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A pré-escola na Republica Tizuko Morchida Kishimoto A passagem do primeiro centendrio da Reptiblica no Brasil traz a oportu- nidade para uma revisdo das motiva- ces que contribuiram para acriagdoe expansdo da pré-escola em nosso pais. Nessa anélise interessa destacar a atuacdo dos poderes piblicos. A preocupacdo com a infancia brasi- leira tem suas raizes no inicio da colo- nizacéo portuguesa. Padre Anchieta, em carta enderecada a Inacio de Loyo- la, em julho de 1554, faz mencao aos or- fanatos mantidos pela Companhia de Jesus, para abrigar érfaos vindos de Portugal. Naquela ocasiao, 0 religioso pleiteava a extensao desse servico pa- ra amparar criancas indigenas, rejeita- das em decorréncia de certas tradicées das tribos (Anchieta, 1931: 67, 87, 88, 149, 217, 219 e 641). E também no periodo da dominacgao portuguesa que se expandem praticas européias como a instalagao de rodas de expostos junto as Santas Casas de Misericérdias para amparar criancas enjeitadas. Mesgravis (1976) ja assina- la, no primeiro século da colonizacao, aexisténcia de catorze irmandades da Misericérdia destinadas a prestar as- sisténcia a velhos, doentes, presos, des- validos e a infancia. O abandono de criangas é uma pra- tica comum desde o século XVII. Em Sao Paulo, 14% a 25% de criangas bati- zadas no perfodo compreendido entre 1800 e 1830 aparecem como enjeitadas. O grande numero de criancas abando- nadas pode ser associado a diversos fa- tores de ordem econémica, social e po- litica. Entre eles estdo: o sistema escra- vocrata como estimulo a prostitui¢do, a auséncia de trabalho para mulheres néo-escravas, dificuldades financeiras de familias pobres refletindo no au- mento de uniées ilegais, a existéncia de populacées masculinas flutuantes que sustentam a prostituicdo, grandes distancias geograficas que impedem ce- lebracdes matrimoniais, além do alto custo delas e o preconceito contra casa- mentos entre elementos de classes so- ciais diferentes (Kishimoto, 1988: 47). Desde o periodo imperial, diversas modalidades de asilos infantis desti- nados a protecao da infancia expan- dem-se no Brasil pelo apoio de monar- cas e pela destacada atuacdo da Igreja Catélica. Os empreendimentos caritativos en- contram nos prinefpios da religiao ca- t6lica, do amor e da fraternidade uni- versal razdes para atuar junto a po- bres, 6rfaios, doentes e carentes em geral. Em 1617, a congregacao vicenti- na inicia esse processo de amparo aos desprotegidos na Franga e, a partir de 1878, essa congregacdo amplia sua pre- senca na area da educacdo infantil no Brasil. A infancia abandonada aparece co- mo um dentre varios cbjetos de aco social da filantropia, especialmente a catélica, durante o periodo medieval. Nas sociedades medievais, as crian- cas néo mereciam nenhum destaque dentro do contexto social. Mistura- das dentro da grande familia compos- ta pelos avés, tios, amigos, escravos, agregados ea familia nuclear, elas ra- pidamente adquirem a condicéo de “adultos em miniatura” e aprendem os oficios do cotidiano em contato com 0 mundo dos adultos. O desconhecimen- to da infancia como periodo que requer cuidados educativos especiais nao exi- giu da sociedade, até entao, uma aten- cdo com sua educacao. © Docente e Pesquisadora da Faculdade de Educacao da Universidade de Sao Paulo. 55 A pré-escola na Reptiblica Essa situacdo seré alterada em virtu- de de modificagées ocorridas no pano- rama politico, social e econdmico, a partir do século XIII e que florescem no século XVIII. A descoberta da in- fancia como um perfodo especial no de- senvolvimento do ser humano traz re- flexos no modo de insercdo da crian- cana sociedade (Ariés, 1988). Acrianca passa a ser vestida, alimentada e edu- cada de modo diferente do adulto. Admite-se um comportamento tipico de crianca que se manifesta em seus brinquedos e nas formas de interaco com o mundo que a cerca. Tais modifi- cagées permitem a consolidacéo da pratica de abrigar criancas pobres em institui¢des denominadas orfanatos, asilos infantis, salas de asilos e intro- duzem o hdbito de colocar criangas ri- cas aos cuidados de outras familias, babds ou instituicdes especializadas em educacdo infantil. Entre as diversas modalidades de es- tabelecimentos de educacdo infantil que se expandem a partir da nova con- cepcdo de infancia, emergem os jar- dins de infancia, criados por Froebel, na Alemanha, em 1837; as escolas ma- ternais, divulgadas na Franca por Pape-Carpantier, em 1848; as creches, de Pastoret, em 1801 e, posteriormente, por Marbeau, em 1844, na Franca, e uma multiplicidade de organizagées denominadas orfanatos, salas de asi- los, casas de infancia, etc., destinadas a prestar assisténcia 4 infancia. Nos primérdios da educacdo infan- til, em alguns paises europeus, capita- listas eno Brasil, o jardim de infancia froebeliano serviu como instrumento de discriminacao social. Embora Froe- bel tenha criado 0 Kindergarten para educar criancas pobres entre 3 e 6 anos, paises capitalistas apropriam-se desse estabelecimento para oferecer status superior as criancas de meios privile- giados. A historia da educagdo infan- til que se desenrola nos fins do perio- do imperial e inicio da Repiblica, no Brasil, exemplifica nitidamente tal discriminagao ao apontar o jardim de infancia como estabelecimento tipico da infancia da classe dominante. Essa historia tem inicio quando grandes