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BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS * OS TRES TEMPOS SIMBOLICOS DA RELAGAO ENTRE AS FORCAS ARMADAS EA SOCIEDADE PORTUGUESA ** 1, INTRODUCAO Sem menosprezar temas como a organizagao interna da instituigéo militar ou o papel desta nas tarefas de defesa na- cional no ambito do quadro geo-estratégico em que cada pais se insere, penso que o tema de maior actualidade nos estudos militares daqueles paises que nos servem de referéncia politica ¢ cultural é 0 tema das relacdes entre as forgas armadas ¢ a sociedade. Este tema, assim formulado, 6 to amplo que tenden- cialmente abrange toda a problematica militar. H4, pois, que the definir os contornos. Em primeiro lugar, diz-lhe respeito a questo das relagées institucionais (ou nao) entre as forgas armadas e 0 sistema politico, Esta questdo assume caracteris- ticas diferentes nos paises periféricos e nos paises centrais. Nos primeiros, tanto na América Latina, como na Africa e na Asia, est4 sobretudo em causa a propensao dos militares para intervir de modo decisive na vida politica ou mesmo para assumir ple- namente 0 poder politico, constituindo-se em «poder revolucio- nario», epoder revolucionario permanentes, epoder bonapartista (#) Professor Associado da Faculdade de Economia da Uni- versidade de Coimbra (*) Este texto incorpora_¢ expande algumas das_aniilises contidas nas comunicagées por mim apresentadas a0 1° ¢ a0 2° seminérios da Associagdo 25 de Abril, realizados em Lisboa respecti- vamente de 2a 4 de Maio de 1984 de 25 a 28 de Abril de 1985, Um agradecimento especial a Carlos Reis, Rosirio Petieio e Pedro Hes- anha pela ajuda na eonstrugio do «tempo primelzo», 12 Boaventura de Sousa Santos constitucionals, ou «poder moderador» conforme as situagées (*) Nos paises centrais, a questéo & sobretudo a do controlo das, forgas armadas por parte do poder politico civil e a do estatuto da condigéo militar (nomeadamente a questio das restrigdes do exercicio de direitos politicos a que estio sujeitos os mili- tares no activo). Um segundo conjunto de questées integradas no tema geral de «foreas armadas e sociedade> diz respeito & integra- ao maior ou menor das forgas armadas na chamada sociedade civil e, portanto, nas organizagées sociais, profissionais e comu- nitérias em que esta se articula, um conjunto de questdes que tem sido abordado sobretudo nos paises centrais. Esta proble- matica tem, por sua vez, duas vertentes. Por um lado, trata-se de saber que colaboracao as forgas armadas podem dar as orga- nizagdes da sociedade civil no desempenho das fungdes sociais que thes cabem e, vice-versa, que colaboracao pode ser prestada por esas organizacées no planeamento ¢ até na execucdo das fungées préprias da instituicdo militar (por exemplo, a funcéo de defesa). Por outro lado, trata-se de avaliar a distincia ou a proximidade entre o modelo cultural e organizacional das forgas armadas e 05 que dominam na sociedade em geral: como é que a sociedade vé as forgas armadas e como é que estas se véem a si préprias?; quais os tragos caracteristicos da sub-cultura militar € quanto se afastam dos padrées culturais dominantes ou mes- mo das sub-culturas de outras instituigdes?; em que medida é que 0 exercicio eficaz das fungées militares & incompativel com as formas de organizacao e os processos de decisio tipicos das sociedades democraticas?; qual a relagao de forgas entre a ten- déncia para ccivilizary a sociedade militar e a contra-tendéncia para emilitarizars a sociedade civil? Portugal é uma sociedade intermédia, uma sociedade semi- -periférica (*) ¢ isto mesmo se revela no modo como hoje se perfila entre nés a questo das relagdes entre as forcas arma- das e a sociedade. Em geral, pote dizer-se que esta questo assume em Portugal uma formulagao especifica em que se (©) As forgas armadas do mesmo pais podem, em. periodos aiferentes, assumir formas de poder ou de intervencdo politica tam- bém diferentes. Para o caso portugues, ef. Maria Carrilho (1984); para 0 caso brasileiro, ef, por, ultimo, ‘Dreifuss (1983). ‘Trés visdes de conjunto sobre este’ tema, entre muilas outras: Fidel (1975), Nord linger (1977) ¢ Carranza. (1078) ©) Sobre o conceito geral de semi-periferia ef. Fortuna (1984); sabre a eplieagio deste ‘concelto’ & scledade portuguess, Santos capes, Os Trés Tempos Simbdlicos 13 misturam preocupagdes que interessam sobretudo aos paises periféricos com outras que tém sido sobretudo manifestadas nos paises centrais. Desde logo, o golpe militar de 25 de Abril de 1974 leva-nos a por a questo — momentosa nos paises peri- férieos — dos estimulos a interferéncia e da propensao a inter- ‘vengao no poder politico por parte dos militares. A onze anos de distancia (e de proximidade) essa questo mantém a actua- lidade, tanto mais que o regime democratico, tornado possivel pelo golpe militar, nao se encontra ainda plenamente consoli- dado (nas instituigdes, nas praticas ¢ nas mentalidades). Mas, por outro lado, a crise revoluciondria que se seguiu ao golpe militar deu origem a formas de relacionamento entre as forgas armadas e a sociedade, muito mais avangadas do que as que hoje se discutem nos paises centrais, e a conexdo com estes paises tem estado presente nas discussdes e decisdes legislativas dos iiltimos anos sobre a lei da defesa nacional e das forgas armadas e sobre a condigao militar, todas elas dominadas pelo Brinefpio da submissio das forgas'armadas 20 poder politia ivi Das condigdes sociais e historieas do nosso pais decorre que o tema das relagdes entre as forgas armadas e a sociedade incorpora varios tempos histéricos a que correspondem outros tantos universos simbélicos. Isto é sobretudo assim no dominio das relagdes entre as forgas armadas e a sociedade civil, tema em que me concentrarei neste texto, deixando de fora a andlise das relagdes entre foreas armadas e poder politico. De facto, 0 nosso imaginério social ndo retém uma mas vérias imagens das forcas armadas. Elas