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Recife, 2021

@roupa_decinema

@2021 Ana Cecília Drumond


Organização
Ana Cecília Drumond
Orientação
André Antônio Barbosa
Entrevistas
Ana Cecília Drumond e Julio Cavani
Transcrição
Jean Santos e Sarah Coutinho
Projeto Gráfico e Diagramação
Silvia Guimarães
Revisão
Thiago Corrêa Ramos

Este livro segue o novo Acordo


Ortográfico da Língua Portuguesa

Ana Cecília Drumond Vacatussa

Catalogação na fonte: Renata Santana CRB 15/689 - PB

R861 Roupa de cinema: o design de figurino no audiovisual pernambucano

Roupa de cinema: o design de figurino no audiovisual pernambucano


[recurso eletrônico] / Ana Cecília Drumond (org.). – Recife: Vacatussa, 2021.

Dados eletrônicos (1 arquivo : 74,9 MB)

Autores: Beto Normal; Rita Azevedo; Andrea Monteiro... [et al].

Livro eletrônico.
Modo de acesso: World Wide Web: www.vacatussa.com.br
ISBN e-book: 978-65-992370-5-8


1. Cinema - História. 2. Figurino. 3. Audiovisual - Pernambuco. I. Título.

CDD 792.026 (918.134)


CDU 791.43
Para Odila Drumond, naturalmente.
(in memoriam)
Agradecimentos

Ao figurino, formado não só por figurinistas, mas preenchido por assis-


tentes, produtoras, camareiras, costureiras, modelistas e motoristas que
embarcam nessa viagem, entre tecidos, máquinas de costura, linhas e
agulhas, criando roupas que sacodem nossa imaginação e ajudam a
esquecer o cotidiano monótono.

Às colegas e os colegas de profissão, Andrea Monteiro, Babi Jácome,


Beto Normal, Chris Garrido, Joana Gatis, Libra, Maria Esther de Albu-
querque, Paulo Ricardo, Rita Azevedo e Sosha por compartilharem suas
vivências de cinema. Esta contribuição não tem preço e, se não fossem
seus relatos, este livro não seria possível.

A Julio Cavani, grande amigo e parceiro desde o início nesta aventu-


ra, a André Antônio, pela orientação, trocas e escuta sempre atenta, a
Silvia Guimarães, por trazer tanta beleza ao livro, a Iomana Rocha, pelo
entusiasmo afetuoso, a Álamo Bandeira, colega querido de trabalho, e
Thiago Corrêa Ramos, por todos os ensinamentos do mundo editorial.

Às fotógrafas, fotógrafos e produtoras audiovisuais que tiveram suas


imagens publicadas neste livro.

Incluo nesta lista a rede de apoio que facilitou a realização deste traba-
lho: Camila Valença, Camilo Cavalcante, Fabiana Pirro, Gabriela Alcân-
tara, Henrique Arruda, Isabela Cunha, Jean Santos, João Júnior, Mariana
Jacob, Martin Palacios, Monique Oliveira, Neco Tabosa, Ofir Figueiredo,
Rayssa Costa, Ricardo Leão e Tiago Melo.

À Lei Aldir Blanc, LAB PE, pelo patrocínio.


APRESENTAÇÃO 8

Histórias costuradas 11

DEPOIMENTOS 13

Beto Normal 14
Rita Azevedo 35
Andrea Monteiro 57
Libra 79
Paulo Ricardo 92
Sosha 108
Maria Esther de Albuquerque 130
Joana Gatis 145
Babi Jácome 161
Chris Garrido 179

ARTIGOS 199

Dinâmicas e sensibilidades 200


do figurino no cinema pernambucano

Breve guia de figurino: 208


conceitos, cotidiano
e ferramentas da profissão

A roupa alquímica: 222


o que pode o figurino
no cinema queer?
Este livro é resultado da minha inquietação, também abraçada por várias mãos e
cabeças. A principal motivação para elaborar o projeto Roupa de cinema: o design
de figurino no audiovisual pernambucano e inscrevê-lo no Edital de Formação e
Pesquisa, da Lei Aldir Blanc, veio de um desejo e necessidade pessoais. Como figu-
rinista atuante na cena audiovisual pernambucana desde 2007, sempre senti falta
de ver o figurino cinematográfico em um lugar de pensamento e reflexão, tendo
pouco ou quase nenhum espaço nos debates de cinema da cidade. Contrarian-
do, inclusive, a crescente produção local de longa-metragem e curta-metragem,
categorias compostas majoritariamente por obras ficcionais, narrativas estas que
demandam profissionais do vestuário.

Pesquisar sobre o figurino no cinema pernambucano é uma tarefa bem árdua.


Não existem documentos que registrem a história do figurino feita no estado. O
vácuo teórico acerca do assunto nos joga em um campo desconhecido, pois não
temos análises de fôlego que partam da perspectiva do figurino.

Esta publicação apresenta como ocorre a atuação destes profissionais e oferece


um olhar sobre as contribuições deles na realização audiovisual pernambucana.
Através deste trabalho, pretende-se estimular reflexões sobre o cinema a partir da
ótica do figurino e proporcionar maior visibilidade aos profissionais que estão na
linha de frente do ofício, colaborando para a formação crítica e cultural do público-
-leitor como uma possível fonte de informação e pesquisa para futuros figurinistas
e interessados no assunto.

O livro apresenta duas abordagens. A primeira parte é a história viva: dez colegas
de profissão foram entrevistados, por videoconferências ao longo de fevereiro de
2021, revelando suas formações, experiências, processos de criação, inspirações
e realizações no campo do figurino. As conversas foram editadas em forma de
depoimento e o material iconográfico que as acompanha foi produzido durante
o processo de criação e execução dos filmes analisados. As entrevistas foram re-
alizadas por mim, em parceria com o jornalista Julio Cavani, contribuição funda-
mental para composição dos textos. Sua experiência possibilitou a construção de
relatos objetivos, mas preservando a essência dos depoimentos e a singularidade
de cada participante.

Busquei fazer uma curadoria contemporânea e plural. O recorte se inclinou em


convidar, sobretudo, figurinistas atuantes no cinema pernambucano, do que esco-
lhas exclusivamente de peso histórico ou figurinistas de filmes de grande repercus-
são. A escolha foi dolorosa porque, como qualquer seleção, nomes ficam de fora.
Minha vivência como uma trabalhadora de cinema balizou minhas decisões. A
ótica acadêmica ou de pesquisadora não caracteriza ainda minha trajetória profis-

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sional, sou uma profissional do mercado. Optei então por incluir profissionais com
trajetória sólida e longeva, que me despertam interesse artístico e que iniciaram
esta estrada há pouco tempo. Os dez nomes que compõem este panorama não
esgotam a cena pernambucana de design de figurino em cinema.

A segunda parte reúne artigos acadêmicos voltados para o modus operandi do


figurino feito em Pernambuco e toda sua complexidade. O primeiro texto, Dinâmi-
cas e sensibilidades do figurino no cinema pernambucano, da professora univer-
sitária e diretora de arte Iomana Rocha, traz uma análise panorâmica de como se
deu a evolução do departamento de figurino a partir da retomada do novo cinema
pernambucano. Na sequência, Breve guia de figurino: conceitos, cotidiano e fer-
ramentas da profissão, do pesquisador e figurinista Álamo Bandeira, apresenta o
cotidiano da equipe responsável pelo costume design e as etapas de execução ne-
cessárias, concebidas através de um processo projetual, com o objetivo de alcan-
çar o resultado final desejado. Por último, A roupa alquímica: o que pode o figurino
no cinema queer?, do pesquisador e realizador André Antônio Barbosa, faz uma
reflexão/comparação do uso do figurino nos filmes clássicos, que adotam uma
linguagem/caracterização padrão, opondo-se à prática nos filmes experimentais
queers, que fogem das narrativas convencionais.

Acredito que juntar numa mesma publicação a teoria acadêmica e os fazedores


de figurino cria um novo caminho de compreensão desta profissão.

Ainda que a educação, cultura e arte do país estejam sob crescente perseguição,
realizar este trabalho, que tem como objetivo central compartilhar conhecimento,
no meio de cenário tão adverso, é revigorante e me lança num movimento contí-
nuo de resistência. Espero que esta iniciativa gere um efeito multiplicador, que seja
a primeira de muitas.

Ana Cecília Drumond participou diretamente da construção visual do frutífero mo-


mento atual do cinema pernambucano como figurinista de filmes de importantes cine-
astas da nova geração. Assinou o figurino dos longas-metragens Amores de chumbo
(2017) de Tuca Siqueira e Passou (2020) de Felipe André Silva, e de premiados curtas
como Décimo segundo (2007) de Leonardo Lacca, Nº 27 (2008) de Marcelo Lordello,
Mens sana in corpore sano (2011) de Juliano Dornelles, Sob a pele (2013) de Daniel
Bandeira e Pedro Sotero e História natural (2014) de Julio Cavani, além de Muro (2008)
de Tião, vencedor do prêmio Regard Neuf da Quinzena dos Realizadores do Festival de
Cannes. Trabalhou também como assistente em longas como O som ao redor (2012)
de Kleber Mendonça Filho e Boi neon (2015) de Gabriel Mascaro. No mercado audio-
visual, atuou ainda em campanhas publicitárias e foi figurinista do episódio-piloto de
Delegado (2018), série de TV da Trincheira Filmes. Em 2017, fez curso de figurino na
Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. Em oficinas,
foi aluna de profissionais de referência,como Luciana Buarque, Jum Nakao, Beto Nor-
mal e Hubert Arvet-Thouvet. Nasceu no Recife e é neta de costureira.

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Histórias costuradas
Os capítulos da primeira parte deste livro são depoimentos. São conversas que
foram gravadas, transcritas e editadas, uma combinação entre linguagem oral e
escrita. Os textos foram redigidos a partir de memórias e fluxos de pensamento
espontâneos de figurinistas que atuam no cinema produzido em Pernambuco.
Eu e Ana Cecília Drumond elaboramos as perguntas que serviram de roteiro para
o resgate de elementos técnicos, estéticos e pessoais dos processos de criação e
construção dos figurinos dos filmes abordados.

Desde o lançamento de Baile perfumado, que vi aos 16 anos de idade, tenho


acompanhado com extrema atenção os curtas e longas-metragens do Recife, ci-
dade onde sempre vivi e trabalhei. Como jornalista, escrevi críticas sobre filmes
pernambucanos, fiz reportagens sobre os bastidores das filmagens de alguns de-
les, desenvolvi artigos com problematizações sobre a cena local e realizei cober-
turas de grandes festivais onde eles foram premiados no Brasil e no exterior. Sou
também amigo pessoal de diretores e diretoras que sempre me convidaram infor-
malmente para participar, direta ou indiretamente, de várias etapas das produções,
seja em visitas aos sets, na leitura de roteiros ou nas ilhas de edição.

Ana Cecília é a figurinista do curta-metragem História natural, que dirigi, produzi e


roteirizei. A roupa que ela desenhou e confeccionou para o personagem principal,
interpretado por Norberto de Souza, é essencial para a construção da atmosfera
fantástica do filme como um todo. O campo do figurino não é minha especia-
lidade, mas sempre estive tão atento a este aspecto artístico quanto a todos os
demais. Lamento que existam poucas premiações para esta categoria tão impor-
tante. Este livro ajuda a entender como figurinistas são essenciais para que uma
obra cinematográfica funcione em sua plenitude. É um estímulo para aguçar a
curiosidade sobre o que vestem os personagens. É como Dona Tânia diz para
Lunga no filme Bacurau:

“Que roupa é essa, menino!?”

Julio Cavani é jornalista e acompanhou o desenvolvimento do cinema de Pernam-


buco como crítico e como repórter na cobertura de grandes festivais e de filmagens
realizadas no estado nos últimos 20 anos. É também curador do festival Animage e
dirigiu os curtas-metragens Deixem Diana em paz e História natural. Editou o livro
Janete Costa: arquitetura, design e arte popular, é autor da história em quadrinhos
Polinização, da biografia José Cláudio: aventuras à mão livre (ambos pela Cepe) e do
infantil O coelho e o leão, publicado pela Vacatussa.

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Foto Acervo Beto Normal

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“O figurinista precisa ler muito bem
o roteiro e entender que filme é aquele.
É de uma responsabilidade abissal
enquanto proposta estética, como obra”

Beto Normal faz parte da geração da retomada do novo cinema per-


nambucano. Sua primeira experiência como figurinista foi no curta-
-metragem Cachaça (1995), de Adelina Pontual. Em 1998, além de as-
sinar o figurino do curta Clandestina felicidade (1998), dirigiu o filme
ao lado de Marcelo Gomes, diretor com quem Beto voltou a trabalhar
em dois dos seus trabalhos mais relevantes. Em seu primeiro longa-
-metragem, Cinema, aspirinas e urubus (2005), dirigido por Gomes,
vencedor do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e premiado na mos-
tra Un Certain Regard do Festival de Cannes, o figurinista encontrou
alguns desafios, para além dos aspectos conceituais. Em momento
algum o apuro técnico, que possui um colorido tão rígido, diminuiu
a carga estética e o significado poético na construção dos trajes de
época baseados em fontes de pesquisa precisas do árido Sertão do
Nordeste. Criou também os vestuários do longa Era uma vez eu, Ve-
rônica (2012), de Marcelo Gomes, vencedor do Troféu Candango de
melhor filme no Festival de Brasília. Além disso, trabalhou nos curtas
O pedido (1999) de Adelina Pontual, Tempo de ira (2003) de Gisella de
Mello e Marcélia Cartaxo, Retrato (2012) de Adelina Pontual, Olhos de
botão (2015) de Marlom Meirelles e Cheiro de melancia (2016) de Ma-
ria Cardozo, além do longa Beiço de estrada (2018), de Eliézer Rolim.

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Fred Jordão/Parabólica Brasil
Beto Normal, Luisa Phebo
e Marcelo Gomes Tenho várias influências. Primeiro dentro da minha própria casa. Sou do
no set de distrito de Pão de Açúcar, vizinho de Santa Cruz do Capibaribe. Quando
Clandestina felicidade
eu era pequeno, já existia a cultura da sulanca. As mulheres compravam
por quilo os retalhos nas lojas em Santa Cruz, traziam para casa e faziam
as peças que chamavam de “sulanca”.

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Minha mãe comprava as tiras de retalhos e fazia o que chamava de co-
leção. Não era aquela ideia que temos de coleção, de moda. Era juntar
os pedaços de tecido mais parecidos e costurar. Ela costurava saias que
chamava de anágua, feitas de algodão. Meu pai, que era mascate, levava
para vender na Bahia.

Dentro de casa, eu ajudava minha mãe a juntar esses pedaços de tecido


mais parecidos. Também combinava cores, texturas e estampas. Então,
desde pequeno, já tinha esse contato com tecido, máquina de costura e
escolha dos retalhos. Isso sempre esteve presente na minha vida.

Sou jornalista de formação e só trabalhei na área durante 3 anos. Em


1992 pedi demissão do Diario de Pernambuco. Minha irmã tinha uma
confecção em Olinda e comecei a fazer umas camisetas aproveitando
as máquinas e a costureira dela. Desenhava como queria, do meu jeito,
com minha modelagem, meu design. Em 1992, começa o meu ingresso
como estilista.

Nessa época, eu tinha amigos que faziam cinema, como Marcelo Go-
mes, Adelina Pontual e Cláudio Assis. Quando surge a produtora Parabó-
lica Brasil, Marcelo faz Maracatu, maracatus, Adelina faz o curta Cachaça
e me chama para fazer o figurino. Eu não sabia o que era um set, nem
o ritmo de filmagens de cinema, mas gostei muito. Foi quando aprendi
a ler a ordem do dia, o plano de filmagem e fazer decupagem. Aprendi,
também, a ler um roteiro e entender o figurino como dramaturgia. Não
é um trabalho passivo. Você tem que ler o mesmo filme que o roteirista
escreveu e ver o mesmo filme que o diretor visualizou. Você tem que
chegar em um acordo. Ou seja, todos têm que estar no mesmo filme.

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Fred Jordão/Parabólica Brasil
As irmãs Tânia
(Izabel Brito), CLANDESTINA FELICIDADE
Clarice (Luisa Phebo)
e Elisa (Sarah Hazin) Ninguém tinha contado a história da infância de Clarice Lispector no
Recife e era uma coisa que eu achava que precisava ser feita. Dirigi Clan-
destina felicidade junto com Marcelo Gomes porque escrevemos o ro-
teiro juntos, mas foquei muito no figurino e na direção de arte. Eu ficava
mais no video assist para observar a atuação dos atores e a questão do
enquadramento, enquanto ele dirigia a mise-en-scène e dava a “ação”.
Também acompanhei a edição de som e a mixagem em São Paulo.

O diálogo da direção com o departamento de arte e fotografia foi bas-


tante intenso porque era um filme em preto e branco. A fotógrafa Jane
Malaquias foi muito receptiva com as nossas perguntas, incertezas e
preocupações. Ela nos disse, por exemplo, para não usar branco em ne-
nhum momento no figurino porque ia estourar muito. Filmamos todas
as cenas com essa forte luz natural do Recife, do Nordeste. Não é um
filme sem cor. A escala de cinza é a base da paleta de cores, com várias
possibilidades de variações de tonalidades. A questão é criar texturas,
formas, tons e noções de profundidade. Há uma preocupação de saber
o resultado que o filme de película vai ter quando sair da lata e passar
por lavagens e outros processos químicos de laboratório.

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O filme se passa em 1929, então a pesquisa foi bem extensa. Pesquisei
em fotografias, vi muita coisa da Fundação Joaquim Nabuco. Para pegar
um pouco da atmosfera do Recife da época, me baseei muito na bio-
Germano Haiut como grafia de Clarice escrita por Nádia Battella Gotlib, que tem muitas fotos
o pai e as filhas Tânia, da família e da infância dela.
Elisa e Clarice

Fred Jordão/Parabólica Brasil

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O conceito do figurino parte da ideia de que era uma família judia.
Não eram brasileiros natos, tinham uma especificidade. Entendemos
que eles eram mais sóbrios. Não eram ricos. O pai de Clarice era
mascate, não era um pobre esfarrapado. Até a década de 1950, os
homens usavam ternos e chapéus como parte da elegância daquela
veste. Foi um acessório que adotamos, também nas mulheres, para
demarcar a época.

Rica era a família da amiga Reveca, como dá pra perceber no figurino


da mãe dela, que consegui em um brechó. Era a menina que toca vio-
lino e mora em um grande casarão. O figurino de Clarice era menos
rebuscado. A gente pontuou essa diferença de classe entre as duas per-
sonagens, com roupas que foram confeccionadas por nós. Além de ir
a brechós, alugamos paletós e também pegamos peças de acervos de
Luci Alcântara, sentada, algumas pessoas.
como Macabéa

Fred Jordão/Parabólica Brasil

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Fred Jordão/Parabólica Brasil

Samuel Vieira
como Leopoldo, A Macabéa de Clandestina felicidade é meio caricata. Ela não é uma
ao lado de Clarice velha, mas a vestimos como uma velha. É uma serviçal daquela épo-
ca, uma moça que veio do interior, não casou e ficou no caritó, como
uma solteirona.

Filmamos a cena do Carnaval na Rua Henrique Dias, em Olinda, com


mais de 100 figurantes. Tinha orquestra para vestir e muitos persona-
gens diversos. Foi um garimpo de fantasias de vários lugares, de bre-
chós, de bazares, de agremiações como o Bloco da Saudade e de peças
do acervo do Teatro Valdemar de Oliveira.

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CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS
Cinema, aspirinas e urubus foi bem complexo, por ser um filme de
baixíssimo orçamento que reconstitui um tempo passado, mesmo
que não se passasse em palácios e não precise de um figurino muito
glamouroso. Era um filme de personagens simples, mas eram muitos.
Além dos protagonistas, interpretados por Peter Ketnath e João Mi-
guel, tinha muitos figurantes e personagens que contracenam com
eles no percurso do filme.

Fotos Gil Vicente/Carnaval Filmes

Peter Ketnath
como Johann

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Era uma questão de ser muito econômico nas escolhas. Não tinha
tanta opção de errar. Tudo era muito bem calculado e pensado. A
pesquisa foi enorme. Uma das coisas que facilitou foi compreender
que a gente não ia fazer um filme de época. A gente ia fazer um filme
sobre uma época. Não era essa coisa clássica dos filmes americanos.
Era um filme que se passava no Sertão do Nordeste, em 1942.

Fiz muita pesquisa com álbuns antigos de famílias do interior da Paraíba.


Vi muitas fotos de Pierre Verger que mostravam o Sertão e um livro do
Marcel Gautherot com imagens do Sertão do Rio São Francisco. Tinha
muita foto em preto e branco, bastante informação.

A burguesia daquele período não poderia ser um núcleo falso. Ti-


nha que usar muito linho e tecidos naturais. Procuramos não usar
nenhum material sintético. Havia uma preocupação grande sobre
como as cores entrariam na fotografia, já que o filme teria um traba-
lho de pós-produção com uma lavagem radical, para parecer com
neve. Não sabíamos o que ia acontecer com as tonalidades fortes.
Evitamos usar vermelho, rosa e cores vibrantes porque não sabíamos
como ficariam depois. É tudo colorido, mas usamos uma cartela bem
esmaecida. Foi o filme em que mais fiquei integrado com a equipe de
João Miguel fotografia e direção de arte.
como Ranulpho

Gil Vicente/Carnaval Filmes

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Fotos Gil Vicente/Carnaval Filmes

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Em uma locação como uma cidade com apenas duas ruas, era sem-
pre importante ter uma visão completa do que seria filmado, das
cores desse lugar, para dar uma diversidade com várias gamas dos
cinzas, dos marrons e de toda a cartela de cores. A gente tinha que
criar um universo para que, quem olhasse, entendesse que aquelas
pessoas não estavam fardadas. Tínhamos que ter essa noção para
não ficar tudo chapado.

Tivemos que esmaecer, com tingimento de chá, os paletós de linho


brancos para não ficarem brancos demais porque poderiam estourar no
meio daquela luz. Usei também sarja, popeline, gabardine e toda a linha
de tecidos e texturas que o algodão é capaz de produzir.

Um alfaiate costurou os paletós. Fizemos uns dez ternos de linho para a


classe dominante presente nas exibições dos filmes que o Johann, inter-
pretado por Peter Ketnath, realizava para vender aspirinas. Eram eventos
sociais com a presença do coronel do lugar. Essa classe dominante fica-
va toda de linho e gabardine, que era como se vestiam naquela época.

Gil Vicente/Carnaval Filmes

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Gil Vicente/Carnaval Filmes
Todas as roupas dos personagens principais foram confeccionadas, até
as cuecas e sapatos. Também confeccionamos as roupas de Fabiana
Pirro, que faz Adelina, e de Hermila Guedes, que faz Jovelina. Para os
personagens secundários, consegui em brechó algumas peças como
camisas e calças de linho.

Acho que 95% do figurino foi confeccionado, desenhado e costurado. O


restante foi garimpado em brechós e bazares, coisas mais clássicas, sem
uma época muito delimitada. O filme não tinha dinheiro para alugar ou
comprar roupas do Rio de Janeiro ou São Paulo, por exemplo, onde há
acervos mais especializados. A solução foi construir tudo e conseguir
algumas peças atemporais.

Na pesquisa para as roupas dos funcionários da estação de trem, en-


contrei, em um bazar do Recife, botões originais da empresa Great Wes-
tern, a companhia responsável pelos trens que chegavam ao Sertão na
época. Esses personagens aparecem na cena da estação ferroviária, que
reuniu uma multidão com cerca de 200 figurantes vestidos por nós.
Muitos calçavam sandálias de couro que confeccionamos em parceria
com a Arteza Cooperativa, que funciona na Ribeira, distrito de Cabacei-
ras, onde filmamos. Foi uma colaboração luxuosa dos artesãos, que pro-
duziram também cintos, chapéus e bolsas que desenhamos baseados
em fotografias de pesquisa.

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Johann, por ser alemão, é um detalhe importantíssimo para o figurino. Ele
era mais formal e também tinha que estar elegante pois representava a
Bayer e sua famosa aspirina. Precisava estar alinhado para vender os pro-
dutos. Apenas em alguns momentos, por causa do calor, ele relaxava um
pouco e abria a camisa enquanto dirigia o caminhão. Pesquisei roupas de
alemães daquele período. Peter Ketnath trouxe da Alemanha o suspen-
sório e o relógio que ele usa, comprados em brechós. O cinto também
precisava ter detalhes, como o mecanismo de fechamento com argolas.
Uma das camisas tem uma faixa com uma prega nas costas. Em cinema,
os detalhes são ampliados milhões de vezes, então os defeitos são ampli-
ficados. É importante ter cuidado com todas as camadas.

Acervo Beto Normal

Carta de Peter Ketnath


para Beto Normal sobre
o figurino de Johann

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Fotos Gil Vicente/Carnaval Filmes

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Acervo Beto Normal
Os homens da época usavam principalmente camisas de manga com-
prida. Havia uma certa formalidade. Não sei se era por uma questão de
elegância formal ou se era para proteger do sol. Vimos também muitos
chapéus nas imagens de arquivo.

Entre os personagens, há crianças muito pobres, carentes. Em algumas,


colocamos roupas de adultos, como se elas herdassem o que já foi dos
pais e parentes. Esses tamanhos maiores davam uma estranheza, uma
deselegância que reforçava a condição social. Na cena do posto de ga-
solina, um dos meninos veste um short frouxo, sem elástico, que ele
segura para não cair.

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Gil Vicente/Carnaval Filmes

Acervo Beto Normal


Fabiana Pirro
como Adelina A personagem interpretada por Fabiana Pirro é a única que trazia novi-
dades no vestir. É alguém que teve a experiência de morar em Paris. É a
única, por exemplo, que veste roupas sem mangas e nunca usa vestido.
Está sempre com blusa e saia, sem o pudor das mulheres da época, que
sempre cobriam os braços, sem decotes. Originalmente, ela teria quatro
figurinos diferentes, mas algumas cenas do roteiro foram cortadas. Ade-
lina era uma mulher com influência europeia, com roupas estampadas
que as mulheres da comunidade em torno dela não usavam. Ela tinha
que se distinguir das outras, tanto pela posição social do seu marido,
quanto para marcar território. Ela tinha esse diferencial.

Eu também pude usar mais cores na cena do bordel, mas tinha que ser
cuidadoso. Não aparece muito no filme. Tinha mais decotes.

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Gil Vicente/Carnaval Filmes

Acervo Beto Normal


Zezita Matos como
Mulher da Galinha Também gosto muito e vejo beleza na composição de figurino da mu-
lher que carrega uma galinha, vivida pela atriz Zezita Matos, que está em
um restaurante de beira de estrada e pega carona no caminhão. É como
uma viúva, mas que não está toda de preto, como se o marido tivesse
morrido há algum tempo e ela já começou a abrir o luto. Foi maravi-
lhoso ter achado aquele tecido, que parece um patchwork, com uma
estampa que lembra retalhos emendados. Mandei fazer aquele vestido
e o guardo até hoje no meu acervo. As meias dela são estranhíssimas.
Muitas mulheres usavam aquele lenço na cabeça para proteger do sol
e dar um jeito para não ter que pentear ou cortar o cabelo, que fica
escondido. Quando eu era pequeno, nos anos 1960, muitas mulheres
usavam lenço na cabeça e isso já vinha de 1930 e 1940. É um acessório
ótimo para personagens, que marca bem.

Jovelina, interpretada por Hermila, é uma mulher simples, que não é


exuberante, mas usa um trancelim dourado que dá uma realçada no
colo do pescoço, com uma clavícula bem saliente e magra. Por causa
dos sapatos apertados, ela anda como se estivesse destroçada da noite
anterior. Figurino é dramaturgia.

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Hermila Guedes

Croqui Acervo Beto Normal | Foto Gil Vicente/Carnaval Filmes


como Jovelina

As roupas precisavam ter uma memória de corpo. Não podiam ficar ar-
madas, como se fossem novas. Usamos uma técnica chamada “banho
de chá” para parecer que as peças eram usadas. Tingimos muito, lava-
mos, tiramos a goma e lixamos para ter outra textura. Passamos muita
lixa em calças e camisas para sugerir desgaste pelo uso. Nas roupas
de alguns figurantes das plateias das projeções de cinema, simulamos
remendos caseiros. Quando tinha cor demais, deixávamos mais esma-
ecidas. Nem mesmo as roupas da burguesia poderiam parecer muito
novas. Existem outros processos, mas, quando filmamos, fazíamos um
envelhecimento mais tradicional, sem tecnologias sofisticadas.

Se você erra o figurino ou faz uma escolha equivocada, o filme fica sem
credibilidade. Não fica crível. Há suspensão de realidade. O filme tem
que convencer do início ao fim, tem que iludir, ser sutil. Precisa ter muito
cuidado. O figurinista deve ler muito bem o roteiro e entender que filme
é aquele. É de uma responsabilidade abissal enquanto proposta estéti-
ca, como obra. Todo filme tem que contar histórias com compromisso,
respeito e dedicação artística.

Cinema, aspirinas e urubus foi filmado em 2003, em película. Foram


quase três meses de pré-produção porque precisava, pois era o primeiro
longa-metragem de quase todo mundo da equipe. Praticamente todo o
figurino foi pronto para a Paraíba. Foi uma loucura, um trabalho incrível
e intenso que envolveu muita gente.

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Hermila Guedes
como Verônica ERA UMA VEZ EU, VERÔNICA
e W. J. Solha como Zé
Era uma vez eu, Verônica foi uma experiência incrível, um filme que se
passa no Recife contemporâneo, todo gravado na cidade. Cerca de 99%
do figurino foi adquirido, comprado. Foram muitas idas aos shoppings e
bazares. Fiz um garimpo para criar os personagens e figurantes, como
os pacientes do Hospital das Clínicas, onde filmamos em um andar de-
sativado. As únicas coisas que costuramos foram os jalecos dos médi-
cos. A logística de filmar na cidade é uma loucura por causa do tempo
e dos deslocamentos.

Fotos Gil Vicente/Carnaval Filmes

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Gil Vicente/Carnaval Filmes

Foi muito legal construir aquela personagem, uma menina de classe mé-
dia, filha de um pai comunista. Verônica não era consumista, tinha umas
roupas atemporais, low profile. O universo dela era meio como aquela at-
mosfera da Richards, uma coisa mais limpa, que não é muito modinha ou
tendência. A única cena com mais vaidade é a festa com show de Karina
Buhr, quando ela usa um vestido da Refazenda, de malha com estampa
tie-dye, meio hippie contemporânea.

ALTER EGO
Atualmente, estou com uma marca chamada Rosa Curinga. É meu alter
ego. É muito chato ser Beto Normal o tempo todo. É maravilhoso ser
Rosa Curinga também.

34
Foto Acervo Rita Azevedo

35
“Meu lado estilista
e meu lado urbanista
me transformaram
em uma figurinista de cinema”

Rita Azevedo mostrou um Sertão colorido e cheio de identidade no


longa-metragem Bacurau (2019), codirigido por Kleber Mendonça
Filho e Juliano Dornelles, filme vencedor do Prêmio do Júri no Fes-
tival de Cannes. Com bastante ousadia estética, o desenho de figu-
rino ultrapassou a função visual e alinhavou o significado social e
político do vestuário. Por esta obra, Rita foi indicada ao Grande Prê-
mio do Cinema Brasileiro (2020) na categoria de melhor figurino. Em
sua trajetória, participou de filmes como Aquarius (2016) de Kleber
Mendonça Filho, lançado no Festival de Cannes, Divino amor (2019)
de Gabriel Mascaro, selecionado para o Festival de Sundance, Cur-
ral (2020) de Marcelo Brennand e do curta-metragem Swinguerra
(2019), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, exibido na Bienal de
Veneza, dentre outros.

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Aos 13 anos de idade, ia para a casa da minha avó todas as quintas-feiras,
quando ela recebia a visita de Nininha, uma costureira. Comprava meus
tecidos nas Casas José Araújo e levava para Nininha costurar as roupas
que eu mesma desenhava. Sempre desenhei e mantive esse hábito de
fazer minhas roupas ou mandar fazer, apesar de ser péssima na máqui-
na de costura. Quando entrei na faculdade de Arquitetura, as pessoas
Rita Azevedo
me perguntavam onde poderiam comprar as peças que vestia. Quando
no camarim respondia que tinha feito, todas diziam que deveria começar a vender.
de Bacurau
Acervo Rita Azevedo

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O próprio conteúdo do curso de Arquitetura, que concluí em 2004, tam-
bém me levou para o mundo da moda e da criação, pois estudávamos
história da arte, estética comportamental, conforto ambiental e também
muito cálculo, lógica e matemática. Percebo que tudo isso é importante
para meu trabalho de figurinista até hoje. Na faculdade, escolhi o cami-
nho do urbanismo, uma área que envolve um diálogo muito intenso
com a população e desperta o interesse de observar o outro.

Minha amiga Germana Valadares sugeriu que criássemos uma coleção


pocket. Fizemos 50 peças e vendemos todas em menos de uma hora no
dia do lançamento. Percebemos aí que deveríamos investir nisso e cria-
mos a marca Maria da Silva. Nosso primeiro desfile já aconteceu no Oi
Fashion Tour Recife e participamos de eventos do calendário de moda
durante cinco anos. Foi aí que o processo criativo realmente se pro-
fissionalizou, com estudos exaustivos em busca de tecidos, caimento,
texturas, modelagens, costura, bordados e toda uma construção. O tra-
balho com arquitetura e urbanismo já me trazia frustrações, pois os pro-
jetos que desenvolvíamos nos escritórios sempre emperravam quando
chegavam ao poder público. A moda me trazia um retorno mais rápido
para nossas criações.

Meu lado estilista e meu lado urbanista me transformaram em uma fi-


gurinista de cinema.

Aos poucos, percebi que trabalhar com uma pesquisa voltada para o
meio da moda me distanciava do meu interesse por gente, pelo outro.
A Maria da Silva acabou e passei a trabalhar com produção de figurinos
para publicidade e editoriais de moda no estúdio do fotógrafo Chico
Barros. Nessa época, Marcelo Pedroso me convidou para trabalhar no
longa-metragem Brasil S/A, filmado em 2013. Desenvolvi a transforma-
ção de cortadores de cana em astronautas, dez personagens do filme.
Foi difícil trabalhar com um orçamento curto, mas depois aprendi a lidar
melhor com isso.