colégios da elite instituem uma nova modalidade de organizacado escolar para atender criangas de 3a 6 anos, sob a influéncia do modelo edu- cativo norte-americano. Empolgados pela metodologia do ensino intuitivo veiculada pela educa- cdo norte-americana, Joaquim Mene- zes Vieira, um dos mais conceituados educadores da Corte, e sua mulher, Carlota, instalam em 1875, no Rio de Janeiro, o primeiro jardim de infancia de que se tem noticia no pats, destina- do a favorecer o uso daquela metodo- logia, a partir da educagdio dos senti- dos (Kishimoto, 1988: 91). Dois anos depois, surge em Sado Pau- lo outra unidade froebeliana, na Esco- la Americana, mantida por protestan- tes. Da mesma forma, em 1884, no Pa- r, José Verissimo inclui dentro de seu conceituado estabelecimento privado, © Colégio Americano, a instituicéo froebeliana. O entusiasmo do ensino privado em importar o jardim froebeliano que se expandia no pais considerado van- guardista por sua democracia, pela ri queza de seu comércio e industria, nao écompartilhado por certos segmentos da sociedade brasileira. O desconhecimento das finalidades do jardim de infancia leva alguns ele- mentos da sociedade paulista a asso- cié-las As j4 conhecidas salas de asilos francesas e, assim, instaura-se uma confusao entre os dois tipos de estabe- lecimentos e as fungées de guarda e educagao. Enquanto jornais, como o Correio Paulistano, proclamam em suas man- chetes a criacdo de “‘salas de asilos”’, fa- zendo referéncia ao projeto de criagdo de jardins de infancia na Bahia, na Ca- mara dos Senadores, o senador Jun- queira esbraveja contra o projeto de criacdo do jardim de infancia no muni- cipio da Corte nos seguintes termos: 56 Kindergarten! £ allemio, é protes- tante, o nome catholico de asylos ou salas de infancia, deve ser banido pe- laescola liberal, Mas o meu fim é de- monstrar que isto ndo tem nada com. a instruccdo primaria: é uma insti- tuicdo de caridade para meninos des- validos, que serve para que améeou pai, sendo nimiamente pobres, quando vao para o seu trabalho, en- treguem seus filhos aquelles asylos, como ja se fez entre nés e até na Ba- hia, em algumas casas dirigidas pe- las irmas de caridade. Mas aqui era preciso dar-se este nome pomposo — jardins de infancia (Annaes do Sena- do do Imperio do Brasil, 1879: 141). Para o senador, termos como salas de asilose jardins de infancia so sindni- mos de instituicédes assistenciais, de cardter religioso, para criancas pobres e, enquanto liberal, manifesta-se con- trario a tais organizagées religiosas, repudiando sua inclusdo no sistema ptiblico de ensino. O carater assistencial das institui- ¢des de educacdo infantil desponta no- vamente, em 1883, por ocasido da Ex- posicdo Pedagégica no Rio de Janeiro. Alberto Brandao, um dos especialis- tas que colabora na exposicao, argu- menta ser o jardim de infancia uma instituicdo de caridade, tipica da Euro- pa, com finalidade tinica de prestacdo de auxilio 4 mae trabalhadora, sem utilidade para o Brasil, onde a mulher tem a Unica fungdo de cuidar dos fi- lhos; acrescenta ser essa instituicdo prejudicial 4 unidade da familia, por tirar a crianca muito cedo do lar. A fi- nalidade social de protecao a crianca, durante o trabalho feminino, em con- textos sociais urbanos e industriais, parece ser a tinica finalidade associa- da por Brandao ao jardim de infancia. O predom{nio marcante da agricultu- ra e a auséncia de centros industriais no Brasil, durante o perfodo imperial, justificam provavelmente essa inter: pretacdo. Outro posicionamento desfavoravel ao jardim de infancia que se destaca na- Pro-Posigées N° 3 — dezembro de 1990 quele evento provém de Olympio da Costa, que considera, indistintamente, jardins de infancia ou salas de asilo imi- tacées inconscientes de paises industria- lizados e, como tais, “objetos de luxo” para um pafs onde a mulher s6 concorre ainda como “fator de producao de filhos e nao de renda” (Actas e Pareceres do Congresso da Instruccdo: 223). Pelas posturas de Brandao, Costa e Junqueira, sobressai_o desconheci- mento da natureza de instituicées co- mo asilos infantis ou salas de asilo e jardins de infancia. A falta de discer- nimento dos objetivos de cada estabe- lecimento permite a assoviagaéo de qualquer instituicdo infantil a agdo de grupos religiosos com preocupacées humanitarias, visando apenas a prote- cdo da mae operaria e sua prole. Outros apontam o jardim de infan- cia como responsavel pelo inicio preco- ce da escolaridade, de 7 para 3 anos. Re- ligiosos e leigos confrontam-se em cri- ticas mutuas. Os primeiros apontando uso do brinquedo como recurso peda- g6gico que retira a espontaneidade do jogo infantil; os segundos acusando os partidarios do “ensino fradesco”, ini- migos dos brinquedos infantis, que pretendem introduzir no lugar das brincadeiras “‘o aprendizado monoto- no das rezas” (Actas e Pareceres do Congresso da Instruccao: 2-6). Essa associagdo sistematica do jar- dim de infancia as instituicdes de ca dade nao é compartilhada por eminen- tes parlamentares e educadores do pe- riodo imperial como Rui Barbosa, Souza Bandeira, Joaquim Teixeira de Macedo, Maria Guilhermina Loureiro de Andrade e outros. Entre parlamentares, Rui Barbosa destaca-se por apresentar um projeto de reforma da instrucdo priméria in- cluindo especificacdes detalhadas so- brea criacdo e implantagao de jardins de infancia, inclusive com orientagées sobre formacao de professores. Ao