sobrepdem-se, segundo arranjos e énfases diferentes, sempre que esta em causa o relacionamento civil/ /silitar, dando origem a comportamentos e atitudes muito com- plexos, incompreensiveis a luz de um tratamento unidimensio- nal deste tera, Cada uma dessas imagens corresponde a uma dada temporalidade da nossa vida social e os seus tragos com- pdem um universo simbélico espeeifico, tanto na sua carga de cogni¢ao sedutora-repulsiva, como nos processos de inculcagao por que se impée. Os diferentes tempos e seus universos sim- bélieos séo auténomos em sua estrutura e por isso separdveis no plano analitico. No entanto, no plano das vivencias indivi- duais e colectivas, misturam-se e combinam-se de miltiplas formas, e a tal ponto que nenhum deles ocupa isolado 0 terreno da fenomenologia dos comportamentos e das atitudes dos indi- viduos, classes ou grupos da sociedade portuguesa face & ins tituiggo militar, Distingo trés tempos principais e outros tantos universos simbélicos. O tempo primeiro & 0 tempo das forgas armadas (0 14 Boaventura de Sousa Santos exéreito, por exceléncia) na sociedade tradicional, dominado pela importéncia do servigo militar obrigatério nas trajectérias, pessoais dos jovens camponeses e de suas familias. O universo simbélico deste tempo sintetiza-se no contetido pratico e mitico do «ir a tropa» na sociedade rural. O tempo segundo é o tempo das forgas armadas na sociedade liberta e convulsa de 1974-75, dominado pelo modo como as classes urbanas radicalizadas, sobretudo a pequena burguesia e o operariado industrial, viram nos militares um aliado natural nas tarefas revoluciondrias. O universo simbélico deste tempo sintetiza-se no contetido pratico e mitico da «Alianca Povo/MFA». O tempo terceiro & o tempo das forgas armadas na sociedade portuguesa a entrar na CEE, dominado por uma certa governamentalizagao das forgas arma- das a pretexto de as submeter ao poder civil e de as restringir a0 seu papel profissional, cumprido em tempo de paz nos quar- téis. O universo simbélico deste tempo sintetiza-se no conteiido pritico © mitico das eforgas armadas modernas e profissionais segundo 0 modelo ocidentalo. Estes trés tempos e seus universos séo, nao s6 distintos, como, em muitos aspectos, contraditérios entre si. Nao admira, pois, que, ao confluirem hoje nos olhares e nas vivéncias dos portugueses sobre as forcas armadas, déem azo a visdes e a per- cepgoes ambiguas, instveis e internamente contraditérias, difi- cilmente compaginaveis com programas lineares de relaciona- mento civil/militar. Este facto nao torna menos valido (e, pelo contrario, torna mais urgente) que cada um destes tempos e seu respectivo imagindrio seja analisado em separado. Sé assim se poderé dar conta do conteitdo pratico-simbélico de algumas das concepgdes compésitas em que eles se cristalizam. 2. Q TEMPO PRIMEIRO: «IR A TROPA» NA SOCIEDADE RURAL. tempo primeiro é também o de mais longa duragio his- torieo-simbélica e a sua importancia no imaginario social portu- gués sobre as forcas armadas esté relacionada com a vigéncia en- tre nds dos modos de socializago e de reprodugio caracteristicos da sociedade rural. Esta vigéncia, sendo longa e profunda, nfo 6 de modo nenhum estatica, uma vez que a sociedade rural se tem transformado mais ou'menos profundamente (segundo a sua insergio regional) A medida que se multiplicam as suas relagées com a sociedade urbano-industrial, seja ela a de Lisboa, do Brasil, da Africa ou da Franga. Sucede, contudo, que, por Os Trés Tempos Simbéticot 15 razées que nfo vem ao caso desenvolver aqui, as transforma- ges por que tem passado a sociedade rural nao conduziram & Suspenséo ou A descaracterizagao totais dos seus padroes de socializaeao nem dos seus mapas cognitivos. Pelo contririo, estes padrdes e estes mapas tém-se sabido adaptar com grande flexibilidade e tém mesmo vindo a marear a sua presenga na socializagdo e na reproducao urbanas em face dos vinculos. ‘eamponeses de muitas familias urbanas, A eficécia pratico-ideo- ogica destes vinculos tende a aumentar nos momentos de crise econémica como sao os actuais. As complexas mesclas e com- binagdes de padres de socializagio e de habitos de vida dis- ‘tintos no quotidiano das familias portuguesas sho responséveis pela heterogeneidade dos modos de reprodugao social. que nou- tros trabalhos considerei ser uma das caracteristicas bésicas da sociedade portuguesa no tempo presente (Santos: 1985 a; 1985 b). © imaginario social da sociedade rural sobre as forcas armadas distingue-se, quer pelo processo de inculeagao simbé- ica que Ihe subjaz, quer pela carga de cognigio pratico-ideo- légica por que socialmente se manifesta. O proceso de incul- cagdo é um processo lento que se sedimenta com o suceder das: geragdes e se reafirma nos ritos anuais dos jovens que «vo 4s sortes» e «ficam apurados» para depois assentarem praga» e sjurarem bandeira». O espaco mitico da vida militar na vida dos jovens camponeses ¢ suas familias é construido através das formas de inter-conhecimento que caracterizam as sociedades de cultura oral, pelo que nfo surpreende que o cancioneiro popular portugués esteja recheado de motivos militares. E esse espago articula-se e aprofunda-se nas cartas que se trocam com a familia, com os amigos e com as madrinhas de guerra. Como diz. Modesto Navarro, «as histérias ancestrais do soldado que regressava da guerra e do ‘Milhdes’, que povoavam 0 nosso imaginario de habitantes do interior, juntavam-se, ano apés ano, as pequenas ¢ grandes histérias'dos jovens que ficavam apurados ¢ iam para Chaves, Vila Real, Lamego, Porto, Santa- rém ou Lisboa, cumprir a vida militars (1985: 1) A longa sedimentacdo histérica deste processo de incul- cago simbélica e 0 facto de, precisamente pela sua longa duragio, ter digerido periodos e situagdes muito diferenciados (de guetra e de paz; de crise econémiea e de relativo desafogo; de lutas politicas acesas e de alguma estabilidade governativa) faz com que a carga de cognicao prético-ideolégica em que se