No início de 2015, meu companheiro, Juliano Dornelles, precisou de


ajuda para montar o figurino do elenco e da figuração de uma cena de
vernissage nas filmagens do longa-metragem O ateliê da Rua do Brum.
Kleber Mendonça Filho estava presente no set e viu tudo aquilo. No
mesmo dia, ele me disse que começaria a filmar Aquarius em seis meses
e me convidou para ser a figurinista.

38
Victor Jucá/CinemaScópio Produções

Sonia Braga
como Clara AQUARIUS
Aquarius foi muito desafiador para mim porque eu ainda não fazia parte do
universo do cinema e precisaria ter uma relação de criação intensa com So-
nia Braga, uma grande estrela que estava há quase 20 anos sem protagonizar
um filme nacional. Nunca fugi de um desafio, mas aquilo foi bem difícil, com
um elenco e uma figuração grandes. Eu precisava desenvolver toda uma
pesquisa e ainda controlar meus medos, ansiedades, obsessões e paranoias,
sem deixar que isso afetasse as relações de respeito e cuidado com a equipe.

Sonia Braga estava em praticamente todas as cenas do filme, que tinha


uma história que se passava ao longo de vários dias. Com essa cronologia
mais longa, a identidade da personagem se torna mais fácil de construir por
causa das mais de 20 trocas de roupa. Em Bacurau, por exemplo, cronolo-
gicamente eram apenas três dias e foi necessário um processo de constru-
ção muito mais avançado para dar uma cara para aquelas pessoas todas.

Pesquisei álbuns de fotos de famílias ricas que moravam perto da praia


para fazer as cenas de época de Aquarius ambientadas em 1979. Para as
cenas nos dias atuais, junto com Sonia Braga, pesquisei mulheres com
esse perfil que moravam em Pernambuco, a partir de fotos do cotidia-
no publicadas nas redes sociais dos filhos e netos delas. Clara era uma
mulher forte profissionalmente e era uma pessoa de esquerda politica-
mente. Desloquei a personagem do que seria essa moradora tradicional
e estereotipada da Avenida Boa Viagem, que usaria salto e vestido cola-
do. Adotei o caminho da elegância com o caimento do tecido, solto no
corpo, e com uma certa simplicidade na composição das cores.

39
Victor Jucá/CinemaScópio Produções

BACURAU
Pensar no processo criativo de Bacurau faz com que eu reviva o grande
desafio que tivemos. Eu só conseguiria criar o mundo no qual os perso-
nagens viviam se pudesse imaginar o seu passado, pesquisando sobre o
bando de Lampião, a seca, a economia do lugar e a sua história. Desmon-
tar a imagem erradamente construída de fragilidade, de “simplicidade”, das
pessoas do Sertão era a questão principal dos diretores. As cores vibrantes
ajudariam a entender a política daquele espaço. Não era um Sertão pálido
com tecidos em algodão, era um Sertão totalmente inserido no consumo
dos tecidos sintéticos, roupas baratas e de aspecto descartável. Foi essa
grande confusão de estampas, cores e texturas que deu vida a Bacurau.

Existia uma lista de filmes referência elaborada pela direção, mas a maioria
era do universo do western, que não serviria para o figurino. Antes do início
oficial da pré-produção, pedi para participar da última pesquisa de loca-
ção, para fazer minhas pesquisas também. No carro, enquanto eu ouvia
as conversas entre os dois diretores, percorremos milhares de quilômetros
no Sertão de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, por dezenas de
cidades. Deu certo. Foi muito rico para que eu pudesse enxergar quem se-
riam as pessoas de Bacurau, de que forma elas se protegiam do sol, o que
as estimulava a procurar roupas e que músicas elas escutavam. Eu fotogra-
fava tudo e pedia para acompanhar as pessoas nas redes sociais.

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Personagens Sandra (Jamila Facury),
Robson (Edislon Silva),
Daisy (Ingrid Trigueiro)
e Madame (Zoraide Coleto)
Victor Jucá/CinemaScópio Produções

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Bacurau é ambientado no futuro, daqui a alguns anos. Entendi que eu
precisava criar alguns estranhamentos de modelagem e de lavagem de
tecido para sugerir esse deslocamento de tempo. Criei uma lavagem
própria de jeans, em contato com uma fábrica de Toritama. É o que a
atriz Bárbara Colen veste quando chega à cidade, um jeans mais marca-
Bárbara Colen
como Teresa/ do por blocos entre o claro e o escuro. O mesmo valeu para os shorts,
Estudo de figurino que não eram nem aqueles dos anos 1990 e nem os dos anos 2000.
para Teresa
Victor Jucá/CinemaScópio Produções

Acervo Rita Azevedo

42
Pedro Sotero/CinemaScópio Produções

Nos tecidos, nunca segui o caminho do algodão e dos tons pastéis que
a gente vê em alguns filmes ambientados no Sertão. Os sintéticos já
estão inseridos no Sertão há muito tempo, assim como as falsificações
de Nike e Adidas, com influência das culturas funk e hip hop, já bastante
presentes nas feiras locais. Nessa busca, fui ao Moda Center, em Santa
Cruz do Capibaribe, responsável pela distribuição para todo o interior.
Envelhecer as roupas foi um processo muito difícil por causa desses te-
cidos sintéticos, que não são fáceis de lixar para mudar de tom, mas na
equipe tínhamos Renato Pascoal, um bruxo, um camareiro com muita
experiência em envelhecimento.

A cena do velório tem uma mistura de cores que faz aquele lugar ser
muito político. Sei que estava fazendo um filme, mas quis fazer algo em
que acreditássemos. Meu compromisso é muito mais com o que vejo
do que com o que eu desejo esteticamente. Eu queria mostrar os sinté-
ticos e os coloridos logo nas primeiras cenas e isso mostraria muito do
que era a comunidade.

43
Vestimos 200 pessoas em Bacurau. Todas fizeram prova de figurino, in-
clusive todos os figurantes, pois cada um tinha uma identidade pessoal.
Na figuração, havia cinco opções de roupas para todos e só escolhería-
mos três. O raciocínio lógico das aulas de matemática do curso de Ar-
quitetura é muito importante nesses momentos que envolvem criação
e praticidade técnica para cumprir metas com agilidade e eficiência.

Precisávamos dialogar com o realismo e também com a fantasia. Uma


referência bastante determinante, no início da pesquisa, foi a exposição À
procura do 5º elemento, de Bárbara Wagner, formada por fotos de MCs.
São personagens periféricos de cabeça erguida, que não estão no lugar
da fragilidade ou da simplicidade, e possuem empoderamento, senso de
comunidade e de ajuda ao próximo. Aqueles MCs tinham essa força e isso
foi o estalo que me mostrou quem seriam essas pessoas de Bacurau.

Victor Jucá/CinemaScópio Produções

Uirá dos Reis


como Bidê

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Victor Jucá/CinemaScópio Produções

Sonia Braga
como Domingas Domingas, além de ser uma líder para a comunidade, era escutada, res-
peitada e tinha outras camadas, como a questão do álcool, que a trans-
formava em uma pessoa extremamente agressiva. Bacurau é incrível
porque tudo tem suas contradições, as coisas não são perfeitas. Domin-
gas tinha essa contradição. Quando li o roteiro, imaginei uma partei-
ra, matriarca, com liberdade sexual. As parteiras possuem um processo
espiritual muito intenso e também um entendimento do corpo. Meu
mural de referências para Domingas era formado por fotos de parteiras.

45
As roupas dos motociclistas são neon porque eles são trilheiros, não
são do asfalto. Pesquisei as marcas de roupas motocross, segui o rea-
lismo. Isso também gerava um contraste interessante com as cores da
paisagem, formada pelo barro e pela vegetação verde ou seca, e indire-
tamente reforça a ideia de que eles não são daquele lugar. Nas primei-
ras reuniões de análise técnica, Kleber chegou a sugerir que vestissem
preto, mas nunca abri mão.

O bando de Lunga era como o de Lampião, com uma vaidade que fi-
casse bem marcada, com joias e acessórios. Eles têm uma identidade
de figurino construída por si mesmos, como se colecionassem aquilo.
Não são roupas que parecem ter sido compradas em lojas. Pesquisei
alta costura, Gucci, Helmut Lang e artistas pop como Solange. Uma das
inspirações principais foi a marca À La Garçonne, de Alexandre Herch-
Rita Azevedo e Gabriela
Marra, primeira assistente covitch, com intervenções em peças existentes, casacos pesadíssimos,
de figurino, preparando modelagem arrojada e pinturas de coisas como águia, tigre e pantera.
Antonio Saboia e Karine Cheguei a entrar em contato com ele, mas não havia tempo disponível
Teles como os forasteiros

Victor Jucá/CinemaScópio Produções

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Silvero Pereira

Victor Jucá/CinemaScópio Produções


como Lunga

suficiente para desenvolvermos uma parceria. Confeccionei oito opções


de figurino para Lunga e fizemos a prova já em Parelhas. Tudo era cria-
ção a partir do zero. Aquele cadarço amarelo bem exagerado estava
lá desde o início. Depois que o filme foi lançado, foi muito instigante e
inesperado ver Lunga virar esse ícone pop, com toda essa quantidade
de fan arts, tatuagens e fantasias de Carnaval.

47
Victor Jucá/CinemaScópio Produções

48
Fotos Acervo Rita Azevedo

49
Pedro Sotero/CinemaScópio Produções
Os americanos formavam um grupo, mas eu tinha que criar perso-
nalidades diferenciadas. Não eram militares e também não espe-
ravam aquela resposta da comunidade. É como se estivessem em
um safári. Não estavam indo para uma batalha, pois não esperavam
reação das vítimas.

Pesquisei sites de escolas de tiro dos Estados Unidos e cursos de pre-


paração para viagens de safári. Comecei a seguir as redes sociais de
marcas de armas, como pistolas e espingardas, e olhar quem participa
desses grupos. Vi pessoas que exibiam um elefante deitado no chão e
um rifle ao lado. Entrei nesse universo maluco e agressivo da valoriza-
ção da matança. Por tudo isso, acho que ficou tão convincente.

Antes de chegarem lá, os estrangeiros provavelmente teriam feito algu-


ma pesquisa sobre a vegetação local e precisavam calçar botas, tomar
cuidado com o sol e evitar cortes ou arranhões. Eles estão com uma
paleta de cores terrosa porque não imaginavam que a paisagem seria
tão verde. Eles não esperavam encontrar isso no Sertão, assim como
nós, que fomos pegos de surpresa porque, nas pesquisas de locação,
Parelhas estava seca, poucas semanas antes das filmagens.

50
Udo Kier

Victor Jucá/CinemaScópio Produções


como Michael

Os americanos formavam um núcleo, mas construí a identidade deles a


partir das diferenças entre cada um, com coisas individuais específicas.
Desenhei dois casacos e duas calças, mas o restante foi comprado em
lojas no Brasil. Eles poderiam imaginar que a paisagem do Sertão era
semelhante à do Iraque, por isso usei algumas peças iguais às adota-
das pelo exército americano no Oriente Médio, com uma camuflagem
pixelada. Fui em lojas como Decathlon, que vende marcas estrangeiras,
e quis transmitir também tecnologia. Eu precisava deslocar completa-
mente o figurino dos americanos da comunidade de Bacurau, inclusive
em relação à qualidade das roupas.

51
Charles Hodge Brian Townes
como Chris como Joshua

James Turpin Julia Marie Peterson


como Jake como Julia
Fotos Victor Jucá/CinemaScópio Produções

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Cia Extremo
SWINGUERRA
Os artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca desenvolvem uma série
de projetos interessados na estética musical das periferias. O filme Swin-
guerra apresenta os grupos de dançarinos do Recife: Extremo, Bonde do
Passinho, La Máfia e As do Passinho S.A . Para eles, a dança é uma forma
de reivindicar uma afirmação social enquanto cidadãos. É uma luta por
espaço na sociedade, visibilidade, direitos e autorrepresentação. Ao assu-
mir o figurino deles, precisava deixá-los orgulhosos de si quando vissem
o resultado.
Fotos Pedro Sotero/Ponte Produtoras

53
O Extremo é um grupo formado por 50 dançarinos LGBTQIA+, dos quais
20 participam de Swinguerra. Visitei os ensaios para ouvir as conversas
entre eles, descobrir do que gostavam e entender o que os motivava a
criar. Também vi vídeos para compreender seus caminhos estéticos. O
figurino serviria para o filme e também para uma apresentação anual,
um concurso. Eu tinha que estar muito atenta na escolha de tecidos
Eduarda Lemos, que valorizassem o movimento do corpo e precisava criar uma identi-
protagonista de Swinguerra, dade de grupo. Usei hot pants bem coladas ao corpo combinadas com
é baillarina e coreógrafa
Pedro Sotero/Ponte Produtoras

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Pedro Sotero/Ponte Produtoras

Cia La Máfia
calças mais soltas que davam fluidez à dança, assim como tops combi-
nados com casacos, que em determinado momento eram amarrados
na cintura. As peças vermelhas são de lycra e as pretas são de uma
malha leve texturizada com detalhes de veludo vermelho escuro. Para
usar na competição, eles mesmos precisariam reproduzir rapidamente
as roupas para uma quantidade bem maior de dançarinos, o que me
fez evitar materiais caros e modelagens trabalhosas que demandassem
muito tempo.

Com La Máfia, recriei um figurino que eles já tinham usado em uma


apresentação. Confeccionei as roupas do zero, mas fiz uma adaptação
da mesma lógica. Fiz algumas modificações em relação aos originais,
mas respeitei a identidade. Modifiquei alguns tecidos e detalhes por uma
questão cinematográfica, como a trama que eles usam, produzidas a
partir de meias-calças arrastão.

55
As do

Bárbara Wagner e Benjamin de Burca/Ponte Produtoras


Passinho S.A.

Nos grupos de passinho, um dos eixos são as torcidas organizadas de


futebol, universo que conheço bastante porque já frequentei a Inferno
Coral em jogos do Santa Cruz. Já estava quase tudo pronto porque eles
amam as roupas da marca 24 por 48, dos MCs Shevchenko e Elloco e
do grupo A Tropa. Fiz uma bancada cheia de camisas cedidas por Shev­
chenko e coisas do meu acervo, como acessórios, óculos e correntes
do funk ostentação. A ideia era deixar os dançarinos escolherem o que
quisessem para construir o figurino junto comigo.

Pedro Sotero/Ponte Produtoras

Bonde do
Passinho

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Foto Acervo Andrea Monteiro

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“Começo a criar na primeira leitura
do roteiro, desde a primeira página.
Quando estudo um roteiro, visualizo
os personagens, suas cores e emoções”

Andrea Monteiro faz parte da geração da retomada do novo cinema


pernambucano, com mais de 20 anos de carreira. Para conceituar o
figurino naturalista do seu primeiro longa-metragem, Amarelo man-
ga (2002) de Cláudio Assis, grande vencedor do Festival de Brasília,
ela se inspirou na moda popular dos moradores do centro e da pe-
riferia do Recife. Através da pesquisa de observação e criação ar-
tística, encontrou o equilíbrio ideal para realçar a interpretação do
elenco com seus personagens guiados pela paixão e frustração. Por
este trabalho, foi premiada no Cine Ceará (2003) e indicada na ca-
tegoria de melhor figurino no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro
(2004). Assinou os longas A salamandra (em fase de finalização) de
Alex Carvalho, Piedade (2019) de Cláudio Assis, Todas as cores da
noite (2015) de Pedro Severien, Propriedade privada (em fase de fi-
nalização) de Daniel Bandeira, Acqua movie (2019) de Lírio Ferreira
e Desterro (2019) de Maria Clara Escobar, selecionado para o Festival
de Rotterdam (2020), e O céu de Suely (2006), como produtora de
figurino, premiado filme de Karim Aïnouz. Além disso, entre outros
trabalhos, fez o figurino dos curtas Ex-humanos (2020) de Mariana
Porto, Soledad (2015) de Daniel Bandeira, Flávia Vilela e Joana Gatis,
e Vitrais (1999) de Cecília Araujo, que marcou sua estreia.

58
Nasci em Fortaleza, capital do Ceará. Meu pai, baiano, minha mãe, per-
nambucana. Quando completei 4 anos de idade, minha família se mu-
dou para o interior da Bahia. Isso foi em 1978.

Na Bahia, convivi muito com meus avós paternos. Minha avó Doralice,
além de professora, amava fazer crochê. Passava horas a fio crochetan-
do peças imensas, que continuam intactas até os dias de hoje, tesouro
da família. O crochê de Dodó é elegantíssimo e as mãos dela bailavam
numa fluidez impressionante enquanto ela compartilhava comigo sa-
bedorias, histórias, parábolas. Aquilo tudo me fascinava e eu sentava ao
lado dela com linha e agulha na mão para aprender. Ela achava graça e
não acreditava que eu aprenderia aos 7 ou 8 anos mais ou menos, mas
aprendi e nunca esqueci.

Era o começo dos anos 1980.

Íamos juntas a armarinhos e lojas de tecido comprar fazendas, que era


como se chamavam os cortes de tecido no interior. Minha avó só se
vestia com roupas feitas, sob medida, em costureira.

Em alguns anos da década de 1980, minha mãe e uma amiga montaram


um ateliê de costura sob medida para mulheres. Elas criavam uma pe-
quena coleção de acordo com a moda da época, um alfaiate modelava
as peças e faziam desfile.

Lembro vagamente que desfilei com uma minissaia tão curta que a cal-
cinha foi confeccionada do mesmo tecido e, por incrível que pareça,
lembro desse tecido, era veludo cotelê marrom com estampa de florzi-
nhas miúdas amarelas.

Nunca esqueço desse espaço, desse lugar cheio de papéis imensos, li-
nhas, tecidos, máquinas de costura e uma enorme mesa de corte.

Aos 13 anos, nos mudamos para Recife, eu, minha mãe e meu irmão.
Fui adolescente nos agitados anos 1990. Aprendi técnicas de pintura
em tecido como tie-dye e outras. Meu irmão era baterista de bandas
de rock da cidade e o ajudava com os figurinos quando ele ia tocar.
Daí os amigos dele começaram a me pedir também e, quando vi, esta-
va fazendo o figurino da banda toda. Eu pintava, rasgava, fazia crochê.

59
O crochê que aprendi com minha avó começou a aparecer aí em mi-
nhas criações nessa época. Dividimos ateliê na icônica Galeria Joana
d’Arc com alguns artistas como Fernando Peres, Kleber Pedrosa e Jeims
Duarte. Nesse tempo, havia passado no vestibular da UFPE em Artes
Plásticas, mas não cursei. Ainda assim me conectei com vários artistas e
fizemos alguns trabalhos juntos.

Meu primeiro trabalho em audiovisual foi o videoclipe da banda que


meu irmão era baterista e que eu já fazia os figurinos, chamada Lara Ha-
nouska. Foi divertido, juntamos diversos objetos e roupas e montamos
um cenário num estúdio. Tudo muito experimental. O clipe é o 10 anos
como sempre e está no YouTube.

Ainda não me via nesse lugar de figurinista. Gostava de pintar em te-


cido, crochetar, criar e transformar roupas (que chamam hoje em dia
de upcycle).

Cláudio Assis primeiramente me convidou para ser atriz do curta Texas


Hotel, filmado em 1999, mas recusei. Em seguida, ele fez outro convi-
te, que experimentasse criar os figurinos para o curta Vitrais de Cecília
Araújo e para o primeiro longa dele, o Amarelo manga. Pra esse convite,
eu disse sim. Mesmo sem nunca ter feito nem estudado nada sobre fi-
gurino para cinema.

Cláudio Cruz, querido, diretor de arte do curta Vitrais, com toda sua sa-
bedoria, elegância (e paciência), foi meu primeiro mentor e muito me
ajudou e orientou. Fomos juntos à biblioteca da UFPE pesquisar sobre
direção de arte e figurino. Pouco encontramos sobre figurino. O que
achamos de mais interessante e que descrevia bastante sobre a rela-
ção entre figurino e personagem foi uma tese sobre o longa brasileiro
A dama do lotação.

E, foi como tudo começou…

Depois de minhas primeiras experiências no cinema, assinando figuri-


nos (Vitrais e Amarelo manga), estudei um pouco sobre moda, fiz um
curso de introdução à moulage com um estilista italiano que passou
pelo Senac, Tino Adamo, e fiz um curso no Senai de Paratibe, técnico
em vestuário, totalmente voltado à indústria de confecção.

Minha formação se deu em vivências e nas práticas, trabalhando


e pesquisando.

60
Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
AMARELO MANGA
Amarelo manga foi um marco na minha vida profissional. Foi meu pri-
meiro longa-metragem. Me inspirei muito em pessoas que via na rua.
Em algumas cenas, os personagens apareciam no meio do cotidiano
real do centro e da periferia, em imagens documentais. Isso me fez pro-
curar roupas nas mesmas lojas que aquelas pessoas compravam. Via
um açougueiro e me inspirava para vestir Chico Diaz. Via uma vende-
dora de jogo do bicho no Alto José do Pinho e a imaginava como a
personagem de Magdale Alves.

Para criar o figurino de Dunga, interpretado por Matheus Nachtergaele,


me inspirei em uma pessoa que encontrava sempre no Pátio de Santa
Cruz, onde filmamos as cenas da pensão. Era um cara muito magrinho,
que usava calças jeans bem coladas, vestia blusas femininas e calçava
saltos. Acho que era cabelereiro, pois estava sempre maquiado e muda-
va de cabelo quase todos os dias. Ele era uma vanguarda.

61
Acervo Andrea Monteiro
Matheus Nachtergaele
como Dunga Dunga era uma pessoa que não tinha muitas posses e era apaixonada
pelo açougueiro. Tinha trejeitos femininos, cuidava das sobrancelhas.
Uma das camisetas dele é uma pequena cropped, que cortei bem cur-
tinha. Coloquei um detalhezinho na gola, um cordão, para dar a enten-
der que ele mexia nas próprias roupas. Era um personagem criativo em

Walter Carvalho/Perdidas Ilusões

Chico Diaz
como Wellington

62
Acervo Andrea Monteiro

seu visual. Com o pouco que tinha, precisava arrasar... Em uma cena
de caminhada, fiz Dunga calçar uma plataforma Melissa vermelha com
uma bolsa animal print. Para ele, era um momento de ir para a guerra,
de jogar uma bomba em um lugar. Ele precisava fazer aquela maldade
porque estava indo atrás do amor da vida dele.

63
Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
Leona Cavalli
como Lígia A atriz Leona Cavalli, que interpretou a dona do bar, entrou no elen-
co de última hora e só chegaria ao Recife um dia antes de filmar. Tive
menos de uma semana para criar a roupa dela. Decidi por um vestido
jeans, que poderia ser facilmente abotoado e desabotoado, algo que
funcionava bem dentro da ação nos momentos em que ela ia dormir
nua. Precisávamos de algo que a deixasse ao mesmo tempo graciosa e
interessante, mas dentro do limite daquele cenário de boteco decaden-
te. Walter Carvalho, diretor de fotografia, insistiu que eu acrescentasse
algum detalhe amarelo. Não concordei, achei redundante. O nome do
filme era Amarelo manga e já havia muitas coisas amarelas na direção
de arte, em detalhes dos cenários e objetos.

Chegamos a testar outros figurinos para Leona, mas preferimos marcar


que ela teria apenas um vestido. Queríamos transmitir uma ideia de té-
dio, por causa da frase que ela fala na abertura e no fim do filme. Essa
fala nos deu um norte, um conceito para a personagem: “Primeiro vem
um dia. Tudo acontece naquele dia até chegar à noite, que é a melhor
parte. Mas logo depois vem o dia outra vez.”

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Para criar os personagens, gosto de inventar histórias que não estão
no roteiro. É como ler um romance, a mesma história, lida por pessoas
diferentes, carrega nuances e cores diferentes para cada um. Sigo o que
eu sinto. A personagem de Conceição Camarotti parecia ter sido uma
grande dama no passado, talvez uma prostituta. Coloquei nela cores,
estampas e vaidade. Era como alguém que já foi rica e envelheceu so-
zinha, sem família e doente. É mais glamourosa do que as pessoas ao
seu redor, que vestiam shortinho de malha e jeans muito surrado. Ela
usava ouro, brincos, colares e pulseiras. Cheguei a bordar pérolas em
Conceição Camarotti uma camisola preta.
como Aurora

Acervo Andrea Monteiro

65
Para alguns personagens, eu dava um tom a mais. Everaldo Pontes, por
exemplo, interpreta um cara meio cavernoso, meio malandro, com ócu-
los Ray-Ban, que poderia ser um policial ou um funcionário do Instituto
Médico Legal (IML) e transportava cadáveres no carro. Achei que o estilo
dele combinava com aquela jaqueta, que eu fiz com um jeans reapro-
veitado de peças do meu acervo.

Acervo Andrea Monteiro

Everaldo Pontes
como Rabecão

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Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
Jonas Bloch
como Isaac O personagem de Jonas Bloch tinha aquele jeito violento, com uma
energia agressiva meio rock pesado. Para as calças cargo que ele vestia,
me inspirei em Cláudio Assis. Os óculos dos anos 1980 eram da minha
mãe. Me inspirei também em Roger de Renor, que nos deu de presente
um tecido que transformamos em uma camisa para esse personagem,
com estampa de dry martini, azeitonas e uma pinup dentro de uma taça,
bem kitsch. Roger também tinha um carrão antigo, meio estiloso. Usei
também uma camisa verde, camuflada, floral e desbotada, com uma
estética americana. Também era um cara bem cavernoso.

Acervo Andrea Monteiro

Andrea, Jonas Bloch


e Neta, camareira

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Walter Carvalho/Perdidas Ilusões

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Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
Dira Paes como Kika
Fizemos de ônibus a produção de figurino. Só tivemos direito a carro
quando começaram as filmagens. Não havia verba, o valor era irrisório.
Pedimos roupas usadas emprestadas da equipe, compramos em bre-
chós e recebemos apoio da Seaway. Para algumas cenas, precisamos
confeccionar tudo.

A cena da briga entre Dira Paes, Chico Diaz e Magdale Alves foi uma
das mais caras, pois envolvia sangue e seria necessário trocar tudo
a cada take, aí fizemos roupas triplas. Chico Diaz também aparecia
em várias cenas com uma camisa laranja quadriculada. Pegamos uma
parte do dinheirinho que tínhamos e compramos cinco camisas iguais
em uma loja popular no calçadão da Rua da Imperatriz. Como a loja
não tinha cinco do mesmo tamanho, compramos de tamanhos dife-
rentes e adaptamos.

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A cena da igreja foi uma das mais caras porque havia uns 40 figurantes
e todos precisavam estar bem-vestidos. Na locação da pensão, havia
muitos figurantes que apareciam e reapareciam em diferentes momen-
tos, como se morassem naquele lugar. Para dar a ideia de passagem do
tempo, precisamos criar mais de uma roupa para cada um deles tam-
bém. Aos poucos, percebemos que precisávamos de uma equipe maior.
A solução foi duas estagiárias, que me ajudaram bastante. Uma delas era
Bárbara Cunha, que depois tornou-se figurinista, fotógrafa e diretora. Um
colaborador incrível no processo de Amarelo manga foi Paulo Ricardo,
que foi contratado para ser meu assistente, mas era mais experiente e
Andrea Monteiro foi como um professor.
e Paulo Ricardo

Acervo Andrea Monteiro

70
Bárbara Cunha/Perdidas Ilusões

Fernanda Montenegro
como Dona Carminha PIEDADE
e Matheus Nachtergaele
como Aurélio Foi interessante trabalhar com Matheus Nachtergaele no longa Piedade
depois de tantos anos do marcante Dunga do Amarelo manga.

O personagem de Matheus no longa é Aurélio, um alto funcionário


de uma petroleira que chega na cidade de Piedade com a missão de
desapropriar as terras dos moradores, que ainda insistem em continuar
na região.

A caracterização desse personagem, o figurino, o visagismo, foi tudo


pensado para destacá-lo. Ele não pertencia àquele lugar e isso preci-
sava aparecer de maneira muito clara e objetiva, principalmente nas
externas. As roupas eram inadequadas para o clima, fazia muito calor
em torno e ele sempre suando, nervoso, incomodado, deslocado. Esse
desconforto físico e visual fazia parte do sentimento daquele persona-
gem, ali naquele lugar.

71
Flora Negri/Perdidas Ilusões

72
Bárbara Cunha/Perdidas Ilusões

Dona Carminha
e Cauã Reymond
Muitos personagens de Piedade são pessoas que vivem na beira-mar.
como Sandro Vestem roupas lavadas com água salobra, que secam em um sol muito
quente. É uma roupa exposta à maresia, àquela erosão. É colorida, mas
é desbotada. Em um documentário sobre os problemas socioambien-
tais daquela região de Suape, vi um homem com um boné com a frase
“meu trabalho tem valor” e resolvi incorporar esse detalhe em um dos
participantes daquelas cenas de reunião comunitária.

73
Fotos Bárbara Cunha/Perdidas Ilusões

74
EX-HUMANOS
No curta Ex-humanos, Recife não era Recife. Poderia ser qualquer cida-
de onde não existam mais pessoas, em 2050. Era algo muito surreal, que
eu já tinha visto em filmes de ficção científica. A diretora Mariana Porto
me trouxe muitas referências cinematográficas, mas preferi me descolar
daquilo tudo. Não sou muito de beber de uma fonte que alguém possa
identificar. É um filme que tem muito essa coisa do sonho, do onírico,
de um futuro sem contrastes.

Fotos Ernesto de Carvalho/Vídea Filmes

75
Ana Lúcia Diniz/Vídea Filmes
Para a atriz Vera Valdez, usei um vestido cinza, comprido, que foi traba-
lhado nas costuras, envelhecimentos e objetos, amuletos que ela pró-
pria escolheu em meu ateliê. No personagem do ator Cláudio Marinho,
não queríamos que a pele dele aparecesse. Não poderia aparecer ne-
nhum vestígio de humanidade. A capa tinha pinturas e texturas que o
ajudavam a se camuflar nos cenários. Era um mundo de chuva ácida.
Lembrei muito disso durante a quarentena na pandemia, quando fica-
mos trancados em casa. Na dança final, o figurino é inspirado em butô,
com alguns detalhes costurados no corpo da atriz.

Cláudio Marinho
e Vera Valdez

76
figurino
Prova de

77
Fotos Acervo Andrea Monteiro
MERGULHO PROFUNDO Sâmia Emerenciano

Eu já começo a criar na primeira leitura do roteiro, desde a primeira pá-


gina. Quando estudo um roteiro, visualizo os personagens, suas cores e
emoções. Me entrego totalmente, mesmo que ainda faltem meses para
as filmagens, e já começo a criar. Um figurino envolve tantos detalhes e
tantas coisas que me identifico muito com o que devem sentir as atrizes
e atores quando estão no processo de criação das personagens. Preci-
so mergulhar profundamente para me conectar com as personagens,
elenco e equipe.

78
Foto Rod Souza Leão
“No meu processo,
a simbologia surge
a partir do instinto”

Libra vem da experiência de performances em festas de música ele-


trônica e traz novas visões e vivências sobre os significados sociais
dos corpos nos seus trabalhos. Sua primeira experiência como fi-
gurinista em uma produção cinematográfica foi Inabitável (2020),
de Matheus Farias e Enock Carvalho, curta-metragem selecionado
para o Festival de Sundance e premiado nos festivais de Brasília, Gra-
mado e Toulouse. Participou do curta Tempestade (2019), de Felli-
pe Fernandes, construindo o figurino da sua própria performance.
No longa-metragem Rio Doce (em fase de finalização), também de
Fellipe Fernandes, fez assistência de figurino. Em Swinguerra (2019),
curta de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, assistência de carac-
terização. Em outras linguagens, assinou o figurino e caracterização
dos videoclipes Útero (2019) da cantora Una, dirigido por Ana Olívia
Godoy, e Escorrendo céu pela canela (2021) da cantora Biarritzzz,
com direção de Ayla de Oliveira, além de ter dirigido o documentário
Frervo (2019) junto com Thiago Santos.

80
PH Reinaux

Preparação do figurino
da cantora Una Eu sou de Olinda, mas minha família vem de Surubim, cidade do Agreste
para o clipe Útero de Pernambuco. Meus avós vêm de uma perspectiva da terra. Eu per-
cebi que minhas tias e minha mãe são de uma geração muito prática
e manual que adota a costura como oportunidade de mudar de reali-
dade. Uma de minhas tias fazia os vestidos de casamentos e eventos
de formatura da família, vendia confecções e dava aula sobre costura
no centro do Recife. Na minha infância, a costura não era apresentada

81
para mim como uma possibilidade. Mesmo que me interessasse, mi-
nha relação ainda era de distância, mas já flertava com outras áreas das
artes, como desenho e fotografia. Tudo isso retornou pra mim quando
fiz 17 anos, no colégio, quando comecei a querer me montar, a me ex-
plorar esteticamente de um outro jeito. O ambiente em que vivia, em
um colégio extremamente católico em Olinda, não me permitia pensar
a partir desse lugar, tanto esteticamente quanto internamente. Passei a
compreender a estética como algo potencial para mim através do ves-
tuário. Comecei a desenhar looks de drag e a sair com eles. Outras drags
viram e começaram a me pedir pra fazer para elas. Depois de um tempo,
criei uma marca e trabalhei com confecção não só para as drags, como
também para outras pessoas, com vestuário feminino. Nesse trabalho
artístico, que se iniciou com a vontade de me montar, desenvolvi uma
linguagem performática. Eu já tinha uma vivência na noite, como DJ e
performer, mas ainda em um momento muito contido. A partir dessa
relação entre vestuário e performance, comecei a entender e a estudar
o figurino de outro jeito.

Estudei artes visuais e me relacionava muito com o trabalho manual. Em


plataformas de trabalho como o figurino, gosto de decifrar as formas de
materializar minhas ideias. O trabalho manual me apetece e me faz en-
tender quais as possibilidades de criação, inclusive com coisas que nem
tenha planejado antes.

Tenho muitas referências, mas não específicas de artistas. Gareth Pugh


foi um susto na minha vida. É como se estivesse me vendo na minha
frente. Existiram esses choques, mas sinto que é como se o processo
fosse uma piração minha com texturas e materiais que me sensibilizam
de algum jeito. Já trabalhei muito, por exemplo, com plásticos de lixo,
roupas de São João e colagens de aviamentos. Tenho uma performan-
ce chamada Luxo, onde construo um corpo repleto de sacos de lixos
cheios de ar através de amarrações em segundas peles arrastão. De uma
perspectiva social, existem corpos que são descartados e descartáveis
como o lixo e precisam ser separados de outros corpos. No meu pro-
cesso, a simbologia surge a partir do instinto. Poucas vezes busco a sim-
bologia primeiro.

