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@roupa_decinema
Livro eletrônico.
Modo de acesso: World Wide Web: www.vacatussa.com.br
ISBN e-book: 978-65-992370-5-8
1. Cinema - História. 2. Figurino. 3. Audiovisual - Pernambuco. I. Título.
Incluo nesta lista a rede de apoio que facilitou a realização deste traba-
lho: Camila Valença, Camilo Cavalcante, Fabiana Pirro, Gabriela Alcân-
tara, Henrique Arruda, Isabela Cunha, Jean Santos, João Júnior, Mariana
Jacob, Martin Palacios, Monique Oliveira, Neco Tabosa, Ofir Figueiredo,
Rayssa Costa, Ricardo Leão e Tiago Melo.
Histórias costuradas 11
DEPOIMENTOS 13
Beto Normal 14
Rita Azevedo 35
Andrea Monteiro 57
Libra 79
Paulo Ricardo 92
Sosha 108
Maria Esther de Albuquerque 130
Joana Gatis 145
Babi Jácome 161
Chris Garrido 179
ARTIGOS 199
O livro apresenta duas abordagens. A primeira parte é a história viva: dez colegas
de profissão foram entrevistados, por videoconferências ao longo de fevereiro de
2021, revelando suas formações, experiências, processos de criação, inspirações
e realizações no campo do figurino. As conversas foram editadas em forma de
depoimento e o material iconográfico que as acompanha foi produzido durante
o processo de criação e execução dos filmes analisados. As entrevistas foram re-
alizadas por mim, em parceria com o jornalista Julio Cavani, contribuição funda-
mental para composição dos textos. Sua experiência possibilitou a construção de
relatos objetivos, mas preservando a essência dos depoimentos e a singularidade
de cada participante.
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sional, sou uma profissional do mercado. Optei então por incluir profissionais com
trajetória sólida e longeva, que me despertam interesse artístico e que iniciaram
esta estrada há pouco tempo. Os dez nomes que compõem este panorama não
esgotam a cena pernambucana de design de figurino em cinema.
Ainda que a educação, cultura e arte do país estejam sob crescente perseguição,
realizar este trabalho, que tem como objetivo central compartilhar conhecimento,
no meio de cenário tão adverso, é revigorante e me lança num movimento contí-
nuo de resistência. Espero que esta iniciativa gere um efeito multiplicador, que seja
a primeira de muitas.
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Histórias costuradas
Os capítulos da primeira parte deste livro são depoimentos. São conversas que
foram gravadas, transcritas e editadas, uma combinação entre linguagem oral e
escrita. Os textos foram redigidos a partir de memórias e fluxos de pensamento
espontâneos de figurinistas que atuam no cinema produzido em Pernambuco.
Eu e Ana Cecília Drumond elaboramos as perguntas que serviram de roteiro para
o resgate de elementos técnicos, estéticos e pessoais dos processos de criação e
construção dos figurinos dos filmes abordados.
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Foto Acervo Beto Normal
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“O figurinista precisa ler muito bem
o roteiro e entender que filme é aquele.
É de uma responsabilidade abissal
enquanto proposta estética, como obra”
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Fred Jordão/Parabólica Brasil
Beto Normal, Luisa Phebo
e Marcelo Gomes Tenho várias influências. Primeiro dentro da minha própria casa. Sou do
no set de distrito de Pão de Açúcar, vizinho de Santa Cruz do Capibaribe. Quando
Clandestina felicidade
eu era pequeno, já existia a cultura da sulanca. As mulheres compravam
por quilo os retalhos nas lojas em Santa Cruz, traziam para casa e faziam
as peças que chamavam de “sulanca”.
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Minha mãe comprava as tiras de retalhos e fazia o que chamava de co-
leção. Não era aquela ideia que temos de coleção, de moda. Era juntar
os pedaços de tecido mais parecidos e costurar. Ela costurava saias que
chamava de anágua, feitas de algodão. Meu pai, que era mascate, levava
para vender na Bahia.
Nessa época, eu tinha amigos que faziam cinema, como Marcelo Go-
mes, Adelina Pontual e Cláudio Assis. Quando surge a produtora Parabó-
lica Brasil, Marcelo faz Maracatu, maracatus, Adelina faz o curta Cachaça
e me chama para fazer o figurino. Eu não sabia o que era um set, nem
o ritmo de filmagens de cinema, mas gostei muito. Foi quando aprendi
a ler a ordem do dia, o plano de filmagem e fazer decupagem. Aprendi,
também, a ler um roteiro e entender o figurino como dramaturgia. Não
é um trabalho passivo. Você tem que ler o mesmo filme que o roteirista
escreveu e ver o mesmo filme que o diretor visualizou. Você tem que
chegar em um acordo. Ou seja, todos têm que estar no mesmo filme.
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Fred Jordão/Parabólica Brasil
As irmãs Tânia
(Izabel Brito), CLANDESTINA FELICIDADE
Clarice (Luisa Phebo)
e Elisa (Sarah Hazin) Ninguém tinha contado a história da infância de Clarice Lispector no
Recife e era uma coisa que eu achava que precisava ser feita. Dirigi Clan-
destina felicidade junto com Marcelo Gomes porque escrevemos o ro-
teiro juntos, mas foquei muito no figurino e na direção de arte. Eu ficava
mais no video assist para observar a atuação dos atores e a questão do
enquadramento, enquanto ele dirigia a mise-en-scène e dava a “ação”.
Também acompanhei a edição de som e a mixagem em São Paulo.
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O filme se passa em 1929, então a pesquisa foi bem extensa. Pesquisei
em fotografias, vi muita coisa da Fundação Joaquim Nabuco. Para pegar
um pouco da atmosfera do Recife da época, me baseei muito na bio-
Germano Haiut como grafia de Clarice escrita por Nádia Battella Gotlib, que tem muitas fotos
o pai e as filhas Tânia, da família e da infância dela.
Elisa e Clarice
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O conceito do figurino parte da ideia de que era uma família judia.
Não eram brasileiros natos, tinham uma especificidade. Entendemos
que eles eram mais sóbrios. Não eram ricos. O pai de Clarice era
mascate, não era um pobre esfarrapado. Até a década de 1950, os
homens usavam ternos e chapéus como parte da elegância daquela
veste. Foi um acessório que adotamos, também nas mulheres, para
demarcar a época.
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Fred Jordão/Parabólica Brasil
Samuel Vieira
como Leopoldo, A Macabéa de Clandestina felicidade é meio caricata. Ela não é uma
ao lado de Clarice velha, mas a vestimos como uma velha. É uma serviçal daquela épo-
ca, uma moça que veio do interior, não casou e ficou no caritó, como
uma solteirona.
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CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS
Cinema, aspirinas e urubus foi bem complexo, por ser um filme de
baixíssimo orçamento que reconstitui um tempo passado, mesmo
que não se passasse em palácios e não precise de um figurino muito
glamouroso. Era um filme de personagens simples, mas eram muitos.
Além dos protagonistas, interpretados por Peter Ketnath e João Mi-
guel, tinha muitos figurantes e personagens que contracenam com
eles no percurso do filme.
Peter Ketnath
como Johann
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Era uma questão de ser muito econômico nas escolhas. Não tinha
tanta opção de errar. Tudo era muito bem calculado e pensado. A
pesquisa foi enorme. Uma das coisas que facilitou foi compreender
que a gente não ia fazer um filme de época. A gente ia fazer um filme
sobre uma época. Não era essa coisa clássica dos filmes americanos.
Era um filme que se passava no Sertão do Nordeste, em 1942.
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Fotos Gil Vicente/Carnaval Filmes
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Em uma locação como uma cidade com apenas duas ruas, era sem-
pre importante ter uma visão completa do que seria filmado, das
cores desse lugar, para dar uma diversidade com várias gamas dos
cinzas, dos marrons e de toda a cartela de cores. A gente tinha que
criar um universo para que, quem olhasse, entendesse que aquelas
pessoas não estavam fardadas. Tínhamos que ter essa noção para
não ficar tudo chapado.
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Gil Vicente/Carnaval Filmes
Todas as roupas dos personagens principais foram confeccionadas, até
as cuecas e sapatos. Também confeccionamos as roupas de Fabiana
Pirro, que faz Adelina, e de Hermila Guedes, que faz Jovelina. Para os
personagens secundários, consegui em brechó algumas peças como
camisas e calças de linho.
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Johann, por ser alemão, é um detalhe importantíssimo para o figurino. Ele
era mais formal e também tinha que estar elegante pois representava a
Bayer e sua famosa aspirina. Precisava estar alinhado para vender os pro-
dutos. Apenas em alguns momentos, por causa do calor, ele relaxava um
pouco e abria a camisa enquanto dirigia o caminhão. Pesquisei roupas de
alemães daquele período. Peter Ketnath trouxe da Alemanha o suspen-
sório e o relógio que ele usa, comprados em brechós. O cinto também
precisava ter detalhes, como o mecanismo de fechamento com argolas.
Uma das camisas tem uma faixa com uma prega nas costas. Em cinema,
os detalhes são ampliados milhões de vezes, então os defeitos são ampli-
ficados. É importante ter cuidado com todas as camadas.
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Fotos Gil Vicente/Carnaval Filmes
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Acervo Beto Normal
Os homens da época usavam principalmente camisas de manga com-
prida. Havia uma certa formalidade. Não sei se era por uma questão de
elegância formal ou se era para proteger do sol. Vimos também muitos
chapéus nas imagens de arquivo.
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Gil Vicente/Carnaval Filmes
Eu também pude usar mais cores na cena do bordel, mas tinha que ser
cuidadoso. Não aparece muito no filme. Tinha mais decotes.
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Gil Vicente/Carnaval Filmes
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Hermila Guedes
As roupas precisavam ter uma memória de corpo. Não podiam ficar ar-
madas, como se fossem novas. Usamos uma técnica chamada “banho
de chá” para parecer que as peças eram usadas. Tingimos muito, lava-
mos, tiramos a goma e lixamos para ter outra textura. Passamos muita
lixa em calças e camisas para sugerir desgaste pelo uso. Nas roupas
de alguns figurantes das plateias das projeções de cinema, simulamos
remendos caseiros. Quando tinha cor demais, deixávamos mais esma-
ecidas. Nem mesmo as roupas da burguesia poderiam parecer muito
novas. Existem outros processos, mas, quando filmamos, fazíamos um
envelhecimento mais tradicional, sem tecnologias sofisticadas.
Se você erra o figurino ou faz uma escolha equivocada, o filme fica sem
credibilidade. Não fica crível. Há suspensão de realidade. O filme tem
que convencer do início ao fim, tem que iludir, ser sutil. Precisa ter muito
cuidado. O figurinista deve ler muito bem o roteiro e entender que filme
é aquele. É de uma responsabilidade abissal enquanto proposta estéti-
ca, como obra. Todo filme tem que contar histórias com compromisso,
respeito e dedicação artística.
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Hermila Guedes
como Verônica ERA UMA VEZ EU, VERÔNICA
e W. J. Solha como Zé
Era uma vez eu, Verônica foi uma experiência incrível, um filme que se
passa no Recife contemporâneo, todo gravado na cidade. Cerca de 99%
do figurino foi adquirido, comprado. Foram muitas idas aos shoppings e
bazares. Fiz um garimpo para criar os personagens e figurantes, como
os pacientes do Hospital das Clínicas, onde filmamos em um andar de-
sativado. As únicas coisas que costuramos foram os jalecos dos médi-
cos. A logística de filmar na cidade é uma loucura por causa do tempo
e dos deslocamentos.
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Gil Vicente/Carnaval Filmes
Foi muito legal construir aquela personagem, uma menina de classe mé-
dia, filha de um pai comunista. Verônica não era consumista, tinha umas
roupas atemporais, low profile. O universo dela era meio como aquela at-
mosfera da Richards, uma coisa mais limpa, que não é muito modinha ou
tendência. A única cena com mais vaidade é a festa com show de Karina
Buhr, quando ela usa um vestido da Refazenda, de malha com estampa
tie-dye, meio hippie contemporânea.
ALTER EGO
Atualmente, estou com uma marca chamada Rosa Curinga. É meu alter
ego. É muito chato ser Beto Normal o tempo todo. É maravilhoso ser
Rosa Curinga também.
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Foto Acervo Rita Azevedo
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“Meu lado estilista
e meu lado urbanista
me transformaram
em uma figurinista de cinema”
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Aos 13 anos de idade, ia para a casa da minha avó todas as quintas-feiras,
quando ela recebia a visita de Nininha, uma costureira. Comprava meus
tecidos nas Casas José Araújo e levava para Nininha costurar as roupas
que eu mesma desenhava. Sempre desenhei e mantive esse hábito de
fazer minhas roupas ou mandar fazer, apesar de ser péssima na máqui-
na de costura. Quando entrei na faculdade de Arquitetura, as pessoas
Rita Azevedo
me perguntavam onde poderiam comprar as peças que vestia. Quando
no camarim respondia que tinha feito, todas diziam que deveria começar a vender.
de Bacurau
Acervo Rita Azevedo
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O próprio conteúdo do curso de Arquitetura, que concluí em 2004, tam-
bém me levou para o mundo da moda e da criação, pois estudávamos
história da arte, estética comportamental, conforto ambiental e também
muito cálculo, lógica e matemática. Percebo que tudo isso é importante
para meu trabalho de figurinista até hoje. Na faculdade, escolhi o cami-
nho do urbanismo, uma área que envolve um diálogo muito intenso
com a população e desperta o interesse de observar o outro.
Aos poucos, percebi que trabalhar com uma pesquisa voltada para o
meio da moda me distanciava do meu interesse por gente, pelo outro.
A Maria da Silva acabou e passei a trabalhar com produção de figurinos
para publicidade e editoriais de moda no estúdio do fotógrafo Chico
Barros. Nessa época, Marcelo Pedroso me convidou para trabalhar no
longa-metragem Brasil S/A, filmado em 2013. Desenvolvi a transforma-
ção de cortadores de cana em astronautas, dez personagens do filme.
Foi difícil trabalhar com um orçamento curto, mas depois aprendi a lidar
melhor com isso.
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Victor Jucá/CinemaScópio Produções
Sonia Braga
como Clara AQUARIUS
Aquarius foi muito desafiador para mim porque eu ainda não fazia parte do
universo do cinema e precisaria ter uma relação de criação intensa com So-
nia Braga, uma grande estrela que estava há quase 20 anos sem protagonizar
um filme nacional. Nunca fugi de um desafio, mas aquilo foi bem difícil, com
um elenco e uma figuração grandes. Eu precisava desenvolver toda uma
pesquisa e ainda controlar meus medos, ansiedades, obsessões e paranoias,
sem deixar que isso afetasse as relações de respeito e cuidado com a equipe.
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Victor Jucá/CinemaScópio Produções
BACURAU
Pensar no processo criativo de Bacurau faz com que eu reviva o grande
desafio que tivemos. Eu só conseguiria criar o mundo no qual os perso-
nagens viviam se pudesse imaginar o seu passado, pesquisando sobre o
bando de Lampião, a seca, a economia do lugar e a sua história. Desmon-
tar a imagem erradamente construída de fragilidade, de “simplicidade”, das
pessoas do Sertão era a questão principal dos diretores. As cores vibrantes
ajudariam a entender a política daquele espaço. Não era um Sertão pálido
com tecidos em algodão, era um Sertão totalmente inserido no consumo
dos tecidos sintéticos, roupas baratas e de aspecto descartável. Foi essa
grande confusão de estampas, cores e texturas que deu vida a Bacurau.
Existia uma lista de filmes referência elaborada pela direção, mas a maioria
era do universo do western, que não serviria para o figurino. Antes do início
oficial da pré-produção, pedi para participar da última pesquisa de loca-
ção, para fazer minhas pesquisas também. No carro, enquanto eu ouvia
as conversas entre os dois diretores, percorremos milhares de quilômetros
no Sertão de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, por dezenas de
cidades. Deu certo. Foi muito rico para que eu pudesse enxergar quem se-
riam as pessoas de Bacurau, de que forma elas se protegiam do sol, o que
as estimulava a procurar roupas e que músicas elas escutavam. Eu fotogra-
fava tudo e pedia para acompanhar as pessoas nas redes sociais.
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Personagens Sandra (Jamila Facury),
Robson (Edislon Silva),
Daisy (Ingrid Trigueiro)
e Madame (Zoraide Coleto)
Victor Jucá/CinemaScópio Produções
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Bacurau é ambientado no futuro, daqui a alguns anos. Entendi que eu
precisava criar alguns estranhamentos de modelagem e de lavagem de
tecido para sugerir esse deslocamento de tempo. Criei uma lavagem
própria de jeans, em contato com uma fábrica de Toritama. É o que a
atriz Bárbara Colen veste quando chega à cidade, um jeans mais marca-
Bárbara Colen
como Teresa/ do por blocos entre o claro e o escuro. O mesmo valeu para os shorts,
Estudo de figurino que não eram nem aqueles dos anos 1990 e nem os dos anos 2000.
para Teresa
Victor Jucá/CinemaScópio Produções
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Pedro Sotero/CinemaScópio Produções
Nos tecidos, nunca segui o caminho do algodão e dos tons pastéis que
a gente vê em alguns filmes ambientados no Sertão. Os sintéticos já
estão inseridos no Sertão há muito tempo, assim como as falsificações
de Nike e Adidas, com influência das culturas funk e hip hop, já bastante
presentes nas feiras locais. Nessa busca, fui ao Moda Center, em Santa
Cruz do Capibaribe, responsável pela distribuição para todo o interior.
Envelhecer as roupas foi um processo muito difícil por causa desses te-
cidos sintéticos, que não são fáceis de lixar para mudar de tom, mas na
equipe tínhamos Renato Pascoal, um bruxo, um camareiro com muita
experiência em envelhecimento.
A cena do velório tem uma mistura de cores que faz aquele lugar ser
muito político. Sei que estava fazendo um filme, mas quis fazer algo em
que acreditássemos. Meu compromisso é muito mais com o que vejo
do que com o que eu desejo esteticamente. Eu queria mostrar os sinté-
ticos e os coloridos logo nas primeiras cenas e isso mostraria muito do
que era a comunidade.
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Vestimos 200 pessoas em Bacurau. Todas fizeram prova de figurino, in-
clusive todos os figurantes, pois cada um tinha uma identidade pessoal.
Na figuração, havia cinco opções de roupas para todos e só escolhería-
mos três. O raciocínio lógico das aulas de matemática do curso de Ar-
quitetura é muito importante nesses momentos que envolvem criação
e praticidade técnica para cumprir metas com agilidade e eficiência.