foi coneretizando seja muito complexa e internamente contra- ditéria. Trata-se de uma carga eognitiva que, como acontece em geral nos processos simbélicos mas aqui’ com particular contraste, tem uma face de sedugdo ¢ outra de repulsio, um 18 Boaventure de Sousa Santos lado positive e um lado negativo. Esta duplicidade observa-se, tanto na concepgio do impacto da ida a tropa na vida do jovem, da sua familia e do seu grupo de referéncia, como na concepeao da vida militar em si. A ida a tropa sempre foi um factor de perturbagéo na vida do jovem e na da sua familia, Na sociedade rural, a ida A tropa interferia negativamente no ciclo de produgao e de re- produgéo da economia camponesa na medida em que lhe reti- ava dois preciosos bragos de trabalho. Essa privagao no era, contudo, apenas econémica; era também afectiva, Dado 0 caréc- ter multiplexo (de miltiplo vinculo) das relagdes sociais no campo, a saida de um dos membros da comunidade significava a perda de um agente econémico, a privagio do exercicio do controlo paterno e materno, a perda de um companheiro nos momentos de écio, a privagio do arrimo e do conforto nos momentos mais duros da luta pela sobrevivéncia, o abandono ou pelo menos adiamento de um projecto de casamento, Nao admira, pois, que a sociedade rural chorasse a saida dos seus filhos como’ eloquentemente mostra © nosso cancioneiro po- pular (*) Adeus, adeus 6 Coimbra ‘Toda alumiada a gas; Adeus quartel da Sofia ‘Onde eu tenho o meu rapaz. (Beira) Quando eu assentei praca Peguei nas armas reais; Minha mae chorava muito, Eu inda choraya mais. (Famalicao) Adeus 6 vila de Cuba Cereada de cachos de uvas; ‘Vio os moos para a tropa Ficam as mogas vi (Cuba) (@) As. ilustragées do cancioneiro popular foram recolhidas em Lima (1930) © Paco (1965). Os Tres Tempos Simbéticas 17 A tranga do meu cabelo Hei-de mandé-la vender, Pra livrar 0 meu amor, Soldado nao ha-de ser. (Douro) © comboio da hora e meia Nao te posso ver pasar! Levaste 0 meu amor Para a vida militar. (Minho) Mas a ida & tropa era também uma libertacio ¢ uma promogio. Tinha antes de mais 0 atractivo do desconhecido sedutor, de um mundo maior, urbano, anénimo, diferente, onde as Tealdades ¢ as autoridades rigidas do mundo rural pareciam Tidiculas e onde os compassos minuciosos do quotidiano eam- ponés se esfumavam sem pena, Como diz. Moisés Espirito Santo, num estudo sobre uma comunidade rural ao Norte do Tejo, <0 jovem 86 conquista uma ceria independéncia com o servigo militar, que, em Portugal, e para utilizar a linguagem dos instrutores das casernas, tem a funcao de ‘subtrair os jovens as saias das m&es’, torné-los adultos, desligi-los do seio materno, no sentido libidinal da expressao> (1980: 85) (*). Num tom mais autobiografico Modesto Navarro refere que «a vida, para 0 jovem habitante do interior, dava um grande salto, em conhe- cimento e experiéncia, com a vinda tropa. Pouco ganharia do ponto de vista profissional; 86 em raros casos, com a sorte de ser incorporado na marinha ou na aviagio, poderia aprender () Villaverde Cabral refere de passagem numa mesa redonda sobre a aldeia e a vida camponesa que <0 servigo militar obrigatorio, ‘por exemple, desempenhou um papel consideravel. Se, por um lado, podemos compreender a resistencia do pater familias’ a entregar os fills a uma instituigio que se arriseava a ndo Ihos devolver intactos do ponto de vista do colectivismo interno do grupo doméstico, ni se podem Uo-pouieo ignorar os efeitos de socializacao libertadora que 6 servigo militar teria, segundo certos autores, também tido para os jovens ‘rurais, como alias a eseolarizagio os vem tendo» (1982: 1). ‘A promogdo ‘pessoal ea Tibertacso do controle paterno através do Serviga militar esto bem earacterizadas na trajectoria pessoal do jovem Gavino Ledda, no filme Padre Padrone de Paolo e Vittorio avian. 18 Boaventura de Sousa Santos uma nova profissdo; mas facto de conhecer outras vilas ¢ cidades e outras gentes, de partilhar o quotidiano do quartel com centenas de jovens oriundos de todo o pais, de ter de resistir sozinho ao embate violento com novos mundos © des- conhecidas dificuldades, davam uma témpera diferente a quem nos surgia depois em casa, no trabalho e no lazer com historias que acrescentavam novos sentimentos e sonhos & nossa vontade de ver mundo e de rasgar a idiotia de um quotidiano cinzento, recheado de violéncias ¢ faltas> (1985: 1 ¢ s.) ‘A ruptura dos horizontes estreitos em que se tragavam| as suas trajectérias de vida foi sempre para os jovens cam- poneses um objectivo-problema, nem sempre concretizavel © quase sempre mitico. A escolaridade s6 a muito poucos conferia (e confere) uma saida; a emigracio para a cidade ou para 0 estrangeiro foi para muitos até hd pouco tempo a via dolorosa e gloriosa; mas nao restam diividas de que, sobretudo depois da implantacéo da Reptiblica, o servico militar obrigatério foi a solugao mais universalizada (ainda que a menos brilhante) para a tentativa de mudar de vida. Nao necessariamente o servico militar em si, mas o que vinha ou poderia vir com ele: a esco- larizagao minima; 0 conhecimento das oportunidades de me- Ihoria de vida; a familiarizagio com os habitos, as palavras, os gestos © as posturas que garantiam o dominio das interacgées urbanas onde muitas vezes se decidia o futuro; uma profissio; (© emprego na cidade; 0 casamento com uma mulher da cidade, Gisposta a partilhar uma trajectéria assente na promogao pessoal. ‘A promogio pessoal comecava, aliés, na_promogio fisica, na afirmagio da virilidade que dava a confianga necessaria para enfrentar 0 desconhecido: Quando eu fui a inspeceao Que pus 0 pé no civil Ouvi dizer 6 surgiao: «Destes tomara emily. (Alentejo) Meu pai chora que se mata Por eu chegar a0 estalio; Nao chore, meu pai, nao chore, Os homens pri que ‘sao? (Entre Douro e Mondego) Os Tres Tempos Simbélicos 19 Eu hei-de ir pra Santarém, ‘Meu amor também ha-de ir; ‘Meu amor pra impedido Eu criada de servir. (Ribatejo) 0 universo simbélico do tempo primeiro