que muitos artistas dos mais Nacionaes, a quem Carlos Relvas instruirá a fototipia de Jacobi em
distinctos seguiram o seu exemplo. 1875, e de, no mesmo ano, A. S. Fonseca (1839-1930), futuro técnico
«]ulgar-se-ha que se chegassem a simplificar mais as manipula- e assistente de Carlos Relvas. Marianno José Machado, em Ponta Del-
ções e torna-las menos dispendiosas, não seria mais conveniente gada, recolheu uma série de vistas desde 1865 que comercializou a
applicar este systema até mesmo nas marcas da roupa, das licenças, partir de 1868.
etc., substituindo pelo retrato do pretendente ou agraciado esses sig- Enquanto as estradas; as pontes e o caminho de ferro não ligavam
naes ridículos à força da banalidade: - Olhos pequenos - nariz com- o país, a fotografia encurtava as distâncias.
prido - bocca grande - barba saliente - rosto, etc? - Suppondo que Nessa .década de 1860, começam a prbliferat: os estúdios de retra-
esta nossa idéa esteja ainda longe de receber applicação, comtudo tistas profissionais. Em 1863, ambos na ilha da Madeira, João Fran-
achâmos grande prazer em levar ao conhecimento de nossas amaveis cisco Camacho (1833-1898) abre o seu «Atelier Photgraphico» e
leitoras, que se tem obtido reproduzir flores, paisagens e retratos pho- funda-se a Casa de Photographia de Vicente Gomes da Silva (1827-
tographicos sobre tafetá, setim, etc., rivalisando victoriosamente com ·1906) - o qual se teria profissionalizado em 1853.
as melhores estampagens de Frandres e da Alsácia.» Em i864, com a reforma da Escola do Exército, «pelo ministro da
guerra d'então, o Marquez de Sá da Bandeira, creou-se uma cadeira de
P. K. CORENTIN,
Resumo Histórico da ... , Lisboa, 1852 Photographia», dirigida por José António Bentes (1837-1912), autor de
(o brevet de Disdéri para a «Carte de visite» é de 1854)
Técnicas, Artes e Ciências 21
Uma História de Fotografia
20
responsabilidade de J. G. de Sousa Neves e prolongou-se até cerca de
1870. Entre os retratados figuraram Pinheiro Chagas, o fundidor grá-
um Manual de Photographia em 1864 e de um Tratado fundamental
fico Francisco Lallemant e o marinheiro Patrão Joaquim Lopes.
em «julgamos
1866: A Publicação Photographica (1869-1877), de A. C. Pardal & Filho,
que nenhum dos leitores ignora, que n'este paiz a pho-
principiou uma coleccção de reproduções de matrizes negativas que
tographia é conhecida, pela maior parte como o meio mechanico de chegavam do estrangeiro com gravuras das «grandes pinturas»:
Jazer retratos e paizagens, e considerada como um inofensivo brin- A Apparição da Cruz de Raphael, O Tempo de Nicolas Poussin, etc.
quedo para os amadores, menos prejudicial ao paiz, do que cuidar
O Panorama Photographico de Portugal (1869-1874) editava,
d'essa política pessoal, que serve de pasto aos inuteis d'esta terra. [.. .]
irregularmente, pequenas vistas desinteressantes realizadas por vários
<<As collecções completas de monumentos, antiguidades, obras
fotógrafos, e em particular por Carlos Relvas, acompanhadas por tex-
d'arte, as cópias das mil riquezas guardadas nos museus, derrama- tos históricos e descritivos.
riam uma instrução geral, que aproveitaria em particular ao
Dois anos antes de Nadar, mas obviamente sem as suas qualidades
artista. Quanto se tem escripto sobre os costumes dos differentes fotográficas, e <<à maneira do Paris-Théatre», começou a publicar-se
povos, em que cada author e cada desenhador, umas vezes por más O Contemporiineo em Novembro de 1874, dirigido por Gervásio
apreciações, outras por falsas informações discordam tanto, a Lobato - uma «galeria de retratos» colados da autoria de Alfred Fil-
todas essas duvidas elucidaria a pbotographia com o seu irrecusa- lon (1825-1881), republicano francês refugiado em Portugal na vigên-
vel testemunho; e a ethnographia, não sujeita ao capricho de qual- cia do Segundo Império, recomendado por Victor Hugo António Feli-
quer, facilitaria a história dos povos. A photo-esculptura é já hoje
ciano de Castilho. Fillon voltou a Paris em 1870 durante a Comuna,
mais uma fel'iz applicação da photographia. [.. .] regressando definitivamente a Lisboa onde mantinha a fama de retra-
«Dá ao paiz, e ao governo, as informações mais exactas do
tista muito popular e conceituado desde o seu 1. 0 estúdio em 1859:
estado das colonias mais distantes, das suas construções, da sua
cultura, produções, recursos e necessidades; evitando longos, ine-
[ ...]