82
Maíra Iabrudi/Ponte Produtoras/Áspera Filmes

Performance
de Libra TEMPESTADE
Nas produções da festa Hypnos, comecei a trabalhar com André An-
tônio e ele me convidou para fazer Tempestade. Ele me via no papel
daquele fantasma, daquele personagem, daquele corpo. Isso foi uma
abertura para mim no audiovisual, ainda dentro de uma perspectiva
muito da performance. Em Tempestade, construí meu próprio figurino.
Meu trabalho não teve relação com o figurino do filme como um todo.
Participei especificamente para performar ainda como criação própria

83
para mim mesma. Me atentei muito à referência do espaço, que é um
barco no meio do mar. Isso foi um start para eu entender um figurino
que dialogasse com aquela água e não entrasse em conflito com ela.
Trabalhei mais com a textura do que com a tonalidade, pois não queria
brilho. Aí veio a ideia da seda e da camurça. O roxo só aparece no meu
rosto. A ideia era que a personagem não tivesse um rosto e nem um
corpo humano. A ideia é um corpo-névoa que representa a angústia
da protagonista e tem poder sobre ela nesse sonho. Na cena da festa
de Tempestade, também apareço. Sou um corpo preto lá atrás, em um
detalhe, também com um figurino meu. Nesse processo, já estava gra-
vando um documentário, que se chama Frervo, documentando as ex-
periências da noite recifense nas quais eu estava inserida. A partir disso
tudo, estava me relacionando pela primeira vez com o cinema de uma
Kildery Iara, protagonista maneira direta.
de Tempestade

Maíra Iabrudi/Ponte Produtoras/Áspera Filmes

84
PH Reinaux
Cíntia Lima, diretora
de arte, Libra e a cantora ÚTERO
Una, no set de Útero
No clipe Útero, da cantora Una, a diretora de arte Cíntia Lima construiu o
roteiro junto com a diretora Ana Olívia Godoy a partir de uma divisão en-
tre óleo, terra, escuro e o peso que puxa pra baixo, em uma perspectiva
muito conceitual. A música fala desse lugar de voltar para o útero e não
sair. São seres que transpassam o corpo social. O figurino das cabaças
era o mais desafiante porque eu tinha uma expectativa volumétrica que
deixava aquilo muito pesado para transportar no corpo. Isso foi interes-
sante porque acabei me metendo um pouco na preparação do corpo,
ao interferir nos movimentos corporais de Una, já que ela tinha que se
esforçar. Precisei também costurar sobre o figurino já vestido no corpo
dela, para obter uma volumetria. Estávamos em busca de um material
que simbolizasse corpos e terra e que sugerisse uma sonoridade, um
barulho. No figurino obscuro, onde criei e confeccionei um vestido de
9 metros de diâmetro, com a ideia de fazer Una parecer um ser gigante
naquela mata fechada, acabei também participando como performer.
No processo, existiu uma relação do obscuro que Una não conseguiria
expressar, então eu mesma precisei aparecer também. A caracterização
e o figurino nessas personagens colidem como se fossem uma coisa só.
O clipe tem ainda um terceiro figurino, que é uma roupa mais feminina.

Gosto de pensar que eu crio ficção. Enquanto ficcionista, me sinto em um


lugar de experimentar através da estética. Acho que a estética sobrepõe o
pano, que é o figurino. Na maioria dos meus trabalhos, assino o figurino
e também a caracterização. Meu trabalho nasce da perspectiva do corpo,
dos impulsos do corpo, tanto na plataforma do som quanto da imagem.
Minha perspectiva é do surreal, para além de estilos.

85
Fotos PH Reinaux

86
Gustavo Pessoa/Gatopardo Filmes
Luciana Souza
como Marilene INABITÁVEL
Eu acho que criei uma metodologia minha de etapas de produção. No
cinema, Inabitável vem de uma metodologia minha inspirada em pesso-
as com quem trabalhei, por exemplo, no longa-metragem Rio Doce, de
Fellipe Fernandes, que foi minha primeira experiência como assistente,
junto com Rita Azevedo, Clarissa Saraiva e Duda Antonino. Aprendi mui-
to, com todas elas, a metodologia do fazer acontecer e as necessidades
do cinema, com o tempo do cinema e com as trocas profissionais que
precisam existir entre uma equipe. Isso me deu uma base para fazer
Inabitável com uma metodologia minha, mas também a partir de uma
experiência de construção e vivência de set.

Hoje em dia, entendo uma série de complexidades sobre meu corpo


social, que representa outras coisas para além desse surrealismo visual.
Existem outras desconstruções e dissidências que me atravessam poli-
ticamente e socialmente. Em Inabitável, quando tenho que pensar em
uma personagem travesti, isso foge do surreal, mas me toca. Eu tenho
que pensar na personagem como uma pessoa que tem uma história
e tenho que entendê-la esteticamente e expressá-la a partir disso. Os
diretores tiveram um carinho e um apreço com minha opinião sobre a

87
filha de Marilene, sobre o que é esse corpo e como ela se representa no
filme, como ela se denomina e como é que a gente se relaciona com
a amiga que Marilene encontra, que é uma travesti. Essa amiga era a
principal pista sobre quem era a filha de Marilene. Marilene não avisa
que vai visitar Juliana. Ela simplesmente chega lá desesperada porque
quer encontrar a filha. Juliana também não estava preparada pra receber
ninguém, ela estava fazendo uma faxina em casa. Ser trans não deter-
mina a estética de uma pessoa como um todo. Existem estereótipos e
esforços de uma leitura cisgênero que coloca esses corpos trans com
leituras muito específicas, como se elas não pudessem sair desse lugar
em condições diferentes. Essas identidades se transpassam, mas não
são tudo pra mim.

Existia um figurino não realista, mas ele não entrou no filme. Cheguei a
desenhar e a confeccionar essa roupa, a atriz chegou a vestir. Era a única
roupa que tinha sido criada para o filme. A ficção científica inicialmente
estava presente no figurino, mas, em um processo coletivo, a gente en-
tendeu que o filme não precisava dessa representação estética porque
existia uma representação política muito forte que necessitava de prota-
gonismo. Foi uma decisão correta para que, na experiência audiovisual
do Inabitável, a gente desse mais atenção ao que a gente realmente
Sophia William queria falar para além do estético. Para mim, isso foi muito importante.
como Juliana
Gustavo Pessoa/Gatopardo Filmes

88
Mariana Souza

Fotos Enock Carvalho/Gatopardo Filmes


(assistente de
figurino) e Libra

Foi o primeiro filme em que assinei oficialmente como figurinista. Pude


ter uma metodologia e aplicar essa metodologia com uma assistente. Foi
muito importante, tanto por trabalhar em um filme de ficção científica no
qual o figurino não fazia parte dessa estética, como também pensar em
todo esse lugar de Marilene como uma pessoa preta periférica que perde
uma filha travesti. Me atrai a ideia da ficção, de me entender como um
ficcionista tanto na construção surreal quanto na realista.

89
Gustavo Pessoa/Gatopardo Filmes
Eu tive ajuda de alguns acervos de figurinistas, como Maria Esther e Rita
Azevedo, e de alguns brechós, como Marte e Cabrochas. Existia um or-
çamento previsto para compras, mas, para mim, isso era um apoio, pois
existiam muitas possibilidades. Usei algumas roupas da minha mãe em
Marilene. Lembro de ter aproveitado também uma roupa trazida por
uma das atrizes, Laís Vieira, que faz uma médica.

Amei muito o processo desde o começo. A gente sentou um dia para


conversar e entendeu porque o filme fazia muito sentido para nós e por-
que eu estava na equipe. Foi um processo de cautela e observação. Ma-
riana Souza, minha assistente, já tinha experiência com figurino e isso
foi importante para me dar segurança. A metodologia própria funciona
quando você entende o sistema de um set.

A pesquisa se deu a partir da decupagem do roteiro, de todas as perso-


nagens do filme. Como não eram muitas, tive tempo para focar em cada
uma. Procurei outros filmes pernambucanos, novelas e peças de teatro
que tinham personagens parecidas, além de mulheres que conheci. Eu
já tinha trabalhado com Eduarda Lemos no curta Swinguerra, então já

90
sabia o que ela gostava de usar e o que ela não gostava. A própria Edu-
arda foi uma referência muito forte para a personagem Roberta. A partir
dessas referências, criei uma base do que eu queria, mas também me
mantive aberta para o imprevisível, para o contato com o roteiro e para
o diálogo com a direção de arte e com a equipe durante a produção. Foi
mesmo uma metodologia de pesquisa, de seleção e de descarte. O filme
como um todo tinha cores base, que eram o azul e o branco, sem ver-
melho, sem muito amarelo. Tinha a pele. O roxo aparecia às vezes, mas
sempre puxando para o azul... Mesclar com o jeans, com a seda. Havia
também uma perspectiva limitante, pois uma mãe que está procurando
por uma filha não escolhe a roupa que vai usar. Ela simplesmente sai de
casa. O filme já começa com a filha perdida.

Ver a roupa no corpo diz muito pra mim, mas às vezes uma coisa fun-
ciona muito bem para aquele corpo, só que tem outras coisas do con-
texto que interferem. Quando a gente tem autonomia criativa, o proces-
so é mais instintivo. No cinema, tem sempre algo a mais que precisa ser
olhado. Para mim, ser figurinista é um processo artístico pessoal, mas a
gente tem que ter abertura para os outros profissionais. É sempre muito
potente quando essas construções se colidem.
Acervo Libra

91
Foto Acervo Paulo Ricardo

92
“O que definiria bem meu trabalho
seria o próprio processo
de pesquisa e construção”

Paulo Ricardo faz parte da geração da retomada do novo cinema


pernambucano. Sua primeira experiência foi no curta Ocaso (1997),
de Camilo Cavalcante, assinando figurino e direção de arte. A par-
ceria com o diretor continuou nos curtas Os dois velhinhos (1998),
Matarás (1999), O velho, o mar e o lago (2000), Ave Maria ou mãe
dos oprimidos (2003), Rapsódia para um homem comum (2005) e O
presidente dos Estados Unidos (2007). Em 2014, Paulo Ricardo trou-
xe bastante equilíbrio à visualidade dos personagens do seu primei-
ro longa-metragem, A história da eternidade de Camilo Cavalcante,
grande vencedor do Festival de Paulínia. Ambientado no Sertão ar-
caico, a atemporalidade do figurino, dentro dos limites rígidos im-
postos por aquele lugar, contribuiu harmoniosamente para a visce-
ralidade do roteiro e o rigor estético da produção. Com o diretor,
ainda trabalhou no longa King Kong en Asunción (2020), vencedor
do Festival de Gramado. Por esse trabalho, que assinou o figurino
junto com Luján Riquelme e Lia González, conquistou o prêmio de
melhor figurino no Fest Aruanda. Fez também os curtas TheLastNo-
te.com (2005) de Leo Falcão, Poeta urbano (2013) de Antônio Car-
rilho (onde também fez a arte), Carne (2013) de Caco Nigro e João
Heleno dos Brito (2014) de Neco Tabosa, além do longa A seita (2016)
de André Antônio.

93
Minha primeira lembrança em relação a roupas, na infância em Surubim,
entre 8 e 12 anos, é minha tia costureira, com quem eu convivia muito.
Era uma mágica vê-la pegar aqueles tecidos, cortar e colocar na máqui-
na de costura. Além das peças produzidas para clientes e para todo um
mercado profissional, ela costurava as roupas das minhas primas, que
ficavam belíssimas para irem aos bailes, e também das bonecas delas,
coleções inteiras, maravilhosas, verdadeiros desfiles.

Podíamos produzir muita roupa naquela época por causa da Feira do


Loré, que vendia tecidos baratos, reaproveitados das indústrias. Eu tam-
bém tinha uma vizinha que era uma grande bordadeira, muito conhe-
cida na cidade. Eu estava sempre ao lado dela, que me dava linhas para
brincar enquanto ela bordava.

Sempre me interessei por todas as artes, mas não pensava em ser figu-
rinista ou estilista, como se essa relação da infância com a costura esti-
vesse adormecida. Já adulto, no Recife, nos anos 1980, comecei a fazer
teatro. Um dia, fui a um evento de moda no Shopping Center Recife
para encontrar um amigo que trabalhava na produção. Precisavam de
alguém para ajudar nos bastidores dos desfiles e, para minha surpresa,
me convidaram. Aceitei porque achei que teria facilidade por causa da
minha experiência em camarins teatrais. Foi algo que aconteceu por
acaso, pois estava lá apenas para buscar um amigo para ir a uma festa.
Isso ilustra a forma como esse fazer entrou na minha vida. A partir daí
comecei a trabalhar com moda e comerciais.

Paralelamente, eu já participava de uma cooperativa de cinema, junto


com Camilo Cavalcante e Camerino Eloy. Revezávamos as funções,
cheguei a dirigir alguns vídeos, mas aos poucos começaram a me
chamar para fazer principalmente direção de arte e figurino. Ainda
trabalhei mais um pouco com moda e cheguei a desenvolver duas
coleções, mas o figurino me engoliu, me escolheu e tomou conta
de mim. Aí tudo aquilo da infância, que estava adormecido em mim,
finalmente despertou.

Meu primeiro curta profissional filmado em película foi Ocaso, de Ca-


milo Cavalcante, em que fiz direção de arte e figurino. Depois passei a
fazer quase todos os filmes de Camilo, já com patrocínios de editais e
participação de profissionais do Sudeste, com quem aprendíamos por
serem mais técnicos e experientes. Ao mesmo tempo, fazia cada vez
mais vídeos publicitários e campanhas políticas. Meu primeiro longa-

94
Leonardo França/Aurora Cinema

Auri Mota, maquiador,


Paulo Ricardo e a atriz -metragem foi Amarelo manga, de Cláudio Assis, como assistente da
Marcélia Cartaxo figurinista Andrea Monteiro. Fazer cinema ainda era uma espécie de
nas filmagens de
A história da eternidade sonho e havia bastante liberdade de criação, inclusive para os assis-
tentes. Em Árido movie, de Lírio Ferreira, trabalhei na assistência de
Juliana Prysthon. Assinei o figurino dos curtas Poeta urbano, de An-
tônio Carrilho, e TheLastNote.com, de Leo Falcão, que foi interessante
por ser bastante fantasioso, de ficção científica, com um personagem
artista plástico, com a camisa melada de tinta, mas ao mesmo tempo
com limites rígidos por causa dos storyboards desenhados pelo pró-
prio diretor.

Minha afinidade com Camilo começou quando ele ainda era estudante
de jornalismo, depois passamos pelos curtas juntos, fizemos publicida-
de e a parceria continuou até os longas. Eu já sei tudo o que ele quer e
o que ele não quer e também já sei como conseguir o que quero dele
para atingir os resultados.

95
Nicolas Hallet /Aurora Cinema

Santa Fé, principal locação


de A história da eternidade. A HISTÓRIA DA ETERNIDADE
Na foto, Leonardo França
como Cego Aderaldo No filme A história da eternidade, havia uma certa atemporalidade, que
não deixava claro se estávamos nos anos 1970 ou no momento atu-
al. Questionei Camilo sobre como Joãozinho, interpretado por Irandhir
Santos, poderia saber de tantas coisas e conhecer tanto sobre poetas e
sobre música se ele vivia em uma vila tão isolada. Ele respondeu que o
personagem teria servido ao Exército na capital, onde passou a morar e
a entrar em contato com a arte e a expressão cultural que via nas ruas,
até mesmo em um sebo de discos de vinil, onde ele poderia ter com-
prado o LP de Secos e Molhados. Por isso ele tinha botas militares, calças
camufladas, um casaco com emblemas e aquele cabelo curtinho. Ele
vivia em um paradoxo, uma linha tênue entre o metódico e a liberdade.
Quando ia para a feira vender poesias, vestia um uniforme, como se
quisesse uma proteção, uma defesa.

Essa dualidade de Joãozinho é bem representada pela cena da dança,


uma explosão, quando ele joga fora o casaco para se expor àquela gente
tão conservadora. O que o protege é aquela rede no corpo, que foi toda
inventada pelo próprio ator e apropriada pela direção de arte e pelo figu-
rino. Eu também dei a Irandhir uma camiseta vermelha, uma T-shirt, e o
pedi para fazer a intervenção que quisesse, pois Joãozinho era esse tipo

96
de pessoa que pinta as próprias camisas. Ele bordou nomes de artistas
que, como o personagem, sofriam de epilepsia e inseriu uma carranca,
para espantar os maus olhados ou alguma dominação do mal que pro-
vocaria os ataques epiléticos. Sempre gosto de me aproximar dos atores
o máximo que puder, criar uma troca, uma coisa de mão dupla. Zezita
Matos e Débora Ingrid bordaram comigo. Levei o ator Maxwell Nasci-
mento para ir comigo em lojas de departamento de Petrolina e Juazeiro
para escolhermos juntos as roupas do seu personagem, que tinha aca-
bado de chegar de São Paulo e veste camisetas de malha, tênis Adidas
Irandhir Santos e bermudas tactel de surfe.
como Joãozinho

Leonardo França/Aurora Cinema


Nicolas Hallet /Aurora Cinema

97
Maxwell Nascimento

Leonardo França/Aurora Cinema


como Geraldo

A única referência cinematográfica que Camilo me deu foi o filme Luz


silenciosa, de Carlos Reygadas, que tem uma família pobre e bem ves-
tida. Nossos personagens também não eram pobrezinhos, queríamos
fugir da miséria. Apenas o cego começa mais simples e depois fica mais
bonitinho quando se apaixona. A roupa de Querência (Marcélia Carta-
xo) tem um corte bem elegante. As roupas dos filhos e do pai (Claudio
Jaborandy) também eram sempre bem cortadas.

Nicolas Hallet /Aurora Cinema

Marcélia Cartaxo
como Querência
e Leonardo França
como Cego Aderaldo

98
Personagens Aluisio

Leonardo França/Aurora Cinema


(Aluan Smuk), Emmanuel
(Luandson de Sousa),
o patriarca da família, Na-
taniel (Claudio Jaborandy),
Maviael (Alan Moreira) e
Ednardo (Robério Brasileiro)

As três personagens femininas são fundamentais na história por causa


da questão do desejo e por isso o figurino delas se transforma ao lon-
go do filme. É como se fossem três gerações. Elas têm uma cartela de
cores bem definida entre o vinho, o rosa, o roxo e o azul. Das Dores
deixa as roupas mais escuras e passa a usar cores mais claras após a
morte do neto. Já Querência, quando volta da cidade, está com uma
calça jeans, uma ruptura em relação ao que ela costumava usar. Alfon-
sina usa um vestido vermelho que representa um certo rito de passa-
gem para a vida adulta. Em outro momento, usa um outro vestido que
imaginei pertencer à filha ausente de Das Dores, talvez da festa de 15
anos dela, meio rosa, meio cobre, meio salmão e curtinho, como se
Zezita Matos
como Das Dores
não coubesse bem.
Nicolas Hallet /Aurora Cinema

99
Débora Ingrid
como Alfonsina

100
Nicolas Hallet /Aurora Cinema

Marcélia Cartaxo,
Zezita Matos
A maioria dos vestidos foi confeccionada para o filme. Como os teci-
e Claudio Jaborandy dos eram novos, houve esse trabalho de vivência, de lavagens, amoleci-
mentos na bacia d’água e tingimentos, para as peças não ficarem com
cara de novas. Consegui comprar também alguns tecidos mais velhos
de uma loja que encontrei em Petrolina, que já estavam guardados no
almoxarifado. Para fazer a calça camuflada marrom, que não poderia
ser verde por causa da paleta de cores do filme, comprei um tecido de
oxford que era mole demais e o desafio era torná-la encorpada. A solu-
ção para criar uma rigidez foi costurar por dentro um forro mais pesado
e depois houve um processo de envelhecimento com lavagens e lixa,
para dar mais vivência.

101
Gosto muito do trabalho artesanal. Prefiro terceirizar a construção em
si, contratar costureiras e bordadeiras, que trabalham como eu quero,
mas também com alguma liberdade artística. Sou melhor no envelhe-
cimento, em coisas como tingir, lavar e lixar, mas terceirizo muito essas
funções também. Acho que o que definiria bem meu trabalho seria o
próprio processo de pesquisa e construção, desde o momento solitário
de ler o roteiro até as trocas com os departamentos relativos ao figurino
e especialmente com o elenco.

O rigor daquele ambiente também é representado pela predominância


de cores terrosas e pela própria elegância em um sentido arcaico, de
cortes sóbrios. Fujo desse estereótipo em um ou outro momento, às ve-
zes apenas em detalhes no meio da figuração. Eu estava seguro porque
sou do Agreste e já tinha feito muitos filmes no Sertão. Eu já estava no
projeto desde o início da gestação. Anos antes do começo da pré-pro-
dução, comprei um vestido que sabia que poderia servir para a A história
da eternidade, mesmo ainda sem saber como. Acabou sendo usado por
Marcélia Cartaxo na festa de aniversário de Alfonsina. Encontrei em um
brechó, era bem antigo, vintage, azul carbono com roxo, com uma es-
pécie de trama de fitinhas bem delicadas, com um forro de cetim, como
se tivesse pertencido a uma pessoa rica do interior.

Fomos para o Sertão um mês antes das filmagens para produzir quase
todo o figurino lá. Levamos do Recife apenas coisas aleatórias que cor-
respondiam a 10% do trabalho. Foi um grande desafio, pois não conhe-
cíamos as costureiras, brechós e os lugares onde compraríamos os ma-
teriais, e as pessoas da região hoje em dia já não usam mais as roupas
que aparecem no filme com aqueles tons terrosos. Encontrávamos uma
ou outra peça garimpada. Achar costureiras disponíveis também era di-
fícil porque todas estavam absorvidas pelos fabricos industriais. No caso
dos vaqueiros, ainda se usa chapéus e roupas de couro, que eles ainda
vestem como proteção contra os espinhos da vegetação.

102
Tagore Suassuna como
João Heleno dos Brito e JOÃO HELENO DOS BRITO
Harumi Harada como Ono
Yoka, casal protagonista de As principais referências do curta-metragem João Heleno dos Brito, de
João Heleno dos Brito Neco Tabosa, eram o faroeste e a cultura hippie dos anos 1960 e 1970.
Eu poderia viajar à vontade nos elementos, com um equilíbrio entre
realidade e psicodelia, com toques hare krishna. Fiz coletes para os per-
sonagens com tecidos de forração. Era um curta com muitas trocas de
roupa e um elenco grande. O banho de sangue foi o momento mais
desafiador, com duplicatas de 20 roupas que precisavam ser produzidas
por nós, pois você não encontra o mesmo modelo repetido em brechós.

Fotos Pedro Escobar

Luiz Simão como um dos


Capangas dos Arapuan

103
Figuração
João Heleno
dos Brito

104
Chico Lacerda/Surto & Deslumbramento/Ponte Produtoras

Júlio Emílio,
ator coadjuvante A SEITA
Inicialmente, A seita, de André Antônio, seria um curta-metragem, mas
virou um longa porque o projeto tinha, literalmente, “muito pano pra
manga”. Dividi esse figurino com Alysson Santos, que também é estilista
e se ocupou mais do personagem principal, enquanto eu assumi os co-
adjuvantes e a figuração. Queríamos criar um universo atípico, gay, que
se passava no futuro, com um estilo pintoso e fashion, com detalhes
punk. Usei principalmente roupas de brechós e de acervos, pois o filme
tinha um tom retrô, meio anos 1950 e 1960. Trabalhar com André Antô-
nio foi fantástico porque ele tem um conhecimento de moda e de cine-
ma. Ele nos deu liberdade para criar. As camisas de mangas compridas,
por exemplo, que não são normais para o calor do Recife, sugeriam uma
afetação, um refinamento. O diretor de arte Thales Junqueira alertou
que as roupas não poderiam ter cara de brechó. Gosto muito do resul-
tado e acho que conseguimos provocar um estranhamento nas plateias.
Acho que nos inspiramos mais na moda do que no cinema.

105
Fotos Chico Lacerda/Surto & Deslumbramento/Ponte Produtoras

A seita
Figuração de

106
Leonardo França/Aurora Cinema

Paulo Ricardo
no camarim de FIGURINO E POLÍTICA
A história da eternidade
Fui o primeiro e por muito tempo o único figurinista negro no cinema
pernambucano. É um pioneirismo desbravador. Trabalhar com figuri-
no e ser uma pessoa negra e LGBT significa enfrentar três preconcei-
tos. Já houve até um caso de uma figurinista negra que foi destratada
em uma loja de shopping onde foi buscar roupas para uma produção
em São Paulo. No audiovisual, essa já é uma área bastante preterida,
mesmo quando os profissionais são brancos. Eu pessoalmente luto para
valorizar nosso trabalho e sempre compartilho nas redes sociais quan-
do algum figurinista ganha um prêmio, por exemplo. Acho importante
batalhar por esse reconhecimento. Em um set de filmagens, é normal
esperarmos horas por causa da afinação das luzes ou do conserto dos
cenários, mas os figurinistas são sempre obrigados a executarem tudo
rápido. Nós, figurinistas, estamos lutando por respeitabilidade e já ven-
cemos algumas batalhas. É um trabalho muito árduo. Quando brigamos
pelo figurino, estamos brigando pelo filme. Fazer mal ao figurino é algo
que pode acabar com um filme. O figurino é a primeira coisa que vemos
nos personagens e pode transmitir aspectos como o estado de espírito,
a classe social e o posicionamento político.

107
Foto André Antônio

108
“Quem se define, se limita.
Não quero que me rotulem
e nunca vou estar vinculado a nada”

Sosha (Sócrates Rodrigues) tem a autoimagem e a moda como os


principais gatilhos para suas criações. No desejo de se destacar, se
expressar e realizar filmes experimentais apresentando seu próprio
universo repleto de referências à cultura pop, o multiartista buscou
autonomia e independência nas suas produções, tanto que acumula
diversas funções nos seus trabalhos. Assinou todos os figurinos, ma-
quiou, dirigiu, fotografou, editou e produziu a maioria de seus filmes.
Sem recursos e despreocupado com classificações, Sosha incorpora o
conceito do “do it yourself”. Os curtas Lotta love (2011), Eyes without
a face no Recife (2012), Metrópole (2013), Recife XXI (2014), GIF (2015),
A lenda do galeto vegano (2016) e Prysmah (2016) compõem a filmo-
grafia do artista.

109
Cássio Bonfim

Minha história começa na vontade de se destacar e se expressar. Sem-


pre entendi que a indumentária era um veículo de expressão.

Comecei a frequentar um lugar no Recife que se chamava Fun Fashion,


ali atrás do Shopping Boa Vista, onde se juntavam todas as tribos. Foi ali
que rolou o boom, onde comecei a me identificar com essa questão

110
de estilo, porque ali as pessoas buscavam ser originais. Comecei a criar
vestimentas, aproveitar retalhos, pedaços de roupas, jeans e tecidos para
costurar nas minhas próprias roupas, no lema punk da Vivienne West­
wood: “Do it yourself”. Eu produzia muito em cima desse tema: “Não
tenha medo de ser julgado”. Não me preocupava também com o acaba-
mento, queria só expressar o que sentia através da indumentária.

Acervo Sosha

111
A partir daí, conheci uma pessoa que era representante da Vicunha
Têxtil e comecei a frequentar eventos de moda oficiais. Esse amigo ti-
nha conhecimentos técnicos, mas precisava da minha ajuda para saber
quem eram as pessoas do meio, para poder fazer contato. Ele conhecia
coisas como tecelagem, padrão de qualidade e acabamento, enquanto
eu sabia os nomes de todas as modelos, designers e tipos de roupas. Eu
era um assistente dele, podemos dizer assim. Sempre li revistas, mesmo
aquelas bem cafonas sobre a moda mais hegemônica, e depois passei a
acompanhar tudo também pela internet.

O conceito “do it yourself” me deu várias possibilidades, não só na in-


dumentária, mas também na fotografia e nos vídeos que fazia e editava.
Vi que essa possibilidade se expandia além da moda. Comecei de uma
forma muito despretensiosa no cinema e na moda, mas passei a levar a
sério mesmo quando as pessoas começaram a reconhecer meu traba-
lho enquanto um artista de fato. Aí foi quando me aprofundei mais em
Créditos de GIF,
ter um domínio de tudo.
um filme de Sosha

Super Sosha Magazine

112
Super Sosha Magazine
Eu frequentava as festas na cidade e sentia um distanciamento entre as
pessoas, principalmente em relação aos mais marginalizados. A gente
estava no mesmo lugar, mas ao mesmo tempo a gente estava distante,
então meu processo criativo parte muito de um universo de rejeição.
Essa rejeição me deu a possibilidade de criar meu universo e tive auto-
nomia total da minha obra. Eu mesma comecei a fazer maquiagem, edi-
tar, fotografar, chamar as pessoas, elaborar as ideias e criar os figurinos
com as minhas próprias mãos.

Quando trabalhei no festival Janela Internacional de Cinema, percebi


que alguém estava projetando meus filmes no mezanino. Foi quando
conheci Chico Lacerda, André Antônio e o pessoal da Surto & Deslum-
bramento. Eles já gostavam muito desses trabalhos, que eu ainda não
levava muito a sério.

As pessoas não constroem nada sozinhas, mas, perante a logística do


cenário hegemônico nacional, não busquei veículos no qual pudesse
alavancar minha carreira. Simplesmente aconteceu, caiu nas graças das
pessoas que trabalhavam profissionalmente na área, fui tocando para
frente e até hoje está me rendendo frutos.

Comecei a criar no audiovisual porque tinha a sensação de que meus


desenhos e pinturas não eram suficientes para alcançar as pessoas
da maneira que eu queria. Com a era da digitalização, comecei a ex-
plorar vários recursos que tinha em minhas mãos ligados à internet,
vídeo e fotografia. O intuito de produzir audiovisual sempre foi para
divulgar a minha imagem como artista e meus outros trabalhos, não
só os audiovisuais.

113
Fotos Caetano Costa e Sosha/Super Sosha Magazine
LOTTA LOVE
Lotta love foi totalmente despretensioso. Eu não tinha anseio por beleza.
As pessoas que estão fora desse universo das artes, do audiovisual e da
fotografia esperam que a arte sempre seja bela, mas nem sempre é por
aí. Nunca tive vontade de exibir algo com primor, delicadeza ou sutileza.
Queria mesmo era mostrar o meu universo, juntar os signos que tinha na
minha cabeça e tocar isso pra frente de uma maneira bem descontraída e
divertida. Se está gerando uma repercussão boa para meu trabalho como
artista, então vou continuar fazendo.

Eu imaginava o personagem de Lotta love como um ser meio prostitu-


ído pela cidade, vivendo todas as aversões de viver no Recife. Ele refle-
te muito o abandono de todas as coisas que a cidade empurra para a
marginalidade. É uma questão de revisitar nossa cidade. Fiz com que as
pessoas enxergassem a maravilhosa cidade que vivemos.

114
Super Sosha Magazine
Linda de Morrir,
protagonista de
Eyes without face
EYES WITHOUT FACE NO RECIFE
no Recife
Os meus figurinos são algo totalmente sem limites, como no filme Eyes
without face no Recife, em que a roupa tem vários olhos de papel pre-
gados. Peguei o tecido de uma cortina, cortei, costurei à mão e chamei
minha amiga Linda de Morrir para participar.

São olhos sem face, olhos navegando e é assim que me sinto às


vezes. Sinto que esse corpo que tenho não vale de nada e o que
importa para mim é o meu olhar, como se eu fosse olhos flutuando.
Não sinto como se eu fosse essa imagem que todos veem, sou sim-
plesmente olhos. Minha obra é a soma de tudo que me circula, assim
como das pessoas que falam comigo, das coisas que estou fazendo
no momento. Não me vejo como independente porque eu preciso
da cidade, preciso das pessoas que também moram na cidade, preci-
so ver a cidade respirando.

115
A pegada pop existe para invocar as pessoas a assistirem e gerar signos
para ficar mais marcante. Quando criamos uma obra, temos nossas con-
cepções. Fica bem claro que Eyes without face no Recife foi inspirado na
música, mas fica a critério do espectador captar a referência através do
seu próprio olhar. A gente que trabalha com arte está aí para criar sen-
sações nas pessoas. As pessoas devem se sentir felizes ou tristes, achar
feio, bonito ou cômico, não cabe a mim encaixar esse pensamento. É
como se meu corpo fosse uma tela em branco e eu fosse preenchendo.
Acho interessante fazer refletir através da roupa assim como traduzo
isso com os pincéis.
Super Sosha Magazine

116
Fotos André Antônio e Chico Lacerda/Super Sosha Magazine

METRÓPOLE
O primeiro look do filme emitia uma coisa do século XIX e eu queria
que na película ficasse uma coisa expressionista, podemos dizer assim,
com esses efeitos de traços de luz e de cor. Era o look de uma pessoa
que estava prestes a enfrentar tudo o que viesse pela frente, tanto que
ela estava com a mala na mão. É uma personagem que estava disposta
a tudo, que precisava ser leve e colorida, precisava passar uma sensação

117
Sosha com o segundo look

Fotos André Antônio e Chico Lacerda/Super Sosha Magazine


ao lado de Chico Lacerda
como o Bofe Coxinha

de liberdade. O segundo look era um vestido longo que comprei, com


uma barra que eu mesmo fiz, e funcionou muito bem com a pegada
expressionista da fotografia de Chico Lacerda.

Para o terceiro look, me inspirei em Liza Minnelli na cena da canção


Mein herr do musical Cabaret. Tem um chapéu cloche, um sapato ox-
Sosha e André Perez
como Vlada
ford, uma camisa navy e uma calça cortada, meio cintura alta. É uma

118
pele mais pálida, com cores que vazam o contorno do rosto. Eu não
me inspirava em nada pontualmente, era uma mistura, com referências
também de Galliano e Pat McGrath, a melhor maquiadora do mundo,
naquela sobrancelha meio arco e naquele tracinho meio Greta Garbo,
uma coisa meio diva dos anos 1920.

Fotos André Antônio e Chico Lacerda/Super Sosha Magazine

119
Super Sosha Magazine
RECIFE XXI
Vivienne Westwood, Galliano e Karl Lagerfeld são alguns dos designers
que tiveram uma referência muito forte na minha construção de in-
dumentária. Recife XXI tem uma coisa bem forte com o universo da
moda. A personagem interpretada por Brenda Bazante sai de Londres,
que é uma capital fashion, uma das capitais da moda, pega um avião da
Chanel e desce no Recife.

