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Revista Critica de Ciéncias Sociais BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Centro de Estudos Sociais Tempo, codigos barrocos e canonizagao' Abordam-se neste artigo as conse- quéncias do processo de desestabil- Zagdo por que esid a passar a equa- Ga0 moderna entre raizes @ opedes 0 fim dos eddigos dualistas que sus- tentavam essa equacao propicla 0 emergir de novos codigos de natu- roza basroca marcados pela intensifi- cacao e pela mesticagem. Depo's de uma caracterizagao dos dois tipes de mostigagem — por sobro-oxposigéo e por sub-exposi¢ao — que definem esses cédigas, analisam-se mais de porto trés processos de canonizagéo ei curso no presente periodo de transicao: 0 cénone literario, 0 patri- ménio comum da humanidede eo patrimonio mundial cultural e natural s raizes © as opgdes constituem duas das referén- cias mais basicas da acgao social. As raizes sao referéncias que funcionam através de ligacdes retrospectivas; as opgdes so referéncias que funcionam através de ligacdes prospecti vas. Pode dizer-se que as acgGes sociais se definem, ora em fungdo de raizes, ora em funcao de opgoes. A especificidade da madernidade ocidental reside na equagao entre raizes e ogdes. Esta equagao confere ao pensamento moderno um caracter dualista: de um lado, pensamento de raizes, do outro, pensamento de opgdes. O pensamento das raizes 6 0 pensamento de tudo aquilo que é profundo, permanente, Unico e singular, tudo aquilo que da confianga e consisténcia; © pensamento das opgées € 0 pensamento de tudo aquilo que 6 variavel, efémero, substituivel, possivel e indetermi- nado a pattir das raizes. As duas diferencas fundamentais entre raizes e opgdes tém a ver com a escala e com o tempo. Dasejo agradecer a Maria Irene Ramalho pelos valiosos comentarios € ela ajuda na revisao do texto. Estou iguaimente grato a Immanuel Wallerstein, José Pureza, Barbara Yngvesson ¢ Paulo Peixoto pelos seus comentarios sugestées, N51 Junho 1998 A equagao moderna entre raizes e opcées Boaventura de Sousa Santos ‘As raizes sao ontidades de grando escala; as opgdes sao entidades de pequena escala. Devido a esta diferenga de escala, as raizes sao Unicas e as opges so multiplas. As raizes e as opgdes também se distinguem de acordo com 0 tempo. As sociedades, 4 semelhanga do que acontece com as interaceées sociais, constroem-se sobre uma multipli- cidade de tempos sociais e diferem consoante as combina- ges © as hierarquias especificas dos tempos sociais que pri- vilegiam. Baseando-me livremente na tipologia dos tempos sociais de Gurvitch (1969: 340), proponho-me chegar a uma compreensao das raizes em termos de uma combinag&o de a) tempo de longa duracao e tempo au ralenti b) tempo ciclico, 0 tempo que danse sur place; c) tempo atrasado (temps en retard sur lui méme), tempo cujo desdobrar se mantém em espera. As opgées, por sua vez, caracterizam-se por uma combinagao de a) tempo acelerado (temps en avance sur lui méme), que € 0 tempo da contingéncia e da descontinuidade; b) tempo explosive, que é um tempo sem passado nem presente mas apenas com futuro. Num eixo continuo entre tempo glacial e tempo instantaneo, as raizes modernas tendem a agrupar-se em torno do tempo glacial, enquanto as opgdes modernas tendem a agrupar-se em tomo do tempo instantaneo. Se no caso das raizes o tempo tende a ser lento, nas opgdes ele tende a ser rapido. A duali- dade de raizes ¢ opgdes € uma dualidade fundadora ¢ consti- tuinte, ou seja, no esta submetida ao jogo que instaura entre raizes e opgdes. Por outras palavras, nao ha a opgao de nao pensar em termos de raizes e opgées. E a luz desta equacao entre raizes e opgdes que a socie- dade maderna vé a sociedade medieval e se distingue dela. A sociedade medieval é vista como uma sociedade em que & total 0 predominio das raizes, sejam elas a religiao, a teologia ou a tradigao. A sociedade medieval evolui segundo uma légica de raizes. Ao contrario, a sociedade moderna vé-se como uma sociedade dinamica que evolui segundo uma logica de opgdes. A equagao tera surgido aquando da Reforma Luterana. Com ela, toma-se possivel, a partir da mesma raiz — a Biblia da cristandade ocidental — criar uma opgao a Igreja de Roma. Ao tomar-se optativa, a religiao perde intensidade, se nao mesmo status, enquanto raiz. No mesmo processo histérico em que a religido transita do status de raiz para o de opgao, a ciéncia transita, inversamente, do status de opgao para o de raiz. Giambattista Vico, com a sua proposta da «nova ciéncia» (Vico, 1961), € um marco deci- sivo nesta transig&o que se iniciara com Descartes e se con- sumara no século XIX. A ciéncia, ao contrario da religiéo, 6 uma raiz que nasce no futuro, 6 uma opgo que, ao radicali- zar-se, se transforma em raiz e cria a partir dai um campo imenso de possibilidades. Este jogo de movimento e de posigao entre raizes e opgdes atinge o seu pleno desenvolvimento com o Ilumi- nismo. Num