xactos, e inintelligiveis relatórios. «As intenções do Contemporâneo ahi ficam, pois, definidas; ser
«Reproduz as festas nacionaes, as formaturas militares, os
justo, ser discreto. Não exagerar os louvores; não aggravar os defeitos.
homens eminentes da epocha, auxilia a polícia nas suas pesquizas, «Cumprindo assim o seu intuito, resta-lhe a satisfação de nem
e apesar de ser a applicação ao retrato nos bilhetes de visita, a
ser adulador por habito, nem exigente por capricho.
menos importante pelas suas consequêncías, é hoje um ramo de «Como testemunho d'esta resolução, ahi ficam as primeiras
industria espantosamente desenvolvido. paginas dos seus numeras franqueadas aos retratos de todos aque-
«Esta ultima consideração, que áquelles, que só conhecem a pho-
les, que, pelo trabalho e perseverança, tenham obtido logar de
tographia pelo retrato, parecerá estranha, é uma prova, de que a honra no vasto recinto das artes e das letras.»
arte se affastou do bom caminho, e que só os governos lhe podem
dar hoje direcção, d'onde não devera ter-se desv.iado. O Contemporâneo, n.0 1, 1874.
«É a photographia o meio rapido e preciso de communicar pelo
desenho, no seculo em que a telegraphia electrica é um dos meios de
communicar pela palavra.» As imagens publicadas, em lugar de utilizarem o processo já divul-
J. A. BENTES, gado do woodburytype (1864), que Nadar e Goupil utilizaram na
Tratado... , Lisboa, 1866. Galerie Contemporaine (1876) e que John Thomson utilizará no
Street Life in London (1877), permitindo grandes edições sem perdas
sensíveis de qualidade na tão ambicionada transcrição de tons, era
Em 1866, começou a publicar-se Os Contemporiineos, colecção
preterido por pequenas e despretensiosas albuminas.
de biografias «adornadas» com retratos fotográficos de pequeníssimas
dimensões, c. 2,5.3,5 em. Tratava-se de uma publicação quinzenal, da
22 Uma História de Fotografia Técnicas, Artes e Ciências 23

As grandes tiragens ainda não se tinham tornado possíveis. Devem-se a José Júlio Rodrigues as primeiras fotografias tiradas à
No seguimento de José A. Bentes e das pesquisas químicas de luz do magnésio, nos túneis de lava da ilha Terceira, nos Açores, em
António Augusto de Aguiar, José Júlio Rodrigues (1843-1893), lente de Março de 1891.
química da Escola Politécnica, desenvolve a heliogravura lithogra- Realizar uma imagem fotográfica era, então, um processo com-
phica e typographica (traço) aplicando a fotografia aos trabalhos de plexo e dispendioso, que exigia paciência, destreza com aparelhos
levantamento físico-geográfico do país. As instalações situavam-se pesados, e rudimentos químicos e físicos nem sempre acessíveis.
r;mma «imensa» oficina de 700 m z no antigo Convento de Jesus (Aca- O seu «modo de usar» era extenso e difícil.
demia das Ciências). A originalidade dos processos de José Júlio Só grandes fortunas (como a de Carlos Relvas) ou uma actividade
Rodrigues baseava-se no aproveitamento combinado das tintas gordas profissional intensa (como a de Camacho ou Rocchini) podiam sus-
e das propriedades da gelatina bicromatada, em 1874. Estes serviços tentar uma pretensa actividade fotográfica diletante ou criativa.
viriam a terminar por dificuldades orçamentais, apesar do apoio ini- Dos textos ou discussões técnicas e de doutrina, começam a
cial do Estado. Prosseguiram-se assim durante c. 28 anos as tradições renascer, depois das primeiras notícias de 1839/40, as preocupações
da cartografia portuguesa. especulativas sobre a natureza da fotografia, sobre as suas relações
com arte e a ciência, sobre arte e técnica:

REGULAMENTO PROVISORIO DA SECÇÃO PHOTOGRAPHICA, [ ..]