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Victor Jucá/CinemaScópio Produções
Sonia Braga
como Domingas Domingas, além de ser uma líder para a comunidade, era escutada, res-
peitada e tinha outras camadas, como a questão do álcool, que a trans-
formava em uma pessoa extremamente agressiva. Bacurau é incrível
porque tudo tem suas contradições, as coisas não são perfeitas. Domin-
gas tinha essa contradição. Quando li o roteiro, imaginei uma partei-
ra, matriarca, com liberdade sexual. As parteiras possuem um processo
espiritual muito intenso e também um entendimento do corpo. Meu
mural de referências para Domingas era formado por fotos de parteiras.
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As roupas dos motociclistas são neon porque eles são trilheiros, não
são do asfalto. Pesquisei as marcas de roupas motocross, segui o rea-
lismo. Isso também gerava um contraste interessante com as cores da
paisagem, formada pelo barro e pela vegetação verde ou seca, e indire-
tamente reforça a ideia de que eles não são daquele lugar. Nas primei-
ras reuniões de análise técnica, Kleber chegou a sugerir que vestissem
preto, mas nunca abri mão.
O bando de Lunga era como o de Lampião, com uma vaidade que fi-
casse bem marcada, com joias e acessórios. Eles têm uma identidade
de figurino construída por si mesmos, como se colecionassem aquilo.
Não são roupas que parecem ter sido compradas em lojas. Pesquisei
alta costura, Gucci, Helmut Lang e artistas pop como Solange. Uma das
inspirações principais foi a marca À La Garçonne, de Alexandre Herch-
Rita Azevedo e Gabriela
Marra, primeira assistente covitch, com intervenções em peças existentes, casacos pesadíssimos,
de figurino, preparando modelagem arrojada e pinturas de coisas como águia, tigre e pantera.
Antonio Saboia e Karine Cheguei a entrar em contato com ele, mas não havia tempo disponível
Teles como os forasteiros
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Silvero Pereira
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Victor Jucá/CinemaScópio Produções
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Fotos Acervo Rita Azevedo
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Pedro Sotero/CinemaScópio Produções
Os americanos formavam um grupo, mas eu tinha que criar perso-
nalidades diferenciadas. Não eram militares e também não espe-
ravam aquela resposta da comunidade. É como se estivessem em
um safári. Não estavam indo para uma batalha, pois não esperavam
reação das vítimas.
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Udo Kier
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Charles Hodge Brian Townes
como Chris como Joshua
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Cia Extremo
SWINGUERRA
Os artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca desenvolvem uma série
de projetos interessados na estética musical das periferias. O filme Swin-
guerra apresenta os grupos de dançarinos do Recife: Extremo, Bonde do
Passinho, La Máfia e As do Passinho S.A . Para eles, a dança é uma forma
de reivindicar uma afirmação social enquanto cidadãos. É uma luta por
espaço na sociedade, visibilidade, direitos e autorrepresentação. Ao assu-
mir o figurino deles, precisava deixá-los orgulhosos de si quando vissem
o resultado.
Fotos Pedro Sotero/Ponte Produtoras
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O Extremo é um grupo formado por 50 dançarinos LGBTQIA+, dos quais
20 participam de Swinguerra. Visitei os ensaios para ouvir as conversas
entre eles, descobrir do que gostavam e entender o que os motivava a
criar. Também vi vídeos para compreender seus caminhos estéticos. O
figurino serviria para o filme e também para uma apresentação anual,
um concurso. Eu tinha que estar muito atenta na escolha de tecidos
Eduarda Lemos, que valorizassem o movimento do corpo e precisava criar uma identi-
protagonista de Swinguerra, dade de grupo. Usei hot pants bem coladas ao corpo combinadas com
é baillarina e coreógrafa
Pedro Sotero/Ponte Produtoras
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Pedro Sotero/Ponte Produtoras
Cia La Máfia
calças mais soltas que davam fluidez à dança, assim como tops combi-
nados com casacos, que em determinado momento eram amarrados
na cintura. As peças vermelhas são de lycra e as pretas são de uma
malha leve texturizada com detalhes de veludo vermelho escuro. Para
usar na competição, eles mesmos precisariam reproduzir rapidamente
as roupas para uma quantidade bem maior de dançarinos, o que me
fez evitar materiais caros e modelagens trabalhosas que demandassem
muito tempo.
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As do
Bonde do
Passinho
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Foto Acervo Andrea Monteiro
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“Começo a criar na primeira leitura
do roteiro, desde a primeira página.
Quando estudo um roteiro, visualizo
os personagens, suas cores e emoções”
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Nasci em Fortaleza, capital do Ceará. Meu pai, baiano, minha mãe, per-
nambucana. Quando completei 4 anos de idade, minha família se mu-
dou para o interior da Bahia. Isso foi em 1978.
Na Bahia, convivi muito com meus avós paternos. Minha avó Doralice,
além de professora, amava fazer crochê. Passava horas a fio crochetan-
do peças imensas, que continuam intactas até os dias de hoje, tesouro
da família. O crochê de Dodó é elegantíssimo e as mãos dela bailavam
numa fluidez impressionante enquanto ela compartilhava comigo sa-
bedorias, histórias, parábolas. Aquilo tudo me fascinava e eu sentava ao
lado dela com linha e agulha na mão para aprender. Ela achava graça e
não acreditava que eu aprenderia aos 7 ou 8 anos mais ou menos, mas
aprendi e nunca esqueci.
Lembro vagamente que desfilei com uma minissaia tão curta que a cal-
cinha foi confeccionada do mesmo tecido e, por incrível que pareça,
lembro desse tecido, era veludo cotelê marrom com estampa de florzi-
nhas miúdas amarelas.
Nunca esqueço desse espaço, desse lugar cheio de papéis imensos, li-
nhas, tecidos, máquinas de costura e uma enorme mesa de corte.
Aos 13 anos, nos mudamos para Recife, eu, minha mãe e meu irmão.
Fui adolescente nos agitados anos 1990. Aprendi técnicas de pintura
em tecido como tie-dye e outras. Meu irmão era baterista de bandas
de rock da cidade e o ajudava com os figurinos quando ele ia tocar.
Daí os amigos dele começaram a me pedir também e, quando vi, esta-
va fazendo o figurino da banda toda. Eu pintava, rasgava, fazia crochê.
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O crochê que aprendi com minha avó começou a aparecer aí em mi-
nhas criações nessa época. Dividimos ateliê na icônica Galeria Joana
d’Arc com alguns artistas como Fernando Peres, Kleber Pedrosa e Jeims
Duarte. Nesse tempo, havia passado no vestibular da UFPE em Artes
Plásticas, mas não cursei. Ainda assim me conectei com vários artistas e
fizemos alguns trabalhos juntos.
Cláudio Cruz, querido, diretor de arte do curta Vitrais, com toda sua sa-
bedoria, elegância (e paciência), foi meu primeiro mentor e muito me
ajudou e orientou. Fomos juntos à biblioteca da UFPE pesquisar sobre
direção de arte e figurino. Pouco encontramos sobre figurino. O que
achamos de mais interessante e que descrevia bastante sobre a rela-
ção entre figurino e personagem foi uma tese sobre o longa brasileiro
A dama do lotação.
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Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
AMARELO MANGA
Amarelo manga foi um marco na minha vida profissional. Foi meu pri-
meiro longa-metragem. Me inspirei muito em pessoas que via na rua.
Em algumas cenas, os personagens apareciam no meio do cotidiano
real do centro e da periferia, em imagens documentais. Isso me fez pro-
curar roupas nas mesmas lojas que aquelas pessoas compravam. Via
um açougueiro e me inspirava para vestir Chico Diaz. Via uma vende-
dora de jogo do bicho no Alto José do Pinho e a imaginava como a
personagem de Magdale Alves.
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Acervo Andrea Monteiro
Matheus Nachtergaele
como Dunga Dunga era uma pessoa que não tinha muitas posses e era apaixonada
pelo açougueiro. Tinha trejeitos femininos, cuidava das sobrancelhas.
Uma das camisetas dele é uma pequena cropped, que cortei bem cur-
tinha. Coloquei um detalhezinho na gola, um cordão, para dar a enten-
der que ele mexia nas próprias roupas. Era um personagem criativo em
Chico Diaz
como Wellington
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Acervo Andrea Monteiro
seu visual. Com o pouco que tinha, precisava arrasar... Em uma cena
de caminhada, fiz Dunga calçar uma plataforma Melissa vermelha com
uma bolsa animal print. Para ele, era um momento de ir para a guerra,
de jogar uma bomba em um lugar. Ele precisava fazer aquela maldade
porque estava indo atrás do amor da vida dele.
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Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
Leona Cavalli
como Lígia A atriz Leona Cavalli, que interpretou a dona do bar, entrou no elen-
co de última hora e só chegaria ao Recife um dia antes de filmar. Tive
menos de uma semana para criar a roupa dela. Decidi por um vestido
jeans, que poderia ser facilmente abotoado e desabotoado, algo que
funcionava bem dentro da ação nos momentos em que ela ia dormir
nua. Precisávamos de algo que a deixasse ao mesmo tempo graciosa e
interessante, mas dentro do limite daquele cenário de boteco decaden-
te. Walter Carvalho, diretor de fotografia, insistiu que eu acrescentasse
algum detalhe amarelo. Não concordei, achei redundante. O nome do
filme era Amarelo manga e já havia muitas coisas amarelas na direção
de arte, em detalhes dos cenários e objetos.
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Para criar os personagens, gosto de inventar histórias que não estão
no roteiro. É como ler um romance, a mesma história, lida por pessoas
diferentes, carrega nuances e cores diferentes para cada um. Sigo o que
eu sinto. A personagem de Conceição Camarotti parecia ter sido uma
grande dama no passado, talvez uma prostituta. Coloquei nela cores,
estampas e vaidade. Era como alguém que já foi rica e envelheceu so-
zinha, sem família e doente. É mais glamourosa do que as pessoas ao
seu redor, que vestiam shortinho de malha e jeans muito surrado. Ela
usava ouro, brincos, colares e pulseiras. Cheguei a bordar pérolas em
Conceição Camarotti uma camisola preta.
como Aurora
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Para alguns personagens, eu dava um tom a mais. Everaldo Pontes, por
exemplo, interpreta um cara meio cavernoso, meio malandro, com ócu-
los Ray-Ban, que poderia ser um policial ou um funcionário do Instituto
Médico Legal (IML) e transportava cadáveres no carro. Achei que o estilo
dele combinava com aquela jaqueta, que eu fiz com um jeans reapro-
veitado de peças do meu acervo.
Everaldo Pontes
como Rabecão
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Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
Jonas Bloch
como Isaac O personagem de Jonas Bloch tinha aquele jeito violento, com uma
energia agressiva meio rock pesado. Para as calças cargo que ele vestia,
me inspirei em Cláudio Assis. Os óculos dos anos 1980 eram da minha
mãe. Me inspirei também em Roger de Renor, que nos deu de presente
um tecido que transformamos em uma camisa para esse personagem,
com estampa de dry martini, azeitonas e uma pinup dentro de uma taça,
bem kitsch. Roger também tinha um carrão antigo, meio estiloso. Usei
também uma camisa verde, camuflada, floral e desbotada, com uma
estética americana. Também era um cara bem cavernoso.
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Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
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Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
Dira Paes como Kika
Fizemos de ônibus a produção de figurino. Só tivemos direito a carro
quando começaram as filmagens. Não havia verba, o valor era irrisório.
Pedimos roupas usadas emprestadas da equipe, compramos em bre-
chós e recebemos apoio da Seaway. Para algumas cenas, precisamos
confeccionar tudo.
A cena da briga entre Dira Paes, Chico Diaz e Magdale Alves foi uma
das mais caras, pois envolvia sangue e seria necessário trocar tudo
a cada take, aí fizemos roupas triplas. Chico Diaz também aparecia
em várias cenas com uma camisa laranja quadriculada. Pegamos uma
parte do dinheirinho que tínhamos e compramos cinco camisas iguais
em uma loja popular no calçadão da Rua da Imperatriz. Como a loja
não tinha cinco do mesmo tamanho, compramos de tamanhos dife-
rentes e adaptamos.
69
A cena da igreja foi uma das mais caras porque havia uns 40 figurantes
e todos precisavam estar bem-vestidos. Na locação da pensão, havia
muitos figurantes que apareciam e reapareciam em diferentes momen-
tos, como se morassem naquele lugar. Para dar a ideia de passagem do
tempo, precisamos criar mais de uma roupa para cada um deles tam-
bém. Aos poucos, percebemos que precisávamos de uma equipe maior.
A solução foi duas estagiárias, que me ajudaram bastante. Uma delas era
Bárbara Cunha, que depois tornou-se figurinista, fotógrafa e diretora. Um
colaborador incrível no processo de Amarelo manga foi Paulo Ricardo,
que foi contratado para ser meu assistente, mas era mais experiente e
Andrea Monteiro foi como um professor.
e Paulo Ricardo
70
Bárbara Cunha/Perdidas Ilusões
Fernanda Montenegro
como Dona Carminha PIEDADE
e Matheus Nachtergaele
como Aurélio Foi interessante trabalhar com Matheus Nachtergaele no longa Piedade
depois de tantos anos do marcante Dunga do Amarelo manga.
71
Flora Negri/Perdidas Ilusões
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Bárbara Cunha/Perdidas Ilusões
Dona Carminha
e Cauã Reymond
Muitos personagens de Piedade são pessoas que vivem na beira-mar.
como Sandro Vestem roupas lavadas com água salobra, que secam em um sol muito
quente. É uma roupa exposta à maresia, àquela erosão. É colorida, mas
é desbotada. Em um documentário sobre os problemas socioambien-
tais daquela região de Suape, vi um homem com um boné com a frase
“meu trabalho tem valor” e resolvi incorporar esse detalhe em um dos
participantes daquelas cenas de reunião comunitária.
73
Fotos Bárbara Cunha/Perdidas Ilusões
74
EX-HUMANOS
No curta Ex-humanos, Recife não era Recife. Poderia ser qualquer cida-
de onde não existam mais pessoas, em 2050. Era algo muito surreal, que
eu já tinha visto em filmes de ficção científica. A diretora Mariana Porto
me trouxe muitas referências cinematográficas, mas preferi me descolar
daquilo tudo. Não sou muito de beber de uma fonte que alguém possa
identificar. É um filme que tem muito essa coisa do sonho, do onírico,
de um futuro sem contrastes.
75
Ana Lúcia Diniz/Vídea Filmes
Para a atriz Vera Valdez, usei um vestido cinza, comprido, que foi traba-
lhado nas costuras, envelhecimentos e objetos, amuletos que ela pró-
pria escolheu em meu ateliê. No personagem do ator Cláudio Marinho,
não queríamos que a pele dele aparecesse. Não poderia aparecer ne-
nhum vestígio de humanidade. A capa tinha pinturas e texturas que o
ajudavam a se camuflar nos cenários. Era um mundo de chuva ácida.
Lembrei muito disso durante a quarentena na pandemia, quando fica-
mos trancados em casa. Na dança final, o figurino é inspirado em butô,
com alguns detalhes costurados no corpo da atriz.
Cláudio Marinho
e Vera Valdez
76
figurino
Prova de
77
Fotos Acervo Andrea Monteiro
MERGULHO PROFUNDO Sâmia Emerenciano
78
Foto Rod Souza Leão
“No meu processo,
a simbologia surge
a partir do instinto”
80
PH Reinaux
Preparação do figurino
da cantora Una Eu sou de Olinda, mas minha família vem de Surubim, cidade do Agreste
para o clipe Útero de Pernambuco. Meus avós vêm de uma perspectiva da terra. Eu per-
cebi que minhas tias e minha mãe são de uma geração muito prática
e manual que adota a costura como oportunidade de mudar de reali-
dade. Uma de minhas tias fazia os vestidos de casamentos e eventos
de formatura da família, vendia confecções e dava aula sobre costura
no centro do Recife. Na minha infância, a costura não era apresentada
81
para mim como uma possibilidade. Mesmo que me interessasse, mi-
nha relação ainda era de distância, mas já flertava com outras áreas das
artes, como desenho e fotografia. Tudo isso retornou pra mim quando
fiz 17 anos, no colégio, quando comecei a querer me montar, a me ex-
plorar esteticamente de um outro jeito. O ambiente em que vivia, em
um colégio extremamente católico em Olinda, não me permitia pensar
a partir desse lugar, tanto esteticamente quanto internamente. Passei a
compreender a estética como algo potencial para mim através do ves-
tuário. Comecei a desenhar looks de drag e a sair com eles. Outras drags
viram e começaram a me pedir pra fazer para elas. Depois de um tempo,
criei uma marca e trabalhei com confecção não só para as drags, como
também para outras pessoas, com vestuário feminino. Nesse trabalho
artístico, que se iniciou com a vontade de me montar, desenvolvi uma
linguagem performática. Eu já tinha uma vivência na noite, como DJ e
performer, mas ainda em um momento muito contido. A partir dessa
relação entre vestuário e performance, comecei a entender e a estudar
o figurino de outro jeito.
82
Maíra Iabrudi/Ponte Produtoras/Áspera Filmes
Performance
de Libra TEMPESTADE
Nas produções da festa Hypnos, comecei a trabalhar com André An-
tônio e ele me convidou para fazer Tempestade. Ele me via no papel
daquele fantasma, daquele personagem, daquele corpo. Isso foi uma
abertura para mim no audiovisual, ainda dentro de uma perspectiva
muito da performance. Em Tempestade, construí meu próprio figurino.
Meu trabalho não teve relação com o figurino do filme como um todo.
Participei especificamente para performar ainda como criação própria
83
para mim mesma. Me atentei muito à referência do espaço, que é um
barco no meio do mar. Isso foi um start para eu entender um figurino
que dialogasse com aquela água e não entrasse em conflito com ela.
Trabalhei mais com a textura do que com a tonalidade, pois não queria
brilho. Aí veio a ideia da seda e da camurça. O roxo só aparece no meu
rosto. A ideia era que a personagem não tivesse um rosto e nem um
corpo humano. A ideia é um corpo-névoa que representa a angústia
da protagonista e tem poder sobre ela nesse sonho. Na cena da festa
de Tempestade, também apareço. Sou um corpo preto lá atrás, em um
detalhe, também com um figurino meu. Nesse processo, já estava gra-
vando um documentário, que se chama Frervo, documentando as ex-
periências da noite recifense nas quais eu estava inserida. A partir disso
tudo, estava me relacionando pela primeira vez com o cinema de uma
Kildery Iara, protagonista maneira direta.
de Tempestade
84
PH Reinaux
Cíntia Lima, diretora
de arte, Libra e a cantora ÚTERO
Una, no set de Útero
No clipe Útero, da cantora Una, a diretora de arte Cíntia Lima construiu o
roteiro junto com a diretora Ana Olívia Godoy a partir de uma divisão en-
tre óleo, terra, escuro e o peso que puxa pra baixo, em uma perspectiva
muito conceitual. A música fala desse lugar de voltar para o útero e não
sair. São seres que transpassam o corpo social. O figurino das cabaças
era o mais desafiante porque eu tinha uma expectativa volumétrica que
deixava aquilo muito pesado para transportar no corpo. Isso foi interes-
sante porque acabei me metendo um pouco na preparação do corpo,
ao interferir nos movimentos corporais de Una, já que ela tinha que se
esforçar. Precisei também costurar sobre o figurino já vestido no corpo
dela, para obter uma volumetria. Estávamos em busca de um material
que simbolizasse corpos e terra e que sugerisse uma sonoridade, um
barulho. No figurino obscuro, onde criei e confeccionei um vestido de
9 metros de diâmetro, com a ideia de fazer Una parecer um ser gigante
naquela mata fechada, acabei também participando como performer.