vasto campo cultural, que vai da ciéncia & poli- tica, da religiao arte, as raizes assumem-se claramente como © outro, radicalizado, das opgdes. Assim, a razao, transformada em raiz Ultima da vida individual € colectiva, nao tem outro fundamento sendo criar opgdes. E nisto que ela se distingue, enquanto raiz, das raizes da sociedade da ancien régime (a teligio e a tradigao). E uma opgao que, a0 radicalizar-se, torna possivel um enorme campo de opgdes De todo 0 modo, as acgdes nao sao infinitas. Isso é evidente na outra grande raiz do llurninismo: o contrato social e a von- tade geral que o sustenta. O contrato social é metafora fun- dadora de uma opgdo radical — a de deixar o estado de natureza para formar a sociedade civil — a qual se trans- forma em raiz a partir da qual quase tudo 6 possivel, tudo excepto voltar a0 estado de natureza. A contratualizacao das raizes ¢ irreversivel e este 6 0 limite da reversibilidade das opgées. E por isso que, em Rousseau, a vontade geral nao pode ser posta em causa pelos homens livres que ela cria. Diz ele no Contrato Sociat Quem quer que recuse obedecer & vontade geral a isso sera coagido por todo o corpo: 0 que significa apenas que sera for- cado a ser livre (1989: 27). A partir de finais do século XIX, 0 jogo de espelhos entre raizes e op¢ées esta consolidado e passa a constituir a idéo- logie savante das ciéncias sociais. Os dois exemplos mais brilhantes sao Marx e Freud. Em Marx, a base é a raiz ea superstrutura sao as opgdes. Em Freud (e também em Jung), © inconsciente é a raiz profunda onde se fundam as opgées do ego ou a limitagao neurética delas. Num mundo que ha muito perdera o «passado profundo» (a raiz da religido), a ciéncia passa a ser, tanto na revolugdo comunista como na revolugao da subjectividade, a Unica raiz capaz de sustentar um novo comego. A partir dela, as boas opgdes sao as opgoes legitimadas cientificamente. E isso 0 que implica, para Marx, a distingao entre realidade e ideologia; 2, para Tempo, Cédigos Barrocos e Canonizagao Boaventura de Sousa Santos Transigoes e codigos barrocos Freud, a distinedo entre realidade ¢ fantasia. Nesta distingao reside também a possibilidade da teoria critica moderna. No dizer de Horkheimer (1972: 208), «a razdo nao pode tornar- -se tansparente para si prépria enquanto os homens conti- nuarem a agit como membros de um organismo desprovido de razao». No nosso século, a sociologia e as ciéncias soci- ais aderiram & nova equagao raizes/opgdes, que assim se converteu no grande modelo da inteligibilidade social: estru- tura © ago (agency) na sociologia e na antropologia; longue durée e événement na histéria; langue e parole na linguistica. No campo politico, © Estado-nagao e 0 direito positive transformam-se nas raizes que dao origem ao vasto leque de opges disponiveis quer no mercado, quer na sociedade civil Para funcionar como raiz, 0 direito tem que ser auténomo, 0 que significa que tem que ser cientifico: a raiz juridica como opgaio radicalizada, consagrada pela codificacao e pelo posi- tivismo (Santos, 1995: 55-109). O Estado liberal, por sua vez, constituiu-se como raiz ao imaginar uma nacionalidade e uma cultura nacional homogéneas. O Estado torma-se, ento, guardiéo de uma raiz (etnicidade, lingua, cultura) que nao existe para além do Estado. ‘A equagao modema entre raizes e opgdes esta a passar por um processo de desestabilizagaio que se afigura irroversi- vel’. Como foi com base nessa equagdo que aprendemos a pensar a mudanga social, vemo-nos remetidos para um tempo em que o presente tende a eternizar-se, devorando tanto 0 passado como o futuro. Vivemos num tempo de repe- ticdo, e a aceleracao desta repeti¢ao produz simultaneamente uma sensagao de vertigem e uma sensacdo de estagnacao. E tao facil e irrelevante cair na ilusao retrospectiva de projec- tar 0 futuro no passado, como cair na iluséo prospectiva de projectar 0 passado no futuro. © presente eterno faz a equi- valéncia entre as duas ilusdes e neutraliza ambas. Com isto, a nossa condigéo assume uma dimensao kafxiana: 0 que existe nao se explica, nem pelo passado, nem pelo futuro. Existe apenas num mar de indefinicao e de contingéncia. Nao podemos, pelo facto de nos encontrarmos num perfodo de transicao, aceitar esta condigao como um estado de coi- ® Esta desestabilizacao apresenta-se sob tiés formas principais: turbulén- cia das escalas: explosao de raizes e de opcées; trivielizagao da equagao entre raizes @ opgdes. A este respelto, vela-se Santos, 1996: 15-21 sas normal, Ou a enfrentamos como condigao perigosamente enganadora, ou a entendemos como uma fronteira, relativa- mente mal cartografada, de oportunidades e de riscos para os quais nao ha seguro possivel. A estratégia de confronta- ¢ao e de dentincia assenta na validade continua do dualismo das escalas (grande/pequena) ¢ do dualismo dos tempos (tempos de raizes / tempos de opgées), subjacente a moderna equagao das raizes e opgées. O colapso