reconstréi assim a ida & tropa, tanto pelo distirbio que ela provoca no circulo familiar e comunitario, como pela libertagéo que ela propor- ciona para fora desse circulo; tanto pelas perdas efectivas, econémicas e emocionais, que ela causa, como pela promocao de vida melhor que possibilita, Em qualquer destas dimensoes, © servigo militar € reconstruido instrumentalmente, tanto pelo que destr6i, como pelas oportunidades que cria que muitas vezes 86 se vémn a coneretizar muito depois de 0 servigo militar ter terminado. No entanto, estas dimensdes nao esgotam de modo nenhum a riqueza deste imaginario social. A ida a tropa nao 6 apenas um instrumento para atingir outros fins, é tam- bém um momento decisive na vida dos jovens, um’ retalho temporal que institui um quotidiano radicalmente diferente, pautado por regras estranhas, falado em vozes invulgares, ves- tido em fatos especiais, sujelto a ritmos e compassos incon Iidveis com os do quotidiano camponés. Enfim, a vida militar é uma vida esotérica e como tal nfo surpreende que seja aqui que 0 contraste claro/escuro, seduco/repulsio, mais acentua- damente se manifesta. Até & implantacao da Repiiblica, o servigo militar era cumprido fundamentalmente pelos filhos das classes populares que nao tinham padrinhos ou dinheiro para livrar ou para remir a dinheiro 0 tempo de servico nas fileiras. Esta discri- minagio contribuiu para que se implantasse no imagindrio social do povo a imagem do servigo militar como mais uma expresso da injustiga social, como um castigo que, alias, se desdobrava noutros castigos quotidianos, quer no dominio da alimentagio e do alojamento, quer no dominio da disciplina (os eastigos corporais, de resto banidos — na lei que nao na pratica — em 1856/57). Em 1903, num artigo significativamente intitulado «A aversio pelo servigo militar» e publicado na Revista Militar, Mello e Athayde referia, entre 0s motivos que no perfodo’ anterior criavam a repugnncia pelo servico militar: «Uma das primeiras cousas era a duragao do tempo de servigo que podia ser longo, muito longo, atingir todo o periodo mais belo da vida de um’ homem; era’ um adeus eterno aos sonhos da mocidade, que todos os tém, os prdprios riisticos. 20 Bosventura de Souse Santos E depois, quem pagava esse servigo eram s6 03 miserdiveis; 0 tributo de sangue foi por muito tempo apanagio do pobtes (1908: 167) @). Dai o lado negro da vida militar tao bem regis~ tado no cancioneiro popular: Adeus 6 Castelo Branco Para mim eastelo negro, © meu amor é soldado Anda a cumprir 0 degredo. @ Ai a cama do soldado ® um belo paraiso! ‘A pulga toca viola © piotho toca guizo (Alentejo) No quartel dos militares Quando chove lama faz; Coitadas das raparigas Que 1a tém o seu rapaz, (Ribatejo) ‘A dureza da vida militar, que muitos pais abengoavam como meio de domar a rebeldia dos filhos — os quais, como ainda se diz no Alto Minho, chio-de ir a tropa quebrar 0s na~ izes» —, continuou por muitos anos a povoar ¢ a assombrar 0 imaginario popular. Virgilio Santos, emigrante portugués em Londres que cumpriu o servigo militar em finais dos anos ¢in- quenta principios dos anos sessenta, descreve na sua maravi- thosa autobiografia a rigidez. (e a injustiga) da disciplina mi- litar: «Eu ¢ o Joaquim fomos chamados ao mesmo tempo, para ‘© mesmo quartel, em Campolide. Ele tinha o nimero a seguir (©) Mello @ Athayde no deixa também do referir os efeitos negativos dos castigos eorporais: ¢Mas, acima de tudo, a eausa prin~ cipal, n que verdadeiramente infundia terror, a que iazia esmorecer 9 animo do homem mais viril, e contrangla dolorosamente 0 coracdo Se mie mais. disposta ao hetoismo—eram os eastigos infamantes, fentdo aplicados a faltas as mais leves, Oh! esses varadas, ‘outros tempos distribuidas a esmo, ao mero eapricho © ao sabor de cada chele, segundo o seu. humor de ocasigo, devem ter originada muito horror pelo servigo to nobre das armas» (1803: 168), Os Trés Tempos Simbélicot 21 a0 meu, ficando, assim, juntos, pertencendo & mesma caserna, 4 mesma bateria, mesmo pelotao, sob 0 comando do mesmo capitéo e das ordens do mesmo alferes, dormindo cle por cima da minha cama, Na segunda semana de servico fui castigado com as dispensas cortadas, pela razdo de que, quando o capitao passou a revista caserna, encontrou a minha cama um pouco amarrotada. O Joaquim sentara-se nela, para calgar as botas, depois de eu a ter feito. Embora a culpa nao fosse minha, eu é que tive de pagar o castigo. Era assim na tropa: pagava o justo pelo pecador» (1981: 116) (). Também o Mateus do conto de Vitorino Nemésio sentiu na carne (Sofreu «quatro prisdes de- baixo de armas») a arbitrariedade e a brutalidade dos instru- tores: «Vem cabo Conceigio — um mogo ensocado, perfeito, todo latigante — e manda-o barrer a caserna. O Matesinho barreu, sabe Deus com que bofes! Mas um home se jura o Rei & para honrar a palavra, e corno seja aquele que suja a barba toda s6 por um repente tolo, uma prosipia de valente. al o quél... Mas porém chega o cabo, aquele prosa de merda! poe-se de eécoras no solho a inzeminar a poeiva. Desencava 0 barretina a Mateus — um alvorado! — esfrega-a no chao ¢ diz, — Tas a ver?! Qando na tiver disto —‘e amostrava-me a copa cheia de terra’ — anto podes ir & tua vida. Ponha-se ja em sintido e faga o que Yeu mandei! OrdinariG... marche!» (1949: 129). tempo primeiro atravessa Iongamente a nossa historia © 08 perioaos em que esta foi feita de guerra contribuiram (©) Virgilio Santos descreve assim a dureza do treino militar: sO treino dos recrutas era duro e puxado. A chuva ou ao sol nos {inhamos de marchar, correr, saliar, obrigando, por veges, 0 corpo a exceder as suas prdprlas foreas, Além destes esforgos fsicos, estavamos ‘ambém, plor ainda do que antes, sujeitos ao mau tratamento, a ma lingua de alguns oficiais, que nos tratavam como se nos fOssemos animais vadios..., Havia um alferes baixo, grosso de corpo, moreno, ue @ todo 0 momento gritava: ‘Anda la'tu, fillto da putel.... Olba Ja onde poes as patas, ‘marreco!l... Abre 