No processo, existiu uma relação do obscuro que Una não conseguiria
expressar, então eu mesma precisei aparecer também. A caracterização
e o figurino nessas personagens colidem como se fossem uma coisa só.
O clipe tem ainda um terceiro figurino, que é uma roupa mais feminina.
85
Fotos PH Reinaux
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Gustavo Pessoa/Gatopardo Filmes
Luciana Souza
como Marilene INABITÁVEL
Eu acho que criei uma metodologia minha de etapas de produção. No
cinema, Inabitável vem de uma metodologia minha inspirada em pesso-
as com quem trabalhei, por exemplo, no longa-metragem Rio Doce, de
Fellipe Fernandes, que foi minha primeira experiência como assistente,
junto com Rita Azevedo, Clarissa Saraiva e Duda Antonino. Aprendi mui-
to, com todas elas, a metodologia do fazer acontecer e as necessidades
do cinema, com o tempo do cinema e com as trocas profissionais que
precisam existir entre uma equipe. Isso me deu uma base para fazer
Inabitável com uma metodologia minha, mas também a partir de uma
experiência de construção e vivência de set.
87
filha de Marilene, sobre o que é esse corpo e como ela se representa no
filme, como ela se denomina e como é que a gente se relaciona com
a amiga que Marilene encontra, que é uma travesti. Essa amiga era a
principal pista sobre quem era a filha de Marilene. Marilene não avisa
que vai visitar Juliana. Ela simplesmente chega lá desesperada porque
quer encontrar a filha. Juliana também não estava preparada pra receber
ninguém, ela estava fazendo uma faxina em casa. Ser trans não deter-
mina a estética de uma pessoa como um todo. Existem estereótipos e
esforços de uma leitura cisgênero que coloca esses corpos trans com
leituras muito específicas, como se elas não pudessem sair desse lugar
em condições diferentes. Essas identidades se transpassam, mas não
são tudo pra mim.
Existia um figurino não realista, mas ele não entrou no filme. Cheguei a
desenhar e a confeccionar essa roupa, a atriz chegou a vestir. Era a única
roupa que tinha sido criada para o filme. A ficção científica inicialmente
estava presente no figurino, mas, em um processo coletivo, a gente en-
tendeu que o filme não precisava dessa representação estética porque
existia uma representação política muito forte que necessitava de prota-
gonismo. Foi uma decisão correta para que, na experiência audiovisual
do Inabitável, a gente desse mais atenção ao que a gente realmente
Sophia William queria falar para além do estético. Para mim, isso foi muito importante.
como Juliana
Gustavo Pessoa/Gatopardo Filmes
88
Mariana Souza
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Gustavo Pessoa/Gatopardo Filmes
Eu tive ajuda de alguns acervos de figurinistas, como Maria Esther e Rita
Azevedo, e de alguns brechós, como Marte e Cabrochas. Existia um or-
çamento previsto para compras, mas, para mim, isso era um apoio, pois
existiam muitas possibilidades. Usei algumas roupas da minha mãe em
Marilene. Lembro de ter aproveitado também uma roupa trazida por
uma das atrizes, Laís Vieira, que faz uma médica.
90
sabia o que ela gostava de usar e o que ela não gostava. A própria Edu-
arda foi uma referência muito forte para a personagem Roberta. A partir
dessas referências, criei uma base do que eu queria, mas também me
mantive aberta para o imprevisível, para o contato com o roteiro e para
o diálogo com a direção de arte e com a equipe durante a produção. Foi
mesmo uma metodologia de pesquisa, de seleção e de descarte. O filme
como um todo tinha cores base, que eram o azul e o branco, sem ver-
melho, sem muito amarelo. Tinha a pele. O roxo aparecia às vezes, mas
sempre puxando para o azul... Mesclar com o jeans, com a seda. Havia
também uma perspectiva limitante, pois uma mãe que está procurando
por uma filha não escolhe a roupa que vai usar. Ela simplesmente sai de
casa. O filme já começa com a filha perdida.
Ver a roupa no corpo diz muito pra mim, mas às vezes uma coisa fun-
ciona muito bem para aquele corpo, só que tem outras coisas do con-
texto que interferem. Quando a gente tem autonomia criativa, o proces-
so é mais instintivo. No cinema, tem sempre algo a mais que precisa ser
olhado. Para mim, ser figurinista é um processo artístico pessoal, mas a
gente tem que ter abertura para os outros profissionais. É sempre muito
potente quando essas construções se colidem.
Acervo Libra
91
Foto Acervo Paulo Ricardo
92
“O que definiria bem meu trabalho
seria o próprio processo
de pesquisa e construção”
93
Minha primeira lembrança em relação a roupas, na infância em Surubim,
entre 8 e 12 anos, é minha tia costureira, com quem eu convivia muito.
Era uma mágica vê-la pegar aqueles tecidos, cortar e colocar na máqui-
na de costura. Além das peças produzidas para clientes e para todo um
mercado profissional, ela costurava as roupas das minhas primas, que
ficavam belíssimas para irem aos bailes, e também das bonecas delas,
coleções inteiras, maravilhosas, verdadeiros desfiles.
Sempre me interessei por todas as artes, mas não pensava em ser figu-
rinista ou estilista, como se essa relação da infância com a costura esti-
vesse adormecida. Já adulto, no Recife, nos anos 1980, comecei a fazer
teatro. Um dia, fui a um evento de moda no Shopping Center Recife
para encontrar um amigo que trabalhava na produção. Precisavam de
alguém para ajudar nos bastidores dos desfiles e, para minha surpresa,
me convidaram. Aceitei porque achei que teria facilidade por causa da
minha experiência em camarins teatrais. Foi algo que aconteceu por
acaso, pois estava lá apenas para buscar um amigo para ir a uma festa.
Isso ilustra a forma como esse fazer entrou na minha vida. A partir daí
comecei a trabalhar com moda e comerciais.
94
Leonardo França/Aurora Cinema
Minha afinidade com Camilo começou quando ele ainda era estudante
de jornalismo, depois passamos pelos curtas juntos, fizemos publicida-
de e a parceria continuou até os longas. Eu já sei tudo o que ele quer e
o que ele não quer e também já sei como conseguir o que quero dele
para atingir os resultados.
95
Nicolas Hallet /Aurora Cinema
96
de pessoa que pinta as próprias camisas. Ele bordou nomes de artistas
que, como o personagem, sofriam de epilepsia e inseriu uma carranca,
para espantar os maus olhados ou alguma dominação do mal que pro-
vocaria os ataques epiléticos. Sempre gosto de me aproximar dos atores
o máximo que puder, criar uma troca, uma coisa de mão dupla. Zezita
Matos e Débora Ingrid bordaram comigo. Levei o ator Maxwell Nasci-
mento para ir comigo em lojas de departamento de Petrolina e Juazeiro
para escolhermos juntos as roupas do seu personagem, que tinha aca-
bado de chegar de São Paulo e veste camisetas de malha, tênis Adidas
Irandhir Santos e bermudas tactel de surfe.
como Joãozinho
97
Maxwell Nascimento
Marcélia Cartaxo
como Querência
e Leonardo França
como Cego Aderaldo
98
Personagens Aluisio
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Débora Ingrid
como Alfonsina
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Nicolas Hallet /Aurora Cinema
Marcélia Cartaxo,
Zezita Matos
A maioria dos vestidos foi confeccionada para o filme. Como os teci-
e Claudio Jaborandy dos eram novos, houve esse trabalho de vivência, de lavagens, amoleci-
mentos na bacia d’água e tingimentos, para as peças não ficarem com
cara de novas. Consegui comprar também alguns tecidos mais velhos
de uma loja que encontrei em Petrolina, que já estavam guardados no
almoxarifado. Para fazer a calça camuflada marrom, que não poderia
ser verde por causa da paleta de cores do filme, comprei um tecido de
oxford que era mole demais e o desafio era torná-la encorpada. A solu-
ção para criar uma rigidez foi costurar por dentro um forro mais pesado
e depois houve um processo de envelhecimento com lavagens e lixa,
para dar mais vivência.
101
Gosto muito do trabalho artesanal. Prefiro terceirizar a construção em
si, contratar costureiras e bordadeiras, que trabalham como eu quero,
mas também com alguma liberdade artística. Sou melhor no envelhe-
cimento, em coisas como tingir, lavar e lixar, mas terceirizo muito essas
funções também. Acho que o que definiria bem meu trabalho seria o
próprio processo de pesquisa e construção, desde o momento solitário
de ler o roteiro até as trocas com os departamentos relativos ao figurino
e especialmente com o elenco.
Fomos para o Sertão um mês antes das filmagens para produzir quase
todo o figurino lá. Levamos do Recife apenas coisas aleatórias que cor-
respondiam a 10% do trabalho. Foi um grande desafio, pois não conhe-
cíamos as costureiras, brechós e os lugares onde compraríamos os ma-
teriais, e as pessoas da região hoje em dia já não usam mais as roupas
que aparecem no filme com aqueles tons terrosos. Encontrávamos uma
ou outra peça garimpada. Achar costureiras disponíveis também era di-
fícil porque todas estavam absorvidas pelos fabricos industriais. No caso
dos vaqueiros, ainda se usa chapéus e roupas de couro, que eles ainda
vestem como proteção contra os espinhos da vegetação.
102
Tagore Suassuna como
João Heleno dos Brito e JOÃO HELENO DOS BRITO
Harumi Harada como Ono
Yoka, casal protagonista de As principais referências do curta-metragem João Heleno dos Brito, de
João Heleno dos Brito Neco Tabosa, eram o faroeste e a cultura hippie dos anos 1960 e 1970.
Eu poderia viajar à vontade nos elementos, com um equilíbrio entre
realidade e psicodelia, com toques hare krishna. Fiz coletes para os per-
sonagens com tecidos de forração. Era um curta com muitas trocas de
roupa e um elenco grande. O banho de sangue foi o momento mais
desafiador, com duplicatas de 20 roupas que precisavam ser produzidas
por nós, pois você não encontra o mesmo modelo repetido em brechós.
103
Figuração
João Heleno
dos Brito
104
Chico Lacerda/Surto & Deslumbramento/Ponte Produtoras
Júlio Emílio,
ator coadjuvante A SEITA
Inicialmente, A seita, de André Antônio, seria um curta-metragem, mas
virou um longa porque o projeto tinha, literalmente, “muito pano pra
manga”. Dividi esse figurino com Alysson Santos, que também é estilista
e se ocupou mais do personagem principal, enquanto eu assumi os co-
adjuvantes e a figuração. Queríamos criar um universo atípico, gay, que
se passava no futuro, com um estilo pintoso e fashion, com detalhes
punk. Usei principalmente roupas de brechós e de acervos, pois o filme
tinha um tom retrô, meio anos 1950 e 1960. Trabalhar com André Antô-
nio foi fantástico porque ele tem um conhecimento de moda e de cine-
ma. Ele nos deu liberdade para criar. As camisas de mangas compridas,
por exemplo, que não são normais para o calor do Recife, sugeriam uma
afetação, um refinamento. O diretor de arte Thales Junqueira alertou
que as roupas não poderiam ter cara de brechó. Gosto muito do resul-
tado e acho que conseguimos provocar um estranhamento nas plateias.
Acho que nos inspiramos mais na moda do que no cinema.
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Fotos Chico Lacerda/Surto & Deslumbramento/Ponte Produtoras
A seita
Figuração de
106
Leonardo França/Aurora Cinema
Paulo Ricardo
no camarim de FIGURINO E POLÍTICA
A história da eternidade
Fui o primeiro e por muito tempo o único figurinista negro no cinema
pernambucano. É um pioneirismo desbravador. Trabalhar com figuri-
no e ser uma pessoa negra e LGBT significa enfrentar três preconcei-
tos. Já houve até um caso de uma figurinista negra que foi destratada
em uma loja de shopping onde foi buscar roupas para uma produção
em São Paulo. No audiovisual, essa já é uma área bastante preterida,
mesmo quando os profissionais são brancos. Eu pessoalmente luto para
valorizar nosso trabalho e sempre compartilho nas redes sociais quan-
do algum figurinista ganha um prêmio, por exemplo. Acho importante
batalhar por esse reconhecimento. Em um set de filmagens, é normal
esperarmos horas por causa da afinação das luzes ou do conserto dos
cenários, mas os figurinistas são sempre obrigados a executarem tudo
rápido. Nós, figurinistas, estamos lutando por respeitabilidade e já ven-
cemos algumas batalhas. É um trabalho muito árduo. Quando brigamos
pelo figurino, estamos brigando pelo filme. Fazer mal ao figurino é algo
que pode acabar com um filme. O figurino é a primeira coisa que vemos
nos personagens e pode transmitir aspectos como o estado de espírito,
a classe social e o posicionamento político.
107
Foto André Antônio
108
“Quem se define, se limita.
Não quero que me rotulem
e nunca vou estar vinculado a nada”
109
Cássio Bonfim
110
de estilo, porque ali as pessoas buscavam ser originais. Comecei a criar
vestimentas, aproveitar retalhos, pedaços de roupas, jeans e tecidos para
costurar nas minhas próprias roupas, no lema punk da Vivienne West
wood: “Do it yourself”. Eu produzia muito em cima desse tema: “Não
tenha medo de ser julgado”. Não me preocupava também com o acaba-
mento, queria só expressar o que sentia através da indumentária.
Acervo Sosha
111
A partir daí, conheci uma pessoa que era representante da Vicunha
Têxtil e comecei a frequentar eventos de moda oficiais. Esse amigo ti-
nha conhecimentos técnicos, mas precisava da minha ajuda para saber
quem eram as pessoas do meio, para poder fazer contato. Ele conhecia
coisas como tecelagem, padrão de qualidade e acabamento, enquanto
eu sabia os nomes de todas as modelos, designers e tipos de roupas. Eu
era um assistente dele, podemos dizer assim. Sempre li revistas, mesmo
aquelas bem cafonas sobre a moda mais hegemônica, e depois passei a
acompanhar tudo também pela internet.
112
Super Sosha Magazine
Eu frequentava as festas na cidade e sentia um distanciamento entre as
pessoas, principalmente em relação aos mais marginalizados. A gente
estava no mesmo lugar, mas ao mesmo tempo a gente estava distante,
então meu processo criativo parte muito de um universo de rejeição.
Essa rejeição me deu a possibilidade de criar meu universo e tive auto-
nomia total da minha obra. Eu mesma comecei a fazer maquiagem, edi-
tar, fotografar, chamar as pessoas, elaborar as ideias e criar os figurinos
com as minhas próprias mãos.
113
Fotos Caetano Costa e Sosha/Super Sosha Magazine
LOTTA LOVE
Lotta love foi totalmente despretensioso. Eu não tinha anseio por beleza.
As pessoas que estão fora desse universo das artes, do audiovisual e da
fotografia esperam que a arte sempre seja bela, mas nem sempre é por
aí. Nunca tive vontade de exibir algo com primor, delicadeza ou sutileza.
Queria mesmo era mostrar o meu universo, juntar os signos que tinha na
minha cabeça e tocar isso pra frente de uma maneira bem descontraída e
divertida. Se está gerando uma repercussão boa para meu trabalho como
artista, então vou continuar fazendo.
114
Super Sosha Magazine
Linda de Morrir,
protagonista de
Eyes without face
EYES WITHOUT FACE NO RECIFE
no Recife
Os meus figurinos são algo totalmente sem limites, como no filme Eyes
without face no Recife, em que a roupa tem vários olhos de papel pre-
gados. Peguei o tecido de uma cortina, cortei, costurei à mão e chamei
minha amiga Linda de Morrir para participar.
115
A pegada pop existe para invocar as pessoas a assistirem e gerar signos
para ficar mais marcante. Quando criamos uma obra, temos nossas con-
cepções. Fica bem claro que Eyes without face no Recife foi inspirado na
música, mas fica a critério do espectador captar a referência através do
seu próprio olhar. A gente que trabalha com arte está aí para criar sen-
sações nas pessoas. As pessoas devem se sentir felizes ou tristes, achar
feio, bonito ou cômico, não cabe a mim encaixar esse pensamento. É
como se meu corpo fosse uma tela em branco e eu fosse preenchendo.
Acho interessante fazer refletir através da roupa assim como traduzo
isso com os pincéis.
Super Sosha Magazine
116
Fotos André Antônio e Chico Lacerda/Super Sosha Magazine
METRÓPOLE
O primeiro look do filme emitia uma coisa do século XIX e eu queria
que na película ficasse uma coisa expressionista, podemos dizer assim,
com esses efeitos de traços de luz e de cor. Era o look de uma pessoa
que estava prestes a enfrentar tudo o que viesse pela frente, tanto que
ela estava com a mala na mão. É uma personagem que estava disposta
a tudo, que precisava ser leve e colorida, precisava passar uma sensação
117
Sosha com o segundo look
118
pele mais pálida, com cores que vazam o contorno do rosto. Eu não
me inspirava em nada pontualmente, era uma mistura, com referências
também de Galliano e Pat McGrath, a melhor maquiadora do mundo,
naquela sobrancelha meio arco e naquele tracinho meio Greta Garbo,
uma coisa meio diva dos anos 1920.
119
Super Sosha Magazine
RECIFE XXI
Vivienne Westwood, Galliano e Karl Lagerfeld são alguns dos designers
que tiveram uma referência muito forte na minha construção de in-
dumentária. Recife XXI tem uma coisa bem forte com o universo da
moda. A personagem interpretada por Brenda Bazante sai de Londres,
que é uma capital fashion, uma das capitais da moda, pega um avião da
Chanel e desce no Recife.
120
cepção que montei o primeiro look, uma jaqueta militar e uma saia de
tule. Achei interessante misturar algo super arrojado com algo super
delicado. É uma coisa que vem muito dos orientais, do life style retra-
tado na revista japonesa Fruits Magazine. Os jovens de Osaka mistura-
vam coisas que eu achava super inusitadas e foram aflorando na minha
cabeça, para me dar a possibilidade de pensar além do que a moda do
Ocidente trazia. Estilistas como Rei Kawakubo, por exemplo, são muito
ousadas nesse sentido e não estão preocupadas com regras. Grandes
designers orientais quebraram paradigmas, com roupas totalmente des-
proporcionais, que vazam da silhueta do corpo humano. Tanto na ma-
Brenda Bazante, téria-prima quanto na textura, são roupas que não querem exatamente
protagonista
de Recife XXI
serem belas, como seria na Chanel ou nos vestidos Armani.