ESTABELECIDA NA DIRECÇÃO GERAL DOS TRABALHOS GEODESJCOS, XVII
TOPOGRAPHICOS, HYDROGRAPHYCOS E GEOLOGICOS
«Chegados ao termo d'esta, queremos acreditar, não de todo fas-
Artigo I
tidiosa e inutil peregrinação pelos domínios da photographia,
«É creada, junto da Direcção geral dos trabr,zlhos geodesicos, permita-nos o leitor umas brevíssimas reflexões sobre um ponto de
topographicos, hydrographicos e geologicos do reino, uma secção esthetica scientifica, que vem agora a pello como remate.
photographica, com officina especial para a execução de trabalhos «Por muito tempo e cremos que o preconceito ha de lutar ainda
de photographia propriamente dita, de photolithographia e de contra a moderna philosophia, julgou-se que entre a sciencia e a
heliogravura. » arte reinava o mais absoluto antagonismo, a incompatibilidade
mais manifesta e a 4isparidade mais patente. Eram inimigas tanto
Artigo 11 mais entranhadas, quanto mais experimental se ostentava a scien-
cia. A arte não era já a collecção de preceitos e regras, segundo a
«Esta secção sera dirigida por um chefe, devidamente habilitada, definição classica, senão a inspiração arrebatada em busca do
ao qual compete: estudar praticamente os processos photographicos ideal, d'esse quid ignoto, dessa chamma etherea, que, como a
nas suas ligações com os diversos ramos do serviço, a cargo do minis- estrella bíblica, estava guiando a os raros eleitos, em cujo cerebro
tério das obras publicas, e mui especialmente a sua applicação aos havia iniciado uma parcella de fogo sagrado.
trabalhos topographicos e chorographicos, prestando os serviços que, «A sciencia como a deusa Miseria da celebre comedia de Aristo-
n'este sentido e em vista da sua especialidade, lhe forem superiormente phanes, caminhava abordoada, tenteando o terreno, não levan-
ordenados; o estudo e o desenvolvimento dos modernos processos de tando sequer os olhos para as regiões da luz e apanhando por aqui
estampagem photo-chimica, com especial referencia a photolithogra- e por alli, com mão avara, tudo o que lhe estava ao alcance.
phia e a heliogravura; a direcção technica da officina. «A sciencia, deixadas as divagações sentimentaes em que andou
i
[ .. ] 15 de Dezembro de 1872.
I!
embrenhada e perdida por muito tempo, tornou-se pratica, experi-
JOSÉ JúLIO RODRIGUES,
mental e positiva. Para longe o conjecturai, o hypothetico, que a
A Direcção... , Lisboa, 1875. sciencia só curava do real e do verdadeiro.
l
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PORTUC,lJÊS
Técnicas, Artes e Ciências DE FOTOGRAFIA 25
24 A História da Fotografia

As capacidades de reprodução da fotografia eram limitadas.


Estabelecidas, cada qual na sua tenda, as duas rívaes, o artista
julgava-se incompatível com o sacerdote austero da sciencia. Um era Embora tenha sido utilizado o woodburytype foi sempre em peque-
imaginativo, o outro positivo. Para aquelle a affectivídade, para este nas tiragens. Pelo contrário, a fototipia, permitindo uma idêntica
a racionalidade. Um individualizava a natureza; o outro generalizava-a. gama de meios tons, ocupou um lugar decisivo na actividade fotoedi-
«Eis, porém, que apparece a photographia; eis que o sol, que é a torial portuguesa da década de 1880: seja por intermédio de Carlos
origem e a fonte de todas energias, se faz pintor; esculptor; grava- Relvas, que diz a introduziu em 1875 - e para confirmar fez um exó-
dor. Nos arrayaes da arte reina a confusão. julgar-se-hia que esta- tico fac-símile fototípico da sua declaração -, seja por Emílio Biel,
vam já derrocados os altares erigidos pela arte ao Sanzio, ao julio alemão entretanto chegado ao Porto c. 1860.