destes dualismos abre caminho a novas serviddes e compulsdes que, por forga do hiato de codificagao dele resultante, podem facilmente pertilar-se como novas auroras de liberdade. Assim, a oxploséo de raizos que, intencionalmente ou nao, resultaram das politicas identitarias, nao se limita a trivializar as préprias raizes, uma vez que traz também consigo o risco de guetoizagao e de refeudalizagao — que o mesmo é dizer, a proliferagao de diferengas que, por serem incomensuraveis, impossibilitam qualquer tipo de coligagao e conduzem, em Ultima andlise, a indiferenca. A explosao de raizes provoca um desenraizamento que gera escolhas ao mesmo tempo que bloqusia o exercicio efectivo dessas mesmas escolhas. Por outro lado, a explosaio de opgdes, longe de acabar com o determinismo das raizes, da origem a um novo determinismo, talvez ainda mais cruel: a compulsao da escolha, cuja reali- dade e simbolo maior é o mercado (Wood, 1996: 252). Sera que a nossa condicao é entao, de facto, uma ques- tao de transigao ou fronteira? Presumi-lo pressupde que os cédigos dualistas que sustentavam a modema equacao entre raizes © op¢des foram finalmente removidos. O presente hiato, que mais se assemelha a um fosso ou uma auséncia de codificagao, constitui na realidade um campo fértil do qual emergem cédigos sintéticos. Em questao estao cédigos bar- rocos em que as escalas e os tempos se misturam e nos quais as opgdes sub-expostas funcionam como raizes e as opgdes sobre-expostas funcionam como opcdes. O que é mais espantoso e original nestes cédigos € 0 facto de, apesar de serem intrinsecamente provis6rios e facilmente descarta- veis, serem dotados de uma grande consisténcia enquanto duram. Por isso eles sdo tao intensamente mobilizadores quanto convincentemente substituiveis. Os hiatos ou fossos que separam os cédigos tornam as sequéncias existentes entre eles inapreensiveis enquanto tais. Assim, as sequén- cias nao tém consequéncias, tal como as consequéncias nao tém uma sequéncia. A experiéncia de risco é, assim, muito mais intensa. Uma vez que as causas s6 so apreensiveis Tempo, Cédigos Barrocos e Canonizagao Boaventura de Sousa Santos. como consequéncias, nao existe seguro contra este tipo de risco. Estes cédigos barrocos pés-dualistas sao formagées dis- cursivas que funcionam através da intensificagao e da mesti- gagem. Existe intensificagéo sempre que uma dada referén- cia social ou cultural é exposta para além dos seus limites — seja por sobre-exposigao ou sub-exposicaéo — a ponto de perder 0 seu cardcter «natural» (como, por exemplo, quando. uma raiz se transforma em op¢ao ou vice-versa). Existe mes- tigagem sempre que duas ou mais referéncias sociais ou cul turais auténomas se misturam ou interpenotram a tal ponto e de tal modo que as novas referéncias dai emergentes, por mais auténomas que aparentem ser, patenteiam a sua heranga mista (Santos, 1995: 499-506). Existe mestigagem de dois tipos: a que resulta da sobre- -exposigao e a que resulta da sub-exposicao. A mestigagem resultante da sobre-exposigao diz respeito a constelagdes de raizes e de opgdes que proliferam de uma forma caética © que mudam de lugar de uma maneira irregular e imprevisivel. Este tipo de mestigagem ocorre em muitas das lutas conven- cionalmente chamadas novos movimentos sociais: as |utas feministas e ecoldgicas, as lutas dos povos indigenas, as lutas pelos direitos humanos, etc. A mestigagem resultante da sub-exposigao diz respeito a constelagoes de raizes e de ‘opgdes que se concentram em reprodugdes exemplares e idealmente singulares, onde as opcées se intensificam a tal ponto que se transformam em raizes. ‘A mestigagom resultante da sobre-exposigao € propria dos cddigos barrocos, em que as raizes estao sujeitas a légica das opgdes. Sé ha raizes porque ha opgoes. O tisco, presenga dominante em todos os cddigos barrocos, é enfren- tado, neste tipo de cédigo, pelo recurso @ criatividade da acg4o e fazendo apelo a autonomia, a auto-reflexividade, A individuagao e A extra-institucionalidade. Nos cédigos barro- cos que actuam por sobre-exposigao, a mestigagem preside aos processos sociais de funcionamento em rede e de dis- persao criativa. O exemplo mais consistente de um cédigo barroco sob a forma de sobre-exposicao é 0 conceito de sub- politica proposto por Ulrich Beck (1995). Nos antipodas de Foucault, Beck parte da ideia de que as instituigdes da modernidade industrial criaram sujeitos que j4 nao sao capa- zes de controlar. A ciéncia e 0 direito, as duas mega-raizes da modernidade industrial, criaram um hiato tao grande entre © individuo e 0 Estado que as opgoes politicas goradas pelas instituig6es modemas redundaram num imenso vazio. HA, por isso, que reinventar a politica om termos do subpolitica, que o mesmo é dizer, passando a politizar aquilo que a modernidade industrial considerou nao-politico. As lutas femi- nistas e ecolégicas sao os exemplos privilegiados por Beck para ilustrar 0s novos