Super Sosha Magazine
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Fotos Super Sosha Magazine
Alexis Colby
como Tanya Em uma cena de Recife XXI, Brenda tira o salto, guarda dentro da bolsa
e calça uma rasteirinha. Resolvi implementar no filme um hábito das
modelos, que sempre andam com um salto na bolsa porque na vida real
ninguém aguenta ficar de salto 15 horas por dia, por mais confortável
que seja. A personagem Tanya, a amiga dela, tem muitas referências das
divas dos anos 1920 e de Joan Crawford.
122
Brenda sentiu desconforto quando vestiu o maiô, mas eu disse para ela
que era domingo de manhã e fazia um calor de 38 graus, então ela po-
deria estar super à vontade como se estivesse na praia, de salto. Quan-
do ela percebeu que estava mesmo uma delícia, começamos a filmar.
Todo mundo precisava estar em clima praieiro. A galera realmente se
entregou ao máximo, de shortinho, chinelo e sunga na Rua da Aurora e
na Rua do Sol. Já vi a beira do Rio Capibaribe ser usada como praia em
fotos antigas dos anos 1950 e 1960 no centro do Recife, assim como a
beira do Sena é usada em Paris para piqueniques e para as pessoas be-
berem cerveja. Queria traduzir essa possibilidade para o cidadão recifen-
se. Eu, pessoalmente, passei a usar apenas shortinhos no Recife depois
que peguei menos 20 graus de frio na Europa e percebi que nós usamos
calças jeans por uma questão de estilo, porque, na verdade, elas servem
Tanya e Brenda para esquentar.
na Praia Aurora
Super Sosha Magazine
123
Super Sosha Magazine
Personagem Tita
ao lado do espelho GIF
d’água no Complexo
Cultural da República Em GIF, o personagem de shortinho é a Tita, que sempre foi uma pessoa
muito ousada. Eu quis dar um clima de beira da piscina, pois acho que,
naquele projeto de Niemeyer, com água no meio de todo aquele con-
creto extremamente quente, aquilo de fato é uma piscina, tanto é que
inúmeras performances de artistas de Brasília usam aquilo como piscina
há décadas. É algo que traduz o desejo que os brasilienses sentem por
piscinas públicas.
124
Fotos Super Sosha Magazine
La Conga Rosa,
protagonista de GIF,
A personagem sai do Museu Nacional da República como se fosse uma
saindo do Museu
Nacional da República obra de arte que tivesse se libertado dali. O figurino foi baseado em um
look da coleção de alta costura da Dior para o inverno de 2009. Achei
que casava com aquele cenário todo branco. É uma saia tulipa, botas
vermelhas, óculos de sol, peruca amarela e um sutiã que fez minha ami-
ga sentir como se tivesse seios, que era um desejo dela e eu achei que
a deixaria com mais conforto.
Tita e
La Conga Rosa
125
Super Sosha Magazine
La Conga Rosa,
protagonista PRYSMAH
de Prysmah
A questão da cartela de cores vem muito do pensamento sobre o que
contrasta no plano. Como meus filmes geralmente são muito externos,
procuro contrastar ao máximo com o que os ambientes oferecem. Não
tenho domínio sobre as locações, pois são espaços públicos, e procuro
não deixar os personagens muito carregados, mas eles têm uma iden-
tidade própria onde as cores são elementos-chave para que se desta-
quem em meio à escuridão ou em meio à luz. A utilização das cores é
imprescindível. Nos espaços que uso como locação, sempre procuro
dar uma cor que destoa totalmente daquilo, para dar mais vida ao per-
sonagem. Na maioria, meus filmes são mudos, então a indumentária
entra mais forte para eu me expressar de uma forma mais intensa.
126
Super Sosha Magazine
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O figurino de Prysmah partiu muito de orientações sobre fotos que as
pessoas do elenco mandavam. Escolhi roupas interessantes para aquele
cenário de concreto de Brasília. Queria que o principal destaque fosse
a personagem La Conga Rosa. Eu queria remeter a uma estudante uni-
versitária, com uma roupa bem leve e despojada e, ao mesmo tempo,
que tivesse uma personalidade que não seja muito comum. Queria que
as pessoas vissem que existia um trabalho de cabelo, de maquiagem
e de construção de styling. A segunda troca de roupa remete a uma
bruxa, quando ela veste um vestido longo, com uma make inspirada no-
vamente na Pat McGrath quando assinou o primeiro desfile da Maison
Margiela para Galliano. Criei uma bruxa fashion.
128
Sosha abrindo o desfile de
Acervo Sosha
Theodoro Sadi na Galeria
Joana d’Arc em 2009
SOSHA
Quando entrei em uma loja de Rick Owens em Estocolmo, comecei a vas-
culhar as peças e perguntei: “Essa roupa é feminina ou masculina?” Disse-
ram que “nessa loja não existe isso e se você gostou da peça, você pode
levar”. Isso é algo que sempre trouxe pra mim. Quando vestia vestidos, saias,
maquiagens e perucas, nunca pensava nessa coisa do não binarismo, algo
já muito mercantilizado na moda. Eu já era isso, mas nunca discuti a res-
peito. Um amigo me convidou para gravar um vídeo falando sobre uma
marca enquanto uma pessoa trans. Respondi que, sinceramente, preferia
não participar porque sempre fui a pessoa que eu quis, sempre usei saltos e
vestidos, mas nunca me preocupei se eram para homem ou mulher. Acho
muito desagradável mercantilizar a sexualidade das pessoas.
129
Foto Kennel Rogis
130
“Precisamos repensar toda
a geografia humana
e não só o que estamos
comunicando por meio das imagens”
131
Anny Stone
Set de Organismo
Desde criança, sempre gostei de cortar roupas e customizar. Minha mãe
conta que até ficava nervosa quando chegava em casa depois das com-
pras e eu já queria passar a tesoura nas roupas novas. Ela era amiga de
Izabel Carvalho, que me influenciou desde bem pequena, com seis anos
de idade, a aprender a costurar.
132
já que poucos blogs existiam. Quando descobri o blog RIOetc, lembro
de perguntar às professoras qual era a identidade da nossa década
2000-2010 e não souberam responder por estarmos passando por ela.
Só dá pra construir uma identidade de uma década quando passamos
por ela.
Sempre fui muito mais fascinada por esse lugar comportamental da coi-
sa do que pela moda enquanto moda. Um pouco antes, fiz também
muitos cursos com a própria Izabel, principalmente de modelagem, que
já era minha área preferida e me fez querer ser modelista quando eu
tinha 17 ou 18 anos.
Quando cursei a disciplina de figurino, meu pai era amigo das atrizes
da peça A árvore de Júlia e me levou para conhecer o camarim, os
bastidores. Fiquei encantada. Começou assim, vi que eu gostava. De-
pois que terminei a faculdade, Cláudio Assis estava para começar a
filmar Febre do rato e meu pai, que é músico, também era amigo da
figurinista do filme, Joana Gatis, que me convidou para trabalhar como
estagiária, sem cachê.
133
Bárbara Hostin/Filmes de Marte
A personagem Magexy era uma drag queen que tinha uma personalida-
de bem romântica, mas em sua versão Pedro vestia uma jaqueta preta,
então era meio dúbio. Miguel já é mais calmo, só que sem chegar a ser
careta, como alguém que circula no meio das artes mas não é neces-
sariamente artista e pode ter um emprego mais formal, com uma des-
134
Os protagonistas Pedro
Foto Esquerda Bárbara Hostin/Filmes de Marte | Foto Direita Sylara Silvério/Filmes de Marte
(Carlos Eduardo Ferraz) e
Miguel (Mateus Maia) jovens
contração sugerida por uma roupa mais folgada. O desafio era encontrar
um mesmo figurino, exatamente as mesmas roupas, que servisse para
os dois personagens vestirem nas versões mais jovens e também quan-
do ficassem idosos, sem ser caricato. Chegamos então a uma identida-
de de velho punk, que são essas pessoas que estão aí pelo mundo, com
70 anos de idade, sempre gostaram de rock e nunca deixaram de se ves-
tir e de viver com o mesmo estilo de vida de quando eram mais jovens.
135
Breno César/Filmes de Marte
136
No contrafluxo disso tudo, surgem as referências que eram uma exi-
gência do diretor, que é muito ligado na cultura das divas pop. Ele que-
ria uma citação direta ao clipe Telephone, de Lady Gaga e Beyoncé,
quase um remake, com aquela loucura irreal. Ele mostrou também um
outro clipe com Britney Spears de vermelho, mas era uma produção
que ficaria muito cara. Para o show de Magexy, levei Madonna, com
Carlos Eduardo Ferraz cones nos peitos.
como Magexy
Bárbara Hostin/Filmes de Marte
137
Acervo Maria Esther de Albuquerque
138
Fotos Bárbara Hostin/Filmes de Marte
Magexy e as Lunáticas
139
As ideias das saias grandes, tipo godê, balonê, veio de uma necessida-
de de ocupar melhor o espaço do palco, uma preocupação de Carlota.
Tive a ideia de fazer as saias com plástico-bolha a partir de uma refe-
rência que Henrique mostrou. Fizemos a estrutura de arame, preen-
chemos e acrescentamos luzes pisca-pisca. As atrizes também trouxe-
ram muitos acessórios maravilhosos. Xuxa também foi uma referência
trazida por Henrique, que adotamos na construção dos diademas de
algumas meninas.
O capacete foi feito por Camilina com uma bola de isopor. Os bobs com
latas de cerveja também são de Lady Gaga em Telephone. O filme su-
gere a ideia de que as roupas foram feitas pelos próprios personagens,
tudo é meio reciclado. Acho muito rico aquele detalhe da jaqueta jeans
com o nome do filme escrito nas costas, bordado por mim, que é base-
ado em um desenho da artista Laura Pascoal.
O rosa era a cor de referência geral, mas em alguns detalhes tive mais liber-
dade, como no público da boate, onde caberia de tudo, como uma perso-
nagem de chapéu grande baseada em uma boneca de Toy story, um cara
com bermuda de ciclista, pessoas com máscaras e um casaco que piscava.
Bárbara Hostin/Filmes de Marte
140
Bárbara Hostin/Filmes de Marte
Sharlene Esse
como Cindy Vina A mãe de Miguel tinha que ser glamourosa. Me inspirei na beleza das
travestis antigas do teatro, que se montam completamente. Uma coisa in-
teressante do filme é que a mãe de Pedro é interpretada por uma travesti
que faz o papel de uma cis. O roteiro sugere que ela é uma professora, que
corrige tarefas, aí pensei em uma roupa mais fechada, com saia depois do
joelho, organizada, engomada, com ombreiras, bonita, que quebrava a
ideia de estar em casa. Imaginamos que ela estava arrumada para aguar-
dar o fim do mundo, como em um lugar de passagem, de despedida.
141
Sylara Silvério/Filmes de Marte
na natureza e contribui para o processo do fim do mundo. Na cena da
cachoeira, por exemplo, um dos personagens veste uma ceroula e o
outro está com uma cueca branca de copinho, diferente dessas cue-
cas atuais elásticas moldadas no corpo. Acho mais interessante o mo-
vimento da re-roupa, do brechó, das trocas, de não consumir mais em
lojas de grande escala, como uma forma de pensar no planeta. Quando
você se concentra em elementos comerciais, não vai fazer diferença se
o filme é em São Paulo, na China, no Chile ou em Caruaru, pois as mes-
mas peças são vendidas em todos os lugares. Hoje em dia, os jovens
fumam menos cigarro do que antes do ano 2000 e cada vez mais gente
está deixando de comer carne. Na moda, temos que prestar atenção
no crescimento dessas vertentes anti-hegemônicas também, pois os
grandes desfiles já não ditam mais as identidades das pessoas. No filme,
os personagens não usam celular, ouvem um rádio antigo e dirigem um
carro velho. Lápis e papel são coisas que nunca vão deixar de existir.
142
Inquieta/Divulgação
Bianca Joy Porte
como Helena e Rômulo ORGANISMO
Braga como Diego
No desenvolvimento do figurino de Organismo, pesquisei sobre a forma
como se vestem os cadeirantes e as pessoas com deficiência. Algumas
usam camisas e calças divididas em duas, com um velcro nas laterais
para soltar a parte da frente, por exemplo. Preferem camisas de botão
porque sentem dificuldade de retirar a camiseta pela cabeça. Usam bo-
tões que abrem e fecham com ímãs, pois às vezes não podem usar as
mãos. O diretor Jeorge Pereira me ensinou muito a partir das próprias
experiências dele. Não é uma realidade fácil. No caso do filme, entre-
tanto, o personagem interpretado por Rômulo Braga tinha alguém para
ajudá-lo 24 horas por dia e era um cara de classe média, com privilé-
gios, além de ser egocêntrico, intransigente e orgulhoso. Era uma pes-
soa acostumada a não precisar de ajuda, que de repente se vê naquela
situação de dependência em relação aos outros.
143
O figurino que desenvolvi para a atriz Bianca Joy Porte tem muita re-
lação com a personalidade da personagem. Ela é uma mulher linda,
mas que é muito altruísta e generosa, sem muita vaidade, movida pelo
amor romântico. Ela poderia ser mais independente, mas mantém uma
dependência emocional. Gosta de se arrumar, mas se mantém no pa-
drão, com tecidos mais fluidos, sem querer ser sexy. Não chega a ser
reprimida ou oprimida, mas faz uma espécie de autossabotagem ao não
assumir que é prejudicada pelo comportamento do namorado diante
daquela situação.
Inquieta/Divulgação
144
Foto Melissa Haidar
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“Todo figurino é político,
pois temos o poder de modificar
as pessoas ao mudar
os olhares sobre as pessoas”
146
Por ser filha de artistas, sempre vivi no meio da arte. Minha mãe tinha o
hábito de fazer roupas para mim, minha irmã e meus irmãos. Ela nunca
foi de ir às lojas e comprar tudo pronto, preferia costurar e fazer na cos-
tureira. Eu adorava desenhar e pegar pedaços de retalhos para fazer as
roupas das minhas bonecas. Uma das minhas diversões era me montar
e apresentar espetáculos para a família. Virar outra pessoa já fazia parte
das minhas brincadeiras desde pequena.
147
Antônio Melcop/Aroma Filmes
Maeve Jinkings como
Jaqueline Carvalho AMOR, PLÁSTICO E BARULHO
e Nash Laila como Shelly
Amor, plástico e barulho tem duas protagonistas com uma força dra-
mática muito forte, mas que são bem distintas entre si. Coloquei muito
brilho e lantejoulas nas duas, só que por motivos diferentes. Eu tinha
dois biotipos diferentes, mas não podia deixar uma muito maior que a
outra. Eu não poderia escolher um vestido que favorecesse uma delas
pois essa não era a ideia do filme.
148
Fotos Antônio Melcop/Aroma Filmes
Shelly, interpretada por Nash Laila, tem todo aquele deslumbre quase
adolescente, meio espevitada e meio ingênua. Para reforçar essa juventu-
de, trouxe algumas referências orientais, do Japão, da cultura dos mangás.
Procurei trazer essa leveza para o figurino, mas ao mesmo tempo com
sensualidade, só que sem virar uma coisa de Lolita, pois isso seria contra
minha religião feminista. Ela também sabe usar tudo isso a seu favor, o
poder da novinha, uma coisa muito forte no brega daquela época.
149
Com Jaqueline, me identifiquei mais, pelo fato de ser mãe, ser uma mu-
lher mais velha, independente, sexualmente forte e, por outras questões,
como esse cansaço do métier, quase desistindo do show business. Era
dolorido. Eu me via muito nela e chorava quando conversava sobre isso
com Maeve Jinkings.
150
Fotos Antônio Melcop/Aroma Filmes
151
Antônio Melcop/Aroma Filmes
Tivemos bastante contato com artistas do brega, mas seria melhor um
pouco mais, se houvesse mais tempo disponível para a pré-produção.
Dedesso, vocalista da banda Vício Louco, estava sempre com a gente. A
cantora Michelle Melo participou do processo e inspirou muito Maeve.
Os dançarinos também ficaram muito próximos de nós. Senti um gran-
de reconhecimento quando fomos filmar e o pessoal do brega achou
o figurino incrível. Considero essa a maior retribuição que recebi pelo
trabalho. Antes do filme, costumava ir a alguns shows de brega, mas,
depois de ter essa aproximação maior, percebi que minha visão era su-
perficial. Hoje faço essa crítica a mim mesma porque não dá para ser
superficial. Muitas daquelas dançarinas têm uma vida como a de Jaque-
line, com filhos novos, e ainda precisam ter força para serem suscetíveis
aos homens. É algo que vai muito além das correntes nos pescoços, das
saias e dos shorts curtinhos. É uma coisa social e me questiono sobre
o olhar que temos da periferia. Fazer Amor, plástico e barulho foi como
receber um tapa em relação à profundidade desse lugar.
152
Tive muita sorte de ter trabalhado com Xuxu em Amor, plástico e ba-
rulho. Se não fosse ela, como costureira e modelista, talvez o resultado
não tivesse ficado tão maravilhoso com todos aqueles materiais. O
brega romântico da época envolvia muita lycra, calças jeans super jus-
tas, sutiã, brilho, bolerinhos e shortinhos com os bolsos saindo, todos
bordadinhos. Os homens também estavam nessa linha do sintético,
sem quase nada de algodão. Xuxu tinha muita sagacidade de fazer
de uma forma rápida, pensada para o cinema, que não precisava de
acabamento interno, mas que por fora estivesse impecável. Não é fá-
cil fazer um bom acabamento com lycra no corpo da atriz. Para fazer
um collant de lycra, não basta costurar os lados, como na cena em
que Shelly está com aquele macacão vermelho vazado com correntes,
listrinhas e uma gola alta. É todo um conjunto de elementos que en-
volve também Dona Meirelles, maquiadora e caracterizadora que fez o
cabelo frisado. É um momento em que a personagem está no inferno
e vira uma capeta.