Inicialmente, o primeiro look de Recife XXI foi pensado através da his-


tória da atriz Brenda Bazante, que fez serviço militar no Rio de Janeiro.
Por isso, a personagem tem algumas roupas que remetiam a esse mo-
mento, que achei um fato super interessante. Era o primeiro filme dela
e eu queria deixá-la mais confortável e familiarizada, então achei que
precisava ter um pouco de quem ela é. A fotógrafa Annie Leibovitz diz
que você precisa conhecer um pouco da história da personagem para
fotografá-la e fazê-la se sentir bem, aí você cria todo o universo. Um dos
papéis da direção é deixar o elenco confortável. Foi com essa pré-con-

120
cepção que montei o primeiro look, uma jaqueta militar e uma saia de
tule. Achei interessante misturar algo super arrojado com algo super
delicado. É uma coisa que vem muito dos orientais, do life style retra-
tado na revista japonesa Fruits Magazine. Os jovens de Osaka mistura-
vam coisas que eu achava super inusitadas e foram aflorando na minha
cabeça, para me dar a possibilidade de pensar além do que a moda do
Ocidente trazia. Estilistas como Rei Kawakubo, por exemplo, são muito
ousadas nesse sentido e não estão preocupadas com regras. Grandes
designers orientais quebraram paradigmas, com roupas totalmente des-
proporcionais, que vazam da silhueta do corpo humano. Tanto na ma-
Brenda Bazante, téria-prima quanto na textura, são roupas que não querem exatamente
protagonista
de Recife XXI
serem belas, como seria na Chanel ou nos vestidos Armani.
Super Sosha Magazine

121
Fotos Super Sosha Magazine
Alexis Colby
como Tanya Em uma cena de Recife XXI, Brenda tira o salto, guarda dentro da bolsa
e calça uma rasteirinha. Resolvi implementar no filme um hábito das
modelos, que sempre andam com um salto na bolsa porque na vida real
ninguém aguenta ficar de salto 15 horas por dia, por mais confortável
que seja. A personagem Tanya, a amiga dela, tem muitas referências das
divas dos anos 1920 e de Joan Crawford.

122
Brenda sentiu desconforto quando vestiu o maiô, mas eu disse para ela
que era domingo de manhã e fazia um calor de 38 graus, então ela po-
deria estar super à vontade como se estivesse na praia, de salto. Quan-
do ela percebeu que estava mesmo uma delícia, começamos a filmar.
Todo mundo precisava estar em clima praieiro. A galera realmente se
entregou ao máximo, de shortinho, chinelo e sunga na Rua da Aurora e
na Rua do Sol. Já vi a beira do Rio Capibaribe ser usada como praia em
fotos antigas dos anos 1950 e 1960 no centro do Recife, assim como a
beira do Sena é usada em Paris para piqueniques e para as pessoas be-
berem cerveja. Queria traduzir essa possibilidade para o cidadão recifen-
se. Eu, pessoalmente, passei a usar apenas shortinhos no Recife depois
que peguei menos 20 graus de frio na Europa e percebi que nós usamos
calças jeans por uma questão de estilo, porque, na verdade, elas servem
Tanya e Brenda para esquentar.
na Praia Aurora
Super Sosha Magazine

123
Super Sosha Magazine

Personagem Tita
ao lado do espelho GIF
d’água no Complexo
Cultural da República Em GIF, o personagem de shortinho é a Tita, que sempre foi uma pessoa
muito ousada. Eu quis dar um clima de beira da piscina, pois acho que,
naquele projeto de Niemeyer, com água no meio de todo aquele con-
creto extremamente quente, aquilo de fato é uma piscina, tanto é que
inúmeras performances de artistas de Brasília usam aquilo como piscina
há décadas. É algo que traduz o desejo que os brasilienses sentem por
piscinas públicas.

124
Fotos Super Sosha Magazine
La Conga Rosa,
protagonista de GIF,
A personagem sai do Museu Nacional da República como se fosse uma
saindo do Museu
Nacional da República obra de arte que tivesse se libertado dali. O figurino foi baseado em um
look da coleção de alta costura da Dior para o inverno de 2009. Achei
que casava com aquele cenário todo branco. É uma saia tulipa, botas
vermelhas, óculos de sol, peruca amarela e um sutiã que fez minha ami-
ga sentir como se tivesse seios, que era um desejo dela e eu achei que
a deixaria com mais conforto.

Tita e
La Conga Rosa

125
Super Sosha Magazine
La Conga Rosa,
protagonista PRYSMAH
de Prysmah
A questão da cartela de cores vem muito do pensamento sobre o que
contrasta no plano. Como meus filmes geralmente são muito externos,
procuro contrastar ao máximo com o que os ambientes oferecem. Não
tenho domínio sobre as locações, pois são espaços públicos, e procuro
não deixar os personagens muito carregados, mas eles têm uma iden-
tidade própria onde as cores são elementos-chave para que se desta-
quem em meio à escuridão ou em meio à luz. A utilização das cores é
imprescindível. Nos espaços que uso como locação, sempre procuro
dar uma cor que destoa totalmente daquilo, para dar mais vida ao per-
sonagem. Na maioria, meus filmes são mudos, então a indumentária
entra mais forte para eu me expressar de uma forma mais intensa.

126
Super Sosha Magazine

127
O figurino de Prysmah partiu muito de orientações sobre fotos que as
pessoas do elenco mandavam. Escolhi roupas interessantes para aquele
cenário de concreto de Brasília. Queria que o principal destaque fosse
a personagem La Conga Rosa. Eu queria remeter a uma estudante uni-
versitária, com uma roupa bem leve e despojada e, ao mesmo tempo,
que tivesse uma personalidade que não seja muito comum. Queria que
as pessoas vissem que existia um trabalho de cabelo, de maquiagem
e de construção de styling. A segunda troca de roupa remete a uma
bruxa, quando ela veste um vestido longo, com uma make inspirada no-
vamente na Pat McGrath quando assinou o primeiro desfile da Maison
Margiela para Galliano. Criei uma bruxa fashion.

Isabel Coelho/Super Sosha Magazine

128
Sosha abrindo o desfile de

Acervo Sosha
Theodoro Sadi na Galeria
Joana d’Arc em 2009

SOSHA
Quando entrei em uma loja de Rick Owens em Estocolmo, comecei a vas-
culhar as peças e perguntei: “Essa roupa é feminina ou masculina?” Disse-
ram que “nessa loja não existe isso e se você gostou da peça, você pode
levar”. Isso é algo que sempre trouxe pra mim. Quando vestia vestidos, saias,
maquiagens e perucas, nunca pensava nessa coisa do não binarismo, algo
já muito mercantilizado na moda. Eu já era isso, mas nunca discuti a res-
peito. Um amigo me convidou para gravar um vídeo falando sobre uma
marca enquanto uma pessoa trans. Respondi que, sinceramente, preferia
não participar porque sempre fui a pessoa que eu quis, sempre usei saltos e
vestidos, mas nunca me preocupei se eram para homem ou mulher. Acho
muito desagradável mercantilizar a sexualidade das pessoas.

Acho cafona quando as pessoas do Recife enchem a boca para falar o


sobrenome. O nome Sosha tem essa conotação política. É uma abre-
viação do meu nome, sem sobrenome, sem essa coisa ultrapassada. Às
vezes sinto que algumas pessoas acham que Sosha é uma personagem,
mas eu surfo nessa onda e gosto dessa ambiguidade porque é através
disso que a gente se torna uma lenda. Quem se define, se limita. Não
quero que me rotulem e nunca vou estar vinculado a nada. Parto desse
pressuposto. Quero ser “fluido como a água”, como já dizia Bruce Lee.

129
Foto Kennel Rogis

130
“Precisamos repensar toda
a geografia humana
e não só o que estamos
comunicando por meio das imagens”

Maria Esther de Albuquerque passeou por diversas referências no


curta-metragem queer futurista Os últimos românticos do mundo
(2020), de Henrique Arruda, lançado na Mostra de Cinema de Tira-
dentes. Divas pop, drag queens e punks se misturam a materiais inu-
sitados, que extrapolam a silhueta do corpo, como latas de cerveja,
plástico bolha, luz pisca-pisca, isopor e pedaços de fôrmas de bolo.
O trabalho rendeu a Esther seu segundo prêmio de melhor figuri-
no no festival Curta Taquary. O primeiro foi conquistado pelo curta
Geronimo (2018), da realizadora Anny Stone. Assinou o figurino dos
longas-metragens Organismo (2017) de Jeorge Pereira, selecionado
para Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e Janela Interna-
cional de Cinema do Recife, e Noites alienígenas (em fase de finali-
zação), de Sérgio de Carvalho. Entre outros, também é a responsável
pelo figurino dos curtas Volta seca (2019) de Roberto Veiga, Rosário
(2019) de Igor Travassos e Juliana Soares, A menina banda (2018) de
Breno César e Nanã (2017) de Rafael Amorim.

131
Anny Stone

Set de Organismo
Desde criança, sempre gostei de cortar roupas e customizar. Minha mãe
conta que até ficava nervosa quando chegava em casa depois das com-
pras e eu já queria passar a tesoura nas roupas novas. Ela era amiga de
Izabel Carvalho, que me influenciou desde bem pequena, com seis anos
de idade, a aprender a costurar.

Na adolescência, não me identificava com o gosto das pessoas do


bairro onde morava, Boa Viagem, o que me fez perceber questões de
identidade relacionadas à maneira de se vestir. Entrei na faculdade de
Moda do Senac e percebi que as alunas e professoras estavam mui-
to ligadas nesse universo Vogue das fashion weeks. Todo mundo era
fashionista, algo que nunca fui, pois sempre me vi, na minha maneira
de ser, no contrafluxo. Havia também aquela ditadura da moda, do jei-
to certo de se vestir para ser aceita, do corpo dentro de padrões, algo
que não tinha nada a ver comigo. As referências ainda eram as revistas,

132
já que poucos blogs existiam. Quando descobri o blog RIOetc, lembro
de perguntar às professoras qual era a identidade da nossa década
2000-2010 e não souberam responder por estarmos passando por ela.
Só dá pra construir uma identidade de uma década quando passamos
por ela.

Sempre fui muito mais fascinada por esse lugar comportamental da coi-
sa do que pela moda enquanto moda. Um pouco antes, fiz também
muitos cursos com a própria Izabel, principalmente de modelagem, que
já era minha área preferida e me fez querer ser modelista quando eu
tinha 17 ou 18 anos.

Quando cursei a disciplina de figurino, meu pai era amigo das atrizes
da peça A árvore de Júlia e me levou para conhecer o camarim, os
bastidores. Fiquei encantada. Começou assim, vi que eu gostava. De-
pois que terminei a faculdade, Cláudio Assis estava para começar a
filmar Febre do rato e meu pai, que é músico, também era amigo da
figurinista do filme, Joana Gatis, que me convidou para trabalhar como
estagiária, sem cachê.

Quando cheguei em Febre do rato, na pré-produção, começamos a


trabalhar no processo de envelhecimento porque o filme seria em pre-
to & branco. Joana me explicava que as texturas eram mais importan-
tes do que as cores e que não deveríamos usar tons muito chapados
de branco ou de preto. Foi fantástico aprender tudo isso com ela, com
a primeira assistente Renata Carrazoni e com Paulo Ricardo, produtor
de figurino, a quem eu ajudava na organização da figuração. Nessa
época, ainda não sabia nada sobre trabalhar com cinema, nem sequer
sabia ler a ordem do dia.

133
Bárbara Hostin/Filmes de Marte

Camarim da boate onde


Magexy e as Lunáticas
se apresentam
OS ÚLTIMOS ROMÂNTICOS DO MUNDO
Nas primeiras reuniões do curta Os últimos românticos do mundo, junto
com o diretor Henrique Arruda e com o diretor de arte Carlota Pereira,
entendemos que queríamos encontrar um fio estético entre o ano de
2050 e o momento atual. Precisávamos de um meio termo, um elo entre
passado, presente e futuro. Uma das referências do filme era o episódio
San Junipero, da série Black mirror, do Netflix, com uma história que pula
de tempos em tempos. Falei que achava interessante uma proposta de
contracultura, de nichos revolucionários que se colocaram como marcos
históricos, como o movimento punk. Foi o primeiro filme em que tive
uma abundância de criação e pude me expandir como figurinista.

A personagem Magexy era uma drag queen que tinha uma personalida-
de bem romântica, mas em sua versão Pedro vestia uma jaqueta preta,
então era meio dúbio. Miguel já é mais calmo, só que sem chegar a ser
careta, como alguém que circula no meio das artes mas não é neces-
sariamente artista e pode ter um emprego mais formal, com uma des-

134
Os protagonistas Pedro

Foto Esquerda Bárbara Hostin/Filmes de Marte | Foto Direita Sylara Silvério/Filmes de Marte
(Carlos Eduardo Ferraz) e
Miguel (Mateus Maia) jovens

contração sugerida por uma roupa mais folgada. O desafio era encontrar
um mesmo figurino, exatamente as mesmas roupas, que servisse para
os dois personagens vestirem nas versões mais jovens e também quan-
do ficassem idosos, sem ser caricato. Chegamos então a uma identida-
de de velho punk, que são essas pessoas que estão aí pelo mundo, com
70 anos de idade, sempre gostaram de rock e nunca deixaram de se ves-
tir e de viver com o mesmo estilo de vida de quando eram mais jovens.

Bárbara Hostin/Filmes de Marte

Atores Gilberto Brito e


Sóstenes Fonseca como
Pedro e Miguel mais velhos

135
Breno César/Filmes de Marte

Eles usam bota de exército porque é como se estivessem a caminho de


uma guerra, como se fugissem para lutar, com aquelas jaquetas pesa-
das. Ao mesmo tempo, sentem-se desconfortáveis com o calor do Reci-
fe em um sol rachante, principalmente quando o carro quebra. Aí de re-
pente começam a cantar, fazer uma performance, o que dá uma leveza
para a imagem, e de repente estão em uma cachoeira, nus. Como exis-
tem esses contrapontos, esses balanços meio flutuantes, eu não queria
que tudo ficasse colorido e cantante, como nos grandes musicais, até
porque eles são personagens inconformados.

136
No contrafluxo disso tudo, surgem as referências que eram uma exi-
gência do diretor, que é muito ligado na cultura das divas pop. Ele que-
ria uma citação direta ao clipe Telephone, de Lady Gaga e Beyoncé,
quase um remake, com aquela loucura irreal. Ele mostrou também um
outro clipe com Britney Spears de vermelho, mas era uma produção
que ficaria muito cara. Para o show de Magexy, levei Madonna, com
Carlos Eduardo Ferraz cones nos peitos.
como Magexy
Bárbara Hostin/Filmes de Marte

137
Acervo Maria Esther de Albuquerque

Foi engraçado fazer referências diretas às divas pop, coisas grandiosas,


com orçamento pequeno. Eu mesma bordei as tachinhas no casa-
co de Pedro, inspirado em Lady Gaga. Na jaqueta de Miguel, que era
Beyoncé, costurei vários brincos bem fora de moda, com pedrarias co-
loridas loucas. Para o sutiã no estilo de Madonna, comprei uma fôrma
de bolo em um atacadão, fiz um furo no meio e pedi para um soldador
cortar nas laterais e fazer a presilha. O fogo cuspia e não atingia o ator
graças ao mecanismo de um vulcãozinho de fogos de artifício. Tam-
bém coloquei em Magexy uma hot pant de lurex alta prateada, um cin-
to com mini espelhos inseridos por mim e uma peruca de cabelo rosa,
liso, brilhante e espelhado, inspirada nos cabelos dos maracatus. Ca-
milina, minha assistente, foi uma figura primordial e muito importante
na construção dos figurinos. Por ela ser aderecista, nós conseguimos
realizar e materializar vários elementos.

138
Fotos Bárbara Hostin/Filmes de Marte

Magexy e as Lunáticas

139
As ideias das saias grandes, tipo godê, balonê, veio de uma necessida-
de de ocupar melhor o espaço do palco, uma preocupação de Carlota.
Tive a ideia de fazer as saias com plástico-bolha a partir de uma refe-
rência que Henrique mostrou. Fizemos a estrutura de arame, preen-
chemos e acrescentamos luzes pisca-pisca. As atrizes também trouxe-
ram muitos acessórios maravilhosos. Xuxa também foi uma referência
trazida por Henrique, que adotamos na construção dos diademas de
algumas meninas.

O capacete foi feito por Camilina com uma bola de isopor. Os bobs com
latas de cerveja também são de Lady Gaga em Telephone. O filme su-
gere a ideia de que as roupas foram feitas pelos próprios personagens,
tudo é meio reciclado. Acho muito rico aquele detalhe da jaqueta jeans
com o nome do filme escrito nas costas, bordado por mim, que é base-
ado em um desenho da artista Laura Pascoal.

O rosa era a cor de referência geral, mas em alguns detalhes tive mais liber-
dade, como no público da boate, onde caberia de tudo, como uma perso-
nagem de chapéu grande baseada em uma boneca de Toy story, um cara
com bermuda de ciclista, pessoas com máscaras e um casaco que piscava.
Bárbara Hostin/Filmes de Marte

140
Bárbara Hostin/Filmes de Marte

Sharlene Esse
como Cindy Vina A mãe de Miguel tinha que ser glamourosa. Me inspirei na beleza das
travestis antigas do teatro, que se montam completamente. Uma coisa in-
teressante do filme é que a mãe de Pedro é interpretada por uma travesti
que faz o papel de uma cis. O roteiro sugere que ela é uma professora, que
corrige tarefas, aí pensei em uma roupa mais fechada, com saia depois do
joelho, organizada, engomada, com ombreiras, bonita, que quebrava a
ideia de estar em casa. Imaginamos que ela estava arrumada para aguar-
dar o fim do mundo, como em um lugar de passagem, de despedida.

Os últimos românticos do mundo foi um filme muito inclusivo em relação


a travestis, não só entre as atrizes, mas também por trás das câmeras. Ain-
da existe muito machismo, misoginia, gordofobia, transfobia e racismo no
meio cinematográfico. Eu quero fazer um cinema que fure essa bolha e
construa um pensamento autocrítico. Precisamos repensar toda a geogra-
fia humana e não só o que estamos comunicando por meio das imagens.

Atualmente vivemos em um momento de caretice crescente. Nesse


contexto, o exercício era imaginar o risco de, em 2050, voltarmos para
valores de antigamente. É um mote muito atual porque o governo é fas-
cista e tem gente propagando a ideia de que o apocalipse será culpa dos
gays, como se houvesse uma nuvem rosa que vai engolir tudo. Eu não
queria trazer para o filme elementos do agora, da cultura da roupa sinté-
tica produzida em um esquema escravocrata que libera resíduos tóxicos

141
Sylara Silvério/Filmes de Marte
na natureza e contribui para o processo do fim do mundo. Na cena da
cachoeira, por exemplo, um dos personagens veste uma ceroula e o
outro está com uma cueca branca de copinho, diferente dessas cue-
cas atuais elásticas moldadas no corpo. Acho mais interessante o mo-
vimento da re-roupa, do brechó, das trocas, de não consumir mais em
lojas de grande escala, como uma forma de pensar no planeta. Quando
você se concentra em elementos comerciais, não vai fazer diferença se
o filme é em São Paulo, na China, no Chile ou em Caruaru, pois as mes-
mas peças são vendidas em todos os lugares. Hoje em dia, os jovens
fumam menos cigarro do que antes do ano 2000 e cada vez mais gente
está deixando de comer carne. Na moda, temos que prestar atenção
no crescimento dessas vertentes anti-hegemônicas também, pois os
grandes desfiles já não ditam mais as identidades das pessoas. No filme,
os personagens não usam celular, ouvem um rádio antigo e dirigem um
carro velho. Lápis e papel são coisas que nunca vão deixar de existir.

142
Inquieta/Divulgação
Bianca Joy Porte
como Helena e Rômulo ORGANISMO
Braga como Diego
No desenvolvimento do figurino de Organismo, pesquisei sobre a forma
como se vestem os cadeirantes e as pessoas com deficiência. Algumas
usam camisas e calças divididas em duas, com um velcro nas laterais
para soltar a parte da frente, por exemplo. Preferem camisas de botão
porque sentem dificuldade de retirar a camiseta pela cabeça. Usam bo-
tões que abrem e fecham com ímãs, pois às vezes não podem usar as
mãos. O diretor Jeorge Pereira me ensinou muito a partir das próprias
experiências dele. Não é uma realidade fácil. No caso do filme, entre-
tanto, o personagem interpretado por Rômulo Braga tinha alguém para
ajudá-lo 24 horas por dia e era um cara de classe média, com privilé-
gios, além de ser egocêntrico, intransigente e orgulhoso. Era uma pes-
soa acostumada a não precisar de ajuda, que de repente se vê naquela
situação de dependência em relação aos outros.

143
O figurino que desenvolvi para a atriz Bianca Joy Porte tem muita re-
lação com a personalidade da personagem. Ela é uma mulher linda,
mas que é muito altruísta e generosa, sem muita vaidade, movida pelo
amor romântico. Ela poderia ser mais independente, mas mantém uma
dependência emocional. Gosta de se arrumar, mas se mantém no pa-
drão, com tecidos mais fluidos, sem querer ser sexy. Não chega a ser
reprimida ou oprimida, mas faz uma espécie de autossabotagem ao não
assumir que é prejudicada pelo comportamento do namorado diante
daquela situação.
Inquieta/Divulgação

144
Foto Melissa Haidar

145
“Todo figurino é político,
pois temos o poder de modificar
as pessoas ao mudar
os olhares sobre as pessoas”

Joana Gatis utilizou os signos da estética brega em um enredo de


drama psicológico no longa-metragem Amor, plástico e barulho
(2013), de Renata Pinheiro, premiado no Festival de Brasília. Entre
o sonho e o declínio, a cultura da periferia na qual as personagens
estão inseridas é evidenciada pelo uso de cores, brilho, lantejoulas
e materiais sintéticos em roupas carregadas de sensualidade, emba-
ladas pelas canções do tecnobrega. Assinou outros longas pernam-
bucanos premiados, como Baixio das bestas (2007) e Febre do rato
(2012) de Cláudio Assis, Azougue Nazaré (2018) dirigido por Tiago
Melo, pelo qual venceu o prêmio de melhor figurino no Fest Aruan-
da, e Carro rei (2021) de Renata Pinheiro, além de filmes paulistas
como Hotel Atlântico (2009) de Suzana Amaral, Meu mundo em pe-
rigo (2007) e Se nada mais der certo (2008), ambos de José Eduardo
Belmonte, Tungstênio (2018) de Heitor Dhalia e A febre (2019) de
Maya Da-Rin. Foi também diretora, argumentista e atriz principal do
curta-metragem Soledad (2015).

146
Por ser filha de artistas, sempre vivi no meio da arte. Minha mãe tinha o
hábito de fazer roupas para mim, minha irmã e meus irmãos. Ela nunca
foi de ir às lojas e comprar tudo pronto, preferia costurar e fazer na cos-
tureira. Eu adorava desenhar e pegar pedaços de retalhos para fazer as
roupas das minhas bonecas. Uma das minhas diversões era me montar
e apresentar espetáculos para a família. Virar outra pessoa já fazia parte
das minhas brincadeiras desde pequena.

Morava em Caruaru, cidade do interior, e estudava em um colégio de


freiras. Eu me vestia diferente, já tinha minha vestimenta como uma lin-
guagem de expressão. Usava roupas, joias e maquiagem da minha mãe
e já cheguei a ser suspensa da escola por causa disso. Fui ficando ado-
lescente e gostava de ficar antenada, sempre muito ligada em música.

Quando fui morar em São Paulo, logo depois de concluir o colegial,


comecei a trabalhar com roupas, como produtora de figurino, assistente
da stylist Lara Gerin. Fizemos editoriais durante uns três anos. Foi aí que
começou a surgir essa vontade de criação. Fiz curso de estilismo e co-
mecei a conviver com o métier da moda, mas logo me desiludi, pois ter
uma grife exige muito investimento.

Depois de São Paulo, morei em Olinda, uma cidade muito importante


para mim, onde participei do coletivo de estilistas Mulheres do Mundo,
que tinha uma loja e vários eventos de moda, como desfiles ao ar livre,
junto com Carol Azevedo, Joana Pena e Camila Guedes. Sou amiga de
Cláudio Assis e sempre me oferecia para trabalhar com ele, sempre dava
umas cantadas. Quando ele me convidou para trabalhar em Baixio das
bestas, eu já tinha sido assistente de figurino em televisão e outras lin-
guagens, tinha alguma experiência de set, sabia como funcionava uma
produção audiovisual, mas ainda não tinha experiência com cinema.
O filme dele foi meu primeiro trabalho em cinema, já assinando como
figurinista de um longa-metragem. Foi minha primeira vez e senti que
me encontrei ali, era disso que eu gostava.

147
Antônio Melcop/Aroma Filmes
Maeve Jinkings como
Jaqueline Carvalho AMOR, PLÁSTICO E BARULHO
e Nash Laila como Shelly
Amor, plástico e barulho tem duas protagonistas com uma força dra-
mática muito forte, mas que são bem distintas entre si. Coloquei muito
brilho e lantejoulas nas duas, só que por motivos diferentes. Eu tinha
dois biotipos diferentes, mas não podia deixar uma muito maior que a
outra. Eu não poderia escolher um vestido que favorecesse uma delas
pois essa não era a ideia do filme.

148
Fotos Antônio Melcop/Aroma Filmes
Shelly, interpretada por Nash Laila, tem todo aquele deslumbre quase
adolescente, meio espevitada e meio ingênua. Para reforçar essa juventu-
de, trouxe algumas referências orientais, do Japão, da cultura dos mangás.
Procurei trazer essa leveza para o figurino, mas ao mesmo tempo com
sensualidade, só que sem virar uma coisa de Lolita, pois isso seria contra
minha religião feminista. Ela também sabe usar tudo isso a seu favor, o
poder da novinha, uma coisa muito forte no brega daquela época.

149
Com Jaqueline, me identifiquei mais, pelo fato de ser mãe, ser uma mu-
lher mais velha, independente, sexualmente forte e, por outras questões,
como esse cansaço do métier, quase desistindo do show business. Era
dolorido. Eu me via muito nela e chorava quando conversava sobre isso
com Maeve Jinkings.

Maeve precisou quebrar muitas barreiras para vestir o figurino de


Jaqueline. Inicialmente, ela me disse que não tinha condições de
usar aquele biquíni, mas depois foi à praia, morrendo de vergonha,
aí apareceram umas meninas que adoraram, ficaram passadas, acha-
ram “tudo”. Ela confirmou então que aquela peça não era para ela,
era para Jaqueline. Entender as personagens e os corpos das atrizes
é um trabalho psicológico e técnico de extrema importância. Várias
daquelas questões também iam de encontro ao que eu acreditava,
por causa do fetichismo e do machismo, mas cheguei a um resultado
que me deixou feliz.
Antônio Melcop/Aroma Filmes

150
Fotos Antônio Melcop/Aroma Filmes

Leo Pyrata como DJ Perigo

151
Antônio Melcop/Aroma Filmes
Tivemos bastante contato com artistas do brega, mas seria melhor um
pouco mais, se houvesse mais tempo disponível para a pré-produção.
Dedesso, vocalista da banda Vício Louco, estava sempre com a gente. A
cantora Michelle Melo participou do processo e inspirou muito Maeve.
Os dançarinos também ficaram muito próximos de nós. Senti um gran-
de reconhecimento quando fomos filmar e o pessoal do brega achou
o figurino incrível. Considero essa a maior retribuição que recebi pelo
trabalho. Antes do filme, costumava ir a alguns shows de brega, mas,
depois de ter essa aproximação maior, percebi que minha visão era su-
perficial. Hoje faço essa crítica a mim mesma porque não dá para ser
superficial. Muitas daquelas dançarinas têm uma vida como a de Jaque-
line, com filhos novos, e ainda precisam ter força para serem suscetíveis
aos homens. É algo que vai muito além das correntes nos pescoços, das
saias e dos shorts curtinhos. É uma coisa social e me questiono sobre
o olhar que temos da periferia. Fazer Amor, plástico e barulho foi como
receber um tapa em relação à profundidade desse lugar.

Acredito que todo figurino é político, pois temos o poder de modificar


as pessoas ao mudar os olhares sobre as pessoas. O mínimo que posso
fazer é que meu trabalho seja uma ferramenta de transformação. Eu te-
ria ficado muito triste de colaborar para o emburrecimento das pessoas
ao trabalhar em certos filmes, mas essa culpa não carrego. Também
não quero fazer cinema para o ego, para tomar champanhe em Cannes.
Tem que acabar com esse formato burguês, temos que desconstruir
muita coisa.

152
Tive muita sorte de ter trabalhado com Xuxu em Amor, plástico e ba-
rulho. Se não fosse ela, como costureira e modelista, talvez o resultado
não tivesse ficado tão maravilhoso com todos aqueles materiais. O
brega romântico da época envolvia muita lycra, calças jeans super jus-
tas, sutiã, brilho, bolerinhos e shortinhos com os bolsos saindo, todos
bordadinhos. Os homens também estavam nessa linha do sintético,
sem quase nada de algodão. Xuxu tinha muita sagacidade de fazer
de uma forma rápida, pensada para o cinema, que não precisava de
acabamento interno, mas que por fora estivesse impecável. Não é fá-
cil fazer um bom acabamento com lycra no corpo da atriz. Para fazer
um collant de lycra, não basta costurar os lados, como na cena em
que Shelly está com aquele macacão vermelho vazado com correntes,
listrinhas e uma gola alta. É todo um conjunto de elementos que en-
volve também Dona Meirelles, maquiadora e caracterizadora que fez o
cabelo frisado. É um momento em que a personagem está no inferno
e vira uma capeta.
Antônio Melcop/Aroma Filmes

153
Antônio Melcop/Aroma Filmes
Comprei algumas coisas em lojas, mas as modelagens nem sempre eram
boas e também não encontrávamos as peças com as cores que precisá-
vamos, pois cada personagem tinha sua cor. Não queríamos roupas lisas,
tinha que ter brilho e tinha que ter uma sujeira boa. Aquele corpete, que
Shelly usa quando fica com Allan, foi todo pintado por mim. Naquela blu-
sa preta mesclada de Allan, a gente aplicou umas tachinhas. Quando eu
mostrava as peças para Renata Pinheiro, ela sempre falava que queria ver
minha mão mais presente ali. Às vezes, eu achava que já estava pronto,
mas ela sempre queria mais. Primeiro fazíamos as provas de figurino, de-
pois íamos customizar as roupas e tingir até a hora de filmar.

154
Fotos Antônio Melcop/Aroma Filmes
A direção de fotografia também queria pontos com luzes, o que nos fez
colocar muito brilho também nas roupas dos homens. Tem brilho até na
poça d’água que aparece na abertura com o título do filme. Amor, plásti-
co e barulho tem toda essa coisa da decadência e do brilho, seja o brilho
da bebida ou da música em alto volume. Quando você tira a ilusão, o
que resta é o normativo. Nas cenas do cotidiano delas, as roupas são
mais normais. Ninguém sustenta esse brilho o tempo inteiro e Jaqueline
é a prova de que isso cansa. No figurino, tudo foi pensado, inclusive os
momentos em que elas estão tristes.

155
No meu computador, salvo imagens de tudo o que acho bonito de
outros artistas pelo mundo. São referências que carrego comigo, tan-
to para meu trabalho com figurino quanto para meu trabalho de ar-
tes plásticas. Sempre que vou fazer um filme, acesso esse banco de
dados, cato uma coisa ou outra e faço um painel lindo, mas não
sou aquela figurinista que apresenta uma enxurrada de referências
para o diretor. A minha criação vai além disso. No Amor, plástico e
barulho, desenhei uma infinidade de croquis. Antes de desenhar, fui
no Bate-Papo, a casa de shows de brega onde filmamos, para foto-
grafar o público e conversar com as meninas. Foi todo um trabalho
de pesquisa e de fotografias de rua. Meu caminho não é recortar e
colar referências, prefiro fazer um caldeirão de tudo e depois botar
pra fora. Prefiro aproveitar apenas a gola de uma referência e mistu-
rar com outra cor para criar um universo paralelo. Acho sem graça
pegar o que já existe e simplesmente vestir nos atores, pois a forma
como você envelhece as peças e faz a caracterização é um trabalho
de construção criativa.

Hoje em dia, quem quiser me contratar precisa saber que tenho um


modelo de equipe. É triste ver o desestímulo de figurinistas com 50
anos de carreira sem o reconhecimento merecido. Nesse sentido, até
percebo que minha geração do cinema pernambucano tem ama-
durecido tecnicamente e profissionalmente. Isso traz força para o fi-
gurino. Um trabalho pensado faz a diferença. O núcleo do figurino
tem várias vertentes que envolvem assistentes, caracterização, cos-
tureiras, produtoras e modelistas. É uma equipe grande e as pessoas
precisam ter a consciência dessa importância, mesmo quando a pro-
posta é ser mais documental.

156
Aroma Filmes/Divulgação
Luciano Pedro Jr. como
Uno, Matheus Nachtergaele CARRO REI
como Zé Macaco e Jules
Elting como Mercedes Em Carro rei, o figurino é uma parte muito forte da narrativa e é onde
melhor consigo enxergar minha maturidade enquanto figurinista. A pro-
dução aceitou minhas condições sobre a composição da equipe e o tra-
balho fluiu. A primeira assistente, Vanessa Martinez, era a produtora, que
ia para a rua, como se fosse meu segundo olho. A segunda assistente,
Anália Nogueira, ficava ao meu lado o tempo inteiro, organizava pastas e
cuidava de coisas mais burocráticas, mas às vezes ia para a rua também.
A caracterizadora Mauricéia Conceição, com quem tenho uma química
muito boa, fazia toda a parte de envelhecimento, de tingir, envelhecer e
lavar as peças novas. Trabalhamos com quatro costureiras porque havia
uma grande demanda por macacões. Não trabalho com camareira, to-
das cuidam do camarim e todas precisam saber fazer bainha. Acredito
que um bom figurinista tem que começar no camarim fazendo serviço
de camareira. No set, a equipe diminuía e ficávamos apenas três pes-
soas, com uma assistente para desproduzir e outra para ficar ao meu
lado. No set, eu não me faço presente, não toco nos atores, pois sei que
aquilo incomoda. Prefiro ficar o tempo inteiro no monitor do video as-
sist. Sempre falo para as meninas não chamarem mais o ator pelo nome
depois de vestirem as roupas, pois tenho um respeito absurdo pelo tran-
se do elenco. A gente veste o ator e cuida dele, mas não mexe com o
personagem, que tem uma energia muito forte.