cédigos sintéticos capazes de ultrapas- sar dualismos tais como ptblico/privada, especialista/leigo. politico/econdmico, ¢ de modelar a sociedade a partir de baixo e através da alteragao reflectida de regras. O segundo tipo de cédigo barroco constituido pela mes- tigagem resultante da sub-exposicao. Neste caso, as opcdes submetem-se & légica das rafzes, ou seja, sé ha opgdes por- que hd raizes. Aqui o risco é enfrentado, nao pelo recurso & criatividade da ac¢ao, mas antes pela sustentabilidade da acco, pelo apelo a opgées que sejam suficientemente inten- sas ou partilhadas para permitirem a reprodugao continuada de um leque cada vez mais vasto de opgées. Este tipo de cédigo barroco preside aos processos de canonizagao. Por processos de «canonizagao» refiro-me, aqui, a processos de uma particular intensificagao de referéncias, independente- mente de aparecerem como ligag6es retrospectivas ou pros- pectivas. A intensificagao tanto pode ser produzida por uma imitagao exacta (ou reprodugao), como acontece no caso do canone musical, como pela dificuldade extrema — se nao mesmo pela impossibilidade — de imitar, como 6 0 caso da canonizagao orista. Mas, seja qual for 0 processo, a intensifi- cacao confere ao objecto da intensificagéo uma exemplari- dade, uma estranheza, um valor e uma solidez especificos, que 0 tornam apto a funcionar como condigao ou base para mtittiplos exercicios de escolha, sejam estes permitidos ou proibidos. Em termos ideais, o processo de intensificagao fica consumado quando a escolha do objecto da intensificagao prescinde de justificagao enquanto escolha para se tornar, cla prdpria, justificagao para outras escolhas. Os cédigos bar- rocos que funcionam através da mestigagem por sub-exposi- g&o e que presidem aos processos de canonizagaio sao tal- vez os mais intrigantes e complexos, exigindo por isso uma reflexao mais pormenorizada. Entre os muitos processos de canonizagao em curso neste periodo de transigao, distingo trés: 0 canone literario, 0 patriménio comum da humanidade, ¢ o patriménio cultural © natural do mundo. Tempo, Cédigos Barrocos e Canonizacao Cédigos barrocos @ processos de canonizagao 10 Boaventura de Sousa Santos O canone literario Entende-se por canone literario o conjunto de obras litera- rias que, num determinado momento histérico, os intelectuais 2 as instituigdes dominantes ou hegemdnicos consideram ser os mais representativos, os de maior valor e autoridade numa dada cultura oficial. Assim, Harold Bloom (1994) propée vinte e seis grandes autores (romancistas, poetas, dramaturgos) que institui como sendo o c&none ocidental. O papel que coube & igreja na constituigéo do canone biblico foi idéntico ao desempenhado pela escola e pela universidade no que respeita ao cdnone literario e ao cAnone artistico em geral (Guillory, 1995: 239). No cAnone literdrio, so os cédigos bar- rocos de mestigagem por sub-exposicao que funcionam: as obras escolhidas para integrar o cAnone sao aquelas que dei- xam de estar expostas a logica das opgdes e passam a ser a base ou raiz do campo literario, O processo de intensificagao que estas obras sofrem dota-as do capital cultural necessario para que possam finalmente patentear a exemplaridade, o caracter Unico e a inimitabilidade que as distingue. Enquanto cédigo barroco, 0 canone literdrio 6 um cddigo sintético e, além disso, também estruturalmente ambiva- lente, uma vez que, para submeter as opgdes a uma légica de raizes — como é proprio da mestigagem por sub-exposi- ao —, tem de comegar por optar entre varias alternativas de modo a negar, num estédio posterior, 0 estatuto de raiz a todas as alternativas que nao tenham sido objecto de esco- tha. Dai que Bloom afirme, com assinalavel ironia: «aqui a escolha de autores nao é tao arbitraria como poderd pare- cer, ja que foram seleccionados tanto pela sua sublimidade como pelo seu caracter representativo» (Bloom, 1994: 2-3). E continua, apés interrogar-se retoricamente sobre 0 que faz com que um determinado autor ou obra sejam considerados candnicos: «A resposta [6] a estranheza, uma forma de origi- nalidade que ou nao pode ser assimilada ou nos assimila de tal modo que deixamos de a encarar como estranha». O canone literario @ especialmente contestado no mundo anglo-saxénico. As posigdes extremam-se entre aqueles que defendem 0 canone tal como o acham, investindo-o da fun- gao de garante da identidade e da estabilidade nacional e cultural, ¢ aqueles que o atacam através precisamente do questionamento da concepcao de identidade (elitista e par- cial) que ele impée. O debate sobre o processo de formagao e de reprodugao do canone (Kamui, 1997) é esclarecedor, por si sd, da natureza historica do canone e da sua volatili- dade, bem como das forgas © das instituigdes sociais que, de uma mangira ou de outra, Ihe dao forma. Torna-se igual- mente importante reparar na capacidade de resisténcia do cAnone, na facilidade com que cria solidez ¢ se impde