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Revista Critica de Cidncias Sociais n° 7/8 Dezembro 1981 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (*) A PEQUENA AGRICULTURA E AS CIENCIAS SOCIAIS, Nao se trata de conclusdes. Deste coléquio nao as haverd porque de muitos e muito diferentes lugares mentais e profis- sionais nos reunimos aqui para tao s6 iniciarmos um tipo de reflexdo sobre a pequena agricultura que, se muito promete, pela sua abertura, complexidade ¢ interdisciplinaridade, pelas promessas se fica neste momento, E nem justo seria’ exigir mais. Mas se nao hd conclusGes nem tudo é inclusivo no tra- balho em que nos empenhémos colectivamente nestes dias. Nos subterraneos dos resultados, parcos como se deixa ante- ver, agitaram-se linhas de forga, ideias mestras, que nem por muito diversas deixam de compor a fundagao segura do muito que ha a fazer e que de nds se espera. Eilas, dispostas por minha mio, 2 mao de cada um. 1. B possivel e desejivel pensar a pequena agricultura sem ter de se assumir a sua préxima extineio. O «problema» da pequena agricultura nao € 0 da viabilidade ou inviabilidade do seu futuro, é antes o da sua transformagio. A sua transfor magio é 0 seu futuro. Como o de tudo o resto. 2. A transformagdo da pequena agricultura tem de ser pensada contra 0 senso comum tecnocratico das politicas agrérias dominantes, Nao se trata de um problema meramente técnico. E antes um problema social e politico em que se implicam as estratégias globais de desenvolvimento do pais. A especificidade conceitual e pritica da pequena agricultura nfo ¢ captavel sem que se considere o que nela néo é nem Pequeno nem agricola, (#) Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. 560 Boaventura de Sousa Santos 3. Uma concepgao globalizante da pequena agricultura pressupde contributos cientificos e técnicos varios. Mas pres- supée antes de mais a constituigio de um objecto tedrico novo que dé conta do campesinato como um sujeito em nome pré- prio do processo social. O camponés surge tarde na historia social. Surge para morrer, ou melhor, quando Ihe ditam a sen- tenga da morte. O camponés é, assim, desde 0 inicio, uma sobrevivéncia, uma existéncia por conta doutrem. A arte e a literatura portuguesas do séc. XIX, por exemplo, ndo assu- mem o cainponés em nome proprio. Ele é sempre o figurante, a paisagem, o pano de fundo, a sombra, E tal como a arte € a literatura, também as ciéncias sociais. Conceitualizado a partir do que Ihe ¢ estranho ¢ o pretende dominar, nao admira que 0 camponés seja captado pela auséncia, pela negacao, pelo desvio € pela excepeao. O camponés é um contra-objecto. Sem que se negue o efeito de miultiplas mediagoes, esta dependéncia con- ceitual ¢ 0 correlato da subordinacao econémica, social e pol.- tica do campesinato na formagao social portuguesa. Neste dominio, 0 avanco cientifico consistira em evitar que as-con- tingéncias histéricas se transformem em pressupostos da explicago de que elas préprias carecem e que por essa via naturalizem a sua presenca na histéria, com a consequente descaracterizacéio dos processos sociais que nao confirmem ‘ou até disputem tal presenca. Reconhecese a necessidade deste avango de passo com a sua dificuldade, pois que lutar por ele é, afinal, lutar contra as evidéncias espontaneas e 0 senso comum treinado na base dos quais construimos as nossas profissdes, as nossas competéncias técnicas e as nossas especializacdes cientificas. 4, A concepcdo globalizante da pequena agricultura com vista a uma estratégia de desenvolvimento alternativo pressu- poe também a transdisciplinaridade, ou seja, a capacidade das diferentes disciplinas cientificas e técnicas’ se transgredirem mutuamente, enquanto disciplinas, para se reencontrarem na compreensao integral duma praxis social transformadora e emancipadora. A disciplinacao do conhecimento é o correlato da domesticacdo social. Nao é por acaso que o engenheiro é agrénomo, 0 economista € agririo e 0 socidlogo é rural. A economia agréria, por exemplo, é duplamente redutora do universo social sobre que se debruca. Por um lado, ao cen- trarse na empresa agricola, reduz a cconomia as economias Por outro lado, ao «julgar> a pequena agricultura pelos cri térios da racionalidade capitalista ¢ da légica do lucro, reduz © social ao econémico (a um certo econémico) ou, 0 que é 0 A Pequena Agricultura ¢ as Ciéncias Sociais 561 mesmo, expurga da economia os processos sociais que lhe dao razio de ser e sentido histérico. Por esta dupla via, a empresa agricola é convertida em unidade econémica e a pequena agri- cultura em problema social, Estas redugoes e as subsequentes divisdes técnicas e politicas do trabalho intelectual nao sao especificas da economia agraria nem é talvez justo exigir desta © que se nao tem exigido da economia neo-classica em geral 'S6 que na economia agriria tais redugdes tém efeitos parti cularmente caricaturais. 5. © horizonte analitico tem de ser amplo ¢ de olhar fundo na histéria. O condicionalismo geo-histérico da pequena agricultura é um dado fundamental para compceender, aqui € agora, as estruturas € praticas sociais, a composicao ¢ as aliangas de classe, 0 imagindrio social e 0 universo simbdlico da pequena agricultura. 