157
Fotos Aroma Filmes/Divulgação
Clara Pinheiro
como Amora O figurino de Carro rei é bastante atual, com muitas mulheres que
vestem peças consideradas masculinas e também o contrário. Uma
das personagens principais é uma pessoa não binária. Um figurinista
que diferencia roupas de mulheres e de homens, que ainda pensa
Jules Elting, intérprete dessa forma, precisa mudar um pouco os conceitos porque o mundo
de Mercedes, é artista já está adiante.
não binária

158
AZOUGUE NAZARÉ
Azougue Nazaré foi um dos últimos trabalhos que fiz nessa contramão
de trabalhar praticamente sem orçamento e foi com ele que ganhei
meu único prêmio de figurino, no Fest Aruanda. Uma parte das rou-
pas era do próprio elenco ou foi confeccionada pelos próprios atores.
Selecionamos os caboclos-de-lança, por exemplo, e acrescentamos
alguns elementos novos, como os óculos, mas todos eles já estavam
quase prontos. As roupas de Darlene (interpretada por mim) e Tita
(Mohana Uchôa) vieram do meu acervo. Na época, eu estava com um
acervo gigante formado principalmente por sobras de outros filmes.
A vantagem é que já estava tudo meio preparado, tudo pronto para
usarmos, já com envelhecimento. Um acervo de figurino de cinema
Caboclo-de-lança, é muito diferente da publicidade ou da moda porque são roupas mais
personagem do propositalmente envelhecidas.
maracatu rural
Gustavo Pessoa/Lucinda Filmes/Urânio Filmes

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Mohana Uchôa
como Tita

Joana Gatis como


Darlene e Valmir do
Coco como Catita
Fotos Gustavo Pessoa/Lucinda Filmes/Urânio Filmes

160
Foto Sâmia Emerenciano

161
“Não consigo ser totalmente
naturalista, carrego sempre algo
lúdico comigo, algo de fantasia.
Meus figurinos são sempre muito estéticos”

Babi Jácome estudou na Escola de Belas Artes da UFRJ com especia-


lização em indumentária e, durante sua formação, passou por diver-
sas experiências como estagiária de escola de samba e assistência de
figurino em publicidade, séries e longas. Essas diferentes vivências
contribuíram para a existência do componente lúdico como marca
de suas criações audiovisuais. Foi assistente das séries Cara metade
(2011) de Julia Rezende, Adorável psicose (2011) de Gustavo Cher-
mont e África da sorte (2018) de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, e
do longa Eu não faço a menor ideia do que eu tô fazendo com a mi-
nha vida (2012) de Matheus Souza, lançado no Festival de Gramado.
Assinou os longas-metragens Superpina: gostoso é quando a gente
faz! (2018) de Jean Santos e Frei Damião: o santo do Nordeste (2019),
dirigido por Deby Brennand, a série para TV Os ovos da raposa (2018)
de Valdir Oliveira, além dos curtas O amor é uma construção bur-
guesa (2016) de Alexandre Mortagua e Quando chegar a noite, pise
devagar (2021) de Gabriela Alcântara.

162
Tenho uma relação muito próxima com minha avó paterna, que é
como uma segunda mãe para mim. Ela tinha uma marca chamada Be-
nélia, que é o nome dela. Comprava peças de manufaturas e colocava
a própria etiqueta. A loja funcionava na sala da casa onde ela morava.
O quarto onde eu dormia às vezes ficava cheio de sapatos, bolsas e
roupas, adorava experimentar tudo. Também sempre ouvi histórias rela-
cionadas ao modo de se vestir de minha avó materna, que não cheguei
a conhecer pessoalmente, mas de quem posso ter herdado algo. A mãe
do meu ex-padrasto também tinha uma confecção no Rio de Janeiro.
Quando viajava para lá, um dos programas das férias que eu amava era
passear pelas ruas de Copacabana para ver as vitrines antigas, algumas
dos anos 1950.

O audiovisual sempre esteve muito presente na minha vida por causa


de pessoas da família e amigos delas. Quando eu era criança, frequen-
tava a TV Viva e participava do elenco de comerciais. Lembro de uma
campanha do Hiper Bompreço, quando escolhi o vestido que eu mais
gostei, como um primeiro marco na minha memória infantil dessa re-
lação entre audiovisual e figurino. Na época, os VTs publicitários não
tinham figurinistas.

Quando eu tinha 14 anos, minha irmã morava em Barcelona e me convi-


dou para passar as férias com ela, para fazer um curso de dança, pois na
época eu queria ser bailarina. Percebi que as pessoas da cidade tinham
ousadia em relação à moda. Reparei muito nas formas de vestir e nos
núcleos étnicos, pois via gente do mundo todo, de diferentes culturas.
Fomos juntas a um cinema que exibia clássicos e assistimos à Morte em
Veneza. Fiquei completamente chocada com as locações, os cenários,
o figurino e a fotografia do filme. Foi aí que comecei a fazer uma ligação
entre os elementos do audiovisual enquanto arte, criação e estudo.

Estudei no curso de Artes Cênicas, com especialização em Indumen-


tária, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro. Quando entrei na faculdade, queria ser carnavalesca de escola de
samba. Fui estagiária do barracão da Imperatriz Leopoldinense, colando
paetê, pedrinhas e plumas durante três meses. Sempre tive, desde crian-
ça, um fascínio pelas histórias contadas pelas fantasias dos desfiles car-
navalescos. Como sou de Olinda, sempre brinquei Carnaval com uma
fantasia para cada dia. Começava a fazer as fantasias já em dezembro.
Isso faz parte da minha construção como figurinista e como estilista.

163
Babi Jácome, atriz Mayara

Sâmia Emerenciano
Millane e Thaís Carneiro,
assistente de figurino, no set
de Os ovos da raposa

No Rio de Janeiro, fiz meus primeiros trabalhos profissionalmente na


área de figurino, como assistente em filmes publicitários, de empresas
como Banco do Brasil e Guaraná Antarctica, grandes produções. Em
2011 fiz duas séries de TV do canal Multishow, Adorável psicose, com
direção de Gustavo Chermont e roteiro de Natália Klein, que também
era a protagonista, e Cara metade, de Julia Rezende, em ambas como
assistente de figurino de Melina Akerman.

164
Em 2012, participei do longa-metragem Eu não faço a menor ideia
do que eu tô fazendo com a minha vida, de Matheus Souza, também
como assistente de Melina. É um filme de baixo orçamento, com
Clarice Falcão.

O curta O amor é uma construção burguesa, de Alexandre Mortagua, foi


o primeiro trabalho no cinema que assinei como figurinista, junto com
Raquely Ramalho. Foi filmado em São Paulo. Gosto muito por causa da
fantasia da loucura, com roupas baseadas na noite paulistana under-
ground. Considero que foi mais uma escola.

Em Pernambuco, meu primeiro trabalho em audiovisual foi a minissérie


África da sorte, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira. Fui assistente da
figurinista Rita Azevedo, que é uma pessoa minuciosa, eficiente, metó-
dica e perfeccionista em todos os detalhes, como na organização do
camarim. Outra experiência que foi uma grande escola para mim foi a
série Os ovos da raposa, onde fiz o figurino e aprendi muito com Chris
Garrido, responsável pelo desenho de figurino. Trabalhei também como
produtora de figurino no longa-metragem Propriedade privada, de Da-
niel Bandeira, junto com a figurinista Andrea Monteiro, uma das pessoas
que mais me deu apoio e ensinamentos, que sempre me recebeu muito
aberta, com muito carinho. Meu trabalho de conclusão de curso foi uma
monografia sobre o trabalho dela no figurino de Amarelo manga.

Com Rita, aprendi a metodologia de criação. Com Garrido, a fazer pes-


quisas minuciosas, detalhistas e muito ricas. Com Andrea, a treinar o
olhar para o que as pessoas vestem, seus modos e escolhas.

165
Fotos Érica Rocha/Baba Produções

Dandara de Morais
como Paula SUPERPINA
Superpina: gostoso é quando a gente faz! é um longa-metragem produzi-
do a partir de verbas destinadas originalmente para videoclipes e um cur-
ta, que foram todos lançados primeiro separadamente e depois juntos em
forma de longa. Nas filmagens, já sabíamos que haveria o longa. Quando
entrei no projeto, havia referências cinematográficas para o figurino e um
direcionamento criativo já elaborado pela atriz principal, Dandara de Mo-
rais. Diante de nossa realidade de tempo e orçamento, sugeri pensarmos
nos personagens de uma forma ao mesmo tempo realista e bastante es-
tética, sem naturalismo. Minha proposta era assumir o absurdo e certa
loucura, pois era uma história fantasiosa sobre uma galera do Recife.

166
Tiago Calazans/Baba Produções

Paulo César Freire


como Augusto A proposta era pensar em como o recifense se diverte, o que está na
e Inês Maia como Sônia moda na cidade, exagerar nisso, assumir a loucura, o absurdo e deixar
tudo muito colorido. É um filme com humor, uma viagem. A ideia é
divertir. Apesar de cansativos, os dias de filmagem também foram en-
graçados, com um clima brincalhão. Quase todas as pessoas da equipe
estão na figuração, todo mundo vestiu a camisa. Não tínhamos tempo e
nem dinheiro para uma produção de figuração mais técnica. Nas roupas
dos figurantes, procurei seguir a cartela de cores para fazer algo minima-
mente bonito sem atrapalhar a narrativa.

167
Pedro Luna/Baba Produções

168
A cabeça do Fofão foi criada pelo diretor Jean Santos e pela diretora de
arte Lia Letícia. Ele é uma mistura entre animador de festa infantil, perso-
nagem de programa de TV, Carreta Furacão e bonecos de propaganda
de lojas, borracharias e supermercados. O mascote da marca Michelin
foi uma das referências que usei. As roupas dele foram construídas do
zero. Em uma das cenas, ele está um pouco mais produzido, com um
macacão verde e lilás com espuma por dentro para criar lombadas.

Nathália Gomes/Baba Produções

169
Bersa Mendes/Baba Produções
Nathália Gomes/Baba Produções

Iza do Amparo
como Dona Isaura A personagem interpretada por Iza do Amparo é um exemplo de como
meus figurinos podem representar a forma como vejo as coisas, uma vi-
são muito minha. Quis trazer um pouco da energia de algumas mulhe-
res de Olinda, que estou acostumada a ver desde criança, meio bruxas,
mágicas, como as artistas plásticas Tereza Costa Rêgo, Silvia Pontual,
Guita Charifker, Marília Lacerda, Marisa Lacerda e a própria Iza. É uma
mulher mais velha e cheia de vida dentro de si.

170
Érica Rocha/Baba Produções

O vestido vermelho usado por Dandara na cena do show estava descri-


to no roteiro como “Buceta Flamejante”. Pegamos um vestido de festa e
colamos um triângulo vermelho no peito, as chamas e os botões, para
trazer uma coisa meio carnavalesca com um tom de diva.

171
Érica Rocha/Baba Produções

172
Fotos Aline Belfort

Mohana Uchôa
como Caia QUANDO CHEGAR A NOITE, PISE DEVAGAR
Não consigo ser totalmente naturalista, carrego sempre algo lúdico co-
migo, algo de fantasia. Meus figurinos são sempre muito estéticos, talvez
porque minha influência inicial tenha sido Morte em Veneza. No curta-
-metragem Quando chegar a noite, pise devagar, dirigido por Gabrie-
la Alcântara, decidi que os personagens teriam cores específicas bem
marcadas. Como os personagens da história têm seus orixás, tentamos
respeitar essa dinâmica de cores do candomblé.

173
A pesquisa de figurino para o curta foi bastante baseada nas roupas dos
frequentadores dos bares da Rua Mamede Simões, no centro do Reci-
fe. Não mandamos fazer nada. Cerca de 70% das roupas eram do meu
acervo ou foram emprestadas. Pedi também roupas de algumas pessoas
que encontrei e fotografei durante as pesquisas. Eu tinha muita cons-
ciência sobre o que a diretora precisava porque ela é uma das minhas
melhores amigas, assim como a atriz principal, Mohana Uchôa, também
é uma grande amiga. Diferente de Superpina, o filme de Gabriela Alcân-
tara não tinha abertura para coisas loucas.
Fotos João Penna

174
João Penna

175
Pablo Lopes/Fábrica Estúdios
Carlos Eduardo Ferraz
(em destaque) como FREI DAMIÃO
Frei Damião jovem
Frei Damião: o santo do Nordeste, de Deby Brennand, é um documen-
tário intercalado por momentos lúdicos e poéticos, que me permitiram
trabalhar com uma cartela de cores bem marcada em sintonia com a
direção de arte e a fotografia.

O filme foi realizado em parceria com a Igreja Católica, o que facilitou


minha vida absurdamente porque nos emprestaram tudo o que pedi-
mos. Mesmo assim, tivemos que fazer toda uma pesquisa porque as
roupas usadas pelos freis de hoje em dia não são as mesmas das épocas
retratadas. Estudei bastante as fotos e materiais de arquivo.

Algumas das peças que aparecem no filme costumam ser usadas por
padres apenas em conferências ou ocasiões especiais e exigem muitos
cuidados. São coisas bordadas à mão, cheias de recomendações, muito
luxuosas, que mostram como a igreja do passado tinha mais elementos
fantásticos do que tem hoje.

176
João Vigo
As roupas dos monges de hoje ainda são iguais às antigas, mas os ma-
teriais mudaram. O tecido atualmente é sintético, de poliéster, mas na
época era natural, de linho. O cordão atualmente é de nylon e antiga-
mente era de algodão. Decidi procurar freis que ainda guardavam os
originais antigos e consegui pegar alguns emprestados.

Fotots Pablo Lopes/Fábrica Estúdios

177
Pablo Lopes/Fábrica Estúdios
Babi Jácome
e Andrade Júnior A foto de Frei Damião mais antiga que tínhamos para usar de referência
foi feita no dia da cerimônia de entrada dele na congregação na Itália.
Para as cenas da infância, na primeira década do século XX, costuramos
tudo a partir de pesquisas sobre famílias italianas da época. Tive a sorte
de contar com um estudioso de Frei Damião, que prestou consultoria
ao filme e contribuiu para o figurino. Também troquei muitas informa-
ções com minha avó, que é uma católica fervorosa.

Para interpretar Frei Damião nos anos 1990, o ator Andrade Júnior preci-
sou usar próteses na barriga e nas costas, feitas com espumas de nylon,
construídas por Cris Malta e Andrea Afonso, da equipe de maquiagem.
Montávamos juntas por ser bastante trabalhosa. Para a corcunda caber,
pegamos uma roupa maior do que o tamanho dele. É um hábito normal
de monge, mas amarrado com um tipo de nó específico que eu tive que
aprender a fazer.

178
Foto Dani Neves

179
“Minha grande inspiração são as pessoas.
Já tenho como hábito sempre observar
o estilo das pessoas por onde ando”

Chris Garrido foi a primeira figurinista brasileira a ganhar o Prêmio


Fênix de melhor figurino, conhecido como o Oscar Ibero-America-
no, na Cidade do México, em 2014, por seu primeiro longa-metra-
gem Tatuagem (2013), dirigido por Hilton Lacerda e grande vence-
dor do Festival de Gramado. Pela mesma obra, também foi indicada
ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (2014). No longa, Garrido
construiu, por meio da anarquia e do deboche, um vestuário de épo-
ca que suscita resistência política e uma reflexão sobre o conceito
de liberdade. No seu currículo, entre séries e longas, acumula traba-
lhos de destaque, como Pacarrete (2019) de Allan Deberton, grande
vencedor do Festival de Gramado, Açúcar (2017) de Renata Pinheiro
e Sérgio Oliveira, Lama dos dias (2018), minissérie do Canal Brasil
dirigida por Hilton Lacerda e Helder Aragão, Lucicreide vai pra Mar-
te (2021) de Rodrigo César e Fim de festa (2020), de Hilton Lacerda,
vencedor do Troféu Redentor de melhor filme no Festival do Rio.

180
Suzanne Queiroz
A primeira coisa que me fez gostar de figurino foi o Carnaval. Meu pai
amava a festa na rua e minha mãe os bailes nos clubes. Aprendi a gostar
de todo tipo de folia. Todos os anos da minha infância, meu pai me pre-
senteava com uma roupa de havaiana, dessas bem baratas que vendiam
no comércio do centro da cidade. Eu amava. Sempre gostei de fantasias.
Dancei caboclinho e pastoril e amava as roupas de São João da escola.

Na adolescência, comecei a fazer minhas próprias fantasias e a de algu-


mas amigas. Então, em relação a ter vontade de fazer figurino, o que me
fez botar a mão na massa foi o Carnaval e minha relação afetiva com as
manifestações folclóricas de Pernambuco.

Outra influência forte foi a convivência com minha avó materna. Meus
avós eram espanhóis. Meu avô era uma pessoa muito rígida e resistente à
cultura brasileira, então vivi bastante dentro da cultura espanhola. Trouxe

181
meu olhar para um mundo diferente do mundo daqui. Vovó ouvia valsa
e tinha coleções de leques e luvas. E eu não conhecia mais ninguém
com esses hábitos. Nas minhas fotos de infância, todas as minhas rou-
pas são da Espanha. As que não vinham de lá, minha avó fazia. E eu
gostava de me vestir diferente das outras pessoas.

Sou formada em Turismo pela Universidade Católica de Pernambuco. Logo


em seguida comecei a cursar Jornalismo na mesma instituição. Meu pri-
meiro trabalho em cinema foi como jornalista. Fui assessora de imprensa
do curta Cachaça, de Adelina Pontual, lançado em 1995. Muitos professores
da faculdade eram ligados ao cinema, como Celso Marconi, Alexandre Fi-
gueirôa e Jomard Muniz de Britto. No primeiro dia de aula, conheci Hilton
Lacerda, e a partir daí criamos uma amizade e parceria no trabalho.

O que me levou para o figurino no audiovisual foi minha experiência


como produtora na TV Viva, no programa de auditório Tela viva. Eu cui-
dava de tudo, inclusive das roupas do apresentador. Era a época em que
o movimento Mangue estava fervilhando e um monte de coisas estava
despontando na música, no cinema e nas artes plásticas. Fizemos video-
clipes de bandas como Mundo Livre S/A, produzimos muita coisa bacana,
às vezes por pura diversão. Foi uma época incrível e muito inspiradora.

Na TV Viva, participei também da cobertura das filmagens de Baile perfu-


mado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, que acompanhamos durante qua-
se um mês, produzindo o programa Tela viva em paralelo ao set do filme.

No final da década de 1990, grandes campanhas publicitárias começa-


ram a ser realizadas no Recife. Isso me ajudou muito a ter experiências
com um olhar mais completo para o set de filmagem. Comecei a traba-
lhar com figurino e produção de elenco.

Eu já tinha interesse por roupa, fazia fantasias de Carnaval para amigas,


organizava bazares e gostava muito de tingimentos. Sempre gostei de
roupa, mas não com um olhar de moda. Era um olhar muito mais de
comportamento, de entender roupa como atitude.

Meu primeiro trabalho como figurinista no cinema oficialmente foi no


curta Café Aurora, de Pablo Polo. Depois fiz assistência de elenco no
longa-metragem Lisbela e o prisioneiro, de Guel Arraes. Fui assistente
de figurino no filme musical A luneta do tempo, de Alceu Valença, en-
carregada especialmente de confeccionar as roupas dos cangaceiros,
inspiradas no Baile perfumado.

182
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Elenco da Trupe Teatral
Chão de Estrelas
TATUAGEM
Tatuagem foi o primeiro longa que assinei como figurinista. Eu tinha
muita intimidade com o roteiro, que Hilton escreveu em parte na minha
casa, onde ele se hospedava quando vinha de São Paulo. Não senti o
peso de ser um primeiro trabalho por causa da minha relação com ele
e porque eu já tinha certeza sobre o que queria. Estava muito segura.
Tinha aquele roteiro na ponta da língua.

183
Em Tatuagem, havia o cotidiano dos personagens e os espetáculos
que eles encenavam. O figurino que eles usavam no palco precisava
parecer ter sido feito por eles. Por isso, às vezes, eu tinha que proposi-
talmente deixar as roupas meio mal feitas. Para a cena do pastoril, por
Jesuíta Barbosa como exemplo, meus assistentes me trouxeram roupas de pastoris da peri-
Arlindo Araújo, o Fininha, feria, mas não consegui usar. Preferi partir do zero, produzir tudo para
e Irandhir Santos como
Clécio Wanderley
poder rasgar e descosturar.

Flávio Gusmão/Carnaval Filmes

184
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes

185
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes

Os atores Erivaldo
Oliveira e Irandhir Recebi 645 peças de roupa emprestadas da equipe de Tatuagem. Isso
Santos foi uma coisa linda. Eu tinha um elenco enorme e um grupo de 30 per-
sonagens do Exército que tomava todo meu orçamento. A roupa mais
importante do filme, por exemplo, veio de uma sacola de roupas trazida
por Amanda Gabriel, preparadora de elenco, que é o casaco de Clécio
uando ele canta a música de Caetano Veloso. Cheguei a ir a São Paulo
procurar esse casaco e não encontrei o ideal, que era inspirado em Ca-
etano no exílio. Não podia ser muito pesado porque, na época retratada,
um artista periférico como Clécio não teria acesso a coisas do resto do
mundo e eu queria trazer isso para a realidade tropical. Quando abri a
sacola de Amanda, vi um bolero e na hora decidi que aquela seria a peça
a ser usada por Clécio. É linda essa história. Como o próprio persona-
gem diz para Fininha, eu não pensei no calor, pensei na elegância.

186
Muita coisa foi construída manualmente nesse figurino. O clima do set
era muito bonito. Foi um trabalho coletivo bonito e isso ajudava muito
diariamente. Todo mundo se ajudava. Aquela procissão, filmada em su-
per-8, que é um momento lindo, ainda não tinha figurino definido um
dia antes. Acabou virando uma das principais fotos de divulgação do
filme. A trupe era de 13 pessoas, separei umas três opções para cada um
Rodrigo García e definimos tudo em uma hora.
como Paulete
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes

187
Fotos Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Na pré, todos os dias, no final do dia, os atores se reuniam para ensaiar e
criar os espetáculos. Eu ficava para assistir com Hilton. Esses espetáculos
não estavam no roteiro, então ainda não tinha como ter figurino. Foram
criados ali no ensaio. Isso já estava combinado. Para enfrentar um desa-
fio assim, você tem que estar muito imersa para dar conta e não pode
transmitir insegurança. E foi muito divertido de fazer.

188
Fotos Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Criar o figurino junto com os atores é uma coisa com a qual a gente
precisa ter muito cuidado. Como preciso da personalidade do perso-
nagem, preciso também entender como o ator está entendendo essa
personalidade da personagem. Por isso estou sempre muito junto dos
atores e eles estão sempre pelo camarim.

189
Outro momento muito importante do filme é a música cantada por
Dolores del Samba, personagem interpretada por Yasmim Salvador, que
nessa cena dubla a voz de Isaar. O sabor da melancia, de Tsai Ming-
-Liang, era uma das principais referências de Hilton, mas é um filme de
muitos figurinos de alta costura e não tínhamos orçamento para re-
produzir aquilo. Mas eu sabia da importância dessa cena para Hilton e
contei com a ajuda de amigos para confeccionar esse figurino. Decidi
elaborar esse vestido em segredo. Nos intervalos das filmagens, ia es-
condida encontrar com Clesinho Santos e Márcia Lima, na grife Período
Fértil, que era perto da locação. Disse a eles que queria fazer uma coisa
inspirada nos mantos de maracatu. Eles me presentearam com um teci-
do bege que dava pra fazer o estilo que eu queria, que era aquela coisa
tubinho com uma leve cauda. O charme era o desenho. Eu não sabia se
ia dar certo e se ia conseguir terminar a tempo. Comprei um monte de
galões, cortei todas as flores à mão com Clesinho e fomos preenchen-

Flávio Gusmão/Carnaval Filmes

Everton Gomes

190
Nash Laila

Flávio Gusmão/Carnaval Filmes


do o vestido. Acrescentamos uns caminhos de linha para completar.
Quando terminei, vesti Yasmim e a levei para Hilton. O olho dele encheu
de lágrimas. No dia de filmar, Ivo Lopes, o diretor de fotografia, fez uma
surpresa e mudou a movimentação de câmera para valorizar mais o
figurino. Foi a coisa mais linda do mundo. Quando acabou a cena, todo
mundo chorou no set nesse dia. Isso traz uma força que você vê na tela.

Apesar de nossos olhares serem muito realistas, adotamos essas licen-


ças poéticas, mas ao mesmo tempo conseguimos respeitar a época.
Hilton, inclusive, pediu que não usasse calças boca de sino, que eu só
encaixei em um único detalhe de uma cena. No Tatuagem, o grupo de
teatro Vivencial foi uma inspiração por causa da época, mas o figurino
deles era muito diferente.

191
Os diferentes núcleos de personagens funcionam de forma muito sepa-
rada. Decidi ser mais fiel à época apenas no caso dos militares. Deu mui-
to trabalho identificar qual era o figurino militar certo. As camisetas que
eles usam nos treinamentos, por exemplo, tinham que ser 100% algodão
porque isso imprime. Um amigo nosso, Marcelo Taulbert, mandou fazer
as camisetas e cuecas e nos deu de presente. Depois eu envelheci. As
fardas foram lavadas 11 vezes com cloro na lavanderia para envelhecer
no ponto que eu queria. Foi uma construção muito difícil. Quase todo o
orçamento do figurino do filme foi usado na ala militar.
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes

192
Fotos Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Bruna Barros
como Jandira A parte da família de Fininha foi a mais fácil de fazer, que são as pessoas
do interior, pois já estou mais acostumada. O filme como um todo tem
um certo glamour, então não queria rebaixar esses personagens e fazê-
-los muito lascados. Queria trazer a elegância do povo do interior. Já a
Soia Lira como Albanita namorada dele, que tinha uma lambreta, era mais moderninha, então
e Georgina Castro resolvi colocar uma calça jeans para dar uma modernizada.
como Ceminha

193
Joana Pena

Chris Garrido, entre


os figurinos de Tatuagem, O figurino de Tatuagem teve toda uma repercussão que eu não espera-
na exposição da va, inclusive no mundo acadêmico. Fui indicada para a Academia Bra-
Cinemateca Pernambucana
sileira de Cinema. Cedi muitas entrevistas para pesquisadores. Quando
fui a Manaus, no Amazonas Film Festival, recebi um elogio de Ney Ma-
togrosso por causa do figurino. É uma recompensa que não tem preço.
Quando ganhei o Prêmio Fênix em 2014, Alejandro Jodorowsky era um
dos figurinistas concorrentes. Não esperava nunca ganhar aquele prê-
mio e já estava orgulhosa simplesmente por concorrer com ele.

194
Acervo Chris Garrido

LUCICREIDE VAI PRA MARTE


Eu queria que as fardas dos astronautas e cientistas fossem fidedignas
para não ficar caricato. Como o filme é uma comédia, correria esse risco.
Assisti a um bocado de filmes americanos e de ficção científica. Antes
de começar a filmar, entramos em contato com empresas dos Estados
Unidos, mas era muito caro alugar os uniformes. Não queria fazer com
uma costureira ou em facção de costura, queria uma empresa profissio-
nal, que tivesse registro reconhecido na confecção de fardamentos. No
primeiro dia de pré-produção, já encomendei os macacões na única
empresa brasileira que faz macacão de treinamento para astronautas.
Seria muito mais fácil trabalhar com um alfaiate ou uma confecção, até
por conta dos prazos curtos que tinha, mas eu queria uma roupa que
pudesse ser aprovada para filmar na Nasa. A Nasa normalmente não
aceita o que vem de fora, tem que ser o figurino deles. Eu sabia que era
algo entre o laranja e o azul. Eu e o diretor já tínhamos decidido que
seria azul. Íamos filmar nos Estados Unidos em dezembro, mas só con-
seguimos ir em fevereiro por causa das várias negativas que recebemos
por causa de exigências da Nasa, com um protocolo complicadíssimo.
Aí aconteceu o detalhe mais bonito: a única coisa que eles realmente
aprovaram desde o início foi o figurino.

195
Pela minha experiência com Pacarrete e Lucicreide vai pra Marte, confir-
mei que fazer um filme com uma personagem muito central é às vezes
mais difícil do que fazer um filme que tenha um volume maior de per-
sonagens principais. Pacarrete, interpretada por Marcélia Cartaxo, está
em todas as cenas do filme e o figurino muda de acordo com o humor
dela. Meu trabalho é muito emotivo. Preciso da ferramenta da emoção.

Com Lucicreide, foi difícil porque eu não queria seguir uma fórmula.
Era uma personagem que já estava no imaginário das pessoas. Fabiana
Karla estava realmente aberta a uma nova proposta, mas tentei retirar o
lenço da cabeça e ela não abria mão desse detalhe. Não consegui. Tive
que incorporar, mas fiz do meu jeito. Usamos variações de acordo com
cada roupa que ela vestia. Fiz mais de 50 lenços para Lucicreide.

Não quis ver muitas imagens anteriores da personagem na TV. Minha


ideia era partir para um figurino mais real, mais orgânico. Na TV, o figu-
rino dela é mais bonitinho, com cara de fantasia. Eu não podia trazer
para uma realidade pesada, pois é uma comédia, mas tive que buscar
um equilíbrio entre uma roupa real e uma personagem fictícia. Cuidei
de tudo na roupa dela, desde a cor das linhas e dos botões, até a com-
Lucicreide e os filhos binação de tecidos.
nas filmagens no Recife
All Screens Films / Divulgação

196
Donna Meirelles

Chris Garrido
e Hilton Lacerda INSPIRAÇÃO
no set de Fim de festa
Gente é o que me inspira. Minha grande inspiração são as pessoas. Já
tenho como hábito sempre observar o estilo das pessoas por onde ando.
Quando fui fazer Fim de festa, o último longa de Hilton, eu ficava sentada
na praia do Pina para observar as pessoas que chegavam no ponto de
ônibus, para identificar qual era a última moda do verão na periferia. Sem-
pre procuro registros reais, seja de época ou contemporâneos.

197
Dinâmicas e sensibilidades
do figurino no cinema
pernambucano
Iomana Rocha

Apesar de diversas tentativas de classificação, apesar da crítica muitas vezes bus-


car especificidades formais que o descrevam, apesar da criação de termos (como
“novo cinema pernambucano”), o cinema pernambucano é plural e heterogêneo.
Mas, dentro dessa heterogênea existência, inegavelmente há alguns aspectos que
impactam esse cinema, que delineiam os modos de produção, que expandem as
possibilidades criativas.

Este texto tem o objetivo de observar o figurino do cinema realizado no estado


de Pernambuco, em um período que se inicia no que popularmente se chama re-
tomada do cinema pernambucano e vai até os dias atuais. Assim, será observado
como alguns aspectos estéticos, culturais e práticos atravessam o modus operandi
do departamento de figurino. Diante de um recorte de profissionais, olhamos para
os processos criativos inerentes ao figurino desses filmes e como ele contribui na
construção visual e sensível desse cinema pernambucano contemporâneo.

Um pouco sobre o cinema em Pernambuco


O cinema pernambucano marcou sua presença na história do audiovisual brasileiro
em vários momentos, foram vários ciclos, cada um embebido de seu contexto cultural
e político. E em cada ciclo, esse cinema se renova, se transforma, se transfigura. Aqui
vamos observar um período de produção que se inicia a partir do que entendemos
na história do cinema brasileiro como período da retomada e segue até os dias atuais.

Iomana Rocha é formada em Arte e Mídia (UFCG), tem mestrado e doutorado em


Comunicação (UFPE), e pesquisa cinema independente e experimental brasileiro. Tra-
balha no departamento de Arte desde 2007. Fez direção de arte para diversos curtas e
longas-metragens, com trabalhos exibidos em importantes festivais nacionais e inter-
nacionais. Na área acadêmica desenvolve pesquisa sobre a direção de arte no cinema
brasileiro. É uma das responsáveis pelo seminário temático de direção de arte da
Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual – SOCINE. Faz parte do Nú-
cleo de Investigação em Direção de Arte Audiovisual – NIDAA (CNPq). Foi professora
de direção de arte no curso de Cinema da UFPA. Atualmente é professora de direção
de arte no Núcleo de Design e Comunicação da UFPE/CAA.

200
Período que a crítica se acostumou a chamar de “novo ciclo do cinema pernambuca-
no” ou apenas “novo cinema pernambucano”, mas que possui dinâmicas, processos e
mutações que o torna heterogêneo e muito mais diverso do que classificável.

Esse dito período de retomada tem como marco o filme Baile perfumado, de 1996,
dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Neste período um grupo de realizadores
promove com seus filmes uma renovação da linguagem audiovisual no estado,
com um modo de produção que se desviava do método “industrial”, propondo-se
a produzir filmes com baixos orçamentos e inovações estéticas que se diferencia-
vam do cinema mainstream.

Não existe necessariamente uma unidade estética ou formal relacionada a esse


grupo de cineastas que encabeçou a retomada pernambucana. O que pode ser
sublinhado é o vínculo afetivo que se estabelece entre eles, vínculo que originou
a famigerada terminologia “brodagem”, associada exatamente ao modus operandi
próprio dessa fase.

Mas, para além das produções serem realizadas com ajuda mútua, os vínculos
coletivos também repercutiram diretamente em um engajamento político na bus-
ca por recursos financeiros frente ao governo brasileiro, visando a legitimação e
profissionalização do cinema do estado.

Existe, inegavelmente, em Pernambuco, uma estratégia de produção que se de-


senvolveu às margens do que era comumente feito no contexto sudestino. Uma
prática colaborativa de produção, envolvendo trocas de ideias e serviços, “um con-
junto de reciprocidade e jogos de interesses apoiados numa lógica que parte do
pessoal para o profissional” como coloca a pesquisadora Amanda Mansur1.
1
NOGUEIRA, Amanda Mansur Cus-
tódio. A brodagem no cinema em
Pernambuco. 2014. 235 f.: il. Tese Para além da “brodagem”, ganha força dentro do cinema pernambucano uma
(Doutorado Comunicação) – Uni- consciência sobre o fazer coletivo. Esse fator, presente até hoje, foi decisivo na
versidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2014. produção da retomada e, nas gerações posteriores, contribuiu para a formação de
diversos coletivos de realizadores.