03 olhos, cabrao.. Este jovem ofielal pareela que nao tinha aprendido na’ Academia outra lingua mais limpa, nem maneiras mais civilizadas que aquelas que uusava sobre os pobres rocrutas, 20 sou mais pequeno desculdo, assus~ tando-os e enervando-os, em’ especial os recrutas que vinham da provincia, obrigando-os, com a sua perversa lingua, a fazer engano Sobre engano, isto fazia-me pensar que, para defender e servir a Pitria, razio por que éramos soldados, seria também necessirio trans~ formarem-nos em trapos ¢ servir de’ rodilha a gente grosscira, sem educagio, sem respeito nem compreensio pelos seus. semelhanteso (2961: 116-117). Marmelo e Silva descreve os oxercicios militares com grande sarcasma na sua bela novela Anguilose (1988) 22 Boaventura de Sousw Santos para carregar as cores negras com que o imaginério social foi construindo a vida militar: Minha mie que me eriaste Ao peito com tanto mimo; ‘Agora vou para a guerra, ‘Morrer como um passarinho. (oscoa) Foi a primeira guerra mundial, foi depois a guerra colo- nial. Desta Ultima 9 ciclo simbélico est ainda por fechar. Abre- -se recorrentemente como uma ferida mal sarada nas historias ‘que se contam, na poesia (*) € no romance (*), nas promessas 205 santos da devocao, nas peregrinacdes a Fatima Mas, como disse, a vida militar 6 de todos os motivos de construgao simbélica ‘aquele em que & mais acentuado 0 con- traste seduco/repulsdo. Dai que ao lado negro se justaponha © lado clare. Mesmo no tempo de guerra, sempre que esta foi, por uma via invia e infame, um instrumento de promocio pessoal para 0 soldado que decidiu fiear no estrangeiro ou radicar-se em Africa: Soldado que vais pra guerra Viste por 14 0 meu Luis? Esse soldado, senhor, Nao veio porque nao quis (Famalicdo) Mas ¢ sobretudo em tempo de paz que 0 imaginério re- colhe as amenidades da vida militar, as quais contrastam com (©) A titulo de exemplo, o que se poderé designar por ciclo de Nambuangongo da poesia portuguesa em Fernando Assis Pacheco:

(139: 13/3 Carlos Selvagem, em J ventude, Exéreito, Ngo»: «Em cada agregado nacional ¢, por del nigio, o' Exéreito... a mais sélida © salubre aprendizagem da vida, Nao €, como qualquer outro oficio, um modo de ganhar a vida, mas sim um voluntariade de voeacdo, isen¢zo e sacrificio, com o seu que de profano sacerdécio, ‘Todo aquele que de vocagio ou tradigdo de familia livremente o escolhe, sabe de antemo que o soldo é ‘pare as ambigbes restritas...e que o sou destino de humilde gléria 6 s6 fesse austero e secteto orgulho intimo de, em todas as circunstancias, © ristos, servir devotada e integralmento a sua Péirias (1905: 15) Apesar de muito distintas e, na. aparéneia, antagénicas, a concepea0 instrumental e a eoncepedo metal S duas faces do. mesmo universo. simbélico. A’ doutrinagio mitico-ideolégica@ suficiente- monte abstracta ¢ ambigua para permitir aos agentes socials — tanto Os:Trés Tempos Simbilicos 25 dominagio politica que assenta na incorporacdo dependente e desorganizada das massas populares no processo politico, geral- mente através de intermediarios (Iideres sindicais, deputados, notiveis locais, ete.) que promovem e regulam a troca de favo- res entre as massas ¢ 0 poder politico (). A instituigao militar é afinal parte integrante do poder politico e a relacao dela com a sociedade neste tempo primeiro ¢ uma relagao de dependéncia e de instrumentalizagao, uma relacdo populista, em suma. 2 07 MPO SEGUNDO: ¢A ALIANCA POVO/MFAs © tempo segundo é um tempo breve mas muito intenso. Os escassos meses da sua duracao electiva foram suficientes para inculear no imagindrio do povo portugués uma visio nova das forgas armadas, a visao de umas forcas armadas liberta- doras, empenhadas na solugao dos problemas basicos das classes populares ou, pelo menos, na minoragao das suas caréncias sociais mais graves. Sendo’ nova, esta visio nao constitui uma ruptura total com a visdo que earacteriza o tempo primeiro. A continuidade entre as duas visoes reside em que em ambas as forcas armadas séo agentes de libertagao, polos de ascensao social. Sfo-no, contudo, de modos qualitativamente distintos, No tempo primeiro, trata-se de uma ascensio individual (a de cada um dos «mancebos apurados») e a libertagao reside em 08 individuos sairem de si, do seu meio, para entrarem numa instituigao distante, estranha, autoritaria que Ihes acena com um novo (e melhor) modo de vida, Ao contrario, no tempo segundo, a ascensio é colectiva (das classes trabalhadoras) ¢ a libertagio consiste em as forcas armadas se aproximarem do povo, dos seus meios ¢ modos de vida, para a partir deles (de dentro deles) os tentar melhorar. O novo universo simbélico que se constituiu A volta desta visio das forgas armadas, a partir de certa altura sloganizada na expresso «Alianga Povo-MFA», envolveu nao s6 05 movimen- ‘os sociais e as forgas armadas como o estado no seu todo, dado 0 papel dos militares no derrube do fascismo e na condugio dos process0s politicos que se Ihe seguiram. Dai que, na andlise do ‘tempo segundo, as relagdes entre os movimentos populares e 0 ais classes populares como sos titulares da instituigio militer — 9 realizagdo, ao abrigo dela, de objectives egoistas, pessoais e prosaicos sem cofretem o risco de dissonancia cognitiva (1) Sobre 0 populisma, cf. 0 extelente estudo de Franciseo Welfort (1980), 26 Bonaventura de Sousa Santor MFA (a que simbolicamente sio reduzidas as forgas armadas) devam ser tratadas no contexto das transformagoes juridieo- -politicas do estado em que tiveram lugar (*) Antes de proceder a esta analise impoe-se uma precaugio metodolégica. E que, segundo as preferéncias ideologicas. dos analistas, duas posigdes extremas tém sido tomadas no que respeita aos movimentos sociais que explodiram depois de Abril de 1974, Segundo uns, os movimentos sociais foram um movi- mento popular, genuino, espontineo e auténomo, um movi- mento que manteve intacta a sua légica propria de desenvol- vimento 20 longo de todo 0 processo apesar das