es- tabelecer nitida distingao entre as ca- sas de protecdo a infancia como salles dasyles (francesas), infant-schools (in- 57 A pré-escola na Reptiblica glesas), écoles gardiennes (belgas), kleinkinderschule (germAnicas), asili infantili (italianas) e os estabelecimen- tos froebelianos conhecidos como Kin- dergdrten, ele demonstra grande dis- cernimento das funcdes da educacéo infantil. No Parecer e Projeto de Refor- ma do Ensino Primdrio de 1882, esse le- gislador faz ampla defesa do jardim de infancia como estabelecimento educa- tivo, anexo ao ensino primério, com duracao de trés anos, e que, a seu ver, representa a “‘férmula definitiva de educacdo preliminar a escola” (Refor- ma do Ensino Primério, 1883: 241). Da mesma forma, 0 ministro Souza Bandeira identifica a existéncia de dois tipos de estabelecimentos: os que se destinam a assisténcia diurna dos fi- Ihos de operdrios como asilos infantis ecreches e aqueles que se especiailizam na educacdo de criancas de 3 a 6 anos como os jardins de infancia, com regi- me de meio periodo. Em relacdo A implantacdo imediata do jardim de infancia, duas posicdes marcam 0 perfodo, mesmo entre admi- radores do jardim froebeliano. En- quanto Joaquim Teixeira de Macedo, embora grande admirador das obras de Froebel, considere prematura a ins- talacdo de jardins de infancia no Bra- sil, em virtude da falta de professores especializados, Maria Guilhermina Loureiro de Andrade contesta essa po- sicdo e batalha pela criacdo de jardins de infancia e pelo preparo de profissio- nais para a 4rea. O esforco de Maria Guilhermina transparece no projeto paulista de criacdo da primeira unida- de pré-escolar junto ao governo do Estado. Paralelamente a instalagdo de jar- dins de infancia mantidos pela rede privada, despontam algumas medidas de carter oficial, no sentido de viabi- lizar esse tipo de instituicao, as quais, via de regra, no se efetivam. Uma das primeiras iniciativas nesse sentido provém da Bahia, em 1875, com a dis- cussao, na Assembléia Provincial, em primeira leitura, de um projeto para 58 criar jardins de infancia, A semelhan- ca dos Kindergarten alemaes e confor- me recomendacées de Froebel e Pape- Carpantier. Outro exemplo ocorre no Distrito Federal, com a Reforma Len- cio de Carvalho (Decreto 7.247, de 19/04/1879), que introduz, entre outras coisas, a criacdo de jardins de infancia para criangas de 3 a7 anos. Leéncio de Carvalho entende ser o jardim de in- fancia o complemento natural de um sistema publico destinado a protegera infancia. Alguns anos depois, o ministro Sou- za Dantas, em 1882, coloca o jardim de infancia como “vestibulo do ediffcio da instrucdo publica, como noviciado pro- pedéutico para o primario” e chega até anomear uma comissao para angariar donativos e dar inicio a criagdo de tais estabelecimentos (Relatorio, 1882:18). Em Pernambuco, o inspetor geral da instrugéo publica, Jodo Barbalho Uchoa Cavalcanti, sugere, em 1879, al- gumas modificagées no sistema de en- sino local, incluindo escolas infantis destinadas a suprir a falta de educacao doméstica. Entre as iniciativas oficiais, no pe- riodo imperial, encontra-se ainda, no municipio da Corte, em 1882, a propos- ta mais explicita e fundamentada so- brea implantacdo dos jardins de infan- cia. O projeto de reforma de ensino pri- mério elaborado pela Comissao de Instrucdo Publica, relatado por Rui Barbosa, inclui vasto estudo sobre os jardins froebelianos. Outra iniciativa, no municfpio da Corte, que da seqiiéncia a valorizacao do jardim de infancia, a Exposicdo Pe- dagégica, permite a reuniao de valio- sos depoimentos sobre o jardim de in- fancia. A Exposi¢do Pedagégica repre- senta a oportunidade nao s6 para a divulgacéo dos jardins de infancia, mas serve, também, para demonstrar a divergéncia dos participantes em re- lacdio @ aceitacdo daquela modalidade de ensino, considerada ainda como lu- xo ou adequada apenas a paises indus- trializados. Pro-Posigdes N° 3 — dezembro dz 1990 As poucas medidas de cardter oficial promovendo esse tipo de escola, nos fins do Império, permanecem como ideal de um restrito nimero de legisla- dores e educadores, nao ultrapassando 0 plano das intencoes. Apesar de nao produzir nenhum re- sultado concreto que propiciasse a criacdo de estabelecimentos pré- escolares, as discussdes efetuadas nos fins do periodo imperial adquirem for- caecontribuem para o amadurecimen- to de novos projetos. Com 0 advento da Reptblica, torna- se possivel a instalacdo do primeiro jardim de infancia publico, no estado de Sao Paulo, fruto do projeto politico da burguesia do café que se instala no poder, por meio do Partido Republica- no paulista. O idealizador do projeto, Rangel Pestana, introduz modifica- des na Escola Normal da Capital, criando escolas-modelos com o objeti- vo de melhorar a formacao de profes- sores. Destinadas a permitir o estagio de normalistas, as escolas-modelos anexas 4 Escola Normal buscam desen- volver um padrao de ensino para nor- tear as escolas oficiais. Nesse projeto ja se encontra o Kindergérten, para criancas de 4 a 6 anos, fundamentado nas diretrizes de Pestalozzi e Froebel. Apesar da inclusdo do jardim de in- fancia no planos de Rangel Pestana e Caetano de Campos, sua implantacao sera postergada em virtude de discus- sdes em torno da inconstitucionalida- de do gasto de recursos publicos com uma educacdo considerada ndo- obrigatéria. A definicdo de idade de 7 anos, por