como autoridade, rotina, ou simples inércia. A intensidade do debate, com as suas repercussées institucionais, politicas e mediaticas, facilmente se deixa apropriar pelo processo de intensificagao subjacente & mesticagem por sub-exposicao. A propria discuss&0 sobre as opgées e as alternativas que elas implicam faz aumentar a submissao das opgées a légica das raizes. Até certo ponto, a canonizagao alimenta-se da descanonizagao. O canone biblico, constitufdo pelos textos que se consi- dera ser, no seu conjunto, a Sagrada Escritura da tradigao judaico-crista, foi formado muito cedo e foi sendo conservado de maneira muito consistente; inclusivamente, os préprios desvios a esse cAnone revelaram-se sempre de uma persis- téncia notavel. «Dado o caracter da Igreja enquanto institui- ao & qual ou se pertence ou no se pertence, o processo de seleccao canénica neste contexto tem (numa base dogma- tica) de assumir a forma de um processo de incluséo ou exclusao rigorosamente terminante. Todo o texto potencial- mente integrante das Escrituras, a ser incluido ou excluido, deverd sé-lo de uma vez por todas» (Guillory, 1995: 237). No cAnone literario, as coisas passam-se de modo diferente, em virtude das diferentes prdticas institucionais que distinguem as igrejas das escolas. Mas ha diferengas mesmo dentro do campo eclesidstico. Se é certo que o canone biblico revela uma grande estabilidade, ja 0 direito canénico, apesar de muito mais estavel do que 0 direito comum dos Estados, sofreu algumas transformagdes ao longo dos séculos. Tais transformagées devem-se, em parte, a heterogeneidade interna dos diferentes elementos normativos que constituem 0 direito canénico: o direito divino, o direito natural e o direito regulatério em vigor. Ao contrario do canone literario, 0 canone histérico tem menos a ver com textos e autores do que com acontecimen- tos e contextos. Embora menos visivel, nalguns paises, do que o canone literario, 0 canone histérico também existe, consistindo na narrativa fundadora do Estado-nacao e dos eventos histéricos considerados de importancia primacial — os quais so, por esse mesmo motivo, vistos como canéni- cos. Nas tltimas décadas, 0 cdnone histérico de alguns pai- ses viu-se exposto ao mesmo tipo de turbuléncia que vem afectando o canone literario no mundo cultural anglo-sax6- Tempo, Cédigos Barrocos @ Canonizaco oh % Boaventura de Sousa Santos O patrimonio comum da humanidade nico. Refiram-se apenas, a titulo de exemplo, as controvér- sias geradas pelo revisionismo histérico de Frangois Furet (1978) sobre a Revolugao Francesa ou de Renzo do Folice (1977) a propésito do fascismo italiano. O patriménio comum da humanidade é uma doutrina de direito internacional e de relagdes internacionais. O conceito foi formulado pela primeira vez em 1967 por Arvid Pardo, Embaixador do Malta junto das Nagdes Unidas, a propésito das negociagées conduzidas no ambito desta organizacao sobre a regulagao internacional dos oceanos e dos fundos marinhos. Foi intuito de Arvid Pardo proporcionar uma base sélida para uma futura cooporagao a nivel mundial [...] através da aceitaco, por parte da comunidade internacional, de um novo principio do direito internacional |...] que os fundos ocednicos € 0 solo e subsolo marinhos sejam dotados do estatuta especial de «patriménio comum da humani- dade» e que come tal sejam reservados exclusivamente para fins pacificos e administrados por uma autoridade internacional para beneficio de todos os povos (Pardo, 1969: 225), Desde entao que 0 conceito de patriménio comum tem vindo a ser aplicado a outras «areas comuns» tais como a Lua, 0 espaco exterior e a Antartida. A ideia assemelha-se a ideia do contrato social: construir uma plataforma comum sobre a qual as diferengas ¢ as divisées possam florescer sem que com isso fique comprometida a sustentabilidade da vida social. No entanto, contrariamente ao contrato social, € como € proprio do cédigo barroco, o patriménio comum nao é uma escolha definitiva, mas sim um processo de selecgéo permanente. Seja o que for que passe a constituir patriménio comum, ele é algo que sempre existiu. © momento da nomea- ao cria a eternidade do nomeado: 0 nomeado sao as entida- des naturais portoncentes & humanidade no seu todo. Todos 0s povos tm, por isso, o dircito a ser ouvidos ¢ a intervir na gestdio e na distribuigéio dos seus recursos. O patriménio comum, como refere José Manuel Pureza, implica 1) a nao apropriacgao; 2) a gestao a cargo de todos os povos; 3) a dis- tribuigao internacional dos beneticios abtidos com a explora- ¢a0 dos recursos naturais; 4) 0 uso pacifico, incluindo a liber- dade de investigagao cientifica em beneticio de todos os povos; 5) a conservagao com vista as geragdes vindouras (Pureza, 1993). Apesar de formulado por juristas internacionais, 0 con- ceito de patrimonio comum transcende a area do direito, uma vez que tanto 0 seu objecto como 0 sujeito da regulamenta- ao transcendem o Ambito