6. E errado falar do isolamento do camponés e da pequena agricultura. O mundo da pequena agricultura nao em pequeno nem exclusivamente agricola. Tem interaccdes subtis, complexas e desiguais (as suas «funcdes externas») com realidades econémicas, sociais e politicas que em muito transcendem a unidade territorial que tradicionalmente se The associa, a aldeia. Esta unidade territorial esté em crise, enquanto definidora de um universo social, como, de resto, esto em crise todas as unidades territoriais, a comegar (ou a acabar) pelo Estado nacional. Parafraseando MacLuhan, as aldeias de hoje vio sendo aldeias globais, um processo que é talvez concomitante de uma certa ruralizagao ideolégica da cidade dos nossos dias. 7. E igualmente errado atribuir indiscriminadamente ao camponés ¢ & pequena agricultura a caracteristica do indi- vidualismo. Tal individualismo 6 existe para quem tenha do associativismo/gregarismo a concepcao liberal, industrial urbana, institucional e burocraticamente racional. E desta concep¢ao que partem normalmente os técnicos agrarios do Estado e, por aqui, ndo é dificil prever as dificuldades com que se defrontam na interaccdo com os camponeses. Nao é preciso recorrer as categorias miticas do comunitarismo rural Para compreender que o campesinato tem formas e motiva- des associativas prOprias (que, alids, se concretizam em mo- mentos «imprevisiveis»). Elas esto intimamente ligadas ao seu proceso de trabalho que, por ser diferente do processo 562 Boaventura Sousa Santos de trabalho industrial ¢ urbano, no pode caucionar as formas e motivagoes associativas que a este tltimo sao préprias. 8. E ancestral a relacdo tensa entre o camponés ¢ o Ex tado. Da: que seja dificil ao camponés integrar-se nos esque- mas de participacao e de associacao que o Estado Ihe propoe ‘ou impde, Dai também que seja'nos momentos de crise do Estado que o camponés se associa e participa mais afoita e ambiciosamente, para logo se retrair quando a crise passa € 0 Estado se recompée. As dificuldades de participagtio conti- nuada nos movimentos associativos tém sido precipitada- mente atribuidas & inércia, ao isolamento ¢ ao individualismo do camponés. $6 uma visio estereotipada e etnocéntrica torna possivel imputar especificamente ao campesinato o que é um problema de todos nés. 9. Porque o camponés foi sempre o outro, a diferenca do que somos enquanto técnicos e cientistas sociais urbanos, € recorrente o risco da mitificagio e da mistificagao da vida do camponés. Por exemplo, o mito da miséria, do isolamento, do imobilismo e da ignordncia pode ser facilmente substituido pelo da qualidade de vida dos camponeses. A revalorizacao da vida camponesa—a qual obviamente tem as suas qualidades, aliés desconhecidas dos desenvolvimentos tecnocraticos, por mais «integrados» — tem de ser algo mais do que 0 reflex condicionado e incontrolado da crise urbana. E hoje evidente que a questo rural nao pode ser separada da questo urbana. ‘Mas ndo se pode converter nenhuma delas no espelho inver- tido da outra, 10. A renovacio te6rica dos instramentos de reflexio e de intervenc3o no meio rural deve ser concomitante de inves- tigagdes empiricas solidas, que cubram Areas cuja importéncia niio foi até agora devidamente relevada. E necessdrio estudar em profundidade as estruturas fundiarias, captar 0s modos € os ritmos da sua transformagio ¢ as priticas sociais intra- classistas e interclassistas a que da azo. E necessério inventa- riar a imensa teia de relagdes de toda a ordem (iguais ¢ des guais, horizontais e verticais, consensuais ¢ conflituais, dominantes e dominadas, etc., etc.) entre o que se define como rural ¢ agricola e 0 que se define como urbano ¢ industrial. E ainda necessario analisar 0 processo de trabalho campones em toda a sua complexidade, enquanto modo de producdo material e simbélica, porque af se condensam os mecanismos A Pequena Agricultura ¢ as Ciéncias Sociais 563 especificos de resisténcia e de desisténcia que é urgente conhecer. 11. _E sobretudo necessério reconceitualizar as praticas organizativas ¢ associativas do campesinato de modo a arti- culd-las com os possiveis instrumentos de representagéo poli: tica auténoma, a qual se reconhece nunca ter existido para a pequena agricultura. S6 por via dessa representagao politica aut6noma podera a pequena agricultura ter acesso ao espaco de decisiio global que lhe tem sido interdito, 0 que se revela de multiplas formas: nos projectos de irrigacao, de transfor- magio cultural e florestal e de «desenvolvimento rural inte- grado» & revelia dos interesses e do envolvimento dos cam- oneses; no cédigo cooperativo — jé de si reflectindo es- cassamente os imperativos constitucionais sobre 0 sector coo- perativo—elaborado e publicado com uma participagao mani- festamente insuficiente do movimento cooperative e, em especial, da pequena agricultura que nele se integra; na questo da entrada na Comunidade Econémica Europeia que, pelos trabalhos apresentados e pelas discussdes havidas no Coléquio, € muito mais complexa do que se tem feito crer a nivel oficial ainda que pareca dispensada de um debate sério e profundo no nosso pais. 12, $6 uma representacdo social ¢ politica auténoma garante que as politicas estatais com incidéncia na pequena agricultura nao sejam clas prdprias geradoras da desmobili- zacao, do isolamento e do individualismo que supostamente visam combater. Ou seja, é necessdrio que as condigdes (reais ou imputadas) da pequena agricultura, que s4o os pressupos- tos das politicas estatais, ndo sejam afinal os resultados lestas.

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