dispositivos constitucionais, como 0 inicio da obrigatoriedade da educacao oferecida pelo Estado, cria dificuldades para a aprovacdo do jar- dim de infancia. Assim, a primeira re- forma da educacdo implantada pelos republicanos hist6ricos em Sao Paulo nao consegue viabilizar o jardim de in- fancia como mais uma escola-modelo destinada a formar professores e pro- piciar a expansdo da nova modalidade de ensino. Governos posteriores bus- cam em vao pleitear a instalagdo do jardim de infancia com vistas a com- pletar a reforma planejada por Rangel Pestana e por entender que, com ela, a Escola Normal de Sao Paulo passaria a dispor de uma estrutura curricular completa, 4 semelhanca de paises de- senvolvidos, como os Estados Unidos da América A criacdo do jardim de infancia, em Sao Paulo, junto a mais afamada esco- la oficial sé foi possivel gragas a astti- cia do deputado estadual Gabriel Pres- tes, indicado para dirigir a Escola Nor- mal a partir de 1893. A experiéncia politica de Prestes, na Camara dos De- putados, serviu para lhe mostrar que ndo adiantava enviar projetos destina- dos acriar jardins de infancia a Cama- ra, uma vez que seriam engavetados, tidos como inconstitucionais e desne- cessdrios. O ex-deputado dispunha de experiéncia prévia, comprovada pela pratica habitual de quea aprovacéo da maioria dos projetos dependia unica- mente de interesses politicos de cara- ter pessoal, que se originavam, geral- mente, no Poder Executivo e nao pas- savam pelas sessdes da Camara. Em decorréncia, Prestes faz uma in- vestida junto a seus amigos do Partido Republicano, Alfredo Pujol, Secreté- rio do Interior, e Bernardino de Cam- pos, Presidente da Provincia de Sao Paulo, demonstrando 0 peso politico de completar a reforma da Escola Nor- mal com a introducdo do jardim de in- fancia por meio de decreto governa- mental. Assim, surge pelo Decreto n° 342, de 1896, a primeira unidade pré- escolar instalada com recursos gover- namentais destinada a formar crian- cas de 3 a 7 anos, segundo a metodolo- gia froebeliana e visando funcionar co- mo centro de estdgio para o preparo de professores. Por ser instalada junto a Escola Nor- mal Caetano de Campos, preferida pa- ra a formacdo da intelectualidade da €poca, o jardim de infancia, embora publico, acaba disputado por criancas de meios privilegiados. Entre os alu- 59 A pré-escola na Repiiblica nos daquele estabelecimento conta- vam Francisco de Paula Vicente de Azevedo (Bardo de Bocaina), Julio de Mesquita Jr., Alfredo Pujol Filho, Ma- rio de Andrade, Francisco Matarazzo, ‘Angelita Campos Salles e outros, no- mes bastante sugestivos para se dedu- zir o grau de elitizacao do jardim de in- fancia situado na praca. Essa é uma das raz6es que leva Gabriel Prestes a afirmar, em entrevista concedida a um jornal, que uma das fungées do jardim de infancia consiste na oferta de edu- cacao as criancas (de elite) que ficam sob os cuidados de governantas, uma vez que seus pais ndo dispdem de tem- po ou nado conseguem encarregar-se da educacao dos proprios filhos. ‘A freqiiéncia de criancas de meios privilegiados no jardim de infancia da Caetano de Campos desperta a ira de parlamentares como Esteves da Silva, que apresenta um projeto estabelecen- do, entre outras coisas, a necessidade de sorteio para distribuir de modo mais eqiiitativo as vagas no jardim de infancia. Nao resolvida a questao, em 1920, outro parlamentar, Marrey Jr., introduz mais uma emenda na legisla- cdo vigente para combater a elitizacdo daquele estabelecimento infantil. A longa pratica dos jardins de infan- cia, tanto particulares como oficiais, de prestarem servicos apenas as clas- ses de maiores recursos parece ter re- forgado a idéia de que éa situacado eco- némica que diferencia o jardim de in- fancia de outros estabelecimentos como creches e escolas maternais. Es- sa pratica iniciada no periodo imperial continua na fase republicana. Os estabelecimentos infantis conhe- cidos como creches ¢ escolas maternais surgiram no Brasil nos fins do periodo imperial e no inicio da Reptblica, pa- ra atender a populacées de baixa ren- da. Criangas orfas, abandonadas e fi- lhos de operdrios constituem a cliente- la dessas organizag6es que implemen- tam trabalho assistencial. Mantidas pela filantropia, por religiosos ou se mentos sociais especificos, como mil: tares, médicos, sanitaristas ou empre- sérios, ou ainda subsidiados pelo go- verno ou atendendo a interesses co- merciais, tais estabelecimentos mul- tiplicam-se, oferecendo nao raras vezes péssimas condigées de atendimento 4 infancia. Com 0 processo de urbanizacao e in- dustrializacdo, aumenta a participa- cdo feminiria no trabalho produtivo. Em decorréncia, novos tipos de creches e escolas maternais sao instalados a partir do inicio da Republica e expan- dem-se, principalmente a partir do ter- ceiro decénio deste século, tendo como clientela filhos de operarios predomi- nantemente de industrias téxteis. Ocrescimento de tais estabelecimen- tos infantis, em centros urbanos e in- dustriais como Sao Paulo, decorre de fatores como a expansdo industrial, a urbanizacdo, a imigracdo e outros, agravados por crises econémicas cau- sadoras de recessdo, dsemprego e miséria. A inexisténcia de uma politica de va- lorizacéo da Area social resulta na “questdo social”, ou seja, a crise social dos anos 20, fruto do desenvolvimento do capitalism nacional, que explicita a caréncia de qualquer preocupacéo