Nesse contexto colaborativo e coletivo, destaca-se outro importante aspecto: a


formação empírica. Esses cineastas aprenderam vivenciando cineclubes e a crítica
cinematográfica, e trabalhando uns nos filmes dos outros, exercendo funções diver-
sas. O método, associado aos baixos orçamentos de produção, colaborou com uma
inventividade estética que permeia o cinema pernambucano até os dias atuais.

Esse modo de produção, que se estabeleceu em Pernambuco a partir da década de


1990, impacta nas escolhas técnicas e nos caminhos estéticos dos filmes. O improvi-
so, o acaso, o naturalismo, passam a ser recursos de linguagem. O processo criativo
se torna orgânico, aberto, passível de mudanças e adaptações, algo tão atacado pelo
cinema de mercado, mas que ganha potência e vira marca estética em Pernambuco.
Esse naturalismo vai envolver a opção por uma linguagem mais documental, asse-
gurada por fatores como: locações reais, luz natural, não atores, câmera observativa.

Se nos anos 1990 existiu um grande empenho em busca de recursos que possibi-
litassem a produção do cinema local feito por um pequeno grupo, aos poucos foi
sendo conquistada a garantia de importantes editais estatais voltados para o audio-
visual. O que repercutiu em uma produção quantitativamente maior e gradativa-
mente mais diversa. Isso impacta de modo direto na formação e no fortalecimento
da área técnica do cinema, como é o caso do departamento de figurino.

201
Influenciado pelas inovações estéticas do cinema contemporâneo mundial, as no-
vas gerações investigam linguagens, propõem novas estruturas narrativas e pro-
blematizam a imagem cinematográfica. Assim, atrelado a certo experimentalismo,
observa-se um refino visual, uma construção sensível e simbólica que requer a
participação ativa dos processos criativos técnicos do cinema, como a fotografia,
o som, a direção de arte e o figurino.

Mantendo alguns aspectos já presentes no cinema pernambucano, como a pro-


dução colaborativa e o sistema de guerrilha, a geração mais recente de diretores se
beneficia dos editais e das facilidades do cinema digital. Os coletivos viram pessoas
jurídicas, o aprendizado empírico se mantém, mas existe uma maior experiência e
maior acesso a tecnologias, bem como o advento de cursos de cinema no estado,
que também vai impactar nos modos de produção. Podemos identificar nos filmes
dessa geração um engajamento político mais consciente, uma preocupação com
a alteridade, com os processos de urbanização da cidade e seus impactos sociais.

Diante da filmografia do audiovisual pernambucano, da retomada aos dias atuais,


existem caminhos estilísticos muito diversos, bem como diferentes abordagens
temáticas. Como já dito, o cinema pernambucano é marcadamente heterogêneo.
Todavia, existem alguns pontos recorrentes que atravessam, em diferentes medi-
das, a maioria desses filmes. Um deles é a presença de tensões entre modernidade
e tradição, entre o global e local, entre a urbanidade contemporânea e o passado
2
AGUIAR, José de; BEZERRA, Júlio;
patriarcal, entre a liberdade e o conservadorismo moral2.
PESSANHA, Marina. O novo cine-
ma pernambucano. Rio de Janeiro: Essa complexidade social proposta nos filmes vai refletir uma tentativa de compre-
Conde de Irajá produções, 2014.
ender mais profundamente os processos históricos e as contradições sociais pre-
sentes no estado. Juntamos a isso um modelo de produção atravessado por afeto e
inventividade. Aspectos que certamente agigantam o cinema pernambucano.

O figurino e seus processos


O figurinista é responsável por vestir os atores em uma obra cinematográfica. Ao
criar figurinos, o profissional colabora potencialmente na construção da imagem.
O figurino respalda a narrativa, comunica sobre o personagem, seu entorno, seu
universo pessoal. As roupas são capazes de marcar períodos históricos, eventos,
festividades, o status do personagem, sua profissão, faixa etária, origem geográfica,
personalidade, visão política e de mundo.

O processo de criação de um personagem envolve o desenvolvimento de uma


sistemática de elementos visuais que se complementam: as cores, os materiais, os
volumes, as texturas, as modelagens, dentre outros, permitem que o “espírito” do
personagem preencha o corpo do ator. E, a partir desse momento, o corpo passa
a ser parte constitutiva da imagem cinematográfica. Esse corpo vestido (ou propo-
sitalmente desnudo) não apenas fala de si, como propõe diálogos com os demais
corpos, com os cenários e com as paisagens.

Alison Lurie3 aborda o ato de vestir como uma forma de linguagem, uma forma de
3
LURIE, Alison. A linguagem das
roupas. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. comunicação não verbal composta por elementos que funcionam como uma es-
pécie de “vocabulário”, e defende que o vestuário seja talvez o mais eficiente meio
de comunicação não verbal que o ser humano usa, nos dias de hoje e há séculos.
Por meio desse jogo de interpretações, a cada aparição o figurino constrói sensa-
ções e colabora na construção do universo fílmico. Por vezes, a leitura possibilitada

202
pelos indícios do figurino aparece antes mesmo do gesto ou da palavra. Isso se dá
muito fortemente pela potencialidade cultural das vestimentas e adereços. Sobre
este ponto, La Motte4 aponta que as roupas estabelecem condições culturais, mar-
4
LA MOTTE, Richard. Costume
design: the business and art of cam lugares sociais. Os figurinos são metáforas de seus personagens.
creating costumes for film and te-
levision. Michigan: McNughton &
Gunn, Estados Unidos, 2. ed., 2010.
Quando observamos o figurino no cinema feito em Pernambuco, diante de sua
característica intrínseca de demarcar os personagens e seus contextos, é notória
a presença de escolhas que marcam, enfatizam, realçam aspectos culturais, so-
ciais, temporais e comportamentais que são próprios da cultura e da sociedade
pernambucana. Existe uma busca por representação, não aquela estereotipada
que por tanto tempo foi associada à região Nordeste pelas produções audiovisuais
nacionais, mas uma representação que observe cuidadosamente as nuances e
multiplicidades culturais que de fato constituem a sociedade.

E é diante dessas complexas dinâmicas sociais que o cinema pernambucano en-


contra muitas de suas inspirações. Os filmes aqui observados, em sua maioria,
refletem embates culturais. Dentro dessa proposta, o processo de criação dos figu-
rinos segue na busca por demarcar tais sutilezas, contrastes e especificidades que
desenham essa sociedade. Diante do que é sublinhado por essa construção visual,
as escolhas dos figurinistas refletem também escolhas políticas que, por conse-
quência, direcionam as relações de identificação entre espectador e personagem.

As estratégias para desenvolver um projeto de figurino não são padronizadas, pois


a cada filme são diversas as opções, as articulações, os caminhos. É preciso enten-
der a vestimenta, seus aspectos sociais e culturais e como cada peça irá funcionar
em cena5. A pesquisa é uma ferramenta importantíssima para o processo, é atra-
5
TAKEUCHI, Teresa Midori. Notas
sobre o figurino no cinema brasilei- vés dela que a equipe de figurino pode reconhecer os sistemas de pensamento,
ro – do novo ao novíssimo. In: BU- organização social e as representações simbólicas da sociedade e dos indivíduos.
TRUCE, Débora; BOUILLET, Rodrigo
(org.). A direção de arte no cinema
brasileiro. Rio de Janeiro: Caixa Vera Hamburguer6 afirma que precisamos ser fiéis aos códigos estabelecidos, có-
Cultural, 2017. digos esses que não dizem respeito exclusivamente à direção de arte e figurino,
6
HAMBURGER. Vera. Arte em cena: mas ao comportamento do filme como um todo dentro daquele universo. Cada
A direção de arte no cinema bra- peça de roupa é lida como um signo relacionado a códigos sociais. Assim, o figu-
sileiro. São Paulo: Edições SESC.
2014.
rino trabalha com o imaginário do receptor, propondo diferentes sensibilidades no
decorrer da trajetória narrativa.

Algumas observações sobre o figurino


no cinema pernambucano
Baile perfumado (1996) é o filme marco da retomada do cinema pernambucano.
E é também um marco do princípio de uma trajetória de profissionalização das
equipes de cinema do estado. No filme, assim como em vários outros do período,
as equipes ainda eram formadas com muitos profissionais de fora. Gradativamen-
te, com a constância da produção, surgem e se consolidam profissionais locais em
diversas áreas técnicas do cinema.

Diante dos caminhos do cinema pernambucano e observando a trajetória for-


mativa dos figurinistas desse cinema, é interessante observar que a maioria dos
profissionais adquiriram seus conhecimentos de forma empírica. Mesmo tendo
formações em áreas transversais ao figurino, como moda, artes visuais, comuni-
cação, dentre outras, é na atividade prática que a maioria absorve as dinâmicas
do ofício.

203
O gradativo processo de profissionalização e especialização é também vivencia-
do pelo departamento de figurino. Essa profissionalização provocou o amadure-
cimento de técnicas e processos, gerando modos de trabalho e redes cada vez
mais sólidas.

Diante das trajetórias individuais dos profissionais de figurino de Pernambuco, é


interessante observar o quanto a carga subjetiva e cultural de cada um perpassa
os processos criativos. Com isso, o conhecimento empírico que marca esses pro-
fissionais vai transbordar os limites do saber “técnico”, levando a processos e re-
sultados mais viscerais. Cada figurinista, diante das diversas experiências pessoais,
transfere para as propostas artísticas sensibilidades que refletem suas existências.

Seja valorizando a ancestralidade por meio da evidência dos detalhes manuais,


seja quebrando valores estéticos tradicionais com propostas modernas, seja evi-
denciando a representação da sociedade por meio da opção estética naturalista;
os caminhos do figurino pernambucano ganham uma potência visual que en-
grandecem o olhar sensível sobre a sociedade, sobre o vestir, sobre o impacto das
suas escolhas enquanto figurinistas.

Os processos criativos gerados por esses profissionais no decorrer de todo esse


tempo são heterogêneos, mas antes de tudo a força está no fato de serem proces-
sos instintivos, atravessados pela errância e pelo acaso, baseados em uma vivência
imersiva que valoriza a observação da sociedade.

Observando os resultados desses trabalhos é interessante frisar a experimentação


como um elemento marcante do figurino pernambucano, seja no modo de fazer,
no processo de criação, ou mesmo no figurino em si. Essa experimentação vista
no departamento de figurino também se configura como uma estratégia de adap-
tação ao sistema de produção do cinema pernambucano, que se baseia majorita-
riamente em produções de baixo orçamento.

Mesmo com os editais de apoio à produção audiovisual, o cinema pernambucano


tem um valor de produção abaixo dos valores de outros estados, o que resulta
muitas vezes na falta de uma estrutura ideal de produção e a consequente busca
por alternativas criativas que possibilitem os resultados desejados. O baixo orça-
mento gera uma adaptabilidade criativa. Associado a esse modo de produção,
podemos apontar também para o conceito da “brodagem”.

Podemos dizer, baseado na observação dos processos do cinema pernambucano,


que grande parte das produções dos departamentos de figurino dependeram e
dependem em muito dessa relação de “brodagem”, que se estabelece entre figuri-
nistas, nas trocas de acervos e contatos, bem como numa rede de colaboradores
como brechós, lojas parceiras, estilistas e profissionais da moda e de outros setores
que também são, por vezes, acionados nessas redes.

Esse modus operandi específico, que envolve empirismo, errância, adaptabilidade


e criatividade, colabora diretamente para o destaque do cinema pernambucano
contemporâneo, que tem como marca uma renovação estética e formal frente ao
cinema nacional. Diante desses filmes, e pensando em traçar alguns comentários
sobre seus figurinos, aponto e dou ênfase a algumas recorrências e questões.

A partir de alguns pontos de comunhão observados, é latente em parte da pro-


dução do cinema pernambucano a presença de tensões entre dualidades como

204
o moderno e o global, o urbano e o passado patriarcal, a liberdade e o conserva-
dorismo. Uma sociedade em contraste. Em vários filmes o figurino explora essa
complexidade cultural própria de Pernambuco, seja de forma comparativa, seja de
forma alegórica. Como é o caso dos contrastes morais em Amarelo manga (2002),
filme de Cláudio Assis e figurino de Andrea Monteiro; o contraste de personalidade
das protagonistas de Amor, plástico e barulho (2013), filme de Renata Pinheiro com
figurino de Joana Gatis; os contrastes culturais e temporais em Bacurau (2019), fil-
me de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles com figurino de Rita Azevedo; o
contraste desnorteante entre os corpos e as ruínas da cidade em A seita (2015), fil-
me de André Antônio com figurino de Alysson Santos e Paulo Ricardo; o contraste
ideológico entre os personagens de Tatuagem (2013), filme de Hilton Lacerda com
figurino de Chris Garrido, dentre vários outros.

Outro aspecto que pode ser enfatizado nesse recorte de filmes pernambucanos
é a recorrente opção por uma estética naturalista, por vezes com tons documen-
tais. Primeiramente acho necessário frisar a importância e responsabilidade que
há diante da construção de imagens que se propõem naturalistas. Exige muita
pesquisa e respeito ao contexto retratado. E dentro desse universo, o figurinista
precisa compreender o tom dos personagens, para que esse realismo seja crível e,
ao mesmo tempo, comunique aspectos intrínsecos ao personagem e ao recorte
social e cultural ao qual ele está inserido.

Refletir imageticamente a realidade que é posta no roteiro de forma naturalista é


um trabalho árduo e requer sensibilidade, imersão e pesquisa profunda. É preciso ter
consciência sobre o impacto das escolhas do figurino na interpretação da imagem.

O naturalismo enfatiza os atritos culturais próprios dos tempos contemporâneos


no Nordeste do país, enfatiza contradições históricas da formação social e cultural
de Pernambuco. Já a opção pela estética documental se preocupa em ser fiel ao
tempo representado, quase como um documento histórico, enfatizando inclusive
o processo de transformação social.

A credibilidade dos figurinos contribui diretamente para a credibilidade dos univer-


sos como um todo (sejam reais ou não), e na compreensão simbólica das dinâmi-
cas sociais que se desenrolam nesses espaços. Um contraste cultural e ideológico,
por exemplo, é apresentado pelo figurino de Chris Garrido para o filme Tatuagem.
O grupo de artistas de Chão de Estrelas é apresentado com figurinos descontraí-
dos, com cores marcantes, modelagens ousadas, que refletem um posicionamen-
to político e uma sede de liberdade, enquanto, em contraponto nos outros nú-
cleos, os figurinos apresentam cores e modelagens mais sóbrias, transparecendo
posicionamentos morais tradicionais.

A escolha de uma estética naturalista, em muito, está atrelada a uma forma de ver
o mundo, a um olhar mais político. Isso também reverbera muitas vezes nos pro-
cessos criativos do figurino, nas escolhas que são feitas e nas leituras imagéticas
que são propostas. No caso de filmes naturalistas, a preocupação em respeitar a
realidade do outro e, principalmente, em propor ao espectador, por meio do fi-
gurino, uma leitura do outro que seja respeitosa e que contribua, inclusive, para a
desconstrução de estereótipos.

Esse posicionamento pode ser observado, por exemplo, no filme Amor, plástico e
barulho com figurino de Joana Gatis, no qual o processo de pesquisa para cons-
trução dos personagens buscou ser fiel à realidade do universo brega recifense e,

205
por meio de pesquisa e imersão, a equipe buscou as nuances que permeiam esse
contexto social, visando a construção de um figurino que fosse representativo,
dramático, mas que ao mesmo tempo desconstruísse estereótipos relacionados
àqueles personagens.

Em Tatuagem, Amor, plástico e barulho e diversos outros filmes pernambucanos


é interessante observar que, para além do naturalismo, existe uma plasticidade
sofisticada no processo de construção da imagem, que se usa dos elementos na-
turalistas, mas potencializa e reconfigura seus signos.

Partindo dessa observação, aponto que, nos figurinos do cinema pernambucano,


existe esse caminho que perpassa por variações de uma estética naturalista, mas
também se evidencia um caminho que flerta com a estética do artifício, que pro-
põe uma linguagem mais alegórica, mais lúdica.

Essa ideia do artifício está ligada a uma construção imagética que contrapõe a
ideia realista do registro cinematográfico. Em filmes com a presença do artifício, o
fenômeno estético é tão importante quanto a narrativa. Segundo Denilson Lopes7,
7
LOPES, Denilson. Afetos. Estudos
queer e artifício na América Latina. “O artifício possui um vasto campo semântico, da teatralidade barroca à simulação
E-compós, Brasília, v.19, n.2, maio/ midiática, da tradição do travestimento nas artes cênicas aos desafios da perfor-
ago. 2016, p. 03.
matividade do sujeito contemporâneo”.

Em muitos desses filmes, o artifício é utilizado esteticamente como uma estraté-


gia de criticar o “real” e uma potência de transgressão, a exemplo de filmes como
Bacurau, A seita, Os últimos românticos do mundo (2019) e Superpina (2018), este
com figurino de Babi Jácome.

O figurino nesses filmes explora elementos simbólicos, explora uma plasticidade


mais ousada, poetiza a relação dos corpos com os espaços. Em Os últimos român-
ticos do mundo, a figurinista Maria Esther de Albuquerque propõe, com recursos
inventivos, a construção de um universo queer futurista e transgressor influencia-
do por elementos do camp. Em Bacurau, a construção do personagem Lunga feita
por Rita Azevedo agrega elementos do cangaço, das gangues urbanas, do brega,
da cultura pop, do universo queer, numa miscelânea que reflete de forma alegóri-
ca a complexidade daquele personagem e da sociedade em que vivemos.

No filme A seita, vemos a estética do artifício se mesclar a outro aspecto recorren-


te nas temáticas do cinema pernambucano: a crítica ao espaço urbano e ao pro-
gresso desenfreado. Muitos filmes vão problematizar o futuro das cidades diante
da falta de planejamento, o caos urbano que também se confunde com resquícios
do passado. E em muitos destes filmes o figurino possui um papel importante ao
evidenciar as relações imagéticas do corpo com a cidade.

Seja por meio de contraste, ou explorando aspectos mais simbólicos, o figurino


muitas vezes direciona uma observação política dos corpos no espaço, como é
o caso do filme A seita, no qual, dentro de uma estética do artifício, figurinos com
modelagem e tons inspirados no barroco e rococó contrastam com imagens de
uma Recife futurista em ruínas, suja, pós-apocalíptica.

Vemos o personagem percorrer a cidade e propor um olhar contemplativo e críti-


co sobre esse espaço, um contraste temporal que propõe a falência dos sistemas
sociais. Observamos a relação do figurino com a cidade também no filme Tatua-
gem, a exemplo da cena em que os artistas do teatro, em um momento quase idí-

206
lico, desfilam em bloco pela cidade, o figurino dos personagens causa estranheza
e sublinham a existência de outras formas de ver e viver o mundo.

Diante do que foi posto, podemos observar que o figurino do cinema pernambu-
cano envolve diversos olhares, com diversos processos criativos, diversas meto-
dologias que, apesar de seguir certa “metodologia do figurino de cinema”, a forma
“oficial” de se fazer figurino vai sofrendo algumas adaptações locais, reflexo do
empirismo e das demais especificidades observadas.

Mas, inegavelmente, a construção estética do cinema pernambucano é fortemen-


te marcada pela presença criativa dos figurinos e a visceralidade dos processos
transborda para as imagens. Em conjunto com a direção de arte, a paisagem, a
iluminação, a fotografia, o figurino colabora e potencializa a construção imagética
desse cinema.

207
Breve guia de figurino:
conceitos, cotidiano
e ferramentas da profissão
Álamo Bandeira

Imergindo no tema
Quando as luzes da sala de exibição se apagam e a imagem da câmara clara emer-
ge, mesmo diante da expansão do mercado audiovisual no país e o destaque do
cinema local, a maioria dos espectadores não imagina a quantidade de profissio-
nais envolvidos para que cada etapa da narrativa se torne real. Mas, em especial,
há uma equipe técnica que segue silenciosa traduzindo os sonhos impressos no
roteiro em trajes de cena1 que dão vida a cada uma das personagens das tramas.
1
VIANA, Fausto. Para documentar
a história da moda: de James Laver
às blogueiras fashion. São Paulo: Partindo do desejo de trazer à luz o cotidiano das pessoas responsáveis pelo costume
ECA/USP, 2017, p. 48.
design e tomando como ideia básica a premissa de que, para produzir bons figurinos,
é preciso sobretudo revelar cada uma das etapas de execução das peças, este capítulo
sintetiza as diversas fases que compõem a criação de figurino em suas múltiplas face-
tas (seja no cinema, na televisão e em materiais diversos) e se propõe como um guia
rápido para as principais dúvidas e métodos de execução da profissão.

Ao longo do texto serão abordados os perfis profissionais esperados para atuação


nos diversos formatos de projeto, quais habilidades necessárias e quem são os
envolvidos e suas atribuições para facilitar o entendimento de quem atua ou pre-

Álamo Bandeira é figurinista para o mercado publicitário e cinematográfico, além


de professor universitário e pesquisador. Mestre em Design, Cultura e Sociedade pela
Universidade Federal de Pernambuco. Doutorando em Design pela mesma institui-
ção – com pesquisas nas áreas de Tendências, Comportamento de Moda e Costume
Design. Atualmente é professor substituto de Moda do bacharelado em Design da
UFPE, onde leciona temas como: História da Moda, Moda e Cinema, Modelagem Pla-
na Básica e Planejamento e Projeto de Moda.

208
tende atuar no setor. Além disso, algumas perguntas básicas serão respondidas e
exemplificadas para desmistificar as principais dúvidas da atuação hoje. Para fina-
lizar, será traçado um breve panorama dos métodos de figurino usados em cada
uma das três etapas que envolvem a criação audiovisual: a pré-produção, o set de
filmagem e a desprodução. Como base argumentativa, são tomadas entrevistas
com profissionais apresentando a ótica do backstage por quem a vive, além das
experiências práticas do autor no set. Mas antes da imersão instrumental, um con-
ceito-chave precisa ser apresentado.

Afinal, o que é traje de cena?


Para facilitar os estudos das várias funções sociais da roupa, Fausto Viana e Carolina
Bassi2 distinguem o traje de cena do figurino. Para os autores, o segundo termo re-
2
VIANA, Fausto e BASSI, Carolina
(org.). Traje de cena, traje de folgue- fere-se às ilustrações de vestuário (muito comuns no século XIX, por exemplo) que
do. São Paulo: Estação das Letras e serviam como referencial imagético (uma espécie de croqui). Já a primeira expres-
Cores, 2014.
são traduz todo e qualquer objeto que recobre o corpo do ator em cena. Entretanto,
aqui, ambas as palavras são tomadas como sinônimas de costume design, e a profis-
sional figurinista (ou costume designer) como chefe de uma equipe responsável por
dar vida a qualquer detalhe ligado ao vestuário dos palcos e narrativas audiovisuais.

“Traje de cena não é moda, ainda que possa representá-la quando necessário.
Quando a moda sobe ao palco teatral (ou é retratada pelas lentes do cinema),
torna-se traje de cena”3. Em outras palavras, a roupa quando aplicada em perfor-
3
VIANA, Fausto e VELLOSO, Isabela
M. . Roland Barthes e o traje de cena mances artísticas – tomando desde os quítons vestidos nos anfiteatros helênicos
[recurso eletrônico]. São Paulo: como exemplo seminal4 e chegando até a contemporaneidade com o agasalho
ECA-USP, 2018, p. 9.
em rede que Irandhir Santos dança no longa A história da eternidade – é bem mais
4
LAVER, James. A roupa e a moda: antiga que o efêmero calendário regido pela lógica do descarte e do uso focado
uma história concisa. São Paulo: no “consumo conspícuo” de Veblen5 e ditado pelo sistema da moda, tão bem de-
Companhia das Letras, 1989.
senhado por Lipovetsky6, estruturado com a ascensão burguesa na modernidade
5
Apud ERNER, Guillaume, VEBLEN, e que marca toda a estética ocidental após a Revolução Industrial e o nascimento
Thorstein. A sociologia das tendên-
cias. São Paulo: Gustavo Gili, 2015,
da Haute Couture parisiense. Tem-se então uma premissa central: o figurino não é
p. 72. um braço da moda, até porque este é bem anterior e ocupa função social distinta.
6
LIPOVETSKY, Gilles. O império do
efêmero: a moda e seu destino nas A assistente de figurino Clarissa Saraiva sugere em entrevista que o traje de cena
sociedades modernas. São Paulo: está mais próximo esteticamente da fotografia que da moda. “A gente tem uma
Companhia das Letras, 2009, p. 83.
tendência para pensar que, de cara, talvez, a Moda contribuísse (majoritariamente
7
SARAIVA, Clarissa, assistente de com o figurino), e, de fato, contribui muito essa pesquisa. Mas eu acho que tem que
figurino, durante entrevista online pensar muito em: referência de filme, de fotógrafo, até uma pintura. Claro que isso
por áudio realizada em 21 de mar-
ço de 2021. vai depender do projeto: se algo histórico, então vai ter que se debruçar bastante em
pesquisa de época.”7 Pode-se então ir além e concluir que o verdadeiro produto do
costume design é a mancha gráfica impressa no filme: a roupa vestida pelo ator é
um suporte para criação desta imagem. O resultado definitivo só é visto nos monito-
res do diretor de fotografia e na tela do cinema – suportes bidimensionais. Da mes-
ma forma é a pintura para as artes plásticas em geral. As vestes, quando elevadas aos
holofotes, ganham contornos ritualísticos: a atuação tem o poder de desmembrar
o corpo físico do corpo em performance, o ator cede a si próprio para que sua per-
sonagem venha à tona e o figurino tem papel fundamental nessa passagem do real
para o imaginado, traduzindo-se como uma segunda pele deste humano camaleão.

Os especialistas Fausto Viana e Isabela Monken Velloso ainda completam: “Quan-


do o traje de cena sai às ruas sem uso social, há nitidamente uma inversão dos
8
VIANA e VELLOSO. op. cit., p. 9. seus valores ritualísticos e artísticos. Seu status muda”8.

209
Dessa forma, é preciso que haja o contexto do roteiro artístico para que então
exista traje de cena, caso contrário, a aura mágica dá lugar à banalidade da indu-
mentária cotidiana.

Profissão: figurinista
Para além das questões conceituais apresentadas, o cotidiano da equipe de figurino
é marcado por agendas e orçamentos apertados gerando desafios que se repetem
trabalho após trabalho. É bem comum nos relatos dos nomes consagrados ver o
próprio set de gravação como escola, mas e se, ao entrar num job pela primeira vez,
já houvesse um “mapa” resumindo os principais temas? Além disso, o que se espera
de alguém que decide trabalhar no setor? E quais as principais funções?

9
Cursos de Referência em Figurino:
No Brasil, o número de cursos9 em costume design cresce mais lentamente que
1. Programa de Pós-Graduação a necessidade do setor. Tanto em Recife como no eixo Rio-São Paulo, a formação
Gratuito (Mestrado e Doutorado) se dá de modo transversal, ou seja, profissionais com origens acadêmicas diversas
em Artes Cênicas da Escola de Co-
municação e Artes da Universidade encaram cotidianamente o processo de criar trajes de cena empiricamente. Ruth
de São Paulo (ECA/USP); Joffily e Maria de Andrade em seu livro Produção de moda deixam claro: “O mer-
2. Pós-Graduação em Cenografia e
Figurino - Centro Universitário Be-
cado de trabalho do figurinista é bem amplo: inclui muitas áreas de produção na
las Artes de São Paulo; TV (novelas, minisséries, programas de humor, especiais), além de cinema e palco:
3. Curso Técnico Gratuito em Ce- peças de teatro e shows.”10
nografia e Figurino da Escola de
Teatro – Centro de Formação das
Artes do Palco (SP); Mas é preciso se preparar, independentemente se sua origem é moda, cinema ou
4. Curso Livre de Figurino para Ci-
nema e TV com Alice Alves (SP).
comunicação. As pesquisadoras afirmam que “o produtor de moda, para ser um
figurinista, deve estudar movimento de artes plásticas, precisa saber ler um roteiro,
10
JOFFILY, Ruth e ANDRADE, Maria conhecer tecidos e, de preferência, desenhar bem, pois é muito comum ter que
de. Produção de Moda. São Paulo:
SENAC Nacional, 2013, p. 53. criar peças de época”.11
11
Ibidem, p. 53.
Paralelo ao domínio técnico, a fala de profissionais ouvidos para este artigo, atuan-
tes entre Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, deixa claro algumas características in-
terpessoais (e subjetivas) essenciais. Pensando nisso, alguns conhecimentos bási-
cos para quem decide dar vida a diferentes personagens, nas palavras de Suzanne
Queiroz, assistente de figurino, que elaborou uma lista de conhecimentos básicos
na profissão de figurino:

“1. Entender de planejamento estratégico e ser ágil com habilidade nas deman-
das do dia a dia;
2. Estabelecer método de desenvolvimento que se relacione bem com o limite
financeiro de cada projeto;
3. Vínculo ético e profissional com quem estiver à frente assinando o projeto e
apresentar as possibilidades viáveis para executar cada etapa;
4. Ter bom relacionamento com colegas de departamento, entender as fun-
ções e necessidades de cada um para fazer o projeto fluir;
5. Ter senso estético e olhar apurado para pesquisa de referências e produção;
6. Ser organizado, ter caderninho de anotações ou fazer uso de aplicativo que
auxilie na parte operacional do dia a dia;
7. Ter conhecimento técnico sobre decupagem, plano de filmagem, análise
técnica e continuidade;
8. Ética e postura profissional com a própria equipe e outros departamentos –
sobretudo, no set;
12
QUEIROZ, Suzanne. Trecho de
entrevista online para esta pesquisa, 9. Entender a importância sobre limpeza, higienização e desprodução de
realizada em 23 de março de 2021. cada projeto.”12

210
Destacam-se ainda: proatividade, organização, fôlego para carregar e descarregar
carros de produção e camarins a cada nova diária, além de “olhar o mundo com
13
ALGO, Armando. Entrevista online esse olho de que o diferente não quer dizer ruim”, como destaca Armando Algo13.
semi-estruturada, realizada entre 21
e 23 de março de 2021.

Equipe de figurino: quem é você no set?


Vestir o elenco principal e inúmeros figurantes requer uma equipe afinada e bas-
tante atenta aos detalhes. Para compreender melhor este universo, as entrevistas
com profissionais da área trazem um olhar de dentro dos camarins para este coti-
diano. Como lembra o assistente de figurino Renato Gremião em seu depoimento:
14
GREMIÃO, Renato. Entrevista onli- “cada equipe se configura de uma maneira diferente, de acordo com a figurinista”14.
ne semi-estruturada, realizada entre
21 e 23 de março de 2021.
Em linhas gerais, o setor de costume design possui de 3 a 6 integrantes, dentro da
seguinte ordem:

• Figurinista: chefia o departamento, monta seu time, assina artisticamente


e projeta as linhas gerais de todo o projeto, desde a decupagem do roteiro,
produção até o set. Detém grande domínio e experiência sobre o tema, além
de um acervo de figurino próprio, que serve como base para suas criações.
Remete-se diretamente à direção para traduzir em trajes de cena o que o
roteirista imaginou. Encarrega-se de desenhar e vestir o núcleo central de
personagens, criar a imagem final de todos os atores, além de acompanhar
as gravações pelo monitor.

Cada chefe de figurino tem um perfil que é traduzido no estilo das produ-
ções. Algumas são especialistas em filmes de época, assim é a italiana Milena
Canonero, diversas vezes vencedora do Oscar de melhor figurino. Já outras
podem colaborar com inúmeros diretores e assumir estilos distintos, como a
pernambucana Chris Garrido, premiada internacionalmente pelo seu traba-
lho no longa-metragem Tatuagem, mas que é capaz de desenvolver desde
15
BANDEIRA, Álamo. O design de figurinos naturalistas a materiais publicitários com maestria.15
figurino na produção de cinema no
Recife: comparação de realidades Algumas funções tornam-se de toda a equipe, mas podem ser direcionadas
e imersão etnográfica. 2017, 136 f.,
Dissertação (Mestrado em Design) – pela figurinista a alguém em específico, são elas: continuidade, envelheci-
Universidade Federal de Pernambu- mento e produção de rua durante a pré-produção, domínio do roteiro, vestir
co, Centro de Artes e Comunicação.
Recife, p. 28. determinado ator ou atriz;

• 1ª assistência de figurino: acompanha o set de gravação e está sempre ao


lado do figurinista. Observando atentamente os relatos, pode se notar que
este profissional participa de todas as etapas, desde a pesquisa de referência
(colaborando com as pastas de inspiração para cada personagem), reuniões
de análise técnica, produção na rua e cocriação dos trajes de cena. Executa
ou orienta as etapas de envelhecimento das roupas. Cuida da marcação das
provas do núcleo principal, soluciona dilemas com a assistência de direção,
controla a verba entregue pela produção geral, articula os horários e demais
escalonamentos de funções de toda a equipe, participando da desprodução
e devoluções, fechamento e prestação de contas. Fornece ainda lista de
créditos e agradecimentos: é o lado sistemático no costume design.

• 2ª assistência de figurino: além de colaborar na pré-produção com as pes-


quisas gerais e produção de rua, é responsável por questões burocráticas
ou ligadas à base de figurino (espaço de apoio onde fica o acervo tempo-
rário do filme), como o carregamento do carro de figurino no dia anterior

211
às gravações e organização do camarim. Além disso, pode cuidar e vestir as
personagens secundárias ou figurantes. Em muitos casos, registra a presta-
ção de contas da equipe segundo o manual fornecido pela produção geral.
E como explica Suzanne Queiroz, em entrevista: cabe ainda alimentar a lista
de medidas dos atores e o “carômetro de figuração, (…) medidas de núcleo
secundário, desenvolver briefing de figuração” (em outras palavras, o texto en-
tregue aos produtores de elenco orientando as roupas usadas pelos figurantes
ou, em projetos mais elaborados, trata-se da pesquisa de acervo e aluguel
das peças para figurantes). Queiroz ainda completa: “acompanhar provas de
núcleo secundário e set, quando necessário”. Cabe também à 2ª assistência
16
QUEIROZ, Suzanne, Op. cit.
desproduzir, junto à equipe, os materiais após finalização da trama16.