dos Estados. A humanidade emerge, na verdade, como sujeito do dircito intenacional, {iltular de um patriménio proprio e da prerrogativa da gestao dos espagos € recursos incluidos nos bens comuns globais. O patriménio comum é um cédigo barroco que funciona atra- ves da mesticagem por sub-exposigao. Os recursos naturais do patriménio comum sofrem um processo de intensificagao que os converte na base da possibilidade de sobrevivéncia da vida na terra. A exemplo do que sucede no caso do canone literario, as opgdes intensificam-se a tal ponto que o que quer que venha a ser seleccionado fica isento do jogo das raizes e opgdes. Enquanto a seleccao se mantiver, ela torna-se uma raiz sem opgSes. A exemplaridade, o carécter Unico e © valor inestimavel dos recursos que constituem o patriménio comum sao mantidos através da insisténcia na ideia de que a vida na terra depende deles para existir. Tal como o canone literario, a doutrina do patriménio comum da humanidade tem sido contestada. Contudo, e ao contrario ja do canone literario, a canonizagao do patriménio comum tem sido alacada por grupos hegeménicos e em especial pelos Estados Unidos da América. Tém sido, por outro lado, os grupos contra-hegeménicos — tais como os movimentos pela paz e pela ecologia, bem como os paises do Terceiro Mundo — quem mais se tem empenhado na luta pela canonizagao dessa doutrina. O patriménio comum da humenidade colide com os interesses de alguns Estados, especialmente daqueles que dispdem de meios tecnoldgicos e financeiros para a exploragao do solo marinho (Kimball, 1983: 16). A Convengo das Nagées Unidas sobre 0 Direito do Mar, assinada em Montego Bay a 10 de Dezembro de 1982, constitui um bom exemplo disso. Nao obstante haver sido originariamente subscrita por 159 Estados, levou doze anos até ser ratificada por sessenta Estados, que era o numero de ratificagdes necessdrio para a tornar efectiva- mente vigente. A implementagao da Convengao teve inicio em Novembro de 1994. Em virtude da pressdo exercida pelos Estados Unidos no sentido de cortigir algumas das suas «imperfeig6es», ela ird ser posta em pratica com um acordo anexo que acaba por neutralizar os seus aspectos mais ino- vadores. Uma das caracteristicas mais reveladoras do patri- monio comum da humanidade é 0 seu — bem barroco — Tempo, Cédigos Barrocos e Canonizagao 13 14 Boaventura de Sousa Santos Patrimonio Mundial Cultural e Natural cardcter aberto, isto 6, a capacidade de alargar 0 processo de intensificagao a outras areas ou recursos, convertendo-os assim em novas raizes de vida na Terra. A canonizagéo do patriménio comum foi alargada ao espago, por exemplo, com o Tratado sobre a Lua de 1979, 0 qual passou a fazer parte do direito internacional em 1984. O artigo XI do Tratado estipula que a Lua e os seus recursos naturais so patriménio comum da humanidade. O artigo VI estipula que «a exploragao da Lua é algo que diz respeito a toda a humanidade e deve ser levada a cabo em beneficio e no interesse de todos os paises, independentemente do seu grau de desenvolvimento econémico e cientitico». Tal como aconteceu com a Convengao do Direito do Mar, 0 Tratado sobre a Lua foi firmado por sobre um cenario de lutas antica- nonizadoras travadas pelas poténcias hegeménicas. Os Esta- dos Unidos, a antiga Unido Soviética, a China, 0 Japao € o Reino Unido nao se contam entre os seus signatarios, pelo que nao estao juridicamente vinculados pelo tratado. No caso do canone hist6rico e do cAnone literdrio, normalmente ja perfeitamente instalados, as lutas visam historiciza-los, rela- tiva-los e descanoniza-los. No caso do patriménio comum, o objecto de contestagado é 0 processo de canonizagao em si mesmo. Os cédigos barracos existem, muitas vezes, como que em antecipacao da realidade a que aspiram. O terceiro processo de canonizacao a que quero aqui alu- dir 6 0 do Patriménio Mundial Cultural e Natural. Segundo o estabelecido pela Convengao da UNESCO sobre a Protecgao do Patriménio Mundial Cultural e Natural, de 1972 (ratificada por 152 paises em Dezembro de 1997), todos os monumen- tos, conjuntos arquitecténicos, sitios © formagées naturais que preencham determinados critérios e testes de autentici- dade sero considerados como sendo de «valor universal excepcional» e, consequentemente, integrados na Lista do Patrimonio Mundial. Esse valor pode ser estabelecido a partir de uma grande diversidade de perspectivas, desde a historia a arte, passando pela ciéncia, pela estética, pela antropolo- gia, pela conservagao ou pela beleza natural. Tal como nos outros processos de canonizagao, 0 patriménio mundial cultu- ral ¢ natural funciona através de uma intensificagao excepcio- nal dos objectos seleccionados, conferindo-Ihes uma tal aura de exemplaridade, singularidade e insubstituibilidade que estes adquirem o estatuto verdadeiramente fundamental de qualidade de vida na terra. Por esse motivo, e nos termos da propria Convengéio, a sua deteriorag&o