governamental com assisténcia previ- denciaria ao operariado e sua familia e permite a eclosiio de insatisfacées do proletariado que se revelam nas suces- sivas greves ao longo da Primeira Re- publica. Além do empobrecimento gradual da classe operaria, as péssi- mas condicoes de vida e de trabalho do industriario com jornadas diarias de quinze horas, a utilizacdo macica de menores e mulheres em trabalhos in- dustriais, oemprego de coacées, casti- gos, ameacas, dispensas, multas, disci- plina rigida, transformam a vida do operdrio em constantes dramas que se refletem no abandono das criancas e na mé produtividade. ‘A ccriacdo de vilas operérias no inte- rior das fabricas, com habitagao, cre- ches, escolas maternais e assisténcia médica, éa estratégia adotada porem- 60 presdrios interessados em nao sofrer descontinuidade em sua linha de pro- ducdo e dispostos a aumentar o poten- cial produtivo do operariado. O governo paulista participa desse processo de criagdo de creches e escolas maternais em 1920, quando Sampaio Doria, diretor da Instrucdo Pablica, fi- xa um arcabouco legal que permite a sua instalacdo junto a empresas, com a participacdo do governo. Interesses ligados 4 melhoria do parque indus- trial mobilizam o governo paulista nesse empreendimento. Para 0 idealizador desse convénio, Sampaio Doria, a creche, concebida co- ‘0 “mal necessario”, fruto do desajus- tamento moral e econdmico, oriundo da urbanizagao e industrializagao, nao poderia ser considerada estabeleci- mento educativo e fica alijada do sis- tema ptblico de ensino. Desta forma, pode-se dizer que a re- presentagdo social de crianca frequien- tadora de creches que emerge 6a de um pequeno ser necessitando apenas de guarda, de protecdo, enquanto os pais trabalham. Essa era a idéia de infancia do operariado vigente inclusive em paises desenvolvidos. Por entender que filhos de operdrios sé precisam de assisténcia médica, higiénica e alimen- tar, as creches buscavam implementar apenas funcées assistenciais. Paralelamente, estabelecimentos de- nominados escolas maternais surgem, de modo mais marcante pelo menos em Sao Paulo, desde o inicio da Republi- ca, quando a espirita Anélia Franco es- tabelece uma rede de creches e escolas maternais filantrépicas destinadas a criancas pobres e filhos do operariado. Posteriormente, diversos segmentos sociais, entre eles o governo, ampliam a instalagdo de escolas maternais “‘des- tinadas a iniciar a educacdo physica, intellectual e moral dos filhos de ope- rarios, servindo de intermedidrias en- tre a familia e a escola”, como assina- la o Art. 5° do Decreto n? 370, de 30/04/1924. Ao ser direcionada exclusi- Pro-Posigées N° 3 — dezembro de 1990 vamente a infancia do proletariado, a escola maternal acaba preconceituosa. Diversos educadores denunciam es- sa pratica. Entre eles Reis (Kishimoto, 1988: 38) e Villalba Alvim (1941: 33). O sentido depreciativo atribuido as creches e escolas maternais é apontado claramente por Faria (1941: 29) neste trecho: “‘as instituigdes pré-escolares que prestam assisténcia e dao também educaco séo vulgarmente chamadas de “‘creches e escolas maternais”. Almeida Jr., no Anudrio de Ensino de 1935/36 faz referéncia a contradicdo da pratica pedagégica nos seguintes termos: A palavra “Kindergarten” (jardim de infancia) foi adotada por Froebel, no século passado, para designar ins- tituigdes correspondentes ao tipo francés de escola maternal, abran- gendo a educacao e a assisténcia, e destinando-se, de preferéncia, A crianga pobre. Os americanos distin- guem geralmente a escola maternal do jardim de infancia entregando Aquela as criancas de 2a 4 anos ea es- taas de 4.6 anos. A terminologia do Cédigo de Educacaéo adotou esse exemplo. Contudo, 0 uso nosso é de- nominar jardim de infancia a insti- tuigdo que se preocupa exclusiva- mente com a educacdo froebeliana, reservando-se 9 nome de escola ma- ternal @ que educa e presta assistén- cia. (p. 104). O que o autor aponta é a inexistén- cia, no Brasil, da pratica norte-ameri- cana de distinguir as instituigdes in- fantis conforme a idade das criangas. Embora docentes como Alvim e Reis pleiteiem a idade como critério para distinguir o maternal do jardim, 0 co- tidiano da educacdo infantil gera dois sistemas paralelos, tendo como crité- rio aclasse social de seus alunos: esco- las maternais para filhos de operérios, com caracteristicas assistenciais, fi- cando implicita a auséncia de funda- mentacdo froebeliana, e jardins de in- fancia, como instituicdes tipicamente 61 A pré-escola na Republica froebelianas para as classes mais abas- tadas. A denuncia dessas praticas exige de parlamentares com Marrey Jr. um ze- lo para que tal discriminacao nao apa- reca, pelo menos nos textos legais que os fundamentam. A identidade de ob- jetivos entre escolas maternais e jar- dins de infancia, proclamada em ses- sao de Camara dos Deputados, trans- parece, pelo menos no periodo de 1921 a 1925, na unica orientacdo pedagégi- ca que orienta ambas instituigdes. Pro- postas de Froebel e Montessori alimen- tam a fundamentacdo educativa dos dois estabelecimentos infantis (Kishi- moto, 1988: 39-40). Entretanto, a duplicidade de insti- tuigdes destinadas As criangas da mes- ma faixa etaria anula os esforgos de le- gisladores em evitar discriminagoes e acaba por atribuir diferenca na quali- dade de trabalho. Provavelmente, a es- cola de filhos de operarios acaba por adquirir