• 3ª assistência de figurino: “suporte, organização e estrutura de camarim”,


segundo o assistente de figurino Thiago Amaral, formam o mantra desta
17
AMARAL, Thiago. Entrevista onli- função17. Já Renato Gremião completa: “geralmente (os terceiros assistentes)
ne semi-estruturada, realizada entre cuidam do entorno do projeto, como produção para guarda-roupas da figu-
21 e 23 de março de 2021.
ração, vestir figuração em sets de filmagem, organização da base de figurino.
18
GREMIÃO, Renato, Op. cit. Listar e comprar todo material de organização da base de figurino, como
aluguel de araras, compra de cabides, material de escritório. Mas, do 1º ao
3º, todos também podem fazer produção de rua. Muitas vezes as funções se
18
GREMIÃO, Renato, Op. cit. entrelaçam devido às urgências.”18

• Camareiro: Além de passadoria, manutenção e higienização de todas as


roupas e adereços, o camareiro colabora com as provas de figurino, execu-
tando pequenos reparos e adaptações. De acordo com a figurinista carioca
Marília Carneiro, os camareiros “cuidam da continuidade – quando o perso-
nagem precisa estar com a mesma roupa da cena do dia anterior –, ficam
de olho na lavanderia, passam roupa sempre que necessário, organizam em
19
CARNEIRO, Marília, MÜHLHAUS,
maletas e sacolas etiquetadas todos os acessórios.”19
Carla. Marília Carneiro no camarim
das oito. Rio de Janeiro: Aeroplano: Já Mauricea Conceição – referência no cinema pernambucano – conta
Senac-RIO, 2003, p. 105.
que as longas jornadas de 12h elevam o camarim a um espaço de refúgio
para protagonistas, coadjuvantes e figurantes, cabendo a ela recepcioná-los.
“Costumo falar para pessoas com menos entendimento da minha função
de camareira no cinema, teatro ou publicidade que: eu aperto o que está
folgado, folgo o que está apertado, limpo o que está sujo, sujo o que está
limpo – se necessário. Monto o que está desmontado, desmonto o que está
montado, passo o que está amassado, amasso o que está passado, seco o
que está molhado, molho o que está seco. Bem: lavo, passo, tinjo, bordo,
costuro. Tento realizar os desejos de figurinistas e diretores – de forma efi-
ciente e tranquila”20.
20
CONCEIÇÃO, Mauricea, atriz e
camareira. Entrevista online redigida
em março de 2021. Além disso, ela afirma que organiza o camarim e as araras separando por
personagem e sequências de cenas e que pode auxiliar no set de filmagem.
Sua profissão transita entre o domínio empírico de tecidos ao jogo de cintura
para lidar com os diversos perfis (e pedidos inesperados) de figurinistas. Um
detalhe importante, tanto pessoas que se identificam com o gênero mascu-
lino (camareiro) como com o gênero feminino (camareira) são frequentes
no cargo e devem ser igualmente requisitadas para assumir a função.

• Motorista: não basta ser bom de volante para preencher os quadros de fi-
gurino, espera-se que o piloto de cinema domine mentalmente o mapa das

212
principais lojas, acervos e fornecedores de cada cidade, além de compreen-
der bem a rotina de carga e descarga de figurino.

Em orçamentos maiores, outros cargos ganham destaque, entre eles:

• Figurinista assistente: figura bastante experiente no mercado que coas-


sina o projeto;

• Coordenação de figurino: responsável por gerir o cotidiano dos demais


profissionais – tal função é tradicionalmente delegada à 1ª assistência, como
descreve Queiroz em entrevista: “coordenar as demandas da equipe com
olhar mais crítico e assim administrar o volume do departamento”21;
21
QUEIROZ, Suzanne, Op. cit.

• Produção de figurino: cargo focado na “produção de rua”. A função é antiga,


como lembra a figurinista global Marília Carneiro: “O negócio era bater perna
22
CARNEIRO e MÜHLHAUS, Op. cit., na rua o dia todo. Exatamente o que, hoje, todos os figurinistas fazem.”22 Mas
p. 45. geralmente novelas, séries com muitos episódios e longas-metragens com
vários núcleos exigem alguém especializado. Este profissional cria pontes
com as assessorias de imprensa das marcas para consignar looks e fechar
parcerias com empresas de moda e diversos outros fornecedores. Dessa
forma, o produtor de figurino se desdobra em desde lojas populares, acervos
e brechós a shoppings e showrooms para cumprir as demandas surgidas
na base de figurino – tendo sua agenda de contatos (mailing) e capacidade
argumentativa como seus diferenciais;

• Envelhecimento: através de processos artesanais de desgaste e tingimento,


transforma os trajes de cena dando aspecto de usados, ou antigos, ade-
quando-os à estética do roteiro;

• Costureira: modela e costura sob medida as roupas imaginadas pela figu-


rinista, serviço terceirizado ocupado por uma única pessoa ou por diver-
sos ateliês e facções de costura especializadas. A existência da profissional
não retira a necessidade de compreender noções básicas de execução, para
ajustes e customizações dentro da base de figurino.

A porta de entrada para novos profissionais se abre através do estágio em figurino – es-
tudantes de Moda, Comunicação ou Cinema são convidados a ajudar nas pesquisas de
inspiração (criando painéis de referência para personagens e épocas), a vestir figurantes
e podem acompanhar as compras ou arrumar camarins e bases de produção.

É importante salientar que o figurino é um dos nichos entre os vários departamen-


tos de uma produção audiovisual. Para tanto, é essencial delimitar quais os outros
envolvidos e quais as relações de poder observadas.

Hierarquia do cinema:
você sabe com quem está falando?
Ao fechar os olhos e se lembrar da primeira vez em que se entrou em um set de
gravação, pode-se, perfeitamente, evocar a mesma sensação presente na parábola
descrita pelo cineasta norte-americano Gus Van Sant, em 2003, ao explicar o título
de seu filme Elephant, vencedor no mesmo ano da Palma de Ouro em Cannes:
diante de um gigantesco elefante, mesmo inúmeros sábios tocando partes dis-

213
tintas chegam a conclusões distintas – como se analisassem formas tão díspares
como uma pedra ou uma cobra.23
23
MARQUES, Barbara Cristina, CO-
DATO, Henrique. Estratégias de
fragmentação no cinema contem- Mas, ao ser observada com uma maior distância e atenção, é possível compre-
porâneo: Short Cuts: cenas da vida,
de Robert Altman, e Elefante, de Gus
ender a enorme engrenagem fílmica que gira em torno das múltiplas hierarquias
Van Sant. Animus: Revista Interame- impressas nas ordens de filmagem.
ricana de Comunicação Midiática,
Universidade Federal de Santa Ma-
ria, v. 17, n. 34, p. 83, 2018. Disponí- A equipe técnica de um longa, desconsiderando atores, gira em torno de 60 pro-
vel em:<https://periodicos.ufsm.br/ fissionais24, distribuídos em grupos relativamente autônomos entre si. E para uma
animus/article/view/26277>. Acesso
em 25 de março de 2021.
compreensão superficial, apresenta-se aqui uma visão geral25 e empírica dos de-
partamentos e suas relações com figurino – dentro de cada trabalho, pode haver
24
CONCEIÇÃO, Mauricea, atriz e variações conjunturais, mas considerando cinema, publicidade e televisão, há for-
camareira. Entrevista online redigida
em março de 2021. matos estruturais que convergem para um mesmo caminho:

25
SALLES, Filipe. Apostila de Ci-
• Direção geral: Como um enorme maestro, o chefe artístico é o criador prin-
nematografia. São Paulo: 2008. p. cipal da narrativa e quem assina o filme, várias vezes é também o roteirista
96. Disponível em:<http://www. da história. O formato final da história tem sua aprovação e a relação figuri-
mnemocine.com.br/index.php/
documentos-para-download/cat_ nista X direção é de grande afinidade estética. Ao aceitar convites para uma
view/52-parte-2-manual-de-cine- obra, o costume designer deve pesquisar profundamente a filmografia do
matografia?start=10>. Acesso em 22
de março de 2021.
realizador para compreender qual estilo será traçado, podendo as roupas
adotarem, por exemplo, traços mais documentais e naturalistas ou um rea-
lismo fantástico e lúdico.

• Assistência de direção (A. D.): É o elo entre as ideias da direção e os de-


partamentos, sendo responsável pela produção da ordem do dia26, pela or-
26
Ordem do dia (O. D.): Ficha im-
pressa e distribuída na diária anterior ganização do elenco (que afeta diretamente o trabalho do figurino), filtrar as
pelo A. D. com: a lista de equipe, a informações que chegam ao diretor (sugere-se que as dúvidas de set de fi-
ordem elenco, o plano de filmagem gurino sejam solucionadas com a A. D., como a necessidade de duplicatas27
e os horários das cenas de cada dia.
O assistente de figurino deve “bater” ou encaminhamento de provas de roupa, deixando o diretor geral livre para
com o A. D. com antecedência gar- as reflexões estéticas). Além disso, o processo de continuidade requer apoio
galos (como muitos figurantes ou
tempos curtos para preparo da pri- da A. D.
meira cena).
• Direção de fotografia: Responsável por definir a imagem da película na tela,
27
Duplicata: cópias idênticas das
roupas produzidas para facilitar a o conceito de cada enquadramento nos diversos planos, a iluminação e
repetição de cenas em que haja como as cores são retratadas. É bastante comum o diretor de fotografia su-
algum tipo de dano ao figurino ou
quando há presença de ator dublê. gerir trocas de cores nos figurinos dentro do set, para uma melhor harmonia
Por ex.: no roteiro, a personagem fotográfica, mesmo em figurinos já aprovados. Portanto, é importante o figu-
rasga propositalmente sua camisa. rinista preparar algumas opções extras para cada ator ou figurante.

• Produção executiva: Quem gere financeiramente e custeia de fato o filme,


investindo recursos próprios ou levantando montantes através dos editais e
leis de incentivos fiscais. Negocia e contabiliza os pagamentos dos cachês ao
término do trabalho e cobra a prestação de contas da verba total gasta pelo
figurino. Em alguns jobs, esta função pode ser acumulada pela produção geral.

• Produção geral: Encarregada de todas as soluções logísticas e de crono-


grama – como mapa de transporte, reserva das locações, hospedagem da
equipe, alimentação de boa qualidade (catering), contratação de equipa-
mentos, serviços terceirizados e qualquer ação para o bom funcionamento
dos projetos. O figurino deve manter ótima relação com a produtora geral e
agendar com antecedência o aluguel de equipamentos como mesas des-
montáveis ou biombos para trocas de looks dos figurantes, além de carros e
solicitação de verbas de produção.

214
• Direção de arte (production design): Concepção de toda a unidade estética
da trama: desde a cenografia, aos objetos (“dressando” os cenários e loca-
ções), definindo inclusive a cartela cromática básica do projeto. O figurino
e a caracterização, tradicionalmente, fazem parte do guarda-chuva da arte:
cabe ao costume designer apresentar os painéis imagéticos, os croquis e
estilo geral à direção de arte. Como numa pintura, o traje de cena é um dos
elementos que compõem o quadro: as roupas devem espelhar a estética
geral da arte. A figurinista Beth Filipecki reflete que o “figurino, muitas vezes,
28
FILIPECKI, Beth. In.: Entre tramas, é um cenário trazido à escala humana que se desloca com o ator”28. Via de
rendas e fuxicos. São Paulo: Globo, regra, peças que componham a cena (como malas ou roupas dentro dos
2007, p. 14 armários) não são responsabilidade do produtor de figurino, mas da arte.
Entretanto, manter boas relações de troca com todos os departamentos ga-
rante um set tranquilo.

• Maquiagem (visagismo ou caracterização): Esperar que o make do elenco


tenha como objetivo apenas corrigir imperfeições diante da câmera é sim-
plista diante das atribuições dos maquiadores hoje: o visagista busca carac-
terizar o ator, ou seja, transformá-lo nas características descritas pelo rotei-
rista, servindo como suporte para construção da personagem. Caso o script
peça, envelhecer, desenhar cicatrizes, tatuagens ou propor cortes de cabelo
e uso de perucas são algumas das ferramentas disponíveis. A aplicação de
próteses temporárias é uma realidade no cinema brasileiro (criando texturas
no rosto, na arcada dentária e na pele). O diálogo com figurino é uma cons-
tante, como conclui a criadora Marília Carneiro: “O desenho que eu fazia
dos personagens incluía desde as bijuterias ou joias que seriam usadas até
29
CARNEIRO e MÜHLHAUS. op. cit., a forma de pentear os cabelos, passando também por acessórios”.29 Mesmo
p. 37. com tanta intimidade no backstage, é importante que o figurino respeite os
espaços físicos e ouça com seriedade as pesquisas e abordagens da ma-
quiagem, engrandecendo assim o trabalho em conjunto final.

• Elenco: Protagonistas, coadjuvantes e figurantes são a razão central dos fil-


mes e possuem contato íntimo com os figurinistas. É importante alinhavar
bem os próprios desejos estéticos, as aspirações dos atores e o objetivo
do diretor. Afinal, o bom figurino revela sutilmente pistas sobre o enredo: é
possível preencher lacunas psicológicas apenas observando a silhueta e as
cores escolhidas por um bom figurinista para cada cena, ratificando a evolu-
ção narrativa.

“O figurino, sem dúvida, é um dos primeiros elementos de comunicação


do ator, peça-chave na construção de um personagem. Se ele não se sente
bem, isso pode atrapalhar seu trabalho. Uma simples cintura apertada ou
uma manga com cava muito estreita, por exemplo, podem causar um estra-
go. Todo cuidado é pouco, afinal, atores não são bonecas nem manequins.
Não é raro, no entanto, eles amarem um projeto e ficarem eternamente gra-
tos pelos seus figurinos. (…) Os figurinistas sempre procuram conversar com
seu elenco para saber o que cada um pensa sobre os personagens, como
imagina os figurinos, e até para informar-se sobre as preferências de cada
um e saber detalhes como uma possível alergia a bijuterias, por exemplo.
Também costumam realizar provas de roupa técnicas para afinar os figuri-
30
Entre tramas, rendas e fuxicos, op. nos com os atores antes da prova para o diretor.”30
cit., p. 134

215
• Som: Equipe enxuta que cuida da captação do áudio direto, mas que tem
uma relação constante com figurino para “lapelar” o elenco, ou seja, co-
locar discretamente os microfones e suas respectivas baterias no corpo
do ator, por baixo do traje de cena. Geralmente os fios são presos com
topstick (adesivo micróporo) em locais estratégicos, como entre os seios
das atrizes – já as baterias são fixadas no cós traseiro das calças. Todavia,
é bastante comum pequenas perfurações nas golas das camisas para es-
conder completamente os fios (o que não é possível quando os looks são
consignados ou emprestados).

• Elétrica e maquinário: Focados na montagem da iluminação baseada nas


orientações da direção de fotografia, frequentemente operando gruas, tra-
velling, guindastes e até geradores em locações ermas. Possuem o maior
número de mão-de-obra e podem facilitar bastante a vida do figurino, ofere-
cendo “prolongas” elétricos e iluminação de camarim nas cenas de externa.

• Catering (alimentação): Serviço gerido pela produção geral, quase sem-


pre terceirizado, mas essencial para o clima tranquilo nas 12h de gravação.
Vale lembrar que, de acordo com decisão da figurinista, todo o elenco deve
retirar as roupas para se alimentar. Durante a pré-produção e a desprodu-
ção, as equipes recebem uma verba para compra das refeições (que deve
ser prestada conta ao final da produção). Há ainda o formato de “per diem”,
termo em latim que significa “por dia”. Ou seja, é dado uma quantia a cada
participante para as refeições, sem a exigência de comprovação do seu uso,
desburocratizando o processo.

• Transporte (motoristas): Em orçamentos maiores, é destinado ao figurino


um minicaminhão para transporte (e realização de trocas dos figurantes). Em
jobs menores, vans e carros de passeio podem levar tanto a equipe como os
materiais. Já em produções de baixo orçamento, múltiplas equipes podem
dividir os automóveis, criando uma agenda de uso coordenada pela produ-
ção geral. É comum que o carregamento do carro de figurino fique a cargo
do 2º assistente de figurino, exigindo total atenção e organização, geralmen-
te a cada noite anterior às filmagens.

Como nasce o figurino?


Os trajes de cena vistos na tela são concebidos através de um processo projetu-
al que pode ser dividido em três estágios: a pré-produção, o set de gravação e a
desprodução. É possível para a execução do figurino traçar um paralelo com as
etapas metodológicas do design – em língua inglesa, inclusive, costume designer
é o termo utilizado para descrever aqueles que se dedicam à criação do vestuário
usado por atores e atrizes em cena – tanto para cinema, teatro, publicidade. Para
Sue Jenkyn Jones, inclusive, esse processo (muitas vezes artesanal) busca revelar
significados através dos tecidos, usando uma ampla gama de estereótipos que
caracterizam cada personagem através de signos.

“Compramos roupas e as vestimos em combinações que são deliberadas ou sub-


conscientemente planejadas para transmitir aos outros impressões verdadeiras ou
falsas de nós mesmos. Algumas das características pessoais que desejamos revelar ou
ocultar incluem nossa idade, orientação sexual, tamanho, forma, situação econômica

216
ou conjugal, ocupação, afiliação religiosa, autoestima, atitudes e importância. No teatro
e no cinema, os figurinistas manipulam ativamente o significado simbólico das roupas,
vestindo nos personagens itens que reconhecemos como típicos de várias ocupações
31
JONES, Sue Jenkyn. Fashion de-
e atitudes. Uma ampla gama de estereótipos evoluiu dessa forma.”31 (tradução nossa)
sign. London: Laurence King Pu-
blishing, 2011, p. 68. Através de vasto domínio estético, o figurinista é capaz de propor, através da cartela
cromática ou de um acessório correto, uma infinita série de referências que con-
tam silenciosamente detalhes cruciais do enredo. Ser capaz de “contar histórias”
pelo figurino torna-se importante principalmente ao produzir curtas-metragens,
onde o tempo para desenvolver cada personagem é mais curto. Já em trabalhos
longos (como uma série ou novela), o figurino pode se modificar sutilmente, se-
guindo o ritmo do script. Mas, na prática, por onde começar?

Primeira etapa: pré-produção

O trabalho do figurino começa no momento em que o convite para o projeto é


aceito. Ao receber sua cópia do roteiro, o primeiro passo é ler duas vezes todo o
material: inicialmente para compreender o texto geral com o olhar do público.
Já a segunda leitura busca “decupar” a narrativa, em outras palavras, interpretar e
marcar em cada parágrafo as pistas sobre as personagens e onde acontecem as
mudanças de roupa – toda nova troca de figurino é chamada de “R”. Já cada cena
é nomeada de “S” (sequência). Os R’s e os S’s são listados em ordem de aparição
(ex: R1, R2, R3 e S1, S2, S3…). Assim, é importante criar uma lista com o número
total de looks de cada personagem.

Exemplo: a composição R1 é vestida pelo protagonista nas cenas S1, S2 e S3. Depois,
ele veste a segunda roupa (R2) em S4, S5, e assim por diante. Sendo mais claro:
protagonista aparece pela primeira vez na sequência 1 (S1), vestindo a roupa 1 (R1) e
fica com o mesmo look até a sequência 4 (S4). Portanto, ele veste R1 em S1, S2, S3,
S4. Já na sequência 5 (S5), quando ele troca de roupa, surge a R2 e assim por diante.

O cuidado com a ordem de aparição das roupas é chamado de continuidade,


que será melhor abordada em breve. O bom profissional já lê o roteiro calculando
quanto é preciso de verba de produção para o guarda-roupa de cada personagem
e já planejando um calendário de execução.

Algumas perguntas devem ser respondidas claramente: qual o período e local onde
a história se passa? Qual a classe social, o número de personagens e quantas trocas
de roupa? Haverá necessidade de compra, aluguel, costura ou envelhecimento? De
posse destas informações, ocorre a primeira reunião de análise técnica – onde é
importante ouvir atentamente os desejos da direção geral e as orientações da di-
reção de arte, além de elucidar as dúvidas presentes no roteiro. Ao longo de toda
a pré-produção, haverá outras reuniões pontuais para apresentar o andamento das
criações, sobretudo após a instalação da base de pré-produção do filme, espaço
geralmente alugado pela produção geral que serve de morada para todos os setores.

A partir de agora, o figurinista inicia um mergulho estético no universo a ser con-


tado, realizando profunda pesquisa de referência. Há uma busca intensa por mate-
riais sobre o contexto histórico e levantamento de campo. Figurinista e assistentes
contribuem ativamente investigando fontes primárias (visitas a museus, entrevistas
e realização de laboratórios) e fontes secundárias (livros, sites, jornais, revistas),
como também coletando elementos subjetivos (texturas, tecidos, músicas, objetos

217
afetivos, fotografias clicadas no campo). O resultado da imersão, que ocorre tanto
para trabalhos de época como para enredos contemporâneos, é organizado em
grandes painéis imagéticos ou pastas de inspiração que devem ficar visíveis para
consulta constante, ajudando no desenho dos croquis de cada personagem.

“Quando o figurino de um personagem é criado, o requinte de detalhes é grande. Se


pergunto a um diretor qual o signo de determinado personagem, ele sabe que não
estou brincando. Esta é só uma das peças do quebra-cabeça: tem também a marca
do cigarro, o tipo de carro, a bebida preferida e os lugares que ele gosta de frequentar
à noite, mesmo que nada disso esteja na sinopse. Assim, são montadas as colagens,
ou as chamadas pranchas. É um trabalho de recorte e colagem, mesmo, daqueles de
sentar no chão, com tesoura, cola, cartolina e uma pilha interminável de revistas.”32
32
CARNEIRO e MÜHLHAUS. op. cit.,
p. 49.
A esta altura, o elenco principal já está definido e a equipe pode entrar em con-
tato solicitando medidas – diretamente aos intérpretes ou a seus agentes. É im-
portante respeitar essa hierarquia, caso haja. Além disso, por mais apertados que
sejam as agendas ou os prazos, jamais objetificar os corpos dos atores, sempre
os compreendendo como profissionais capazes de enriquecer a construção do
figurino. A partir dos desenhos já aprovados com a direção e medidas anotadas,
os trajes de cena são confeccionados, comprados e envelhecidos. Cabe lembrar
que o perfil do figurinista, o orçamento e possíveis imprevistos podem alterar as
ordens aqui elencadas, mas, de um modo geral, realizam-se as provas do núcleo
principal (momento acompanhado com atenção pela direção geral, pessoalmente
ou por fotografias). Esta é uma etapa crucial, onde o maquiador também participa
ativamente já realizando os testes de caracterização.

O trabalho não acaba na prova, pelo contrário, ganha fôlego. Vários ajustes surgem
daí, é um processo de lapidação constante no qual o figurino parte do corpo do
ator como suporte para alcançar o personagem, como bem cita Edith Head, oito
vezes premiada com o Oscar de melhor figurino, façanha até hoje jamais supera-
da: “Se o figurinista conseguir fazer com que o público sinta a atriz naquele perso-
nagem, então esse é um bom trabalho de figurino.”33 (tradução nossa)
33
HEAD, Edith. In.: LANDIS, Deborah
Nadoolman. FilmCraft: costume de-
sign. Lewes: Ilex, 2012, p. 24. É bastante comum que um dos figurinos básicos (ou similar) seja emprestado às
atrizes para que elas já ensaiem adentrando no universo fílmico, pois, antes das
provas, a roupa nas araras não passa de um objeto inanimado que ganha vida
sobre o corpo de seu intérprete. Cada “R” deve ser vestido, fotografado, numerado
e encabidado por um dos assistentes que organiza os guarda-roupas e monta
a “bíblia”, pasta impressa ou digital compartilhada com o continuísta, profissional
responsável para que nenhum detalhe de continuidade da trama seja esquecido
(geralmente, o terceiro assistente de direção).

Com todas as peças prontas, envelhecidas, enumeradas e os demais departamen-


tos empenhados a todo vapor, ocorre a última reunião geral da pré-produção,
marcando o início das gravações. Agora o projeto é exposto às lentes.

Segunda etapa: uma diária no set

O termo set refere-se tanto ao espaço onde ocorrem as gravações do filme (que
podem ser locações alugadas, ambientes externos ou estúdios), como também o
período em que se executa tais filmagens (levando de 3 a 7 dias, em média, para
curtas-metragens) chegando a alguns meses em projetos de grande orçamento.

218
Nesta fase, o cuidado com o cumprimento dos horários é uma questão clara de
orçamento: cada dia equivale à produção executiva um grande aporte financeiro.
Assim, a pontualidade é cobrada rigidamente minuto a minuto através dos assis-
tentes de direção, que emitem as ordens do dia, acompanham (e readaptam) o
plano de filmagem – segundo a escaleta desenhada durante a pré-produção com
cópia entregue à 1ª assistente de figurino.

As semanas possuem 6 diárias de trabalho, com no máximo 12h cada, além de um


dia de folga para todos os departamentos. Não é permitido um intervalo menor
que 12h entre uma diária e outra – exigindo bom planejamento entre as cenas no-
turnas e diurnas. A diária clássica é regida pelas ordens do diretor geral e se inicia
com café da manhã (momento precioso de socialização entre componentes de
equipes distintas).

A preparação de figurino e maquiagem marcam a abertura das manhãs e levam, em


média, 1 hora, tempo previamente acertado e monitorado pela assistência de direção.
Geralmente, a maquiagem é realizada antes das trocas. Sobretudo, nas persona-
gens mais sofisticadas, onde o vestuário não pode amassar ou transpirar.

O segredo para um bom andamento do figurino nesta fase é organização. Termo


que se traduz na agenda com divisão das funções entre dois grupos básicos:

Figurinista e primeiro assistente acompanham as cenas, cuidam para que os atores


e atrizes permaneçam caracterizados ao longo do dia e que a continuidade seja
respeitada (através de fotografias e atenção aos detalhes acertados na bíblia). É
comum que o figurino leve ao set uma pequena mala de produção34 com mate-
34
JOFFILY e ANDRADE. op. cit., p.
101. riais básicos: alfinetes de segurança, fita crepe, caneta, fita dupla-face para ajuste
de bainhas, caixa com linhas e agulhas, adesivos topstick, absorventes, bastões de
envelhecimento rápido, tesoura(s), vaporizador portátil, ferro pequeno, borrifador
d’água ou amaciante, desodorante e toalha branca. Cada figurinista possui seu ar-
senal particular que varia entre cada trabalho, além do uso constante de pochetes
(item presente nos profissionais de todos os departamentos) onde é possível ter
sempre à mão os artefatos mais usados, como o rádio de produção.

Enquanto os demais assistentes e camareiro seguem na base carregando e des-


carregando o carro, separando as roupas das próximas gravações (segundo as in-
formações da O. D. entregues pelo A. D.) e realizando ajustes, manutenções, con-
trolando a entrada e saída da lavanderia e mantendo contato constante com o set
através dos rádios de produção e mensagens de texto. É importante projetar bem
as (inúmeras) bases e camarins temporários que podem ser levantados a cada
nova locação, exigindo atenção do segundo assistente. Por experiência, transporte
todo o guarda-roupa do núcleo principal e organize acessórios e calçados em cai-
xas plásticas transparentes com etiquetas claras: acontecimentos adversos como
chuvas e mudanças de ordem das cenas exigem inversões inesperadas do figu-
rino. Além disso, não deve ser adesivada fita crepe com anotações dentro das
roupas e calçados, porque ela pode ser vista pelos espectadores mais atentos
na tela do cinema.

Quando há cenas com grande número de trocas ou a presença de figurantes, ge-


ralmente no início da diária, toda equipe desloca-se para dar apoio, mas é o equi-
líbrio em dividir claramente as obrigações que garante que nenhum profissional
se sobrecarregue.

219
É bem comum, mas não é o ideal, que a equipe acompanhe as cenas ao longo
do dia e ainda se estenda à noite finalizando o carregamento da diária seguinte,
extrapolando assim a carga horária prevista, o que é perfeitamente evitável com
bom preparo e definição precoce das demandas.

É possível ainda, já durante os últimos dias de gravação, adiantar o processo de des-


produção (devolvendo itens que não serão mais usados), otimizando a finalização.

Terceira etapa: desprodução

A última etapa do costume design é um processo estritamente logístico, com du-


35
BANDEIRA. op. cit., p. 56.
ração média de uma semana35 no qual a equipe de figurino realiza as devoluções
das salas de produção e dos materiais alugados, como araras, cabides, biombos,
mesas de produção e acervos de indumentária.

O aluguel de acervos pessoais entre figurinistas é uma prática corriqueira, também


fornecida por pequenas empresas especializadas no serviço de peças para cine-
ma, publicidade e teatro – o empréstimo gratuito ou a preços simbólicos para este
último ramo ainda pode ser conseguido em instituições governamentais, como
nos acervos dos cursos de teatro das universidades federais e nos teatros públicos
municipais das grandes capitais.

A mesma iniciativa ainda não é vista para acervos de cinema. É um caminho


valoroso que exige aporte financeiro estatal, mas que em cidades com vocação
regional para o audiovisual, como Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, permitiria
a entrada de novos nomes no mercado, descentralizando as oportunidades de
trabalho e democratizando um setor ainda bastante elitizado. Os acervos de fi-
gurino são onerosos. Informalmente, as figurinistas enfatizam que os valores por
elas cobrados servem basicamente para a manutenção dos espaços físicos, mas
nota-se ainda uma relação afetiva latente, sobretudo nos períodos de grande
crise no setor.

O processo de devolução também envolve, sobretudo em filmes contemporâne-


os, o retorno de grande número de peças de moda aos showrooms de empresas
parceiras – que cedem gratuitamente suas coleções em troca de vestir atrizes con-
sagradas ou vincular suas marcas a diretores prestigiados. Este é um processo que
exige atenção ainda na fase de retirada (durante a pré-produção). É importante que
os produtores de figurino emitam um ofício (chamado de romaneio) detalhado com
a lista de todas as peças consignadas para o trabalho e o prazo de uso, além de regis-
trarem qualquer avaria prévia, evitando a necessidade de compra de possíveis peças.

Além disso, ainda na fase de escolha e organização das peças, é importante, deta-
lha a assistente de figurino Luiza Rabêlo, fotografar todas as roupas, registrando as
lojas, seus detalhes individuais e arquivar este material em nuvens de fácil acesso
por toda equipe, otimizando o processo de devolução segundo recebido.

É necessário também que as peças sejam lavadas e devolvidas passadas, dobradas


e separadas por grupos (por ex: todas as roupas do mesmo designer, em suas em-
balagens, separadas por gêneros, facilitando a conferência no recebimento).

Já as peças adquiridas ou fabricadas especialmente para cada projeto seguem


caminhos distintos: quando em acordo, podem ser destinadas aos cuidados da

220
figurinista chefe (como parte de seu cachê ou em contrapartida pelo uso gratuito
de seu acervo particular no filme); como também podem seguir para o acervo
da empresa produtora (produção executiva); acontece, por fim, a venda a preços
populares a todos que participaram do roteiro, proporcionando um breve, porém
oportuno, capital aos investidores na reta final do projeto – esta terceira via não
inclui os trajes de cena do elenco principal ou looks icônicos, porque algumas
cenas podem ser regravadas.

Há uma quarta solução, vista no Brasil e constante nos mercados cinematográficos


maduros (como países europeus e EUA): a doação a museus e instituições de en-
sino e de conservação – ratificando o valor de objeto de arte ao costume design.

Tal qual este texto, o trabalho da equipe de figurino no filme encerra-se aqui.

Entretanto, como as carreiras de cada profissional e os desdobramentos possíveis


dos assuntos abordados apenas se iniciam, este breve guia não pretende esgotar
o tema.

Pelo contrário, trata-se de um portal inicial para o diálogo entre os diversos atores
da área: produtores, estudantes e pesquisadores.

É importante afirmar ainda que o volume de informações apresentadas ao longo


das páginas é extenso e cada nova consulta pode levar o olhar a explorações mais
densas de outros materiais de referência – outras fontes36 expandirão ainda mais
36
Para ver & ouvir:
1. Curta-Metragem: A seita (2015). a capacidade criativa.
Figurino: Alysson Santos & Paulo Ri-
cardo. Dir.: André Antônio.
2. Longa-Metragem: Tatuagem
Além disso, as vivências individuais e saberes que cada figurinista constrói dentro do
(2013). Figurino Chris Garrido. Dir.: set de gravação pode gerar novas alternativas sequer imaginadas neste projeto inicial.
Hilton Lacerda. (Prêmio Ibero-Ame-
ricano de Cinema Fênix de melhor
figurino) Este é tomado como um ponto de partida, um trampolim para a construção de
3. Podcast: Pano Pra Manga (2020). métodos próprios que caibam em cada nova realidade filmada. Assim, a leitura
Apresentação: Ana Kühl, Gabi
Schembeck & Laura Fançozo.
constante deste guia espera incitar o desejo de criação de novos guias, por novas
vozes além do figurino, alcançando todas as áreas do audiovisual. Tornando-se
essencial a generosidade de dividir o conhecimento com outras pessoas do setor.

221
A roupa alquímica:
o que pode o figurino
no cinema queer?
André Antônio Barbosa

“Eu escrevi para informar, compartilhar


e alavancar trabalhos. Eu escrevi para mostrar outra
visão dos trabalhos produzidos sob o âmbito do filme
experimental. Escrever sobre filme era e continua
sendo uma forma de se firmar e lutar por uma
alternativa aos modos dominantes de pensar com
e sobre imagens que se movem. Escrever compartilha
com a programação e a distribuição um tipo
de investimento no estabelecimento e na manutenção
de uma cena, e isto faz parte de um ativismo”
(Yann Beauvais em 40 anos de Cineativismo, 2014).

A prática cinematográfica habitual, seja a partir de um esquema produtivo de caráter


industrial, seja a partir do circuito econômico que possibilita o “cinema indepen-
dente”, considera a tela de exibição uma janela para o mundo. Através dessa janela,
espectadores podem ver cenas que, umas depois das outras, nos comunicam sen-
timentos, emoções, situações e histórias. É um esquema que veio, por um lado, do
romance e do teatro oitocentistas e, por outro, da visualidade linear neoclássica que
atingiu seu apogeu na pintura europeia acadêmica do século XIX antes de continuar
sua tradição nos meios técnicos subsequentes (fotografia e cinema).

Nessa prática habitual, o figurino – as peças de roupa que cobrem os corpos dos
atores durante as cenas – exerce um papel fundamentalmente ilustrativo e portan-
to secundário. As roupas devem estar de acordo com as informações que se têm
a respeito da classe social, por exemplo, de determinada personagem. Às vezes,

André Antônio Barbosa (andrebarbosa3@gmail.com) é doutor em Comunicação e


Cultura pela UFRJ e professor no curso de Fotografia da Universidade Católica de
Pernambuco. É também realizador de cinema junto ao coletivo Surto & Deslumbra-
mento (deslumbramento.com) tendo dirigido o longa A seita (2015) e o média Vênus
de Nyke (2021).