Romano, ao Ticiano, ao Alberto Durer; ao Rubens, ao Ruysdael, ao
Leonardo de Vincí, ao Rembrandt, ao Reynolds, a todos os grandes Gollegã, junho de 1875
mestres. O amor e o culto do bello, a individualidade artística, o
sentimento da natureza, parecia que tudo ia desapparecer e que o
homem mudava de natureza, só porque Daguerre havia inventado Illmos. e Exmos. Snrs.
este maravilhoso processo.
«E todavia a photographia trilhou o caminho que lhe estava tra- Consegui ha pouco introduzir em Portugal o processo de Photy-
çado, vae de progresso em progressos, e nem por isso uma tela de Clau- pia de Monsieur C. H. jacobi de Neuerdorj, e tenho a honra de
dio Loreno e um retrato de Vandick valem menos aos olhos da arte. apresentar a V. Exa. algumas provas inalteraveis dos meus primei-
«Pondo de banda os innumeros serviços que a photographia ros ensaios neste genero de trabalho.
prestou já, é necessário relembrar um dos mais importantes e que
escapa à analyse superficial. A photographía evidenciou mais uma Pela sua intelligencia e vontade energica poude o distincto
vez que entre a arte e a scíencía não medeia u abysmo que se dizia. artista allemão, simplificar a Photypia, alcançando resultados que
Pela photographia a sciencia, mantendo sempre o seu caracter devem ser extremamente agradaveis aos artistas e amadores.
positivo e deductivo, alliou-se á arte, que por seu turno obedeceu Dá este processo de impressão por meio de tintas lithographicas,
ao influxo scientifico e trilhou ousadamente a vereda do realismo, não só o traço, senão também as meias tintas, e ainda quantos
que é a observação substituída á simples contemplação. O realismo effeitos de claro escuro a arte possea combinar.
na arte deve-se aos instinctos profundamente analyticos do nosso Monsieur E. jacobi, filho de Monsieur C. H. jacobí, em conse-
seculo democratíco, livre e independente. quencia do contrato que fizemos, veio á Gollegã expor as minucias
«Ora um dos instrumentos mais admiraveis e fecundos d'esse interessantíssimas. do processo, e devo aproveitar este ensejo para
realismo é certamente a photographia, que permite ao pobre e ao prestar homenagem publica ao illustrado representante da casa de
humilde o contemplar as maravilhas da natureza e as creações Neuerdorf
mais esplendidas do homem. N'este genero, o processo a que refiro, é certamente no paiz, o
«Goethe, o autor d'esse eterno typo de realismo e da curiosidade primeiro que dá as meias tintas em retratos. Felicito-me por ter
irrequieta e insaciavel, o dr. Fausto, quando estava exhalando o podido adquiríl-o, satisfasendo por este modo as minhas aspira-
derradeiro suspiro, foi ferido por um raio da luz do sol, do grande ções artísticas. Cuido tambem que a nossa terra lucrará com esta
obreiro da energia. Fazendo um esforço immenso, o admiravel acquisição e folgarei de tornar util aos meus concidadãos o exíto
poeta conseguiu arrancar da garganta, já estrangulada pela garra admíravel dos estudos de Monsieurs C. H. jacobi e E. jacobi.
da morte, este grito sublime: Licht! Luz! E fitando com o olhar o sol
radioso, morreu. Pois a photographia é a emanação d'esse raio de Tenho a honra de assignar-me com distincta consideração, Car-
luz que aureolou o passamento do divino poeta. los Relvas.
FIM» CARLOS RF.I.VAS,
folha solta em fac-símile fototípico
A. OSóRIO DE VASCONCELLOS,
que acompanhou alguns exemplares de A Arte Ornamental, 1882/83.
Maravilhas da ... , Lisboa, 1875.