um status inferior em decor- réncia do predominio de idéias como a de que somente escolas de elite, geral- mente de meio perfodo, tém condicées de realizar preceitos froebelianos, co- mo 0 trabalho conjunto entre a escola ea familia, uma vez que as criangas fi- cam parte do tempo em casa e podem receber a atencdo de suas mdes, ou de que as escolas maternais separam as criancas de suas mes pela necessida- de do trabalho feminino, impedindo as interacoes sociais, ou de que criangas pobres precisam apenas de orientagao moral, religiosa e assisténcia higiéni- ca, médica e alimentar. Subentende-se neste contexto que a concepgiio de infancia do operariado esté associada a pobreza, miséria, pro- miscuidade, falta de higiene e satde, corporificando-se em estabelecimen- tos infantis que priorizam assisténcia imentar, moral, religiosa, médica e ica. Desponta, assim, uma re- presentacdo social de infancia do ope- rariado que determina as funcées de creches e escolas maternais como esta- belecimentos puramente assistenciais. A expansio de estabelecimentos in- fantis mantidos pelo poder ptblico foi muito lenta. Em Sao Paulo, de 1896 até pelo menos 1930, sé existiu um Gnico jardim de infancia — 0 anexo a Escola Normal Caetano de Campos —, consi- derado “modelo de si proprio”, uma vez que inexistia outro similar. A tentativa de escolanovistas como Lourengo Filho, Fernando de Azevedo, Almeida Jr. e outros de instalar classes de jardins de infancia anexas a grupos escolares, a partir dos anos 30, fracas- sa em virtude de acées manipuladoras que desativavam classes de educacéo infantil para instalar as de primério. Em decorréncia, a participacdo pu- plica na expansdo da educacdo infan- til, pelo menos durante a Primeira Re- publica, restringe-se 4 manutencao de poucas unidades e ao subsidio parcial de outras, especialmente de cardter as- sistencial. A inexpressiva participagdo do po- der publico resume-se em Sao Paulo, em 1941, as cifras pouco alentadoras de 37 jardins de infancia oficiais contra 277 pertencentes a rede privada. A re- de publica abrangia apenas 12% do to- tal de estabelecimentos infantis. Embora pouco significativa, em ter- mos numéricos, a expansdo de institui- cdes infantis esta aliada A forca do mo- vimento escolanovista, especialmente em grandes centros urbanos como Sao Paulo e Rio de Janeiro. Ao propagarem a metodologia de expoentes do movi- mento como Montessori, Decroly, De- wey, Kilpatrick-e outros, os jardins de infancia e as escolas maternais recebem aplausos do escolanovismo brasileiro. A atuagdo dos Pioneiros da Educa- cdo, na IV Conferéncia Nacional de Educagao (1931) e no Manifesto dos Pio- neiros da Educacdo Nova (1932), propi- cia a elaboracdio de um programa edu- cacional que sugere a inclusdo de pra- cas de jogos para a pratica de educacéo fisica e como complemento da educa- cdo pré-escolar. As pracas de jogos, adotadas a partir de 1935 pelo munici- pio de Sao Paulo, ampliama possibili- 62 Pro-Posiges N° 3 — dezembro de 1990 dade de veiculagao da cultura infantil, por intermédio de brincadeiras, ativi- dades fisicas e a oferta de assisténcia médica e alimentar. Visando equacio- nar problemas sociais provocados pe- la répida urbanizacdo e industrializa- co, com 0 éxodo de grandes contingen- tes populacionais da zona rural para a cidade e o decorrente aumento de criancas abandonadas nas ruas, as pra- cas de jogos, denominadas posterior- mente parques infantis, ganham forca como novos espacos para educar, re- crear e assistir a infancia paulista. A ideologia da higienizacdo presente na Primeira Republica encontra eco no movimento escolanovista, que se en- carrega de divulgar a necessidade de oferecer assisténcia médica e higiéni- ca paralelamente as atividades educa- tivas, buscando diminuir o alto indice de mortalidade infantil. Entre os escolanovistas, Fernando de Azevedo merece destaque por sua atuacdo tanto no Rio de Janeiro como em Sao Paulo, ao elaborar reformas substanciais da educagdo em ambos os estados, incluindo jardins de infancia junto as escolas normais e grupos esco- lares. Embora as referidas reformas determinassem a expansio de classes de jardins de infancia desde o final da década de 20, ela sé ocorrera tempos depois. Dificuldades como as enfrenta- das pelo governo paulista atrasam a expansdo da rede publica. O Codigo de Educacdo do Estado de Sao Paulo ela- borado por Fernando de Azevedo, em 1933, estabelece medidas para ampliar a educacdo pré-escolar. Todavia, ape- nas quinze anos depois, coma vigéncia da Consolidacao das Leis de Ensino, aquelas classes de educacdo infantil previstas pelo Codigo de Educaciio co- mecam a ser criadas. A partir dai no- vos problemas emergem. A inexistén- cia-de organismos estaduais para fisca- lizar as quinhentas classes recém-cria- das exigiu que a Secretaria de Educa- cdo instituisse um precdrio Servico de Educacao Pré-primArio. Nao dispondo de infra-estrutura administrativa, com poucos técnicos emprestados de outros setores, sem instalacdes e des- provido de verba propria, o setor defronta-se com problemas diversos, como a falta de professores especial: zados, auséncia de recursos materiais e generalizado descrédito em relagéio a importancia da educacao pré-escolar. Essa situagdo redunda na sistematica rejeicdo das classes de jardins de in- fancia, denominadas, na época, sinto- maticamente, “classes de decepciio in- fantil’ e estimulando a pratica