Antônio Melcop/Aroma Filmes
153
Antônio Melcop/Aroma Filmes
Comprei algumas coisas em lojas, mas as modelagens nem sempre eram
boas e também não encontrávamos as peças com as cores que precisá-
vamos, pois cada personagem tinha sua cor. Não queríamos roupas lisas,
tinha que ter brilho e tinha que ter uma sujeira boa. Aquele corpete, que
Shelly usa quando fica com Allan, foi todo pintado por mim. Naquela blu-
sa preta mesclada de Allan, a gente aplicou umas tachinhas. Quando eu
mostrava as peças para Renata Pinheiro, ela sempre falava que queria ver
minha mão mais presente ali. Às vezes, eu achava que já estava pronto,
mas ela sempre queria mais. Primeiro fazíamos as provas de figurino, de-
pois íamos customizar as roupas e tingir até a hora de filmar.
154
Fotos Antônio Melcop/Aroma Filmes
A direção de fotografia também queria pontos com luzes, o que nos fez
colocar muito brilho também nas roupas dos homens. Tem brilho até na
poça d’água que aparece na abertura com o título do filme. Amor, plásti-
co e barulho tem toda essa coisa da decadência e do brilho, seja o brilho
da bebida ou da música em alto volume. Quando você tira a ilusão, o
que resta é o normativo. Nas cenas do cotidiano delas, as roupas são
mais normais. Ninguém sustenta esse brilho o tempo inteiro e Jaqueline
é a prova de que isso cansa. No figurino, tudo foi pensado, inclusive os
momentos em que elas estão tristes.
155
No meu computador, salvo imagens de tudo o que acho bonito de
outros artistas pelo mundo. São referências que carrego comigo, tan-
to para meu trabalho com figurino quanto para meu trabalho de ar-
tes plásticas. Sempre que vou fazer um filme, acesso esse banco de
dados, cato uma coisa ou outra e faço um painel lindo, mas não
sou aquela figurinista que apresenta uma enxurrada de referências
para o diretor. A minha criação vai além disso. No Amor, plástico e
barulho, desenhei uma infinidade de croquis. Antes de desenhar, fui
no Bate-Papo, a casa de shows de brega onde filmamos, para foto-
grafar o público e conversar com as meninas. Foi todo um trabalho
de pesquisa e de fotografias de rua. Meu caminho não é recortar e
colar referências, prefiro fazer um caldeirão de tudo e depois botar
pra fora. Prefiro aproveitar apenas a gola de uma referência e mistu-
rar com outra cor para criar um universo paralelo. Acho sem graça
pegar o que já existe e simplesmente vestir nos atores, pois a forma
como você envelhece as peças e faz a caracterização é um trabalho
de construção criativa.
156
Aroma Filmes/Divulgação
Luciano Pedro Jr. como
Uno, Matheus Nachtergaele CARRO REI
como Zé Macaco e Jules
Elting como Mercedes Em Carro rei, o figurino é uma parte muito forte da narrativa e é onde
melhor consigo enxergar minha maturidade enquanto figurinista. A pro-
dução aceitou minhas condições sobre a composição da equipe e o tra-
balho fluiu. A primeira assistente, Vanessa Martinez, era a produtora, que
ia para a rua, como se fosse meu segundo olho. A segunda assistente,
Anália Nogueira, ficava ao meu lado o tempo inteiro, organizava pastas e
cuidava de coisas mais burocráticas, mas às vezes ia para a rua também.
A caracterizadora Mauricéia Conceição, com quem tenho uma química
muito boa, fazia toda a parte de envelhecimento, de tingir, envelhecer e
lavar as peças novas. Trabalhamos com quatro costureiras porque havia
uma grande demanda por macacões. Não trabalho com camareira, to-
das cuidam do camarim e todas precisam saber fazer bainha. Acredito
que um bom figurinista tem que começar no camarim fazendo serviço
de camareira. No set, a equipe diminuía e ficávamos apenas três pes-
soas, com uma assistente para desproduzir e outra para ficar ao meu
lado. No set, eu não me faço presente, não toco nos atores, pois sei que
aquilo incomoda. Prefiro ficar o tempo inteiro no monitor do video as-
sist. Sempre falo para as meninas não chamarem mais o ator pelo nome
depois de vestirem as roupas, pois tenho um respeito absurdo pelo tran-
se do elenco. A gente veste o ator e cuida dele, mas não mexe com o
personagem, que tem uma energia muito forte.
157
Fotos Aroma Filmes/Divulgação
Clara Pinheiro
como Amora O figurino de Carro rei é bastante atual, com muitas mulheres que
vestem peças consideradas masculinas e também o contrário. Uma
das personagens principais é uma pessoa não binária. Um figurinista
que diferencia roupas de mulheres e de homens, que ainda pensa
Jules Elting, intérprete dessa forma, precisa mudar um pouco os conceitos porque o mundo
de Mercedes, é artista já está adiante.
não binária
158
AZOUGUE NAZARÉ
Azougue Nazaré foi um dos últimos trabalhos que fiz nessa contramão
de trabalhar praticamente sem orçamento e foi com ele que ganhei
meu único prêmio de figurino, no Fest Aruanda. Uma parte das rou-
pas era do próprio elenco ou foi confeccionada pelos próprios atores.
Selecionamos os caboclos-de-lança, por exemplo, e acrescentamos
alguns elementos novos, como os óculos, mas todos eles já estavam
quase prontos. As roupas de Darlene (interpretada por mim) e Tita
(Mohana Uchôa) vieram do meu acervo. Na época, eu estava com um
acervo gigante formado principalmente por sobras de outros filmes.
A vantagem é que já estava tudo meio preparado, tudo pronto para
usarmos, já com envelhecimento. Um acervo de figurino de cinema
Caboclo-de-lança, é muito diferente da publicidade ou da moda porque são roupas mais
personagem do propositalmente envelhecidas.
maracatu rural
Gustavo Pessoa/Lucinda Filmes/Urânio Filmes
159
Mohana Uchôa
como Tita
160
Foto Sâmia Emerenciano
161
“Não consigo ser totalmente
naturalista, carrego sempre algo
lúdico comigo, algo de fantasia.
Meus figurinos são sempre muito estéticos”
162
Tenho uma relação muito próxima com minha avó paterna, que é
como uma segunda mãe para mim. Ela tinha uma marca chamada Be-
nélia, que é o nome dela. Comprava peças de manufaturas e colocava
a própria etiqueta. A loja funcionava na sala da casa onde ela morava.
O quarto onde eu dormia às vezes ficava cheio de sapatos, bolsas e
roupas, adorava experimentar tudo. Também sempre ouvi histórias rela-
cionadas ao modo de se vestir de minha avó materna, que não cheguei
a conhecer pessoalmente, mas de quem posso ter herdado algo. A mãe
do meu ex-padrasto também tinha uma confecção no Rio de Janeiro.
Quando viajava para lá, um dos programas das férias que eu amava era
passear pelas ruas de Copacabana para ver as vitrines antigas, algumas
dos anos 1950.
163
Babi Jácome, atriz Mayara
Sâmia Emerenciano
Millane e Thaís Carneiro,
assistente de figurino, no set
de Os ovos da raposa
164
Em 2012, participei do longa-metragem Eu não faço a menor ideia
do que eu tô fazendo com a minha vida, de Matheus Souza, também
como assistente de Melina. É um filme de baixo orçamento, com
Clarice Falcão.
165
Fotos Érica Rocha/Baba Produções
Dandara de Morais
como Paula SUPERPINA
Superpina: gostoso é quando a gente faz! é um longa-metragem produzi-
do a partir de verbas destinadas originalmente para videoclipes e um cur-
ta, que foram todos lançados primeiro separadamente e depois juntos em
forma de longa. Nas filmagens, já sabíamos que haveria o longa. Quando
entrei no projeto, havia referências cinematográficas para o figurino e um
direcionamento criativo já elaborado pela atriz principal, Dandara de Mo-
rais. Diante de nossa realidade de tempo e orçamento, sugeri pensarmos
nos personagens de uma forma ao mesmo tempo realista e bastante es-
tética, sem naturalismo. Minha proposta era assumir o absurdo e certa
loucura, pois era uma história fantasiosa sobre uma galera do Recife.
166
Tiago Calazans/Baba Produções
167
Pedro Luna/Baba Produções
168
A cabeça do Fofão foi criada pelo diretor Jean Santos e pela diretora de
arte Lia Letícia. Ele é uma mistura entre animador de festa infantil, perso-
nagem de programa de TV, Carreta Furacão e bonecos de propaganda
de lojas, borracharias e supermercados. O mascote da marca Michelin
foi uma das referências que usei. As roupas dele foram construídas do
zero. Em uma das cenas, ele está um pouco mais produzido, com um
macacão verde e lilás com espuma por dentro para criar lombadas.
169
Bersa Mendes/Baba Produções
Nathália Gomes/Baba Produções
Iza do Amparo
como Dona Isaura A personagem interpretada por Iza do Amparo é um exemplo de como
meus figurinos podem representar a forma como vejo as coisas, uma vi-
são muito minha. Quis trazer um pouco da energia de algumas mulhe-
res de Olinda, que estou acostumada a ver desde criança, meio bruxas,
mágicas, como as artistas plásticas Tereza Costa Rêgo, Silvia Pontual,
Guita Charifker, Marília Lacerda, Marisa Lacerda e a própria Iza. É uma
mulher mais velha e cheia de vida dentro de si.
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Érica Rocha/Baba Produções
171
Érica Rocha/Baba Produções
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Fotos Aline Belfort
Mohana Uchôa
como Caia QUANDO CHEGAR A NOITE, PISE DEVAGAR
Não consigo ser totalmente naturalista, carrego sempre algo lúdico co-
migo, algo de fantasia. Meus figurinos são sempre muito estéticos, talvez
porque minha influência inicial tenha sido Morte em Veneza. No curta-
-metragem Quando chegar a noite, pise devagar, dirigido por Gabrie-
la Alcântara, decidi que os personagens teriam cores específicas bem
marcadas. Como os personagens da história têm seus orixás, tentamos
respeitar essa dinâmica de cores do candomblé.
173
A pesquisa de figurino para o curta foi bastante baseada nas roupas dos
frequentadores dos bares da Rua Mamede Simões, no centro do Reci-
fe. Não mandamos fazer nada. Cerca de 70% das roupas eram do meu
acervo ou foram emprestadas. Pedi também roupas de algumas pessoas
que encontrei e fotografei durante as pesquisas. Eu tinha muita cons-
ciência sobre o que a diretora precisava porque ela é uma das minhas
melhores amigas, assim como a atriz principal, Mohana Uchôa, também
é uma grande amiga. Diferente de Superpina, o filme de Gabriela Alcân-
tara não tinha abertura para coisas loucas.
Fotos João Penna
174
João Penna
175
Pablo Lopes/Fábrica Estúdios
Carlos Eduardo Ferraz
(em destaque) como FREI DAMIÃO
Frei Damião jovem
Frei Damião: o santo do Nordeste, de Deby Brennand, é um documen-
tário intercalado por momentos lúdicos e poéticos, que me permitiram
trabalhar com uma cartela de cores bem marcada em sintonia com a
direção de arte e a fotografia.
Algumas das peças que aparecem no filme costumam ser usadas por
padres apenas em conferências ou ocasiões especiais e exigem muitos
cuidados. São coisas bordadas à mão, cheias de recomendações, muito
luxuosas, que mostram como a igreja do passado tinha mais elementos
fantásticos do que tem hoje.
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João Vigo
As roupas dos monges de hoje ainda são iguais às antigas, mas os ma-
teriais mudaram. O tecido atualmente é sintético, de poliéster, mas na
época era natural, de linho. O cordão atualmente é de nylon e antiga-
mente era de algodão. Decidi procurar freis que ainda guardavam os
originais antigos e consegui pegar alguns emprestados.
177
Pablo Lopes/Fábrica Estúdios
Babi Jácome
e Andrade Júnior A foto de Frei Damião mais antiga que tínhamos para usar de referência
foi feita no dia da cerimônia de entrada dele na congregação na Itália.
Para as cenas da infância, na primeira década do século XX, costuramos
tudo a partir de pesquisas sobre famílias italianas da época. Tive a sorte
de contar com um estudioso de Frei Damião, que prestou consultoria
ao filme e contribuiu para o figurino. Também troquei muitas informa-
ções com minha avó, que é uma católica fervorosa.
Para interpretar Frei Damião nos anos 1990, o ator Andrade Júnior preci-
sou usar próteses na barriga e nas costas, feitas com espumas de nylon,
construídas por Cris Malta e Andrea Afonso, da equipe de maquiagem.
Montávamos juntas por ser bastante trabalhosa. Para a corcunda caber,
pegamos uma roupa maior do que o tamanho dele. É um hábito normal
de monge, mas amarrado com um tipo de nó específico que eu tive que
aprender a fazer.
178
Foto Dani Neves
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“Minha grande inspiração são as pessoas.
Já tenho como hábito sempre observar
o estilo das pessoas por onde ando”
180
Suzanne Queiroz
A primeira coisa que me fez gostar de figurino foi o Carnaval. Meu pai
amava a festa na rua e minha mãe os bailes nos clubes. Aprendi a gostar
de todo tipo de folia. Todos os anos da minha infância, meu pai me pre-
senteava com uma roupa de havaiana, dessas bem baratas que vendiam
no comércio do centro da cidade. Eu amava. Sempre gostei de fantasias.
Dancei caboclinho e pastoril e amava as roupas de São João da escola.
Outra influência forte foi a convivência com minha avó materna. Meus
avós eram espanhóis. Meu avô era uma pessoa muito rígida e resistente à
cultura brasileira, então vivi bastante dentro da cultura espanhola. Trouxe
181
meu olhar para um mundo diferente do mundo daqui. Vovó ouvia valsa
e tinha coleções de leques e luvas. E eu não conhecia mais ninguém
com esses hábitos. Nas minhas fotos de infância, todas as minhas rou-
pas são da Espanha. As que não vinham de lá, minha avó fazia. E eu
gostava de me vestir diferente das outras pessoas.
182
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Elenco da Trupe Teatral
Chão de Estrelas
TATUAGEM
Tatuagem foi o primeiro longa que assinei como figurinista. Eu tinha
muita intimidade com o roteiro, que Hilton escreveu em parte na minha
casa, onde ele se hospedava quando vinha de São Paulo. Não senti o
peso de ser um primeiro trabalho por causa da minha relação com ele
e porque eu já tinha certeza sobre o que queria. Estava muito segura.
Tinha aquele roteiro na ponta da língua.
183
Em Tatuagem, havia o cotidiano dos personagens e os espetáculos
que eles encenavam. O figurino que eles usavam no palco precisava
parecer ter sido feito por eles. Por isso, às vezes, eu tinha que proposi-
talmente deixar as roupas meio mal feitas. Para a cena do pastoril, por
Jesuíta Barbosa como exemplo, meus assistentes me trouxeram roupas de pastoris da peri-
Arlindo Araújo, o Fininha, feria, mas não consegui usar. Preferi partir do zero, produzir tudo para
e Irandhir Santos como
Clécio Wanderley
poder rasgar e descosturar.
184
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
185
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Os atores Erivaldo
Oliveira e Irandhir Recebi 645 peças de roupa emprestadas da equipe de Tatuagem. Isso
Santos foi uma coisa linda. Eu tinha um elenco enorme e um grupo de 30 per-
sonagens do Exército que tomava todo meu orçamento. A roupa mais
importante do filme, por exemplo, veio de uma sacola de roupas trazida
por Amanda Gabriel, preparadora de elenco, que é o casaco de Clécio
uando ele canta a música de Caetano Veloso. Cheguei a ir a São Paulo
procurar esse casaco e não encontrei o ideal, que era inspirado em Ca-
etano no exílio. Não podia ser muito pesado porque, na época retratada,
um artista periférico como Clécio não teria acesso a coisas do resto do
mundo e eu queria trazer isso para a realidade tropical. Quando abri a
sacola de Amanda, vi um bolero e na hora decidi que aquela seria a peça
a ser usada por Clécio. É linda essa história. Como o próprio persona-
gem diz para Fininha, eu não pensei no calor, pensei na elegância.
186
Muita coisa foi construída manualmente nesse figurino. O clima do set
era muito bonito. Foi um trabalho coletivo bonito e isso ajudava muito
diariamente. Todo mundo se ajudava. Aquela procissão, filmada em su-
per-8, que é um momento lindo, ainda não tinha figurino definido um
dia antes. Acabou virando uma das principais fotos de divulgação do
filme. A trupe era de 13 pessoas, separei umas três opções para cada um
Rodrigo García e definimos tudo em uma hora.
como Paulete
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
187
Fotos Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Na pré, todos os dias, no final do dia, os atores se reuniam para ensaiar e
criar os espetáculos. Eu ficava para assistir com Hilton. Esses espetáculos
não estavam no roteiro, então ainda não tinha como ter figurino. Foram
criados ali no ensaio. Isso já estava combinado. Para enfrentar um desa-
fio assim, você tem que estar muito imersa para dar conta e não pode
transmitir insegurança. E foi muito divertido de fazer.
188
Fotos Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Criar o figurino junto com os atores é uma coisa com a qual a gente
precisa ter muito cuidado. Como preciso da personalidade do perso-
nagem, preciso também entender como o ator está entendendo essa
personalidade da personagem. Por isso estou sempre muito junto dos
atores e eles estão sempre pelo camarim.
189
Outro momento muito importante do filme é a música cantada por
Dolores del Samba, personagem interpretada por Yasmim Salvador, que
nessa cena dubla a voz de Isaar. O sabor da melancia, de Tsai Ming-
-Liang, era uma das principais referências de Hilton, mas é um filme de
muitos figurinos de alta costura e não tínhamos orçamento para re-
produzir aquilo. Mas eu sabia da importância dessa cena para Hilton e
contei com a ajuda de amigos para confeccionar esse figurino. Decidi
elaborar esse vestido em segredo. Nos intervalos das filmagens, ia es-
condida encontrar com Clesinho Santos e Márcia Lima, na grife Período
Fértil, que era perto da locação. Disse a eles que queria fazer uma coisa
inspirada nos mantos de maracatu. Eles me presentearam com um teci-
do bege que dava pra fazer o estilo que eu queria, que era aquela coisa
tubinho com uma leve cauda. O charme era o desenho. Eu não sabia se
ia dar certo e se ia conseguir terminar a tempo. Comprei um monte de
galões, cortei todas as flores à mão com Clesinho e fomos preenchen-
Everton Gomes
190
Nash Laila
191
Os diferentes núcleos de personagens funcionam de forma muito sepa-
rada. Decidi ser mais fiel à época apenas no caso dos militares. Deu mui-
to trabalho identificar qual era o figurino militar certo. As camisetas que
eles usam nos treinamentos, por exemplo, tinham que ser 100% algodão
porque isso imprime. Um amigo nosso, Marcelo Taulbert, mandou fazer
as camisetas e cuecas e nos deu de presente. Depois eu envelheci. As
fardas foram lavadas 11 vezes com cloro na lavanderia para envelhecer
no ponto que eu queria. Foi uma construção muito difícil. Quase todo o
orçamento do figurino do filme foi usado na ala militar.