ou desaparecimento constituiriam um . Tempo, Cédigos Barrocos © Canonizagao 15 16 Boaventura de Sousa Santos i. ser exemplos eminentemente representativos das grandes etapas da historia da Terra, incluindo a pre- senga de vida, processos geoldgicos ocorridos no desenvolvimento das formas terrestres, ou elementos geomérticos ou fisiograficos importantes; ou ii. ser exemplos eminentemente representatives de pro- cessos ecolégicos ou biolégicos ocorrides durante a evolugao e desenvolvimento dos eco-sistemas e das comunidades de plantas e animais terrestres, aquati- COs, costeiros e marinhos; ou iii. conter fendémenos naturais ou areas de uma beleza natural e de uma importancia estética excepcional; ou iv.conter os habitats naturais mais representativos e importantes para a conservagao in situ da diversidade bioldgica, incluindo aqueles em que sobrevivam espé- cies ameagadas de valor universal excepcional do ponto de vista da ciéncia ou da conservacgao. Em Dezembro de 1997, 134 cidades do 58 paises tinham sido declaradas patriménio mundial. Desde 1993 que estas fazem parte da Organizagéo das Cidades Patrimonio Mun- dial, cujo principal objectivo é fomentar a cooperagao, a soli- dariedade e 0 apoio mUituo entre as cidades para que pos- sam conservar «a posigao privilegiada» em que foram investi- das‘. Em Dezembro de 1997, da Lista do Patriménio Mundial constavam 552 itens de 112 paises, dos quais 418 eram cul- turais, 114 naturais e 20 mistos. Enquanto processo de canonizagao, o Patriménio Cultural Natural Mundial apresenta algumas semelhangas com o patriménio comum da humanidade. Em ambos os casos, 0 objectivo consiste em definir sistemas de protecgao e estatu- tos juridicos especiais para recursos considerados de impor tancia excepcional para a sustentabilidade e para a qualidade da vida na terra. No entanto, ao contrario do verificado com a canonizacao do patriménio comum da humanidade (au das proprias obras literarias), a canonizagao do patriménio cultu- ral e natural mundial tem sido relativamente pouco contes- 4 Vor os estatutos da Organizagao das Cidades Patriménio Mundial, adop- lacos em Fez a 8 de Setembro de 1993, Outras insiituigdes relacionadas com 0 patrimdnio mundial séo 0 Centro Internacional para o Estudo da Preservacao © Restauro das Propriedades Cutturais (ICCROM), 0 Conselho Internacional para ‘08 Mcnumentos ¢ Lugares, © a Unido Internacional para a Conservagao da Natureza tada, Desde 1978 que o Comité do Patriménio Mundial tem vindo paulatinamente a incluir novos sitios na Lista, ao ritmo de aproximadamente 35 novos sitios por ano s6 na década de 90 Ao contrario do canone literario, 0 patriménio cultural e natural mundial € um jogo de soma positiva. A incluso de um dado sitio no cnone cultural ou natural nao implica direc tamente a exclusao de um sitio alternativo, principalmente se 08 sitios ficam em paises diferentes. Por outro lado, enquanto © cédigo literario se alimenta, até certo ponto, das forgas que © contestam, no patriménio cultural © natural os limites da canonizagao residem nas forgas que o promovem: uma cano- nizaco virtualmente infinita de sitios poderia ter o efeito per- verso de descanonizar (isto é, trivializer) sitios j constantes da lista. Os cédigos barrocos que funcionam por sub-exposi- 980 dependem da producao de escassez: a intensificacao exige rarefaccao. Ao invés do patriménio comum da humani- dade, 0 Patriménio Natural e Cultural nao questiona a posse publica ou privada da formagao ou sitio canonizado. A Con- veng&io de 1972 afirma que o reconhecimento do valor uni- versal de um determinado sitio é a demonstragao mesma da «importancia de que se reveste, para todos os povos do mundo, a salvaguarda dessa propriedade unica e insubstitu'- vel, independentemente do povo a que possa pertencem. Na secgao anterior, debrucei-me sobre dois tipos de oédi- gos barrocos: os que funcionam através de uma mestigagem por sobre-exposi¢éo e que presidem aos processos de dis- persdo criativa e de difusdio em rede; e os cédigos que funci- onam através de uma mestigagem por sub-exposigao e que presidem aos ptocessos de canonizacao. Ambos os tipos sao sintéticos nas respectivas aspiragées. As diferentes espécies de mesticagem que eles produzem entre raizes @ opgaes sA0 bem a prova de que o dualismo das raizes @ opgdes se encontra ainda presente noles, ainda que apenas como ruina, como uma meméria ou um desconforto. Trata-se, por- tanto, de cédigos ambivalentes, de uma ambivaléncia que se reflecte nos tempos sociais que eles privilegiam. E estes tem- pos sao, eles préprios, ambivalentes, irregulares, arritmicos. Nos cédigos barrocos de hoje, parecem existir trés tempo- ralidades distintas (Gurvitch, 1969: 341-43). Antes de mais existe 0 tempo trompe-l’oeil que, embora a primeira vista parega de longa duragao, esconde uma capacidade enorme Tempo, Cédigos Barrocos e Canonizagao Os tempos dos cédigos barrocos 17 18 Boaventura de Sousa Santos