de de- sativacdo das unidades infantis. Verificando as dificuldades enfren- tadas pela pr4tica da educacdo pré- escolar no pais, educadores como Ani- sio Teixeira veiculam a necessidade de estudar o desenvolvimento da crianca brasileira. O nacionalismo predomi- nante dos anos 20 que exigia a adapta- cdo de metodologias estrangeiras d& lugar aos estudos de psicologia infan- til. Em Sdo Paulo, organizagdes como aCruzada Pré-Infancia, aliada ao Ins- tituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, estabelecem classes de jardins de infancia como intuito de es- tudar o desenvolvimento da infancia paulista. Em Minas Gerais, damesma forma, 0 convénio MEC-USAID propi- ciao estudo ea implementacao de pro- gramas infantis com énfase no desen- volvimento infantil. Essa orientacéo seré aprofundada, posteriormente, com o movimento de reivindicacdo por creches com propostas educativas. A inexisténcia de organismos ofi- ciais de maior porte responsaveis pela orientacéo da pré-escola cria espaco para a penetracéo da Organizacio Mundial de Educacdo Pré-escolar, a partir da década de 40, com ramifica- ges em varios estados brasileiros. Ca- bed OMEP manter a discussdo em tor- no das principais questées veiculadas nos congressos internacionais, alimen- tando a expansao, ainda que precéria, desse nivel de ensino. Apés a década de 60, caracterizada como 0 perfodo nacional-desenvolvi- mentista, inaugura-se nos anos 70 uma 63 A pré-escola na Reptiblica crise econémica e politica com a desa- celeracdo da economia, inflacao, cres- cimento da divida externa e conse- qiiéncias na vida da populacao das ca- madas mais pobres, com aumento da miséria. Inicia-se, neste momento, mais uma movimentagdo das classes trabalhadoras contra a concentracéo de renda e crescem as reivindicacdes em torno da melhoria da qualidade de vida das populacées que solicitam 0 atendimento de servicos basicos como hospitais, postos de satide, escolas, ilu- minacdo, dgua, esgotos e, entre outros, a creche. A repeténcia e a expulsdo das crian- gas do sistema educativo, dois proble- mas graves, alcangam indices alar- mantes, chegando a apresentar 67% en- tre 1969 a 1972. Nesse quadro, emerge a pré-escola como solucdo ideolégica, a semelhan- ca dos anos 30, agora vista como alter- nativa capaz de evitar repeténcias e a eliminacdo de criancas do sistema es- colar, bem como supondo ser possivel compensar caréncias da populagdo pa- ra minimizar desigualdades sociais. Ao postular uma politica de educagao compensatéria, em decorréncia de in- fluéncias externas, especialmente ad- vindas dos Estados Unidos, a politica oficial instaurada a partir dos anos 70 prioriza um atendimento infantil de carater assistencial, desprovido de orientagdo educativa, como apontam diversos autores, entre eles Patto, Kra- mer e Uema. Essa situacdo se reflete nos documentos oficiais produzidos a0 longo dos anos 60 e 70 (Uema, 1984). ‘Ao longo de duas décadas, com excegdo da Lei 5.692/71, todos os dispositivos legais tratam da educacdo infantil acentuando o carater ndo-educacional. Paralelamente, a tendéncia descentra- lizadora que se inicia nas discuss6es efe- tuadas na década de 50 materializam-se nas Diretrizes e Bases da Educacéio Na- cional, as Leis 4.024/61 ea 5.692/71, que, ao invés de contribuirem para a expan- sdo da pré-escola, acabam até por prejudica-la. Especialmente a 5.692, a0 propor ao Estado a responsabilidade de priorizar 0 2° grau, esvazia a pré-escola estadual, trazendo uma queda no indice de atendimento ofertado pelo governo estadual. As timidas referéncias das leis em relacdo 4 municipalizacdo da pré- escola defrontam-se com uma podero- sa politica econdmica de concentragao de recursos voltados para obras de infra- estrutura em detrimento de areas so- ciais que esvazia as propostas de mu- nicipalizagdo da educacdo. Embora a década de 70 inaugure uma preocupacao maior em relacdo a educacdo pré-escolar, nos planos ofi- ciais, os dados apresentados por Ferra- ri (1988: 67-66) demonstram o pouco re- flexo dessas medidas na expansao do atendimento infantil. Ao analisar a evolucdo do atendi- mento infantil no Brasil no periodo compreendido entre 1968 e 1983, Ferra- ri observa uma politica irregular, pau- tada em projetos sem continuidade, havendo em alguns casos um atendi- mento mais alto e, em outros, uma quantidade irriséria. Enquanto em 1973 o indice era de 5,6%, em 1974 sal- ta para 11,2%, em 1975 cai para 4,3%; em 1976 vai para 18,2%, permanecendo alto até 1982. J em 1983, cai novamen- te para 6,8%. Durante o periodo de maior entusiasmo do poder piblico, proveniente do principio da educacao compensatéria, Ferrari observa uma queda na oferta de matriculas. Tais da- dos levam-no a concluir que a evolucdo da pré-escola no periodo da ditadura militar (1968 a 1983) foram mais com- pativeis com o modelo politico- econémico social vigente do quecom a intengao de democratizacao escolar e social (Ferrari, 1988:72). Apesar de assumida como priorité- ria, ndo se observa concretamente nem a expansdo de atendimento pré- escolar, muito menos a melhoria da qualidade do servico oferecido nessa Area. Os programas dirigidos as popu- lacdes de baixa renda assumem um ca- rAter informal, com emprego de pes- soal sem qualificagdo, utilizagdo de es- 64 Pro-Posigées N° 3 — dezembro de 1990 pacos ndo-convencionais, aproveita- mento de materiais ndo-sofisticados, mobilizacao de recursos da comunida- de