Técnicas, Artes e Ciências 27
26 f 'ma História de Fotografia
Entre 1870 e 1885, vários fotógrafos percorrem o país ou estão
Apesar dos esforços de Carlos Relvas e Emílio Biel, só em 1882/83 estabelecidos na província, mais ou menos profissionalizados e ama-
se concretizarão as tiragens regulares de fototipia. Entretanto, a foto- 1 dores dedicados A. Silva Magalhães em Tomar, Paino Perez em Porta-
grafia estava sujeita à capacidade de interpretação da sua escala quase legre e Viseu, A. Teixeira em Vila Real, António Correia da Fonseca e
infinita e contínua de meios tons - <<quase» porque ainda não abran- Paulo de Souza Pereira no Porto, António José de Barros e Avelino
gia de forma homogénea os azuis do céu e os castanhos e verdes da ')·i Barros na Póvoa de Varzim, J. R. Silva em Santarém, J. F. da Silva na
terra - pelo traço incisivo dos gravadores de madeira. O exemplo 1. Ericeira, José Maria dos Santos em Coimbra, Perestrello no Funchal,
mais belo continua a ser O Douro illustraddo, do Visconde de Villa Dabney no Faia!, F. Raposo em S. Miguel, António Maria Serra em Lis-
I•
Maior, de 1876, com <<vistas» tiradas pelo fotógrafo]. Loureiro (que ,j:; boa, etc.
julgo ser o gravador do mesmo nome, discípulo de João Pedrozo), Ein 1878 saiu O Occidente, publicação importante e decisiva na
desenhadas em madeira por Emílio Pimentel, gravadas por Badou- l expansão da fotografia industrial e <<descritiva» do país. Através da sua
reau e João Pedrozo (1825-1890) e incluindo um mapa em «photolito- longa existência (1878-1915) assistimos às primeiras reportagens, à
graphia» baseado em levantamento do Barão de Forrester: f!:'
passagem da gravura à fotomecânica. Nela colaboraram os fotógrafos
mais importantes das décadas de 70/80:
«[ .. ] O primeiro número da revista traz fotografias reproduzidas em
«Em 1848, o dr.]. Pinto Rebello de Carvalho publicou uma gravura de Francisco Rocchini (1822-1895), marceneiro italiano que
notavel memoria com o titulo de - Considerações geraes sobre a veio para Portugal em 1847 e que aprendeu o daguerreotipo com
constituição geologica do Alto-Douro, e marcado conforme a carta P. K. Corentin c. 1851. Estabeleceu-se como um dos fotógrafos mais
topographica do cavalheiro José }ames Forrester. - Servir-nos-ha activos a partir de 1864, fornecedor de imagens para revistas nacio-
esta memoria de muito auxilio na presente descripção. nais e estrangeiras, para as Academias de Bellas Artes, editor de
«Os escriptores agronomos, que no fim do seculo passado e no Álbuns de albuminas de <<vistas» e monumentos, introdutor da sensi-
principio do presente escreveram sobre a viticultura do Douro, bilização dos blocos de madeira, além de fabricante de máquinas e
limitaram-se á parte technologica, e ainda assim muito resumida- gravador;
mente. Nenhum d'estes authores se occupou em traçar um quadro No n. 0 3, de Carlos Relvas (1838-1894), desportista, filantropo da
do paiz vinhateiro, que podesse satisfazer a curiosidade publica, fotografia, fotógrafo amador e rico proprietário rural da Golegã,
tornando-lhe patente e familiar a physionomia do interessante onde montou um luxuoso estúdio fotográfico. Iniciou-se na fotogra-
paiz do Douro, retratando-lhe os escarpados montes, os estreitos fia com Wenceslau Cifka c. 1860. Colaborou regularmente com as
valles que os fedem e aquelles amphitheatros revestidos de viçosos principais sociedades e manifestações fotográficas da Europa;
pampanos, d'onde emana o precioso nectar que se chamú vinho No n. 0 11, de novo Rocchini, <<do Porto à Póvoa».