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
192
Fotos Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Bruna Barros
como Jandira A parte da família de Fininha foi a mais fácil de fazer, que são as pessoas
do interior, pois já estou mais acostumada. O filme como um todo tem
um certo glamour, então não queria rebaixar esses personagens e fazê-
-los muito lascados. Queria trazer a elegância do povo do interior. Já a
Soia Lira como Albanita namorada dele, que tinha uma lambreta, era mais moderninha, então
e Georgina Castro resolvi colocar uma calça jeans para dar uma modernizada.
como Ceminha
193
Joana Pena
194
Acervo Chris Garrido
195
Pela minha experiência com Pacarrete e Lucicreide vai pra Marte, confir-
mei que fazer um filme com uma personagem muito central é às vezes
mais difícil do que fazer um filme que tenha um volume maior de per-
sonagens principais. Pacarrete, interpretada por Marcélia Cartaxo, está
em todas as cenas do filme e o figurino muda de acordo com o humor
dela. Meu trabalho é muito emotivo. Preciso da ferramenta da emoção.
Com Lucicreide, foi difícil porque eu não queria seguir uma fórmula.
Era uma personagem que já estava no imaginário das pessoas. Fabiana
Karla estava realmente aberta a uma nova proposta, mas tentei retirar o
lenço da cabeça e ela não abria mão desse detalhe. Não consegui. Tive
que incorporar, mas fiz do meu jeito. Usamos variações de acordo com
cada roupa que ela vestia. Fiz mais de 50 lenços para Lucicreide.
196
Donna Meirelles
Chris Garrido
e Hilton Lacerda INSPIRAÇÃO
no set de Fim de festa
Gente é o que me inspira. Minha grande inspiração são as pessoas. Já
tenho como hábito sempre observar o estilo das pessoas por onde ando.
Quando fui fazer Fim de festa, o último longa de Hilton, eu ficava sentada
na praia do Pina para observar as pessoas que chegavam no ponto de
ônibus, para identificar qual era a última moda do verão na periferia. Sem-
pre procuro registros reais, seja de época ou contemporâneos.
197
Dinâmicas e sensibilidades
do figurino no cinema
pernambucano
Iomana Rocha
200
Período que a crítica se acostumou a chamar de “novo ciclo do cinema pernambuca-
no” ou apenas “novo cinema pernambucano”, mas que possui dinâmicas, processos e
mutações que o torna heterogêneo e muito mais diverso do que classificável.
Esse dito período de retomada tem como marco o filme Baile perfumado, de 1996,
dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Neste período um grupo de realizadores
promove com seus filmes uma renovação da linguagem audiovisual no estado,
com um modo de produção que se desviava do método “industrial”, propondo-se
a produzir filmes com baixos orçamentos e inovações estéticas que se diferencia-
vam do cinema mainstream.
Mas, para além das produções serem realizadas com ajuda mútua, os vínculos
coletivos também repercutiram diretamente em um engajamento político na bus-
ca por recursos financeiros frente ao governo brasileiro, visando a legitimação e
profissionalização do cinema do estado.
Se nos anos 1990 existiu um grande empenho em busca de recursos que possibi-
litassem a produção do cinema local feito por um pequeno grupo, aos poucos foi
sendo conquistada a garantia de importantes editais estatais voltados para o audio-
visual. O que repercutiu em uma produção quantitativamente maior e gradativa-
mente mais diversa. Isso impacta de modo direto na formação e no fortalecimento
da área técnica do cinema, como é o caso do departamento de figurino.
201
Influenciado pelas inovações estéticas do cinema contemporâneo mundial, as no-
vas gerações investigam linguagens, propõem novas estruturas narrativas e pro-
blematizam a imagem cinematográfica. Assim, atrelado a certo experimentalismo,
observa-se um refino visual, uma construção sensível e simbólica que requer a
participação ativa dos processos criativos técnicos do cinema, como a fotografia,
o som, a direção de arte e o figurino.
Alison Lurie3 aborda o ato de vestir como uma forma de linguagem, uma forma de
3
LURIE, Alison. A linguagem das
roupas. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. comunicação não verbal composta por elementos que funcionam como uma es-
pécie de “vocabulário”, e defende que o vestuário seja talvez o mais eficiente meio
de comunicação não verbal que o ser humano usa, nos dias de hoje e há séculos.
Por meio desse jogo de interpretações, a cada aparição o figurino constrói sensa-
ções e colabora na construção do universo fílmico. Por vezes, a leitura possibilitada
202
pelos indícios do figurino aparece antes mesmo do gesto ou da palavra. Isso se dá
muito fortemente pela potencialidade cultural das vestimentas e adereços. Sobre
este ponto, La Motte4 aponta que as roupas estabelecem condições culturais, mar-
4
LA MOTTE, Richard. Costume
design: the business and art of cam lugares sociais. Os figurinos são metáforas de seus personagens.
creating costumes for film and te-
levision. Michigan: McNughton &
Gunn, Estados Unidos, 2. ed., 2010.
Quando observamos o figurino no cinema feito em Pernambuco, diante de sua
característica intrínseca de demarcar os personagens e seus contextos, é notória
a presença de escolhas que marcam, enfatizam, realçam aspectos culturais, so-
ciais, temporais e comportamentais que são próprios da cultura e da sociedade
pernambucana. Existe uma busca por representação, não aquela estereotipada
que por tanto tempo foi associada à região Nordeste pelas produções audiovisuais
nacionais, mas uma representação que observe cuidadosamente as nuances e
multiplicidades culturais que de fato constituem a sociedade.
203
O gradativo processo de profissionalização e especialização é também vivencia-
do pelo departamento de figurino. Essa profissionalização provocou o amadure-
cimento de técnicas e processos, gerando modos de trabalho e redes cada vez
mais sólidas.
204
o moderno e o global, o urbano e o passado patriarcal, a liberdade e o conserva-
dorismo. Uma sociedade em contraste. Em vários filmes o figurino explora essa
complexidade cultural própria de Pernambuco, seja de forma comparativa, seja de
forma alegórica. Como é o caso dos contrastes morais em Amarelo manga (2002),
filme de Cláudio Assis e figurino de Andrea Monteiro; o contraste de personalidade
das protagonistas de Amor, plástico e barulho (2013), filme de Renata Pinheiro com
figurino de Joana Gatis; os contrastes culturais e temporais em Bacurau (2019), fil-
me de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles com figurino de Rita Azevedo; o
contraste desnorteante entre os corpos e as ruínas da cidade em A seita (2015), fil-
me de André Antônio com figurino de Alysson Santos e Paulo Ricardo; o contraste
ideológico entre os personagens de Tatuagem (2013), filme de Hilton Lacerda com
figurino de Chris Garrido, dentre vários outros.
Outro aspecto que pode ser enfatizado nesse recorte de filmes pernambucanos
é a recorrente opção por uma estética naturalista, por vezes com tons documen-
tais. Primeiramente acho necessário frisar a importância e responsabilidade que
há diante da construção de imagens que se propõem naturalistas. Exige muita
pesquisa e respeito ao contexto retratado. E dentro desse universo, o figurinista
precisa compreender o tom dos personagens, para que esse realismo seja crível e,
ao mesmo tempo, comunique aspectos intrínsecos ao personagem e ao recorte
social e cultural ao qual ele está inserido.
A escolha de uma estética naturalista, em muito, está atrelada a uma forma de ver
o mundo, a um olhar mais político. Isso também reverbera muitas vezes nos pro-
cessos criativos do figurino, nas escolhas que são feitas e nas leituras imagéticas
que são propostas. No caso de filmes naturalistas, a preocupação em respeitar a
realidade do outro e, principalmente, em propor ao espectador, por meio do fi-
gurino, uma leitura do outro que seja respeitosa e que contribua, inclusive, para a
desconstrução de estereótipos.
Esse posicionamento pode ser observado, por exemplo, no filme Amor, plástico e
barulho com figurino de Joana Gatis, no qual o processo de pesquisa para cons-
trução dos personagens buscou ser fiel à realidade do universo brega recifense e,
205
por meio de pesquisa e imersão, a equipe buscou as nuances que permeiam esse
contexto social, visando a construção de um figurino que fosse representativo,
dramático, mas que ao mesmo tempo desconstruísse estereótipos relacionados
àqueles personagens.
Essa ideia do artifício está ligada a uma construção imagética que contrapõe a
ideia realista do registro cinematográfico. Em filmes com a presença do artifício, o
fenômeno estético é tão importante quanto a narrativa. Segundo Denilson Lopes7,
7
LOPES, Denilson. Afetos. Estudos
queer e artifício na América Latina. “O artifício possui um vasto campo semântico, da teatralidade barroca à simulação
E-compós, Brasília, v.19, n.2, maio/ midiática, da tradição do travestimento nas artes cênicas aos desafios da perfor-
ago. 2016, p. 03.
matividade do sujeito contemporâneo”.
206
lico, desfilam em bloco pela cidade, o figurino dos personagens causa estranheza
e sublinham a existência de outras formas de ver e viver o mundo.
Diante do que foi posto, podemos observar que o figurino do cinema pernambu-
cano envolve diversos olhares, com diversos processos criativos, diversas meto-
dologias que, apesar de seguir certa “metodologia do figurino de cinema”, a forma
“oficial” de se fazer figurino vai sofrendo algumas adaptações locais, reflexo do
empirismo e das demais especificidades observadas.
207
Breve guia de figurino:
conceitos, cotidiano
e ferramentas da profissão
Álamo Bandeira
Imergindo no tema
Quando as luzes da sala de exibição se apagam e a imagem da câmara clara emer-
ge, mesmo diante da expansão do mercado audiovisual no país e o destaque do
cinema local, a maioria dos espectadores não imagina a quantidade de profissio-
nais envolvidos para que cada etapa da narrativa se torne real. Mas, em especial,
há uma equipe técnica que segue silenciosa traduzindo os sonhos impressos no
roteiro em trajes de cena1 que dão vida a cada uma das personagens das tramas.
1
VIANA, Fausto. Para documentar
a história da moda: de James Laver
às blogueiras fashion. São Paulo: Partindo do desejo de trazer à luz o cotidiano das pessoas responsáveis pelo costume
ECA/USP, 2017, p. 48.
design e tomando como ideia básica a premissa de que, para produzir bons figurinos,
é preciso sobretudo revelar cada uma das etapas de execução das peças, este capítulo
sintetiza as diversas fases que compõem a criação de figurino em suas múltiplas face-
tas (seja no cinema, na televisão e em materiais diversos) e se propõe como um guia
rápido para as principais dúvidas e métodos de execução da profissão.
208
tende atuar no setor. Além disso, algumas perguntas básicas serão respondidas e
exemplificadas para desmistificar as principais dúvidas da atuação hoje. Para fina-
lizar, será traçado um breve panorama dos métodos de figurino usados em cada
uma das três etapas que envolvem a criação audiovisual: a pré-produção, o set de
filmagem e a desprodução. Como base argumentativa, são tomadas entrevistas
com profissionais apresentando a ótica do backstage por quem a vive, além das
experiências práticas do autor no set. Mas antes da imersão instrumental, um con-
ceito-chave precisa ser apresentado.
“Traje de cena não é moda, ainda que possa representá-la quando necessário.
Quando a moda sobe ao palco teatral (ou é retratada pelas lentes do cinema),
torna-se traje de cena”3. Em outras palavras, a roupa quando aplicada em perfor-
3
VIANA, Fausto e VELLOSO, Isabela
M. . Roland Barthes e o traje de cena mances artísticas – tomando desde os quítons vestidos nos anfiteatros helênicos
[recurso eletrônico]. São Paulo: como exemplo seminal4 e chegando até a contemporaneidade com o agasalho
ECA-USP, 2018, p. 9.
em rede que Irandhir Santos dança no longa A história da eternidade – é bem mais
4
LAVER, James. A roupa e a moda: antiga que o efêmero calendário regido pela lógica do descarte e do uso focado
uma história concisa. São Paulo: no “consumo conspícuo” de Veblen5 e ditado pelo sistema da moda, tão bem de-
Companhia das Letras, 1989.
senhado por Lipovetsky6, estruturado com a ascensão burguesa na modernidade
5
Apud ERNER, Guillaume, VEBLEN, e que marca toda a estética ocidental após a Revolução Industrial e o nascimento
Thorstein. A sociologia das tendên-
cias. São Paulo: Gustavo Gili, 2015,
da Haute Couture parisiense. Tem-se então uma premissa central: o figurino não é
p. 72. um braço da moda, até porque este é bem anterior e ocupa função social distinta.
6
LIPOVETSKY, Gilles. O império do
efêmero: a moda e seu destino nas A assistente de figurino Clarissa Saraiva sugere em entrevista que o traje de cena
sociedades modernas. São Paulo: está mais próximo esteticamente da fotografia que da moda. “A gente tem uma
Companhia das Letras, 2009, p. 83.
tendência para pensar que, de cara, talvez, a Moda contribuísse (majoritariamente
7
SARAIVA, Clarissa, assistente de com o figurino), e, de fato, contribui muito essa pesquisa. Mas eu acho que tem que
figurino, durante entrevista online pensar muito em: referência de filme, de fotógrafo, até uma pintura. Claro que isso
por áudio realizada em 21 de mar-
ço de 2021. vai depender do projeto: se algo histórico, então vai ter que se debruçar bastante em
pesquisa de época.”7 Pode-se então ir além e concluir que o verdadeiro produto do
costume design é a mancha gráfica impressa no filme: a roupa vestida pelo ator é
um suporte para criação desta imagem. O resultado definitivo só é visto nos monito-
res do diretor de fotografia e na tela do cinema – suportes bidimensionais. Da mes-
ma forma é a pintura para as artes plásticas em geral. As vestes, quando elevadas aos
holofotes, ganham contornos ritualísticos: a atuação tem o poder de desmembrar
o corpo físico do corpo em performance, o ator cede a si próprio para que sua per-
sonagem venha à tona e o figurino tem papel fundamental nessa passagem do real
para o imaginado, traduzindo-se como uma segunda pele deste humano camaleão.
209
Dessa forma, é preciso que haja o contexto do roteiro artístico para que então
exista traje de cena, caso contrário, a aura mágica dá lugar à banalidade da indu-
mentária cotidiana.
Profissão: figurinista
Para além das questões conceituais apresentadas, o cotidiano da equipe de figurino
é marcado por agendas e orçamentos apertados gerando desafios que se repetem
trabalho após trabalho. É bem comum nos relatos dos nomes consagrados ver o
próprio set de gravação como escola, mas e se, ao entrar num job pela primeira vez,
já houvesse um “mapa” resumindo os principais temas? Além disso, o que se espera
de alguém que decide trabalhar no setor? E quais as principais funções?
9
Cursos de Referência em Figurino:
No Brasil, o número de cursos9 em costume design cresce mais lentamente que
1. Programa de Pós-Graduação a necessidade do setor. Tanto em Recife como no eixo Rio-São Paulo, a formação
Gratuito (Mestrado e Doutorado) se dá de modo transversal, ou seja, profissionais com origens acadêmicas diversas
em Artes Cênicas da Escola de Co-
municação e Artes da Universidade encaram cotidianamente o processo de criar trajes de cena empiricamente. Ruth
de São Paulo (ECA/USP); Joffily e Maria de Andrade em seu livro Produção de moda deixam claro: “O mer-
2. Pós-Graduação em Cenografia e
Figurino - Centro Universitário Be-
cado de trabalho do figurinista é bem amplo: inclui muitas áreas de produção na
las Artes de São Paulo; TV (novelas, minisséries, programas de humor, especiais), além de cinema e palco:
3. Curso Técnico Gratuito em Ce- peças de teatro e shows.”10
nografia e Figurino da Escola de
Teatro – Centro de Formação das
Artes do Palco (SP); Mas é preciso se preparar, independentemente se sua origem é moda, cinema ou
4. Curso Livre de Figurino para Ci-
nema e TV com Alice Alves (SP).
comunicação. As pesquisadoras afirmam que “o produtor de moda, para ser um
figurinista, deve estudar movimento de artes plásticas, precisa saber ler um roteiro,
10
JOFFILY, Ruth e ANDRADE, Maria conhecer tecidos e, de preferência, desenhar bem, pois é muito comum ter que
de. Produção de Moda. São Paulo:
SENAC Nacional, 2013, p. 53. criar peças de época”.11
11
Ibidem, p. 53.
Paralelo ao domínio técnico, a fala de profissionais ouvidos para este artigo, atuan-
tes entre Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, deixa claro algumas características in-
terpessoais (e subjetivas) essenciais. Pensando nisso, alguns conhecimentos bási-
cos para quem decide dar vida a diferentes personagens, nas palavras de Suzanne
Queiroz, assistente de figurino, que elaborou uma lista de conhecimentos básicos
na profissão de figurino:
“1. Entender de planejamento estratégico e ser ágil com habilidade nas deman-
das do dia a dia;
2. Estabelecer método de desenvolvimento que se relacione bem com o limite
financeiro de cada projeto;
3. Vínculo ético e profissional com quem estiver à frente assinando o projeto e
apresentar as possibilidades viáveis para executar cada etapa;
4. Ter bom relacionamento com colegas de departamento, entender as fun-
ções e necessidades de cada um para fazer o projeto fluir;
5. Ter senso estético e olhar apurado para pesquisa de referências e produção;
6. Ser organizado, ter caderninho de anotações ou fazer uso de aplicativo que
auxilie na parte operacional do dia a dia;
7. Ter conhecimento técnico sobre decupagem, plano de filmagem, análise
técnica e continuidade;
8. Ética e postura profissional com a própria equipe e outros departamentos –
sobretudo, no set;
12
QUEIROZ, Suzanne. Trecho de
entrevista online para esta pesquisa, 9. Entender a importância sobre limpeza, higienização e desprodução de
realizada em 23 de março de 2021. cada projeto.”12
210
Destacam-se ainda: proatividade, organização, fôlego para carregar e descarregar
carros de produção e camarins a cada nova diária, além de “olhar o mundo com
13
ALGO, Armando. Entrevista online esse olho de que o diferente não quer dizer ruim”, como destaca Armando Algo13.
semi-estruturada, realizada entre 21
e 23 de março de 2021.
Cada chefe de figurino tem um perfil que é traduzido no estilo das produ-
ções. Algumas são especialistas em filmes de época, assim é a italiana Milena
Canonero, diversas vezes vencedora do Oscar de melhor figurino. Já outras
podem colaborar com inúmeros diretores e assumir estilos distintos, como a
pernambucana Chris Garrido, premiada internacionalmente pelo seu traba-
lho no longa-metragem Tatuagem, mas que é capaz de desenvolver desde
15
BANDEIRA, Álamo. O design de figurinos naturalistas a materiais publicitários com maestria.15
figurino na produção de cinema no
Recife: comparação de realidades Algumas funções tornam-se de toda a equipe, mas podem ser direcionadas
e imersão etnográfica. 2017, 136 f.,
Dissertação (Mestrado em Design) – pela figurinista a alguém em específico, são elas: continuidade, envelheci-
Universidade Federal de Pernambu- mento e produção de rua durante a pré-produção, domínio do roteiro, vestir
co, Centro de Artes e Comunicação.