eo desenvolvimento de atividades mais voltadas para alimentacao, higie- nee fragmentos de recreacao e arte, de- sacompanhados de orientacdo educa- tiva. O periodo de transicao democratica que se inicia com a Nova Repiiblica, em 1984, caracteriza a movimentagao de todos os segmentos sociais no sentido de colaborar com a elaboracdo da no- va Carta do pais. Em decorréncia, es- pecialmente, de movimentos sociais provenientes da periferia de grandes centros urbanos coadjuvados por orga- nizagdes de protecdo aos direitos da mulher, embora de modo timido, pela primeira vez na histéria da educacéio brasileira, uma Constituicéo inclui em seu texto especificacdes sobre a educa- cdo pré-escolar. A educacao pré-escolar é o novo nivel de ensino que passa a compor o siste- ma escolar brasileiro a partir da Cons- tituicdo de 1988. Compreendendo cre- ches e pré-escolas destinadas ao aten- dimento de criangas de 0 a 6 anos de idade, o sistema pré-escolar deveré fi- car sob a responsabilidade dos muni cipios, que receberdo recursos finan- ceiros na ordem de 25% para adminis- trar a pré-escola eo 1° grau. Com a antecipacdo para 6 anos do in- gresso em massa no sistema ptiblico de ensino, em virtude de dispositivos constitucionais, emergem questées co- moa expansio e melhoria da formacaio de recursos humanos, o repasse ea ad- ministracdo de verbas publicas e di- versos outros problemas que deverao ser equacionados. A revisdo da educacdo pré-escolar ao longo deste centendrio permite entre- ver a inexpressiva relevancia da educa- cdo pré-escolar em denominagoes pou- co alentadoras como a de ser ela um “luxo”, “desnecessdria”, ‘mal necessa- Tio”, “decepedo infantil”, bem como em associaces ideol6gicas destinadas a diminuigao do indice de mortalidade infantil, A cura de crénicos males da peténcia e expulsao de criangas do sis- tema escolar e até em bandeiras para propor igualdades de oportunidades sociais. Privilegiando sempre criancas de zonas urbanas e especialmente po- pulacdes mais abastadas, a pré-escola conseguiu atingir a irriséria taxa de 14,14% de atendimento em 1986. A al- teracdo desse quadro bastante sombrio da exclusao da crianca pré-escolat das ages concretas que orientam a politi- ca educacional brasileira dependera de diversos fatores, entre eles, a imple- mentacdo adequada das medidas de- correntes da nova Carta do pais. 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Estudo da politica nacional e as necessidades educacionais das criancas das classes trabalhadoras (Em questo: a pré-escola). Dissertacao de Mestrado, Sao Pau- lo, PUC, 1984. Re A preocupacdo com a in- SUMO fancia brasileira tem suas raizes no inicio da colonizacao portu- guesa. No periodo imperial, diversas mo- dalidades de asilos infantis destinados a protecdo da infancia expandem-se no Bra- sil pelo apoio de monarcas e pela destaca- da atuacao da Igreja Catélica, basicamen- te segundo o modelo froebeliano de jardim de infancia. O texto discute a descoberta da infancia como um periodo especial a partir do século XVIII eas diversas moda- lidades de estabelecimentos de educagao infantil que se expandem a partir da nova concepedo de infancia. Com o advento da Reptiblica, torna-se possivel a instalagéo do primeiro jardim de infancia pablico no Estado de Sao Paulo, junto A Escola Nor- mal Caetano de Campos. No final do Im- pério e inicio da Repitblica, comecam a surgir também as creches e escolas mater- nais no Brasil, que, com o processo de ur- banizacio, industrializacdo e participagao feminina no trabalho produtivo, passaram ase expandir a partir da década de 30. O texto apresenta também uma anilise das politicas governamentais com relacéo a educacdo infantil nas décadas de 60, 70 e 80. Palavras-chaves: pré-escola e Republica; Reptiblica e pré-escola; creches e Repub! ca; escolas maternais e Republica; Rep' blica e creches; Reptiblica e escolas mater- jardins de infancia e Republica; Re- publica e jardins de infancia. Ab: t ‘Theconcern for Brazilian SUL ACL injancy has its roots in the beginning of Portuguese colonization. In the imperial period, several modalities of infant homes destined to the protection of infancy expand in Brazil through the support of monarchs and the outstanding action of the Catholic Church, basically ac- cording to the Froebelian model of kinder- garten. The paper discusses the discovery of infancy as a special period, in the XVIII century, and the different modalities of in- stitutions of infant education which ex- pand from the new conception of infancy. With the advent of the Republic, it be- comes possible the creation of the first public kindergarten in the State of Sdo Paulo attached to the Caetano de Campos Normal School. By the end of the Empire and beginning of the Republic were also created nursery schools and maternal schools in Brazil which, with the process of urbanization, industrialization and fe- mine participation in the productive work, began to expand since the decade of the 30’s. The paper also presents an anal- ysis of governmental policies with rela tion to infant education in the decades of the 60's, 70's, and 80's. Key-words: preschool and Republic; Republic and preschool; nursery schools and Republic; maternal schools and Republic; Republic and nursery schools; Republic and maternal schools; kindergar- ten and republic; Republic and kindergarten. 66

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