do Porto. No n. 0 12, a «Queda de água», na ilha da Madeira, de João Fran-
«Pretendemos nós actualmente supprir, ou pelo menos attenuar, cisco Camacho (1833-1898), nascido na Madeira, onde praticou o
esta falta, publicando uma serie de vistas, copiadas com o auxilio daguerreotipo. Viajou pelos Estados Unidos e Europa, por onde estu-
da photographia, e acompanhadas com a necessaria, mas resu- dou fotografia e, em particular, com Disidéri. Ficou na Madeira até
mida descripção dos sítios notaveis, das propriedades vinícolas 1879, altura em que vem para Lisboa, onde montou o seu novo ate-
mais celebres, das povoações que se encontram ao longo do rio, e de lier. Distinguiu-se pela qualidade das paisagens, além do cuidado
tudo quanto p6de attrair a attenção e provocar a curiosidade do cenográfico dos seus retratos de estúdio. Um incêndio destruiu-lhe
viajante em todo o percurso do Dourq desde que elle entra no terri- grande parte do arquivo em 1880.
tório portuguez, até que se perde no Oceano.» Em 1879, publica-se uma imagem que nos dá a primeira notícia da
actividade de José Augusto da Cunha Moraes (1857-1920?) em África
VISCONDE DE VILLA MAIOR, (v. António Sena, A Arte... , 1980). Nasceu perto de Coimbra e foi
O Douro lllustrado, 1876.
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28 Uma História de Fotografia

muito cedo para Angola, c. 1863, onde o pai teve o primeiro estabele-
cimento fotográfico de Luanda. Começou a fotografar a partir de
1877. É o período das grandes explorações do continente africano
por Serpa Pinto, Ivens e Capela. Com um método invulgar e pioneiro
no rigor científico, etnográfico, antropológico, corográfico e topo- 111
gráfico, publicou África Occidental - «álbuns e collecções de vistas 1880-1898
:IIJJ
e costumes affricanos». Em 1897 voltou para Lisboa e colaborou com AS TÉCNICAS DA ARTE DE VER LENTAMENTE.
Marques Abreu em A Ilustração Moderna, em 1898, e com Emílio I NATUREZAS MORTAS E NATUREZAS VIVAS
Biel em A Arte e a Natureza, em 1902. i
No ano seguinte, em 1880, o Daily Graphic, de New York, publi-
!'
cava a primeira reproduçaõ fotográfica <<tramada» (<<halftone») 'l
enquanto em Portugal continuavam as gravuras em madeira para
sugerirem fotografias ou albuminas coladas, como acontece no
~Ii! Cerca de 1873, Emílio Biel (1838-1915) comprou a Casa Fritz, um dos
primeiros ateliers fotográficos do Porto e iniciou um dos mais impor-
Mundo I/lustrado, em 1878, e n'O Algarve /Ilustrado, em 1880/81. ~: tantes trabalhos de levantamento e documentação do país durante o
século XIX.
1
1882/83 são os anos decisivos para a edição fotográfica com a
utilização da fototipia por Emílio Biel e Carlos Relvas. A fototipia
li revelava-se nas suas qualidades <<neutras» de descrição objectiva -
sem cair na dureza dos contrastes não perdia o recorte dos objectos.
Era o processo ideal para o levantamento de um país virgem que Emí-
dio Biel faria no campo da engenharia e da arquitectura, que Carlos
Relvas faria na paisagem e nas obras de arte, e Cunha Moraes na
África Ocidental.
Em 1883, a Casa Biel edita o catálogo/livro em fototipia para a
Exposição Distrital de Aveiro e começa a documentar a expansão da
implantação do Caminho-de-Ferro (do Douro) a partir de 1884.
No mesmo ano de 1883 Carlos Relvas fotografou e editou, por sua
iniciativa e a suas expensas, a Exposição Retrospectiva de Arte
Ornamental em Portugal. Fizeram-se quatro edições distintas: uma,
encadernada, com 55 fototipias impressas por]. Leipold (este viria a
colaborar com excelentes fototipias no modesto Boletim do Grémio
dos Amadores Photographicos em 1890), outra em duas pastas con-
tendo 123 e 202 fototipias, e outra (única, ao que suponho) com mais
de 500 assinadas pelo autor. A publicação oficial do catálogo original
da exposição (Imprensa Nacional, 1882), com desenhos toscos e
imprecisos, ao contrário da capacidade descritiva das fototipias dos
mesmos objectos, gerou viva revolta e controvérsia na altura.
Carlos Relvas participou com Ildefonso Correia na fundação do
primeiro periódico de fotografia em Portugal: A Arte Photographica

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