Recife, p. 28. determinado ator ou atriz;
211
às gravações e organização do camarim. Além disso, pode cuidar e vestir as
personagens secundárias ou figurantes. Em muitos casos, registra a presta-
ção de contas da equipe segundo o manual fornecido pela produção geral.
E como explica Suzanne Queiroz, em entrevista: cabe ainda alimentar a lista
de medidas dos atores e o “carômetro de figuração, (…) medidas de núcleo
secundário, desenvolver briefing de figuração” (em outras palavras, o texto en-
tregue aos produtores de elenco orientando as roupas usadas pelos figurantes
ou, em projetos mais elaborados, trata-se da pesquisa de acervo e aluguel
das peças para figurantes). Queiroz ainda completa: “acompanhar provas de
núcleo secundário e set, quando necessário”. Cabe também à 2ª assistência
16
QUEIROZ, Suzanne, Op. cit.
desproduzir, junto à equipe, os materiais após finalização da trama16.
• Motorista: não basta ser bom de volante para preencher os quadros de fi-
gurino, espera-se que o piloto de cinema domine mentalmente o mapa das
212
principais lojas, acervos e fornecedores de cada cidade, além de compreen-
der bem a rotina de carga e descarga de figurino.
A porta de entrada para novos profissionais se abre através do estágio em figurino – es-
tudantes de Moda, Comunicação ou Cinema são convidados a ajudar nas pesquisas de
inspiração (criando painéis de referência para personagens e épocas), a vestir figurantes
e podem acompanhar as compras ou arrumar camarins e bases de produção.
Hierarquia do cinema:
você sabe com quem está falando?
Ao fechar os olhos e se lembrar da primeira vez em que se entrou em um set de
gravação, pode-se, perfeitamente, evocar a mesma sensação presente na parábola
descrita pelo cineasta norte-americano Gus Van Sant, em 2003, ao explicar o título
de seu filme Elephant, vencedor no mesmo ano da Palma de Ouro em Cannes:
diante de um gigantesco elefante, mesmo inúmeros sábios tocando partes dis-
213
tintas chegam a conclusões distintas – como se analisassem formas tão díspares
como uma pedra ou uma cobra.23
23
MARQUES, Barbara Cristina, CO-
DATO, Henrique. Estratégias de
fragmentação no cinema contem- Mas, ao ser observada com uma maior distância e atenção, é possível compre-
porâneo: Short Cuts: cenas da vida,
de Robert Altman, e Elefante, de Gus
ender a enorme engrenagem fílmica que gira em torno das múltiplas hierarquias
Van Sant. Animus: Revista Interame- impressas nas ordens de filmagem.
ricana de Comunicação Midiática,
Universidade Federal de Santa Ma-
ria, v. 17, n. 34, p. 83, 2018. Disponí- A equipe técnica de um longa, desconsiderando atores, gira em torno de 60 pro-
vel em:<https://periodicos.ufsm.br/ fissionais24, distribuídos em grupos relativamente autônomos entre si. E para uma
animus/article/view/26277>. Acesso
em 25 de março de 2021.
compreensão superficial, apresenta-se aqui uma visão geral25 e empírica dos de-
partamentos e suas relações com figurino – dentro de cada trabalho, pode haver
24
CONCEIÇÃO, Mauricea, atriz e variações conjunturais, mas considerando cinema, publicidade e televisão, há for-
camareira. Entrevista online redigida
em março de 2021. matos estruturais que convergem para um mesmo caminho:
25
SALLES, Filipe. Apostila de Ci-
• Direção geral: Como um enorme maestro, o chefe artístico é o criador prin-
nematografia. São Paulo: 2008. p. cipal da narrativa e quem assina o filme, várias vezes é também o roteirista
96. Disponível em:<http://www. da história. O formato final da história tem sua aprovação e a relação figuri-
mnemocine.com.br/index.php/
documentos-para-download/cat_ nista X direção é de grande afinidade estética. Ao aceitar convites para uma
view/52-parte-2-manual-de-cine- obra, o costume designer deve pesquisar profundamente a filmografia do
matografia?start=10>. Acesso em 22
de março de 2021.
realizador para compreender qual estilo será traçado, podendo as roupas
adotarem, por exemplo, traços mais documentais e naturalistas ou um rea-
lismo fantástico e lúdico.
214
• Direção de arte (production design): Concepção de toda a unidade estética
da trama: desde a cenografia, aos objetos (“dressando” os cenários e loca-
ções), definindo inclusive a cartela cromática básica do projeto. O figurino
e a caracterização, tradicionalmente, fazem parte do guarda-chuva da arte:
cabe ao costume designer apresentar os painéis imagéticos, os croquis e
estilo geral à direção de arte. Como numa pintura, o traje de cena é um dos
elementos que compõem o quadro: as roupas devem espelhar a estética
geral da arte. A figurinista Beth Filipecki reflete que o “figurino, muitas vezes,
28
FILIPECKI, Beth. In.: Entre tramas, é um cenário trazido à escala humana que se desloca com o ator”28. Via de
rendas e fuxicos. São Paulo: Globo, regra, peças que componham a cena (como malas ou roupas dentro dos
2007, p. 14 armários) não são responsabilidade do produtor de figurino, mas da arte.
Entretanto, manter boas relações de troca com todos os departamentos ga-
rante um set tranquilo.
215
• Som: Equipe enxuta que cuida da captação do áudio direto, mas que tem
uma relação constante com figurino para “lapelar” o elenco, ou seja, co-
locar discretamente os microfones e suas respectivas baterias no corpo
do ator, por baixo do traje de cena. Geralmente os fios são presos com
topstick (adesivo micróporo) em locais estratégicos, como entre os seios
das atrizes – já as baterias são fixadas no cós traseiro das calças. Todavia,
é bastante comum pequenas perfurações nas golas das camisas para es-
conder completamente os fios (o que não é possível quando os looks são
consignados ou emprestados).
216
ou conjugal, ocupação, afiliação religiosa, autoestima, atitudes e importância. No teatro
e no cinema, os figurinistas manipulam ativamente o significado simbólico das roupas,
vestindo nos personagens itens que reconhecemos como típicos de várias ocupações
31
JONES, Sue Jenkyn. Fashion de-
e atitudes. Uma ampla gama de estereótipos evoluiu dessa forma.”31 (tradução nossa)
sign. London: Laurence King Pu-
blishing, 2011, p. 68. Através de vasto domínio estético, o figurinista é capaz de propor, através da cartela
cromática ou de um acessório correto, uma infinita série de referências que con-
tam silenciosamente detalhes cruciais do enredo. Ser capaz de “contar histórias”
pelo figurino torna-se importante principalmente ao produzir curtas-metragens,
onde o tempo para desenvolver cada personagem é mais curto. Já em trabalhos
longos (como uma série ou novela), o figurino pode se modificar sutilmente, se-
guindo o ritmo do script. Mas, na prática, por onde começar?
Exemplo: a composição R1 é vestida pelo protagonista nas cenas S1, S2 e S3. Depois,
ele veste a segunda roupa (R2) em S4, S5, e assim por diante. Sendo mais claro:
protagonista aparece pela primeira vez na sequência 1 (S1), vestindo a roupa 1 (R1) e
fica com o mesmo look até a sequência 4 (S4). Portanto, ele veste R1 em S1, S2, S3,
S4. Já na sequência 5 (S5), quando ele troca de roupa, surge a R2 e assim por diante.
Algumas perguntas devem ser respondidas claramente: qual o período e local onde
a história se passa? Qual a classe social, o número de personagens e quantas trocas
de roupa? Haverá necessidade de compra, aluguel, costura ou envelhecimento? De
posse destas informações, ocorre a primeira reunião de análise técnica – onde é
importante ouvir atentamente os desejos da direção geral e as orientações da di-
reção de arte, além de elucidar as dúvidas presentes no roteiro. Ao longo de toda
a pré-produção, haverá outras reuniões pontuais para apresentar o andamento das
criações, sobretudo após a instalação da base de pré-produção do filme, espaço
geralmente alugado pela produção geral que serve de morada para todos os setores.
217
afetivos, fotografias clicadas no campo). O resultado da imersão, que ocorre tanto
para trabalhos de época como para enredos contemporâneos, é organizado em
grandes painéis imagéticos ou pastas de inspiração que devem ficar visíveis para
consulta constante, ajudando no desenho dos croquis de cada personagem.
O trabalho não acaba na prova, pelo contrário, ganha fôlego. Vários ajustes surgem
daí, é um processo de lapidação constante no qual o figurino parte do corpo do
ator como suporte para alcançar o personagem, como bem cita Edith Head, oito
vezes premiada com o Oscar de melhor figurino, façanha até hoje jamais supera-
da: “Se o figurinista conseguir fazer com que o público sinta a atriz naquele perso-
nagem, então esse é um bom trabalho de figurino.”33 (tradução nossa)
33
HEAD, Edith. In.: LANDIS, Deborah
Nadoolman. FilmCraft: costume de-
sign. Lewes: Ilex, 2012, p. 24. É bastante comum que um dos figurinos básicos (ou similar) seja emprestado às
atrizes para que elas já ensaiem adentrando no universo fílmico, pois, antes das
provas, a roupa nas araras não passa de um objeto inanimado que ganha vida
sobre o corpo de seu intérprete. Cada “R” deve ser vestido, fotografado, numerado
e encabidado por um dos assistentes que organiza os guarda-roupas e monta
a “bíblia”, pasta impressa ou digital compartilhada com o continuísta, profissional
responsável para que nenhum detalhe de continuidade da trama seja esquecido
(geralmente, o terceiro assistente de direção).
O termo set refere-se tanto ao espaço onde ocorrem as gravações do filme (que
podem ser locações alugadas, ambientes externos ou estúdios), como também o
período em que se executa tais filmagens (levando de 3 a 7 dias, em média, para
curtas-metragens) chegando a alguns meses em projetos de grande orçamento.
218
Nesta fase, o cuidado com o cumprimento dos horários é uma questão clara de
orçamento: cada dia equivale à produção executiva um grande aporte financeiro.
Assim, a pontualidade é cobrada rigidamente minuto a minuto através dos assis-
tentes de direção, que emitem as ordens do dia, acompanham (e readaptam) o
plano de filmagem – segundo a escaleta desenhada durante a pré-produção com
cópia entregue à 1ª assistente de figurino.
219
É bem comum, mas não é o ideal, que a equipe acompanhe as cenas ao longo
do dia e ainda se estenda à noite finalizando o carregamento da diária seguinte,
extrapolando assim a carga horária prevista, o que é perfeitamente evitável com
bom preparo e definição precoce das demandas.
Além disso, ainda na fase de escolha e organização das peças, é importante, deta-
lha a assistente de figurino Luiza Rabêlo, fotografar todas as roupas, registrando as
lojas, seus detalhes individuais e arquivar este material em nuvens de fácil acesso
por toda equipe, otimizando o processo de devolução segundo recebido.
220
figurinista chefe (como parte de seu cachê ou em contrapartida pelo uso gratuito
de seu acervo particular no filme); como também podem seguir para o acervo
da empresa produtora (produção executiva); acontece, por fim, a venda a preços
populares a todos que participaram do roteiro, proporcionando um breve, porém
oportuno, capital aos investidores na reta final do projeto – esta terceira via não
inclui os trajes de cena do elenco principal ou looks icônicos, porque algumas
cenas podem ser regravadas.
Tal qual este texto, o trabalho da equipe de figurino no filme encerra-se aqui.
Pelo contrário, trata-se de um portal inicial para o diálogo entre os diversos atores
da área: produtores, estudantes e pesquisadores.
221
A roupa alquímica:
o que pode o figurino
no cinema queer?
André Antônio Barbosa
Nessa prática habitual, o figurino – as peças de roupa que cobrem os corpos dos
atores durante as cenas – exerce um papel fundamentalmente ilustrativo e portan-
to secundário. As roupas devem estar de acordo com as informações que se têm
a respeito da classe social, por exemplo, de determinada personagem. Às vezes,
222
as roupas podem ajudar a reforçar a emoção predominante de uma cena: uma
personagem que está psicologicamente sufocada vai usar uma blusa apertada.
Mas, de qualquer maneira, a roupa está à serviço da cena – sincronizada com
ela, garantindo o seu funcionamento. Manuais tradicionais de direção de arte e
figurino para cinema dizem: você realizará tanto melhor a sua função quanto ela
1
Cf. LO BRUTTO, Vincent. The fil-
permanecer invisível para o espectador1. Ninguém deve ver a cena e pensar: “que
mmaker’s guide to production de- figurino singular!”
sign. New York: Allwort Press, 2002.
É a “janela para o mundo”, através da qual as pessoas que podem ser vistas se
vestem discretamente, isto é, de acordo com certos conceitos de como alguém
de determinada classe, gênero ou passando por determinada situação emocional
“deveria” se vestir. Estou exagerando, claro. E é possível lembrar de vários exemplos
de filmes totalmente clássicos e narrativos onde um pensamento de figurino se
destaca e as roupas brilham, perdendo a sua timidez discreta. Mas é que aqui me
interessa uma outra prática cinematográfica, cuja força talvez comecemos a en-
tender opondo-a a essa prática mais padrão.
Neste ensaio, pretendo investigar como o cinema queer tem praticado, há bas-
tante tempo, um outro uso do figurino. Queer é um termo de origem inglesa que
significa aquilo que é estranho, raro, não habitual, dissonante. No Brasil e América
Latina, a palavra tem sido usada sem tradução (ou às vezes com uma marcação que
a diferencia da origem anglófona: “kuir” ou “cuir”), na esteira dos movimentos sociais
que trouxeram os sujeitos LGBTQIA+ para o palco das discussões políticas globais.
Para além de ser gay, lésbica ou bi, um sujeito queer é alguém sexualmente disso-
nante, que, seja por práticas eróticas não convencionais ou por identidades de gê-
nero que ameaçam o pensamento binário, incomoda os pressupostos e desenhos
2
Cf. HALBERSTRAM, Jack. A arte
da visão de mundo heteronormativa2.
queer do fracasso. Recife: CEPE,
2020; EDELMAN, Lee. No future: Nesse incômodo, a roupa exerce um papel fundamental. É possível, por exemplo,
queer theory and the death drive.
Durham, N.C.: Duke University Press, descartar a importância dos genitais no ato sexual e direcioná-lo para o uso lúdico
2004; PERRA, Hija. Interpretações de determinadas peças de roupa. É possível também embaralhar o que a hete-
imundas de como a Teoria Queer
coloniza nosso contexto sudaca,
ronormatividade considera, numa roupa usada em público, como luxo ou como
pobre de aspirações e terceiro- miséria, como masculino ou como feminino, explorando misturas, quebras e fron-
-mundista, perturbando com novas teiras impossíveis de surgir no esquema burguês da família nuclear hétero e mo-
construções de gênero aos huma-
nos encantados com a heteronor- nogâmica. Tudo isso é queer, e o queer costuma levar a roupa para patamares que
ma. Revista Periodicus, UFBA, 2014. cavam brechas nas regras da heteronormatividade. Ora, se os queers estão fazen-
Disponível em: https://portalseer.
ufba.br/index.php/revistaperiodicus/
do cinema, esse cinema não pode ser menos incômodo, menos estranho que eles
article/view/12896/9215. Acesso em próprios. É por isso que se diz que todo cinema queer já é cinema experimental
mar. 2021. e que existiria uma diferença entre um filme queer e um filme com “temática” ou
3
Cf. BEAUVEAIS, Yann. Coisas de simplesmente com personagens LGBTQIA+3. Se os queers incomodam quando se
viados! Coisas de bichas!. 2016. vestem e incomodam fazendo cinema, o que pode o figurino no cinema queer?
Disponível em: https://yannbeau-
vais.com/?p=1544. Acesso em mar.
2021; LAURETIS, Teresa De. Queer Quando enxergamos filmes experimentais através da moldura de teorias do ci-
texts, bad habits, and the issue of a nema que pressupõem a linguagem clássica como a mais “natural” do medium,
future. GLQ: a journal of lesbian and
gay studies, 17/2-3, 2011. esses filmes surgem como peças interessantes, mas bizarras, incompletas, precá-
rias. Obras que não conseguiram “chegar lá”, isto é, fazer um filme que mostre o
começo, meio e fim e uma história envolvendo conflitos psicológicos entre per-
sonagens. Aqui eu quero fazer diferente: quero usar a moldura teórica das ar-
tes visuais. A partir dessa moldura, são os filmes clássicos que são bizarramente
precários, pois, apesar do seu caráter polido e da sua sustentação financeira, eles
223
estranhamente continuam preservando uma visão estética de mundo moribunda.
Os filmes experimentais, pelo contrário, por sempre terem borrado a fronteira en-
tre cinema e artes visuais, surgem como peças que nos interessam por promover
novas experiências estéticas, outras cognições do mundo e da vida, sensações
outras. Eles usam a câmera e a tela cinematográficas para explorar procedimentos
pelos quais a pintura não acadêmica outrora se interessava, por exemplo.
Como na maioria de seus filmes, Anger utilizou sozinho sua câmera 16mm para
concretizar essa obra, sem a equipe tradicional de uma produção cinematográfica.
Scorpio rising não é nem um documentário com entrevistas e narração em off
falando sobre o surgimento e os costumes dessa subcultura. Tampouco é uma
ficção onde alguns personagens vão ilustrar o modo de vida de motociclistas. O
filme é uma montagem não narrativa com dois tipos de imagem: por um lado,
registros que o próprio Anger fez desses motociclistas e, por outro, imagens pré-
-existentes que ele retirou da cultura de massa da sua época (quadrinhos, cinema,
televisão). Dando liga às sequências dessa montagem, Anger usa hits musicais
contemporâneos seus.
Na sequência que quero focalizar aqui, onde vemos vários motociclistas se vestindo,
compondo, cada um, seu “uniforme característico”, Anger sobrepõe a música Blue
velvet, de Bobby Vinton, de 1963. Vemos, então, vários planos consecutivos ao som
dessa canção, onde homens com uma postura extremamente “macho” vestem, de
forma cuidadosa, quase como numa espécie de ritual, suas jaquetas de couro, cami-
setas, caps de couro preto com joias de prata, calças jeans, óculos escuro estilo “po-
licial”, anéis de caveira e correntes prateadas, cintos de couro preto com círculos de
prata e botas de couro preto. Por um lado, é uma sequência quase “etnográfica”, que
mostra um conjunto de costumes e gostos de determinado grupo social. Mas por
outro, a música cria uma tensão que suscita outras portas de entrada para a imagem.