Conclusao de irrupgaio, de dar origem a novas emergéncias e a crises abruptas e inesperadas. Em segundo lugar, existe 0 tempo do compasso irregular entre o emergir eo desaparecer de rit- mos, um tempo de duracao e de intervalos enigmaticos entre séries de duracao. Este 6 0 tempo da incerteza, da contin- géncia e da descontinuidade. Por fim, existe o tempo que alterna entre o atraso e o avango, um tempo de descontinui- dades entre anacronismos e antecipagdes, um tempo de luta entre passado e futuro, pela conquista de espaco no pre- sente. Nesta temporalidade o tempo é, assim, evanescente. Cada um destes tempos ocorre nos dois tipos de cédigos barrocos, se bem que em diferentes combinagdes. Cada um destes tempos encerra uma ambivaléncia especifica resul- tante do facto de aliar, numa sintese falhada, os elementos de um determinado dualismo. Tal dualismo pode vertificar-se entre duragao e explosao, entre a irregularidade da emergén- cia ou a irregularidade do desaparecimento do ritmo, entre antecipagéo e anacronismo. O modo como esta ambivaléncia se apresenta pode variar de acordo com o ritmo — mais lento ou mais rapido — que da forma as mudangas ou as oscila- gdes. Os andamentos largo, lento, adagio, andante e mode- rato tendem a sor predominantes nos cédigos barrocos de sub-exposig&o e nos respectivos processos de canonizacao. Nos cédigos barrocos de sobre-exposigao e nos respectivos processos de dispersao criativa e de difusdo em rede predo- minam os andamentos allegro, presto e prestissimo. A equacao entre raizes © opcdes 6 de uma importancia crucial para se compreender os processos de identidade e de transformagao social na modernidade ocidental. No presente ensaio, apés ter analisado a equagdo, procurei identificar os factores que recentemente tém contribuido para a desestrutu- rar, Esta desestruturagéo é de tal modo acentuada que a equagéo pode estar mergulhada numa crise terminal. E sendo assim, encontramo-nos no alvorecer de uma era pos- -equago. Neste periado é possivel detectar dois processos paralelos. Por um lado, fendmenos sécio-culturais até agora considerados ligagées prospectivas opcionais encontram-se t&o sub-expostos que se tornam raizes; por outro lado, fend- menos até agora considerados ligagdes retrospectivas funda- doras esto tao sobre-expostos que se tormam opcionais. Tanto os processos de sub-exposigao como os de sobre- -exposic4o implicam a mistura, a interpenetracao, a fertiliza- ¢40 muitua e o minar reciproco de referéncias até aqui consi- deradas como sendo inequivocamente raizes ou inequivoca- mente opgGes. E esta mestigagem de referéncias que se tra- duz naquilo que tenho vindo a designar por cédigos barrocos: formagées discursivas e formulagdes de identidade e de mudanga sécio-cultural em que 0 dualismo raizes/opgdes se encontra presente apenas como ruina ou meméria. Estes cédigos aspiram a sintese sem a conseguirem alcangar: sao ambivalentes, complexos, relativamente caéticos e passiveis de contestagao. E, tal como a velha equagao entre raizes e opgdes, vao evoluindo em varios tipos de constelagdes sécio- -temporais. Devido ao seu caracter misto, @ sua adaptabilidade voraz e & inregularidade das suas duragGes e ritmos, os cédigos barrocos dao-se bem com a globalizagao, seja ela hegem6- nica ou contra-hegeménica. Eles proporcionam uma base comum de ambiguidade, uma base comum de incoeréncia circunscrita ¢ de contradigao intrinseca, onde os interesses em contlito © os grupos sociais podem usar em proveito pré- prio o relativo esbatimento da distingao entre transgressao e conformidade, entre a alteragao das regras e a sua aplicagao pratica, A direcgao da globalizagao é ditada pela forga rela- tiva dos diferentes interesses em presenga. Os resultados, no entanto, sao indeterminaveis e sempre reversiveis. / Tradugo de Angela Maria Moreira Tempo, Cédigos Barrocos e Canonizagao 19 20 Boaventura de Sousa Santos. Referéncias Bibliograficas Beck, Ulrich Bloom, Harold De Felice, Renzo Furet, Frangois Guillory, John Gurvitch, Georges Horkheimer, Max Kamut, Peggy Kimball, Lee Pardo, Arvid Pureza, José Manuel Rousseau, Jean Jacques Santos, Boaventura de Sousa Santos, Boaventura de Sousa Vico, Giambattista Wood, Ellen Meiksins Yngvesson, Barbara 1995 1994 1977 1978 1985 1969 1972 1997 1983 1968 1993 1989 1995 1996 1961 1996 1996 «The Reinvention of Politics: Towards @ Theory of Refloxive Modernization», in U. Beck, A. Giddens e S. Lash, Reflexive Modernization. Cambridge: Polity Press, 1-55. The Westem Canon. New York: Harcourt. Interpretations of Fascism. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, Penser la Révolution frangaise. Patis: Gallimard. «Canon», in Frank Lentricchia e Thomas McLaughlin (o1gs.), Critical Terms for Literary Study. Chicago: University of Chicago Press, 233-49. La vocation actuelle de la sociologie, vol. Il. Paris: PUF. Critical Theory: Selected Essays. 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