tentativas partidarias para o controlar. © movimento popular falhou por- que, uma vez frustrada essa tentativa de controlo, as forgas politicas organizadas e os aparelhos do estado que elas contro- Javam tudo fizeram para asfixiar e bloquear as decises e as actividades das organizacdes populares de base. Segundo outros, © movimento popular foi pouco mais do que a correia de trans- missfio das decisées dos comités centrais de varias organizacdes politicas partidarias, um movimento manipulado, instrumenta- lizado, se néio mesmo criado ab ovo por essas forgas politicas ¢ pata 0s objectivos politicos por que elas lutaram. Através do suposto movimento popular auténomo esas foreas politicas procuraram contrabalangar as perdas antecipadas e depois con- eretizadas ao nivel da legitimidade eleitoral que entretanto se foi constituindo. Penso que qualquer destas generalizagdes tem uma dose de verdade ¢ talvez varias de falsidade; que a verdade esta talver. entre elas ou acima delas; que qualquer delas cobre, pareialmente, experiéncias sociais ¢ processos de mobilizagio de participacdo populares muio diferentes; e, finalmente, que para chegar a concluses seguras neste dominio é necessario que muito mais investigagao seja feita sobre cada uma dessas experiéncias e cada um desses processos. A minha hipotese de trabalho é que o movimento popular eriado ou desenca- deado depois do 25 de Abril constitui uma das earacteristicas mais especificas da revolugdo portuguesa e que, mesmo tendo em conta todas as diferencas relevantes (ou seja, 0 periodo especifico em que tiveram lugar, a area social em que inter vieram, a regiao do pais onde dominaram), a riqueza do mo- vimento popular nao pode ser reduaida a estratégias partidarias ou mesmo a decisdo do MFA de promover ou aceitar a certa altura os termos da (1985: 14). No mes- mo sentido, Rainer Eisfeld fala do conceito de (1985: 8). Como ja ficou referido acima, 2 questo do relaciona- mento civil/militar e, portanto, da integracdo civil das forgas armades nfo é uma questio especifica destas. B certo que se apresenta aqui com alguns tragos particulares j4 analisados, mas em seus aspectos mais decisivos é comum a3 grandes ins- 38 Boaventura de Sousa Santos tituigdes das sociedades capitalistas avancadas. Entre estas ins- tituigdes sao de salientar, ao lado das foreas armadas, a Igreja, a instituigao judicial (os tribunais) e a instituiggo médica, Deste modo, a questao do relacionamento civil/militar inte- gra-se numa outra, mais ampla, do relacionamento entre as grandes instituigdes e a sociedade, pelo que a esta iiltima se deverd dedicar alguma atengio. ‘Todas as instituicdes que referi so produtos, na sua forma actual, com excepgio ¢ apenas parcial da Igreja, do estado e da sociedade liberais. Sao uma criacao dos ultimos duzentos anos. Tém, por isso, muito em comum. Sio instituigies tota- lizantes que aspiram 4 prestaco monopolista de um servico social relevante (a defesa contra o inimigo, para as forcas ar- madas; a justiga, para os tribunais; a salvagéo do corpo, para a medicina; a salvagao da alma, para’a Igreja); fazem-no segundo regras de organizagao e de actuacao especificas, dispondo para © efeito de um corpo profissionalizado cuja formacao e pratica thes inculca um universo simbélico préprio, uma sub-cultura especifica que se revela de muitas formas e, particularmente, por uma referencia privilegiada a certos valores (sem querer ser exaustivo: os valores da patria, honra, diseiplina, lideranea, independéncia nacional e interesse nacional para’ as forgas armadas; imparcialidade, prudéncia, independéncia pessoal e irresponsabilidade para os tribunais; primado do doente, res- ponsabilidade pessoal © cédigo deontologico para os médicos; desprendimento terreno, superioridade moral e ligacéo_privi- legiada com a divindade para a Tgreja) ‘Acima de tudo, todas estas instituigdes se caracterizam por serem organizagées burocraticas e, portanto, com tendén- cia a auto-regulagio ¢ a auto-reflexio ("). O facto de se cris- talizarem em grandes complexos institucionais forgou-as a de- senvolver, elaborar e dogmatizar regras gerais de organizagao © de actuaco que, produtos de uma reflexao interna conti. nuada, vieram a dar corpo a uma forma de auto-conhecimento assente em conjuntos cada vez mais sofisticados de conceitos, definigdes © teorias de circulago interna a instituigio. Este auto-conhecimento passou a reproduzir-se, a partir de certa altura, através da reflexdo especializada de intelectuais orga- nieos, internos ou cooptados pela instituigdo, que paulatina- (9) Para aldm dos eldssieos (M, Weber ¢ R, Michels) as refe- Fénelas basieas neste ramo da sociologia sto: Selznick (1919); Blau (1955); ‘March ‘e Simon (1958); Crozier’ (1963); Mouzelis (1960); Larson (1977); Clegg ¢ Dunkerley (1960). Os Trés Tempos Simbéticos 37 mente construiram o discurso institucional: 0 discurso militar, © discurso religioso, o discurso judicial, o discurso médico. Pode mesmo dizer-se que qualquer destas instituigdes se especializou tanto ou mais no discurso como nas acgBes ou fungbes. A espe- cializagéo das fungoes correu paralela a especializagao das pa- lavras, a profissionalizagdo das acgdes correu paralela 4 pro- fissionalizagio dos conceitos. A constituigdo destas formas de auto-conhecimento teve dois efeitos principais. Por um lado, tornou possivel uma enor- me e condensada circulagéo de sentido no interior das insti- tuigdes. Os conceitos constituidos no seio das instituigdes eram, por isso mesmo, auto-referenciaveis e, dai, evidentes, transpa- rentes, 0 que possibilitava que o sentido das acgdes e, portanto, a avaliagao dos comportamentos © das atitudes se formasse ¢ circulasse répida e inequivocamente por todo o edificio insti- tucional. Este foi um factor decisive na construgao da coe- réneia institucional e do espirito de corpo que normelmente a acompanhou. No caso do discurso militar, citemos a titulo de exemple os conceitos operativos de chefia, comando, lideranga, ordem, disciplina, os