222
as roupas podem ajudar a reforçar a emoção predominante de uma cena: uma
personagem que está psicologicamente sufocada vai usar uma blusa apertada.
Mas, de qualquer maneira, a roupa está à serviço da cena – sincronizada com
ela, garantindo o seu funcionamento. Manuais tradicionais de direção de arte e
figurino para cinema dizem: você realizará tanto melhor a sua função quanto ela
1
Cf. LO BRUTTO, Vincent. The fil-
permanecer invisível para o espectador1. Ninguém deve ver a cena e pensar: “que
mmaker’s guide to production de- figurino singular!”
sign. New York: Allwort Press, 2002.

É a “janela para o mundo”, através da qual as pessoas que podem ser vistas se
vestem discretamente, isto é, de acordo com certos conceitos de como alguém
de determinada classe, gênero ou passando por determinada situação emocional
“deveria” se vestir. Estou exagerando, claro. E é possível lembrar de vários exemplos
de filmes totalmente clássicos e narrativos onde um pensamento de figurino se
destaca e as roupas brilham, perdendo a sua timidez discreta. Mas é que aqui me
interessa uma outra prática cinematográfica, cuja força talvez comecemos a en-
tender opondo-a a essa prática mais padrão.

Quando se sai da prática cinematográfica habitual, o que acontece? Em particular,


que outras funções as roupas podem exercer numa tela de cinema?

Neste ensaio, pretendo investigar como o cinema queer tem praticado, há bas-
tante tempo, um outro uso do figurino. Queer é um termo de origem inglesa que
significa aquilo que é estranho, raro, não habitual, dissonante. No Brasil e América
Latina, a palavra tem sido usada sem tradução (ou às vezes com uma marcação que
a diferencia da origem anglófona: “kuir” ou “cuir”), na esteira dos movimentos sociais
que trouxeram os sujeitos LGBTQIA+ para o palco das discussões políticas globais.
Para além de ser gay, lésbica ou bi, um sujeito queer é alguém sexualmente disso-
nante, que, seja por práticas eróticas não convencionais ou por identidades de gê-
nero que ameaçam o pensamento binário, incomoda os pressupostos e desenhos
2
Cf. HALBERSTRAM, Jack. A arte
da visão de mundo heteronormativa2.
queer do fracasso. Recife: CEPE,
2020; EDELMAN, Lee. No future: Nesse incômodo, a roupa exerce um papel fundamental. É possível, por exemplo,
queer theory and the death drive.
Durham, N.C.: Duke University Press, descartar a importância dos genitais no ato sexual e direcioná-lo para o uso lúdico
2004; PERRA, Hija. Interpretações de determinadas peças de roupa. É possível também embaralhar o que a hete-
imundas de como a Teoria Queer
coloniza nosso contexto sudaca,
ronormatividade considera, numa roupa usada em público, como luxo ou como
pobre de aspirações e terceiro- miséria, como masculino ou como feminino, explorando misturas, quebras e fron-
-mundista, perturbando com novas teiras impossíveis de surgir no esquema burguês da família nuclear hétero e mo-
construções de gênero aos huma-
nos encantados com a heteronor- nogâmica. Tudo isso é queer, e o queer costuma levar a roupa para patamares que
ma. Revista Periodicus, UFBA, 2014. cavam brechas nas regras da heteronormatividade. Ora, se os queers estão fazen-
Disponível em: https://portalseer.
ufba.br/index.php/revistaperiodicus/
do cinema, esse cinema não pode ser menos incômodo, menos estranho que eles
article/view/12896/9215. Acesso em próprios. É por isso que se diz que todo cinema queer já é cinema experimental
mar. 2021. e que existiria uma diferença entre um filme queer e um filme com “temática” ou
3
Cf. BEAUVEAIS, Yann. Coisas de simplesmente com personagens LGBTQIA+3. Se os queers incomodam quando se
viados! Coisas de bichas!. 2016. vestem e incomodam fazendo cinema, o que pode o figurino no cinema queer?
Disponível em: https://yannbeau-
vais.com/?p=1544. Acesso em mar.
2021; LAURETIS, Teresa De. Queer Quando enxergamos filmes experimentais através da moldura de teorias do ci-
texts, bad habits, and the issue of a nema que pressupõem a linguagem clássica como a mais “natural” do medium,
future. GLQ: a journal of lesbian and
gay studies, 17/2-3, 2011. esses filmes surgem como peças interessantes, mas bizarras, incompletas, precá-
rias. Obras que não conseguiram “chegar lá”, isto é, fazer um filme que mostre o
começo, meio e fim e uma história envolvendo conflitos psicológicos entre per-
sonagens. Aqui eu quero fazer diferente: quero usar a moldura teórica das ar-
tes visuais. A partir dessa moldura, são os filmes clássicos que são bizarramente
precários, pois, apesar do seu caráter polido e da sua sustentação financeira, eles

223
estranhamente continuam preservando uma visão estética de mundo moribunda.
Os filmes experimentais, pelo contrário, por sempre terem borrado a fronteira en-
tre cinema e artes visuais, surgem como peças que nos interessam por promover
novas experiências estéticas, outras cognições do mundo e da vida, sensações
outras. Eles usam a câmera e a tela cinematográficas para explorar procedimentos
pelos quais a pintura não acadêmica outrora se interessava, por exemplo.

E assim eu queria começar por observar uma longa sequência de personagens se


vestindo, presente no curta-metragem, dirigido pelo estadunidense Kenneth Anger
em 1963, Scorpio rising. É difícil dizer exatamente sobre o que é este filme, mas uma
forma de descrevê-lo é falar que é uma espécie de “registro” da subcultura de mo-
tociclistas da Los Angeles dos anos 1960. É o universo extremamente masculino das
motos paramentadas, jaquetas de couro, caveiras de metal, cigarros e vandalismo,
que permeia o imaginário norte-americano desde pelo menos o fim da década de
1940 e que, até hoje, deixa marcas na cultura pop globalizada. Como cantou Lana
Del Rey na música Venice bitch, de 2019, “I dream in jeans and leather”.

Como na maioria de seus filmes, Anger utilizou sozinho sua câmera 16mm para
concretizar essa obra, sem a equipe tradicional de uma produção cinematográfica.
Scorpio rising não é nem um documentário com entrevistas e narração em off
falando sobre o surgimento e os costumes dessa subcultura. Tampouco é uma
ficção onde alguns personagens vão ilustrar o modo de vida de motociclistas. O
filme é uma montagem não narrativa com dois tipos de imagem: por um lado,
registros que o próprio Anger fez desses motociclistas e, por outro, imagens pré-
-existentes que ele retirou da cultura de massa da sua época (quadrinhos, cinema,
televisão). Dando liga às sequências dessa montagem, Anger usa hits musicais
contemporâneos seus.

Na sequência que quero focalizar aqui, onde vemos vários motociclistas se vestindo,
compondo, cada um, seu “uniforme característico”, Anger sobrepõe a música Blue
velvet, de Bobby Vinton, de 1963. Vemos, então, vários planos consecutivos ao som
dessa canção, onde homens com uma postura extremamente “macho” vestem, de
forma cuidadosa, quase como numa espécie de ritual, suas jaquetas de couro, cami-
setas, caps de couro preto com joias de prata, calças jeans, óculos escuro estilo “po-
licial”, anéis de caveira e correntes prateadas, cintos de couro preto com círculos de
prata e botas de couro preto. Por um lado, é uma sequência quase “etnográfica”, que
mostra um conjunto de costumes e gostos de determinado grupo social. Mas por
outro, a música cria uma tensão que suscita outras portas de entrada para a imagem.

A atmosfera sonora da música é romântica e, na letra, o eu lírico recorda melanco-


licamente uma mulher por quem continua apaixonado e que usava veludo azul.
Um choque então se estabelece entre uma atmosfera terna de desejo amoroso
(música) e uma pré-disposição para a violência inconsequente (imagem). Ao mes-
mo tempo, a insistência de Anger em mostrar longamente os vários atos do se
vestir e de perto (a câmera está sempre bastante próxima dos corpos) também
nos convida a abandonar os discursos pré-fabricados que porventura poderíamos
ter a respeito das pessoas que vemos em tela. Sem texto ou diálogos, apenas com
música, Anger nos convida a experimentar o que vemos de modo sensorial, espe-
cificamente apelando para o sentido do tátil: o couro, o jeans, a pele dos homens
vista de muito perto e sem nenhum texto que possa “explicar” essas aparências,
esses sinais sensoriais, que possa fechá-los num sentido racional. Scorpio rising é
uma experiência mais tátil que cerebral. É um filme que não está interessado em
contar uma história, mas em compartilhar uma sensação.

224
Em seu texto mais diretamente dedicado às questões de estética visual, Gilles De-
leuze define a sensação como um ser, um bloco de forças que atinge o sistema
nervoso4. É algo de natureza diferente do discurso racional, que atinge o cérebro.
4
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon:
lógica da sensação. Rio de Janeiro: Deleuze define, na história da pintura, o regime da representação clássica como
Zahar, 2007. uma forma específica de visualidade onde o tátil está submetido ao ótico: por mais
que um pintor seja hábil em representar sombras, volumes e texturas, todas essas
aparências sensoriais estão submetidas a um esquema maior, orgânico, que é a
cena. É a organização dos corpos num espaço-palco fundo (perspectiva linear),
uma organização apta a tornar inteligível alguma emoção, evento ou história para
quem vê (privilégio do ótico sobre o tátil). A cena é orgânica porque funciona: é
um organismo. É um esquema que dá ordem ao caos do mundo.

Ora, uma das formas de fugir do orgânico, em pintura, é investir no que Deleuze
chama de “espaço manual violento”. É não uma tentativa de organizar o caos, mas
de mergulhar nele da melhor forma possível, para sentir suas energias. Aqui o tátil
predomina: é a carne e suas afecções, seus devires animais, que são trazidos à
tona. E não há mais organismo: os órgãos que antes funcionavam, isto é, exerciam
suas funções específicas e “corretas”, ganham funções novas, inauditas, estranhas,
inesperadas. O corpo, que era o personagem numa encenação, vira um corpo
sem órgãos, deslizando nos fluidos da materialidade e da carne. Nessas condições,
peças de roupa podem se transformar em novos órgãos provisórios, próteses de
um devir pós-humano. É o que ocorre, me parece, com as botas, jaquetas e jeans
dos motoqueiros de Scorpio rising.

Blue velvet reitera uma insistência tátil, referindo-se à textura prazerosa do veludo
enquanto material. Existe algo de perverso, da parte de Anger, em sobrepor a música
de Vinton à montagem, sem o conhecimento das pessoas filmadas. O efeito, junto
com a câmera aproximada, é certamente o de erotização daqueles corpos. Mas,
seriam esses corpos assim tão inocentes, inconscientes? Em que momento passa-
mos da subcultura das motos para a subcultura do sadomasoquismo gay? Os ho-
mens filmados por Anger são héteros inconscientes de estarem sendo fetichizados
por um olhar gay ou são gays que voluntariamente se vestem como personagens
“héteros violentos” apenas para satisfazer as pulsões sexuais insensatas da carne? A
câmera tátil de Anger e a beleza material que nos chega pelas imagens do seu filme
parecem mostrar que a vida da carne, a vida sólida real, é muito mais complexa, mais
bela e maravilhosa (no sentido que os surrealistas davam a esta palavra) do que as
limitações racionais e binárias que dão origem a esse tipo de pergunta.

O modo como a roupa aparece em Scorpio rising faz exatamente o contrário


da caracterização clássica, isto é, da ilustração do figurino para confirmar a in-
teligibilidade racional e social de determinado personagem. A roupa, aqui, antes
embaralha e confunde nossas certezas e, mais do que caracterizar, transmite ao
espectador uma sensação. Trata-se de um devir erótico, e um que incomoda de
forma cortante a organização heteronormativa: é um erotismo que vai buscar pra-
zer no perigo, na agressividade e nos fetiches. O sexo deixa de ser o local sagrado
da procriação e se transforma num locus de libertação, ainda que arriscado. Nele,
podemos experimentar os limites do nosso corpo e da nossa subjetividade. E po-
demos nos transformar num laboratório para novos órgãos.

Num filme com temática LGBT, o figurinista pode vestir os personagens gays e os
héteros, diferenciando-os. Mas em Scorpio rising – cinema queer – um olhar gay
observa corpos teoricamente héteros, que podem muito bem ser gays “se fanta-
siando” de héteros por causa da sua sexualidade sadomasoquista. A verdade é que

225
o filme de Anger dilui a binaridade dessa forma de olhar e de colocar as coisas.
Não existe a “roupa do gay” e a “roupa do hetero”, existe apenas a materialidade tátil
de certos tecidos que podem ser a porta de entrada para determinados prazeres,
independente de como a mente conceitual define e fecha identidades de gênero.

Scorpio rising mostra que motoqueiros machões vestindo seus uniformes não são
tão diferentes de drag queens fazendo uma montação. Tudo é fantasia. As regras,
do que se pode ou se deve vestir, são heteronormativas. Anger convida o especta-
dor para essa fantasia. Fantasias não podem se estruturar com regras binárias, elas
são, antes de tudo, experiências que tentam fugir dos limites da racionalização.
Na fantasia, a roupa não pode ser discreta, ilustrativa. Ela é a própria condição da
experiência fantástica, ela é o ponto de virada onde o organismo que funcionava
se transforma num corpo sem órgãos: corpo que busca novos, ainda que provi-
sórios, órgãos. Para além de Scorpio rising, outros dois curtas de Anger também
parecem explorar e desenvolver essa prerrogativa: Puce moment (1949) e Kustom
kar kommandos (1965).

O espaço manual violento, como definido por Deleuze para as artes visuais, tem
um caráter caótico, infernal, é uma sensação “catastrófica” (nas palavras do próprio
autor) de carne, de pele, de fluidos. Mas este não é o único caminho para esca-
par do espaço representativo clássico. E podemos ver uma resposta diferente na
poética desenvolvida por outro cineasta queer, dessa vez na década de 1970: o
mexicano Teo Hernandez.

Do mesmo modo que Anger, Hernandez fazia filmes sem equipes, usando apenas
uma câmera 8mm e convidando amigos para participar de suas peculiares encena-
ções. É importante salientar esse lugar “marginal” à prática cinematográfica habitual,
porque, tanto em Hernández quanto em Anger, é exatamente isso que os aproxima
mais das artes visuais que do cinema (narrativo clássico). Eles usam a imagem em
movimento de forma mais autônoma, mais livre, para investigar formas de ver e de
conhecer o mundo, um pouco como os videastas usaram o vídeo a partir da década
de 1960. A partir de seus baixos custos de produção comparado ao cinema de pe-
lícula, a videoarte explorou a imagem em movimento como material plástico e não
como meio representacional. Ora, no cinema queer de Hernandez, a roupa, mais
especificamente o tecido, desempenha um papel fundamental.

É possível dizer que o principal assunto do cinema de Hernandez é material: véus,


5
Cf. o excelente dossiê a respeito de tecidos, vidros, cristais, água, luz5. Há aqui uma não diferenciação radical entre o
Teo Hernández feito pela revista Lu- que é roupa (figurino) e o que é objeto (direção de arte). Tudo é material, tudo –
mière: http://www.elumiere.net/es-
peciales/teo/. Acesso em mar. 2021.
corpos, tecidos, coisas – flui numa mesma corrente de energia sagrada. Trata-se
de uma recusa radical da visão antropomórfica que hierarquiza o humano no lugar
de maior importância, enquanto que os outros seres e estados materiais estariam
girando em sua órbita, funcionando como sinais que apenas confirmam a racio-
nalidade e inteligibilidade dos seus dramas e histórias.

No cinema de Hernandez, é possível esperar eternamente uma história humana


que nunca chega, porque a câmera insistentemente filma apenas véus, lenços e
tecidos. Esses panos se movem languidamente, descobrem objetos, frutas, rostos
e corpos de pessoas. Eles compõem arranjos com flores, pedras e cristais. Eles
deixam passar luz pelos minúsculos furos do seu trançado. Eles refletem brilho nos
caprichados bordados, nas joias incrustadas, nas tonalidades de cor. Ou, então,
mergulham na escuridão, lentamente. É o drama das coisas e não das pessoas. É
o devir trágico dos materiais, dos panos. Na verdade, nossa pele é roupa também.

226
É que, nos filmes de Hernandez, não existe uma diferença entre nós e os objetos:
fazemos parte do mesmo continuum, temos a mesma natureza, fazemos parte de
um mesmo fluxo cósmico.

Em seu filme de 1977, Cristo, Teo Hernandez faz surgir, do seu fascínio pela mate-
rialidade dos véus e tecidos, uma sucessão de vários tableaux vivants onde corpos
de amigos seus são arranjados em poses hieráticas, como em pinturas de um
passado esquecido. Nesses planos longos, os gestos são muito lentos, como se as
figuras estivessem suspensas em conexões essenciais, que ultrapassam o funcio-
namento orgânico de dramas ou histórias (um pouco como nos filmes de Werner
Schroeter da década de 1970).

No centro desses quadros, está o corpo masculino magro do Cristo – não exata-
mente de Jesus Cristo, mas da imagem do Cristo que o Ocidente veio construin-
do ao longo de muitos séculos. Trata-se de um corpo de mártir, um corpo que,
no próprio sentir da dor e do sofrimento, transcende num estado de graça. É por
esta entrada que o olhar queer de Hernandez se apropria do mito (da imagem) de
Cristo e o reposiciona dentro de uma obra onde o Cristo é o centro de um ser de
sensação fundamentalmente homoerótica. No filme, muitos personagens tocam
o corpo de Cristo, o acariciam, o descobrem removendo véus, túnicas e sudários.
Em determinado momento, um homem beija o Cristo-mártir na boca, num gesto
de amor.

Se em Anger a sensorialidade tátil do jeans e do couro nos rebaixa a uma espécie


de inferno, em Hernandez a suavidade delicada e a brancura sagrada dos tecidos
e véus que cobrem os corpos hieráticos nus nos fazem transcender para um es-
tado de graça amoroso, celestial, onde as regras e sanções que, do ponto de vista
heteronormativo, criam proibições e permissões a respeito de quais corpos devem
ser amados e quais odiados, adorados e rebaixados, sentidos ou ignorados, caem
por terra.

Hernandez sempre assina o figurino de seus próprios filmes. Trata-se de uma pes-
quisa muito pessoal de material que tenta, através de texturas, transparências, bri-
lhos e esquemas de cores determinados, criar um espaço sensorial “nirvânico” nas
precárias imagens em 8mm. Como que convidando o espectador a entrar numa
miragem-aparição extremamente rara, etérea e benéfica, ainda que sensual. A luz
é com frequência muito clara, e as roupas e tecidos se juntam aos objetos alegó-
ricos que constroem a direção de arte do filme: taças douradas, coroas de louro,
flores, chaves misteriosas, espelhos e janelas.

Porém, Hernandez em nenhum momento esconde que o que vemos naquelas


imagens são apenas seus amigos. Uma calça jeans, uma camiseta polo extrema-
mente ordinária, uma parte de um apartamento comum, o erro ou a falha de uma
gestualidade, um sorriso que escapa; tudo isso entra na imagem e é fundamen-
tal para que esta escape da higienização sufocante das imagens publicitárias dos
grandes editoriais de moda. Diferente destas, que são absolutamente controladas
e calculadas em seu acabamento e efeito, as imagens de Cristo são fundamen-
talmente abertas, soltas, alegremente precárias e, portanto, rarefeitas. É como se
Hernandez precisasse mostrar que o milagre não é uma imagem megaproduzida
e espetacularizada. Antes, o milagre está no cotidiano mais banal, mais modesto –
são as extremas pobreza e humildade do Cristo que, em seu martírio underground,
e apenas por ele, atinge os céus. Trata-se de um raro curto-circuito entre aquilo
que é mais rasteiro e aquilo que é mais divino.

227
O fato de Hernandez investir, junto com a insistência tátil dos materiais investiga-
dos, numa composição dos corpos – os tableaux –, leva suas obras para um cami-
nho diferente do de Anger, que, em Scorpio rising, investe muito mais no caos ao
aproximar sua câmera da pele e dos materiais. Poderíamos dizer, seguindo ainda
os parâmetros plásticos de Deleuze, que as imagens de Hernandez abrem um
espaço háptico. Neste, a presença de sensação da materialidade se conecta ins-
tantaneamente à abstração essencial das formas. Ou seja, não experimentamos a
sensação como o inferno da carne, mas como a bem-aventurança do cosmos. No
espaço manual violento, há uma predominância da catástrofe. No espaço háptico,
a carne encontra seu sentido último, que não é uma narrativa cerebral, um drama
inteligível (espaço representativo clássico), mas um ser essencial. Ou seja: a carne
não volta a funcionar no organismo.

No háptico, a organização clássica vira uma composição abstrata. É dessa forma


que, na pobreza palpável desses filmes quase “caseiros”, um fascínio por véus, te-
cidos e lenços de uma requintada beleza desvela um continuum queer e homo-
erótico dentro do qual estamos todos conectados à ordem divina. Dentro desta,
somos todos irmãos e podemos nos tocar, nos acariciar, nos amar e nos sentir.
Não é sobre construir família, procriar, casar. Tampouco é sobre afirmar uma iden-
tidade gay diferente da hétero. É sobre um amor sem fronteiras que transfigura
as feridas do martírio e do sofrimento. É sobre a generosidade sensual de tratar o
corpo masculino com compaixão. Muito mais do que caracterizar o Cristo com
um “figurino de época”, Hernandez mistura as roupas ordinárias do dia a dia de
seus amigos com o luxo dos véus requintados de um mundo cristão hierático, pré-
-Igreja, e assim traz à luz a sensação cósmica que o enlaçamento de dois corpos
masculinos pode despertar.

Para chegar no recorte geográfico deste livro – o cinema feito em Pernambuco –


eu poderia agora mergulhar num filme como Noturno em Ré-cife maior (1981), de
Jomard Muniz de Britto. Filmado em 8mm, este média acompanha um vampiro
que aterroriza os espaços visivelmente heteronormativos do Recife (a estação de
trem, os bares boêmios), mas que também encontra brechas (a pista de uma dis-
coteca onde outras bichas dançam embaixo do globo de luz, o banheiro onde se
faz pegação). Por cima das imagens, músicas nacionais de atmosfera e imaginário
tropicalistas. É possível traçar diversos paralelos e conexões entre a prática fílmica
de Britto e as de Anger e Hernandez. Porém, talvez seja o momento de verificar
quais as reverberações desse tipo de cinema no audiovisual contemporâneo, que
é o recorte temporal desta publicação. E isto me leva ao cinema underground feito
pelo multiartista Sosha.

Aqui eu queria fazer um paralelo tecnológico, uma vez que um cinema como o de
Sosha só pôde ser possível graças ao acesso que a tecnologia digital garantiu a câ-
meras de vídeo na virada dos anos 2010. Exatamente como Anger, Hernandez ou
Britto, Sosha realizou cada um de seus curtas acumulando muitas funções (dire-
ção, roteiro, fotografia, arte, figurino, maquiagem) e com a autonomia e liberdade
que apenas o estar à margem dos circuitos institucionais do cinema contemporâ-
neo garante. Não quero com isso romantizar a marginalidade dessa condição, mas
apenas enxergar como o caráter experimental dos filmes de Sosha tem necessa-
riamente a ver com uma situação que permitiu que ele não seguisse o caminho
habitual que os valores institucionais do circuito cinematográfico perpetuam.

Assim, os celulares e câmeras digitais baratas encontram o 16mm e o 8mm de


outrora. E de forma não surpreendente, os filmes de Sosha apresentam uma hibri-

228
dização borbulhante. Se em Anger e Hernandez o cinema encontrava as artes vi-
suais e a performance, em Sosha, além disso, há diálogos férteis com o videoclipe
e com o mundo da moda (tanto as passarelas quanto os assim chamados fashion
films – curta-metragens comissionados por grifes para apresentar suas coleções
também numa narrativa de imagens em movimento e não apenas no antigo for-
6
Para análises de mais fôlego sobre
mato de editorial com fotografias)6.
o trabalho de Sosha, cf. BARBOSA,
André Antônio, LOPES, Denilson, O videoclipe e os fashion films são, no mundo contemporâneo, as principais for-
NEVES, Pedro Pinheiro e DUARTE
FILHO, Ricardo. Inúteis, frívolos e mas comerciais pelas quais a imagem em movimento se liberta do formato oito-
distantes: à procura dos dândis. Rio centista da narrativa inteligível através de cenas – formato que domina hoje tanto
de Janeiro: Mauad X, 2019; FALTAY,
Paulo. Lotta Love: Sosha e o dandis-
o cinema (“comercial” e “independente”) quanto a TV (o sucesso estrondoso que
mo diante das telas, 2016, artigo não as narrativas seriadas representam hoje é a maior prova do enraizamento deste
publicado. formato específico nas nossas formas de conhecer e apreender o mundo). Em
outras palavras, o videoclipe e os fashion films são a videoarte tornada comercial
e, sem dúvida, o preço que foi pago para isso acontecer foi a higienização dessas
imagens. Isto é: seu atrelamento à lógica da criação de celebridades e a valores
que impõem um limite ao que de fato pode ser visto, sentido e discutido nessas
imagens – embora, obviamente, seja sempre possível encontrar brechas aqui e ali.

A questão é que o cinema de Sosha redescobre a força do glamour fashion e das se-
quências videoclípticas ao justamente encená-la tendo por protagonistas, na maio-
ria das vezes, pessoas trans e queer (uma mudança que, por incrível que nos soe,
ainda caminha a passos muito lentos na indústria da moda contemporânea), e por
cenário, locais decadentes de cidades brasileiras: Recife, Rio de Janeiro e Brasília.

Nos filmes de Sosha, o figurino não é algo secundário ou ilustrativo. Ele é, pelo
contrário, a chave estética da força que esses filmes têm. Muitas vezes, temos a
sensação de que aqueles filmes foram feitos apenas para mostrar aqueles corpos
usando determinados looks, vivendo a vida com eles, andando com eles pelo
espaço público – e não que um figurino foi pensado para caracterizar um per-
sonagem para uma cena narrativa. A grande alegria dos filmes de Sosha é que,
neles, seres que são excluídos das imagens higienizadas da cultura midiática con-
temporânea estão performando o chic e o blasé – o que em fotografia de moda é
7
Cf. MARTINEAU, Paul. Icons of sty-
conhecido como “atitude”7.
le: a century of fashion photogra-
phy. Los Angeles: Getty Publication, Eis a diferença mais radical e fundamental entre essa estética e o modo como
2018.
esses mesmos seres tendem a aparecer nos longas-metragens do circuito do ci-
nema independente. Nestes, esses corpos são dados sociológicos. Há uma ansie-
dade muito grande dos roteiros narrativos significarem essas pessoas através de
coordenadas como a injustiça social, o drama político, a comoção sentimental. É o
que Deleuze chamou de miserabilismo: uma tendência da arte moderna de achar
que a crueldade dos temas é o bastante para iluminar aspectos da vida através das
sensações. Tal crueldade, porém, nunca consegue esconder totalmente seu lastro
sensacionalista, sua moralidade kitsch.

As personagens no mundo de Sosha são como modelos usando looks e desfi-


lando, e não como personagens atuando a partir de um roteiro. São personagens
extremamente artificiais. Elas aparentam tristeza, empolgação, confusão, determi-
nação, mas com uma superficialidade fundamental. É a maneira teatral, debo-
chada, mas ao mesmo tempo fria (afinal, estamos no domínio da moda) como
as modelos apareciam nos desfiles perversos, devassos e decadentistas de John
Galliano nos anos 1990 – referência fundamental da estética de Sosha . O cinema
contemporâneo pode nos proporcionar vários comings of age explicando de for-

229
ma didática o que significa transicionar quando se é uma pessoa trans. Na prática
habitual do cinema, entender qualquer fenômeno significa cercá-lo de uma inte-
ligibilidade cênica ou de drama que desemboca numa lição edificante. Mas talvez
esse tipo de filme não consiga transmitir a sensação do que é, para uma pessoa
queer, a realização de se vestir para aparecer no espaço público.

Em Recife XXI (2014), a top model Brenda (interpretada por Brenda Bazante) decide
deixar seu apartamento em Londres e ir de férias ao Recife. Neste enredo de Sosha,
não apenas uma das mais importantes modelos do mundo é uma pessoa trans,
como, de maneira mais fundamental, isso não é o assunto do filme. Não temos
dramas sobre preconceito ou aceitação aqui. É a naturalidade com que Sosha
aposta nessas escolhas ousadas que permite que ele atinja o chic underground
que é a marca da sua estética.

Muito mais do que um filme narrativo, Recife XXI é uma espécie de libelo sobre a
liberdade de uma mulher trans desfilar pelas ruas degradadas do Recife com sua
bolsa Louis Vuitton. Essa liberdade é chic justamente por recusar a ingenuidade da
higienização dos fashion films e apostar na ironia, no contraditório, no deboche: os
aspectos mais feios das ruas de Recife (uma pessoa em situação de rua que dorme
na calçada, as paredes craqueladas e arruinadas dominam o visual do centro da
cidade) não são escondidos. Um motorista de ônibus solta uma piada transfóbica
para Brenda e sua amiga Tanya (Alexis Colby). Os garotos que tomam sol à beira
do Rio Capibaribe são filmados com a erotização de um vídeo pornô, mas ao mes-
mo tempo são visivelmente figurantes amigos de Sosha que estão longe da beleza
padrão dos corpos masculinos do mundo institucional da moda.

A excitação das trilhas sonoras sempre marcantes dos curtas de Sosha se mistu-
ram com o humor ácido e, não obstante, com o prazer que é usar looks para ser
quem você quer ser no mundo. Ser chic, aliás, é uma espécie de savoir-vivre com
dignidade, não importa quais obstáculos o mundo social imponha ao fluxo calmo
da élégance.

8
FOUCAULT, Michel. A pintura foto-
Em um ensaio de 19758, Michel Foucault faz uma conexão entre dois momentos
gênica. In: Estética: literatura e pin- distantes. O primeiro é a época pós-invento da fotografia, em meados do século
tura, música e cinema (Ditos e Escri- XIX. Época de montagens, colagens e brincadeiras com a imagem. Pintava-se a
tos Vol. III). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009, pp. 346-355. mão, com cores, a imagem em preto e branco. Compunham-se ambiciosos ta-
bleaux a partir de uma infinidade de fotografias recortadas. Fantasiavam-se corpos
pelo puro prazer de ficcionalizar registros: pela brincadeira. Foucault diagnostica
que essa “anarquia das imagens” se eclipsa na primeira metade do século XX. O dis-
curso modernista da pureza dos medium, cada um com sua função, sua estética,
sua especificidade (que chega ao ápice no pensamento de Clement Greenberg)
tolhe a despretensão lúdica e estabelece regras muito restritas, graves, sérias, do
que pode e do que não pode cada forma de arte. Porém, a partir da pop art na
década de 1960 e da irreverência híbrida de várias práticas estéticas correlatas,
Foucault prevê um retorno daquela anarquia plástica, onde a inconsequência lúdi-
9
Em outro lugar, tentei enxergar
essa sensibilidade ou atitude estéti- ca andava de mãos dadas com o encantamento e a descoberta de novas formas
ca através do termo “frivolidade”. Cf. de ver o mundo.
BARBOSA, André Antônio. Constela-
ções da frivolidade no cinema brasi-
leiro contemporâneo. Tese (Douto- Ao meu ver, é imprescindível, no momento em que mais pessoas do que nunca
rado em Comunicação e Cultura), têm acesso a câmeras digitais, seus filtros, seus efeitos frívolos e suas possibilidades
Programa de Pós-graduação em
Comunicação e Cultura, Universida- de intervenção, montagem e pós-produção de imagem, que tentemos manter
de Federal do Rio de Janeiro, 2017. esse espírito de anarquia em nosso horizonte9.

230
Pedir que os filmes de Sosha sejam “mais” do que são – mais narrativos do que
aquela simples apresentação de roupas em paisagens urbanas – é revelar uma
limitação fundamental de quem está pedindo. É a limitação de achar que as ima-
gens em movimento precisam de uma ancoragem estrutural narrativa, cerebral,
racional, sociológica.

Práticas cinematográficas como as de Sosha, Kenneth Anger e Teo Hernandez


tocam num lugar incômodo – como poderia ser diferente no caso do cinema
queer? – e que gera muita ansiedade: as imagens podem ser livres. Elas podem ter
a vulgaridade de serem confeccionadas apenas para satisfazer um prazer, sem ne-
nhum outro grande projeto intelectual por trás delas. Mas ao terem a coragem de
brincar com imagens, com a despretensão de quem está de fora dos grandes cir-
cuitos, porém com a atenção aos detalhes de quem verdadeiramente está obce-
cado por realizar determinados prazeres, filmes queer como os vistos neste texto
adquirem o status precioso de compartilhar conosco sensações complexas, vivas
e francamente ameaçadoras ao binarismo da visão heteronormativa de mundo.

É como se a roupa para o cinema queer fosse responsável não pela definição
que advém da caracterização, mas pela transformação que vem da alquimia. Pe-
las sensações alquímicas das roupas – e acredito que muitas pessoas queer vão
entender o que eu estou falando – conseguimos nos libertar dos conceitos dis-
cursivos limitantes e vemos o que estava o tempo todo embaixo do nosso nariz:
o encantamento e a magia de estar vivo.

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Este livro foi composto em fonte
Museo no corpo de texto
e Baro nos títulos, em 2021.
Com a experiência de participar de forma ativa como figurinista no cinema
pernambucano, Ana Cecília Drumond assumiu o desafio de pensar o audiovisual pela
perspectiva do figurino. Nas páginas deste livro, você encontra depoimentos de dez
figurinistas, responsáveis por alguns dos principais filmes produzidos em Pernambuco.
São relatos sobre seus processos criativos, métodos de trabalho, soluções encontradas
em meio às dificuldades para se adequar aos limites de tempo e orçamento, bem como
reflexões sobre seus trabalhos em prol da narrativa e da importância dos trajes de
cena na construção de um cinema mais representativo. A edição ainda traz análises de
pesquisadores da área sobre o figurino na produção local.
Foto Isabela Cunha

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