224
Em seu texto mais diretamente dedicado às questões de estética visual, Gilles De-
leuze define a sensação como um ser, um bloco de forças que atinge o sistema
nervoso4. É algo de natureza diferente do discurso racional, que atinge o cérebro.
4
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon:
lógica da sensação. Rio de Janeiro: Deleuze define, na história da pintura, o regime da representação clássica como
Zahar, 2007. uma forma específica de visualidade onde o tátil está submetido ao ótico: por mais
que um pintor seja hábil em representar sombras, volumes e texturas, todas essas
aparências sensoriais estão submetidas a um esquema maior, orgânico, que é a
cena. É a organização dos corpos num espaço-palco fundo (perspectiva linear),
uma organização apta a tornar inteligível alguma emoção, evento ou história para
quem vê (privilégio do ótico sobre o tátil). A cena é orgânica porque funciona: é
um organismo. É um esquema que dá ordem ao caos do mundo.
Ora, uma das formas de fugir do orgânico, em pintura, é investir no que Deleuze
chama de “espaço manual violento”. É não uma tentativa de organizar o caos, mas
de mergulhar nele da melhor forma possível, para sentir suas energias. Aqui o tátil
predomina: é a carne e suas afecções, seus devires animais, que são trazidos à
tona. E não há mais organismo: os órgãos que antes funcionavam, isto é, exerciam
suas funções específicas e “corretas”, ganham funções novas, inauditas, estranhas,
inesperadas. O corpo, que era o personagem numa encenação, vira um corpo
sem órgãos, deslizando nos fluidos da materialidade e da carne. Nessas condições,
peças de roupa podem se transformar em novos órgãos provisórios, próteses de
um devir pós-humano. É o que ocorre, me parece, com as botas, jaquetas e jeans
dos motoqueiros de Scorpio rising.
Blue velvet reitera uma insistência tátil, referindo-se à textura prazerosa do veludo
enquanto material. Existe algo de perverso, da parte de Anger, em sobrepor a música
de Vinton à montagem, sem o conhecimento das pessoas filmadas. O efeito, junto
com a câmera aproximada, é certamente o de erotização daqueles corpos. Mas,
seriam esses corpos assim tão inocentes, inconscientes? Em que momento passa-
mos da subcultura das motos para a subcultura do sadomasoquismo gay? Os ho-
mens filmados por Anger são héteros inconscientes de estarem sendo fetichizados
por um olhar gay ou são gays que voluntariamente se vestem como personagens
“héteros violentos” apenas para satisfazer as pulsões sexuais insensatas da carne? A
câmera tátil de Anger e a beleza material que nos chega pelas imagens do seu filme
parecem mostrar que a vida da carne, a vida sólida real, é muito mais complexa, mais
bela e maravilhosa (no sentido que os surrealistas davam a esta palavra) do que as
limitações racionais e binárias que dão origem a esse tipo de pergunta.
Num filme com temática LGBT, o figurinista pode vestir os personagens gays e os
héteros, diferenciando-os. Mas em Scorpio rising – cinema queer – um olhar gay
observa corpos teoricamente héteros, que podem muito bem ser gays “se fanta-
siando” de héteros por causa da sua sexualidade sadomasoquista. A verdade é que
225
o filme de Anger dilui a binaridade dessa forma de olhar e de colocar as coisas.
Não existe a “roupa do gay” e a “roupa do hetero”, existe apenas a materialidade tátil
de certos tecidos que podem ser a porta de entrada para determinados prazeres,
independente de como a mente conceitual define e fecha identidades de gênero.
Scorpio rising mostra que motoqueiros machões vestindo seus uniformes não são
tão diferentes de drag queens fazendo uma montação. Tudo é fantasia. As regras,
do que se pode ou se deve vestir, são heteronormativas. Anger convida o especta-
dor para essa fantasia. Fantasias não podem se estruturar com regras binárias, elas
são, antes de tudo, experiências que tentam fugir dos limites da racionalização.
Na fantasia, a roupa não pode ser discreta, ilustrativa. Ela é a própria condição da
experiência fantástica, ela é o ponto de virada onde o organismo que funcionava
se transforma num corpo sem órgãos: corpo que busca novos, ainda que provi-
sórios, órgãos. Para além de Scorpio rising, outros dois curtas de Anger também
parecem explorar e desenvolver essa prerrogativa: Puce moment (1949) e Kustom
kar kommandos (1965).
O espaço manual violento, como definido por Deleuze para as artes visuais, tem
um caráter caótico, infernal, é uma sensação “catastrófica” (nas palavras do próprio
autor) de carne, de pele, de fluidos. Mas este não é o único caminho para esca-
par do espaço representativo clássico. E podemos ver uma resposta diferente na
poética desenvolvida por outro cineasta queer, dessa vez na década de 1970: o
mexicano Teo Hernandez.
Do mesmo modo que Anger, Hernandez fazia filmes sem equipes, usando apenas
uma câmera 8mm e convidando amigos para participar de suas peculiares encena-
ções. É importante salientar esse lugar “marginal” à prática cinematográfica habitual,
porque, tanto em Hernández quanto em Anger, é exatamente isso que os aproxima
mais das artes visuais que do cinema (narrativo clássico). Eles usam a imagem em
movimento de forma mais autônoma, mais livre, para investigar formas de ver e de
conhecer o mundo, um pouco como os videastas usaram o vídeo a partir da década
de 1960. A partir de seus baixos custos de produção comparado ao cinema de pe-
lícula, a videoarte explorou a imagem em movimento como material plástico e não
como meio representacional. Ora, no cinema queer de Hernandez, a roupa, mais
especificamente o tecido, desempenha um papel fundamental.
226
É que, nos filmes de Hernandez, não existe uma diferença entre nós e os objetos:
fazemos parte do mesmo continuum, temos a mesma natureza, fazemos parte de
um mesmo fluxo cósmico.
Em seu filme de 1977, Cristo, Teo Hernandez faz surgir, do seu fascínio pela mate-
rialidade dos véus e tecidos, uma sucessão de vários tableaux vivants onde corpos
de amigos seus são arranjados em poses hieráticas, como em pinturas de um
passado esquecido. Nesses planos longos, os gestos são muito lentos, como se as
figuras estivessem suspensas em conexões essenciais, que ultrapassam o funcio-
namento orgânico de dramas ou histórias (um pouco como nos filmes de Werner
Schroeter da década de 1970).
No centro desses quadros, está o corpo masculino magro do Cristo – não exata-
mente de Jesus Cristo, mas da imagem do Cristo que o Ocidente veio construin-
do ao longo de muitos séculos. Trata-se de um corpo de mártir, um corpo que,
no próprio sentir da dor e do sofrimento, transcende num estado de graça. É por
esta entrada que o olhar queer de Hernandez se apropria do mito (da imagem) de
Cristo e o reposiciona dentro de uma obra onde o Cristo é o centro de um ser de
sensação fundamentalmente homoerótica. No filme, muitos personagens tocam
o corpo de Cristo, o acariciam, o descobrem removendo véus, túnicas e sudários.
Em determinado momento, um homem beija o Cristo-mártir na boca, num gesto
de amor.
Hernandez sempre assina o figurino de seus próprios filmes. Trata-se de uma pes-
quisa muito pessoal de material que tenta, através de texturas, transparências, bri-
lhos e esquemas de cores determinados, criar um espaço sensorial “nirvânico” nas
precárias imagens em 8mm. Como que convidando o espectador a entrar numa
miragem-aparição extremamente rara, etérea e benéfica, ainda que sensual. A luz
é com frequência muito clara, e as roupas e tecidos se juntam aos objetos alegó-
ricos que constroem a direção de arte do filme: taças douradas, coroas de louro,
flores, chaves misteriosas, espelhos e janelas.
227
O fato de Hernandez investir, junto com a insistência tátil dos materiais investiga-
dos, numa composição dos corpos – os tableaux –, leva suas obras para um cami-
nho diferente do de Anger, que, em Scorpio rising, investe muito mais no caos ao
aproximar sua câmera da pele e dos materiais. Poderíamos dizer, seguindo ainda
os parâmetros plásticos de Deleuze, que as imagens de Hernandez abrem um
espaço háptico. Neste, a presença de sensação da materialidade se conecta ins-
tantaneamente à abstração essencial das formas. Ou seja, não experimentamos a
sensação como o inferno da carne, mas como a bem-aventurança do cosmos. No
espaço manual violento, há uma predominância da catástrofe. No espaço háptico,
a carne encontra seu sentido último, que não é uma narrativa cerebral, um drama
inteligível (espaço representativo clássico), mas um ser essencial. Ou seja: a carne
não volta a funcionar no organismo.
Aqui eu queria fazer um paralelo tecnológico, uma vez que um cinema como o de
Sosha só pôde ser possível graças ao acesso que a tecnologia digital garantiu a câ-
meras de vídeo na virada dos anos 2010. Exatamente como Anger, Hernandez ou
Britto, Sosha realizou cada um de seus curtas acumulando muitas funções (dire-
ção, roteiro, fotografia, arte, figurino, maquiagem) e com a autonomia e liberdade
que apenas o estar à margem dos circuitos institucionais do cinema contemporâ-
neo garante. Não quero com isso romantizar a marginalidade dessa condição, mas
apenas enxergar como o caráter experimental dos filmes de Sosha tem necessa-
riamente a ver com uma situação que permitiu que ele não seguisse o caminho
habitual que os valores institucionais do circuito cinematográfico perpetuam.
228
dização borbulhante. Se em Anger e Hernandez o cinema encontrava as artes vi-
suais e a performance, em Sosha, além disso, há diálogos férteis com o videoclipe
e com o mundo da moda (tanto as passarelas quanto os assim chamados fashion
films – curta-metragens comissionados por grifes para apresentar suas coleções
também numa narrativa de imagens em movimento e não apenas no antigo for-
6
Para análises de mais fôlego sobre
mato de editorial com fotografias)6.
o trabalho de Sosha, cf. BARBOSA,
André Antônio, LOPES, Denilson, O videoclipe e os fashion films são, no mundo contemporâneo, as principais for-
NEVES, Pedro Pinheiro e DUARTE
FILHO, Ricardo. Inúteis, frívolos e mas comerciais pelas quais a imagem em movimento se liberta do formato oito-
distantes: à procura dos dândis. Rio centista da narrativa inteligível através de cenas – formato que domina hoje tanto
de Janeiro: Mauad X, 2019; FALTAY,
Paulo. Lotta Love: Sosha e o dandis-
o cinema (“comercial” e “independente”) quanto a TV (o sucesso estrondoso que
mo diante das telas, 2016, artigo não as narrativas seriadas representam hoje é a maior prova do enraizamento deste
publicado. formato específico nas nossas formas de conhecer e apreender o mundo). Em
outras palavras, o videoclipe e os fashion films são a videoarte tornada comercial
e, sem dúvida, o preço que foi pago para isso acontecer foi a higienização dessas
imagens. Isto é: seu atrelamento à lógica da criação de celebridades e a valores
que impõem um limite ao que de fato pode ser visto, sentido e discutido nessas
imagens – embora, obviamente, seja sempre possível encontrar brechas aqui e ali.
A questão é que o cinema de Sosha redescobre a força do glamour fashion e das se-
quências videoclípticas ao justamente encená-la tendo por protagonistas, na maio-
ria das vezes, pessoas trans e queer (uma mudança que, por incrível que nos soe,
ainda caminha a passos muito lentos na indústria da moda contemporânea), e por
cenário, locais decadentes de cidades brasileiras: Recife, Rio de Janeiro e Brasília.
Nos filmes de Sosha, o figurino não é algo secundário ou ilustrativo. Ele é, pelo
contrário, a chave estética da força que esses filmes têm. Muitas vezes, temos a
sensação de que aqueles filmes foram feitos apenas para mostrar aqueles corpos
usando determinados looks, vivendo a vida com eles, andando com eles pelo
espaço público – e não que um figurino foi pensado para caracterizar um per-
sonagem para uma cena narrativa. A grande alegria dos filmes de Sosha é que,
neles, seres que são excluídos das imagens higienizadas da cultura midiática con-
temporânea estão performando o chic e o blasé – o que em fotografia de moda é
7
Cf. MARTINEAU, Paul. Icons of sty-
conhecido como “atitude”7.
le: a century of fashion photogra-
phy. Los Angeles: Getty Publication, Eis a diferença mais radical e fundamental entre essa estética e o modo como
2018.
esses mesmos seres tendem a aparecer nos longas-metragens do circuito do ci-
nema independente. Nestes, esses corpos são dados sociológicos. Há uma ansie-
dade muito grande dos roteiros narrativos significarem essas pessoas através de
coordenadas como a injustiça social, o drama político, a comoção sentimental. É o
que Deleuze chamou de miserabilismo: uma tendência da arte moderna de achar
que a crueldade dos temas é o bastante para iluminar aspectos da vida através das
sensações. Tal crueldade, porém, nunca consegue esconder totalmente seu lastro
sensacionalista, sua moralidade kitsch.
229
ma didática o que significa transicionar quando se é uma pessoa trans. Na prática
habitual do cinema, entender qualquer fenômeno significa cercá-lo de uma inte-
ligibilidade cênica ou de drama que desemboca numa lição edificante. Mas talvez
esse tipo de filme não consiga transmitir a sensação do que é, para uma pessoa
queer, a realização de se vestir para aparecer no espaço público.
Em Recife XXI (2014), a top model Brenda (interpretada por Brenda Bazante) decide
deixar seu apartamento em Londres e ir de férias ao Recife. Neste enredo de Sosha,
não apenas uma das mais importantes modelos do mundo é uma pessoa trans,
como, de maneira mais fundamental, isso não é o assunto do filme. Não temos
dramas sobre preconceito ou aceitação aqui. É a naturalidade com que Sosha
aposta nessas escolhas ousadas que permite que ele atinja o chic underground
que é a marca da sua estética.
Muito mais do que um filme narrativo, Recife XXI é uma espécie de libelo sobre a
liberdade de uma mulher trans desfilar pelas ruas degradadas do Recife com sua
bolsa Louis Vuitton. Essa liberdade é chic justamente por recusar a ingenuidade da
higienização dos fashion films e apostar na ironia, no contraditório, no deboche: os
aspectos mais feios das ruas de Recife (uma pessoa em situação de rua que dorme
na calçada, as paredes craqueladas e arruinadas dominam o visual do centro da
cidade) não são escondidos. Um motorista de ônibus solta uma piada transfóbica
para Brenda e sua amiga Tanya (Alexis Colby). Os garotos que tomam sol à beira
do Rio Capibaribe são filmados com a erotização de um vídeo pornô, mas ao mes-
mo tempo são visivelmente figurantes amigos de Sosha que estão longe da beleza
padrão dos corpos masculinos do mundo institucional da moda.
A excitação das trilhas sonoras sempre marcantes dos curtas de Sosha se mistu-
ram com o humor ácido e, não obstante, com o prazer que é usar looks para ser
quem você quer ser no mundo. Ser chic, aliás, é uma espécie de savoir-vivre com
dignidade, não importa quais obstáculos o mundo social imponha ao fluxo calmo
da élégance.
8
FOUCAULT, Michel. A pintura foto-
Em um ensaio de 19758, Michel Foucault faz uma conexão entre dois momentos
gênica. In: Estética: literatura e pin- distantes. O primeiro é a época pós-invento da fotografia, em meados do século
tura, música e cinema (Ditos e Escri- XIX. Época de montagens, colagens e brincadeiras com a imagem. Pintava-se a
tos Vol. III). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009, pp. 346-355. mão, com cores, a imagem em preto e branco. Compunham-se ambiciosos ta-
bleaux a partir de uma infinidade de fotografias recortadas. Fantasiavam-se corpos
pelo puro prazer de ficcionalizar registros: pela brincadeira. Foucault diagnostica
que essa “anarquia das imagens” se eclipsa na primeira metade do século XX. O dis-
curso modernista da pureza dos medium, cada um com sua função, sua estética,
sua especificidade (que chega ao ápice no pensamento de Clement Greenberg)
tolhe a despretensão lúdica e estabelece regras muito restritas, graves, sérias, do
que pode e do que não pode cada forma de arte. Porém, a partir da pop art na
década de 1960 e da irreverência híbrida de várias práticas estéticas correlatas,
Foucault prevê um retorno daquela anarquia plástica, onde a inconsequência lúdi-
9
Em outro lugar, tentei enxergar
essa sensibilidade ou atitude estéti- ca andava de mãos dadas com o encantamento e a descoberta de novas formas
ca através do termo “frivolidade”. Cf. de ver o mundo.
BARBOSA, André Antônio. Constela-
ções da frivolidade no cinema brasi-
leiro contemporâneo. Tese (Douto- Ao meu ver, é imprescindível, no momento em que mais pessoas do que nunca
rado em Comunicação e Cultura), têm acesso a câmeras digitais, seus filtros, seus efeitos frívolos e suas possibilidades
Programa de Pós-graduação em
Comunicação e Cultura, Universida- de intervenção, montagem e pós-produção de imagem, que tentemos manter
de Federal do Rio de Janeiro, 2017. esse espírito de anarquia em nosso horizonte9.
230
Pedir que os filmes de Sosha sejam “mais” do que são – mais narrativos do que
aquela simples apresentação de roupas em paisagens urbanas – é revelar uma
limitação fundamental de quem está pedindo. É a limitação de achar que as ima-
gens em movimento precisam de uma ancoragem estrutural narrativa, cerebral,
racional, sociológica.
É como se a roupa para o cinema queer fosse responsável não pela definição
que advém da caracterização, mas pela transformação que vem da alquimia. Pe-
las sensações alquímicas das roupas – e acredito que muitas pessoas queer vão
entender o que eu estou falando – conseguimos nos libertar dos conceitos dis-
cursivos limitantes e vemos o que estava o tempo todo embaixo do nosso nariz:
o encantamento e a magia de estar vivo.
231
Este livro foi composto em fonte
Museo no corpo de texto
e Baro nos títulos, em 2021.
Com a experiência de participar de forma ativa como figurinista no cinema
pernambucano, Ana Cecília Drumond assumiu o desafio de pensar o audiovisual pela
perspectiva do figurino. Nas páginas deste livro, você encontra depoimentos de dez
figurinistas, responsáveis por alguns dos principais filmes produzidos em Pernambuco.
São relatos sobre seus processos criativos, métodos de trabalho, soluções encontradas
em meio às dificuldades para se adequar aos limites de tempo e orçamento, bem como
reflexões sobre seus trabalhos em prol da narrativa e da importância dos trajes de
cena na construção de um cinema mais representativo. A edição ainda traz análises de
pesquisadores da área sobre o figurino na produção local.
Foto Isabela Cunha