conceitos programaticos de honra, patria, nagio, interesse nacional e independéncia nacional e o conceito basico, mediador entre os conceitos operatives e os conceitos programaticos: 0 conceito do inimigo. Mas, por outro lado, o auto-conhecimento produziu um outro efeito, complementar do anterior: 0 processo pelo qual 0 discurso institucional se tornou evidente e transparente para o interior da instituigdo fez com que ele se tornasse hermético, cifrado, esotérico para a sociedade exterior & instituicao. O discurso do auto-conhecimento, que abri canais no interior da instituigao, fechou os eanais por que a sociedade exterior pode- ria ter acesso a instituigdo. As grandes instituigées passaram a apresentar-se em sociedade segundo uma imagem ptiblica, me- ticulosamente calculada © fabricada (nos edificios — fossem cles quartéis, igrejas, palicios de justica ou hospitais — nos uniformes, nas posturas, nas distingées, etc.), uma imagem de fachada atras da qual as instituigdes se fecharam, transparentes apenas para si mesmas. A disténcia entre 0 piblico e 0 privado, tal como a distingdo entre 0 politico ¢ 0 técnico, 0 profissional e o- amador, foram utilizadas para eaucionar uma forma de transparéncia interna que sé era possivel através do fechamento externo. Este processo de fechamento foi longo. Eo facto de as instituigdes poderem ter uma vida socialmente dupla nao cons- tituiu durante muito tempo qualquer problema. Pelo contri- rio, a consolidagao e a expansao das instituicdes assentou nessa 38 Boaventure de Sousa Santos Guplicidade. Ou seja, 0 fechamento estrutural das instituigdes foi durante muito tempo uma solugdo e no um problema. Ha, no entanto, um momento histérico em que o fecha- mento se transformou num problema. E esse deu-se quando 0 fechamento estrutural das instituigdes se tornou também um fechamento fenomenolégico, ou seja, quando a sociedade nao institucionalizada reparou finalmenté que as instituigdes esta- vam fechadas, e que o seu discurso, por ser hermético, era também socialmente vazio, por ser profissionalizado, era ineon- trolavel e, por ser ritualizado, era irracional Nesse momento, que em geral nos paises europeus ocorreu na década de 60 principios da década de 70, abriu-se a crise de legitimacio do poder institucional ("), Por razdes certa- mente especificas de pafs para pais e de instituigfo para ins- tituigdio, essa crise manifestou-se, no entanto, de uma forma convergente: a rejeicfo das institui¢ées, ou, pelo menos, a dis- tanciagéo em relacio a elas. Estas manifestagdes foram, por exemplo, no caso instituigao militar: as desergoes ou as fugas a0 servigo militar, o ostracismo nos mass media, os debates sobre 0s orcamentos militares, a deniincia de guerras a perder ou mesmo a ganhar; no caso da instituigao religiosa: o decrés- cimo da pritica religiosa, a falta de vocacdes sacerdotais, a revelacdo de escindalos do Vaticano; no ¢aso da instituigao judicial: a dentincia do acesso desigual a justica e da justiga desigual e uma deserenga generalizada_na eficécia da’ admi- nistragdo da justiga; no caso da instituigao médica: a revelagéo as doencas iatrogénicas, a dentincia da perda do controlo do corpo em favor de médicos e medicamentos, os estudos sobre a produgéo multinacional de produtos farmactutieos e os modos de experimentagio com seres humanos ¢ a criagio de medici- nas alternativas. A investigacfo das causas desta crise de legitimagao gene- ralizada é hoje um dos debates mais actuais nas ciéneias sociais, Durante muito tempo pensou-se que a crise de legitimacao foi provocada por uma crise de eficdcia das instituigdes que a precede, Hoje pde-se em causa este argumento e a falsa line: tidade que ele comporta. Entende-se que a crise de legitimagio precedeu, em muitos casos, a crise de eficécia. ‘Nio interessa resolver aqui esta questio. Interessa, sim, referir os remédios que foram propostos na sociedade © depois, nas varias instituigdes para resolver a crise de legitimagao. ‘Mas antes é importante que se retenha o seguinte: indepen- 2) Sobre esta questdo ef, Santos (1080). Os Trés Tempos Simbélicos 39 dentemente da decisao sobre a relagio entre crise de legiti- magio e crise de eficacia ao nivel do diagnéstico, 0 facto € que, ao nivel das solugées, as questdes da legitimacao e da eficicia foram, em geral, iratadas conjuntamente. Ou seja, procuraram- -se solugdes que visavam reconstituir o consenso social a res~ peito das instituigdes © da relevincia das suas funcdes sociais, solugées que, simultaneamente, aumentavam a eficécia fun- cional, administrativa ¢ orgamental das instituicées. Tais solugdes foram variadas consoante os paises ¢ as insti- tuigdes mas tiveram em comum o facto de assentarem num maior envolvimento dos cidadios na vida das instituigdes, Traduziram- -se, por exemplo, em varias formas de participagao popular no planeamento ¢ até na execugao das actuagdes institucionais, No caso da Igreja, e no seguimento do Vaticano I, 0 ressurgimento da comunidade dos leigos e a sua participagao na pastoral; no caso dos tribunais, a emergéncia de varias formas de partici- pagéo popular na'administragdo da justica (0s julzes sociais, os juizes leigos, os julgados de paz, 03 tribunais comunitarios); no ‘caso da instituigdo médica, as comissGes de utentes nos hos- pitais, as comissies mistas de avaliagao deontologica, a medi- cina Comunitaria, o ressurgimento do clinico geral ¢ de uma prdtiea menos profissionalizada. No caso da instituicio militar, as solugdes foram talvez mais timidas mas, mesmo assim, ¢ sobretudo no quaéro curopeu, fomentou-se ou, pelo menos, tole- rou-se o associativismo (*) e uma certa democratizagéo do fun- cionamento de érgaos de consulta ao mesmo tempo que se participou num debate piiblico sobre o papel das forgas arma- das ¢ se procurou uma ligagdo institueionalizada com o parla- mento, Ainda recentemente Helmut Schmidt, ex-chanceler da Alemanha Federal, pronunciava no parlamento alemao um discurso em que elogiava 0 Wekrbeauftragter, um cargo par- lamentar enearregado de defender os interesses dos membros das forgas armadas (El Pais, 16.3.1985) Conelui-se assim que a questio do relacionamento civil/ /militar neste tempo tereeiro, sendo uma questao especifica, nao € uma questao qualitativamente diferente daquelas que se tém posto as demais instituigées totalizantes quando defron- tadas com uma crise de legitimagao. #, no entanto, distinta daquela que teoricamente se pode imputar aos tempos primeiro © segundo. De facto, a relagao entre forgas armadas e sociedade que subjaz ao universo simbélico do tempo terceiro nfo tem nada a ver com a relagio populista do tempo primeiro ou com a (5) Sobre esta questio cf, por tltime, Borup-Nielsen (1985). 4 Bonventura de Sousa Santos relagdo revolucionéria do tempo segundo. & uma relagéo des- politizada como no tempo primeiro mas, ao contrario deste € do tempo segundo, 0 seu elo privilegiado na sociedade civil no sd0 as classes populares mas antes as classes médias. As classes médias s40 as mais receptivas ao apelo profissionali- zante/modernizante, uma vez que elas préprias se encontram entaladas no dilema: profissionalizagéo ou proletarizagao. Por ‘outro lado, por serem as classes cujo status social é mais frégil € instavel, esto, pela sua inseguranga, mais aptas a identi- tifiear-se com os objectivos abstractos da defesa nacional. Por outro lado, a relagio forcas armadas/sociedade do tempo terceiro coloca-se fora da instrumentalizacdo e da troca de favores tipicos do populismo (tempo primeiro) e obvia- mente est nos antipodas da relagao revolucionaria (tempo segundo). B uma relagao que pressupée um bloco politico-so- cial hegeménico dominado pela burguesia e congregando a adesio das classes médias e de largos estratos do operariado; este bloco cristaliza-se num estado moderno empenhado no desenvolvimento capitalista. Este bloco ¢ este estado garantem a estabilidade governativa necessiria a relativa despolitizacao das questdes militares e a elaboragao e execugdo de planos de modernizagao cujos calendarios previsionais se prolongam por varias décadas ("). Por outro lado, garantem 0 desenvol- vimento econdmico onde se geram os recursos financeiros com que o estado faz face as enormes despesas de modernizacao militar, Por ultimo, 0 bloco hegeménico ¢ o estado garantem a cooperacao politica’ das classes médias e de largos estratos do operariado, cooptando-os através das politicas sociais. A relagéo entre forgas armadas e sociedade no tempo terceiro é, em suma, uma relacéo social-democrata. © A despolitizagio das questies militares nfo signifiea de modo nenhum que os militares percam forea politica para fazer promulgar no parlamento ¢ no governo as medidas que propoem para A sua modernizacao, Polo contrdrio, a despolitizacao’ relativa das uestdes militares permite ao lobby militar congregar mais amplos consensos, tanto mais que se sabe aliar aos interesses industrials igados indiistria da defesa) que pressionam as instdncias politicas no mesmo sentido. £ o complexo militar-industrial de que ja falava Eisenhower, Por outro lado, deve salientar-se que o «modelo oci- dental» de submissio das foreas armadas ao poder politico evil tende a obscurecer o fendmeno, cada vez mals visivel nos paises capltalistas avangados, do crescente poder ceonémico, social ¢ mesmo politico de militares de alta patente, tanto no active como na reserva, Uma das primelras denineias deste fendmeno nos Estados Unidos da Amériea pertence aC. W. Mills (1956). Os Trés Tempos Simbélicos 41 5. CONCLUSOES A sociedade portuguesa é uma sociedade semi-periférica e esta caracteristica deve presidir 4 andlise da questéo militar, como, de resto, a de todas as questées sociais, politicas ¢ econé- micas que hoje nos defrontam, Esta caracterizagao nio implica que a sociedade portuguesa seja uma sociedade cadtica ou sequer ecléctica, que apresente em certos dominios as condigdes Gos paises centrais e, noutros, as condigées dos paises periféricos. A caracterizagio semi-periférica tem uma légica prépria que se manifesta no interior de cada dominio, de cada movimento social, de cada acontecimento. O movimento dos eapitaes ilustra bem 6 que acabo de dizer, O facto de os capitaes terem derru- ado pela forga o regime fascista e de desde logo terem prome- tido e depois cumprido entregar o poder politico as forcas politicas que ganhassem as elei¢des significa que a actuagio poli- tico-social que desencadearam (a crise revolucionaria) combina em si, segundo uma légica propria, tragos caracteristicos dos paises periféricos (a intervengao inconstitucional no poder poli tieo) © tragos caracteristicos dos paises centrais (a submissao a0 poder politico civil democratico). A caracterizagao semi-periférica confere extrema comple- xidade as prdticas sociais. B assim também no dominio das pratieas simbélicas e dos mapas cognitivos com que nos orien- tamos nas interacgdes sociais que tecem, tanto 0 nosso quoti- diano (a vida igual), como nosso anti-quotidiano (2 efabu- lagao mitica da vida diferente). Distingui trés mapas cognitivos, trés universos simbélicos, na construgdo social das forgas arma das na sociedade portuguesa: tempo primeiro: , Comunieagio apresen- tada no Coléquio sobre «Administragio Publica e Demoeracia> organizado em 24.11.1984 pelo Centro de Estudos Socialistas pela Reflexio © Acco Socialistas, Blau, Peter (1955), The Dynamies of Bureaucracy. Chicago, Univer- sity of Chicago Press. Borup-Nielsen, Steen (1985), eThe Right to Trade Union Membership ‘within the Danish Armed Forcess. Comunicacdo apresentada 40 2° Seminario da Assoclaco 25 de Abril realizado em Lisboa de 26 a 28 de Abril de 1985. Broué, Pierre (1911), Révolution en Allemagne, Paris, Editions de ‘Minuit. Broué, Piorré e E, Témime (1961), La révolution et la Guerre d'Es- ‘pagne, Paris, Bditions de Minuit Cabral, M. Villavetde (1982), «Frazmentos de uma conversa sobre a aldeia e vida camponesas, Ideia, 26-27, 78. 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