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PLURALISMO CULTURAL E IDENTIDADE NACIONAL Manuel Diégues Junior (Departamento de Assuntos Culturais, Ministérié de Educaco’ e' Cultura, Rio de‘ Janeiro) ‘Duas caracteristicas fundamentais marcam a formagdo brasileira: de um lado, © encontro de trés grupos étnicos no momenta da colonizacio, Projetando-se pelo tempo afora o relacionamento advindo deste encontro; de outro lado, o processo de ecupacio humana da terra, que atendeu a vocacdo da mesma, utilizando-a conforme o que ela oferecia. Se 6 primeiro aspecto contribuiu para a formacdo de uma populagiio regionalmente ‘mes- tigada, com-maior ou menor preponderdncia de determinado grupo ‘aqui, ali ou acolé, o segundo levou 4 caracterizacao de regides em que peduliari- dades culturais identificam cada'uma delas. . O sentido nacional da vida brasileira:resultou dessa diversidade re- gional que ainda hoje caracteriza o Brasil como. uma nagdo cuja unidade decorre dessa diversidade. Esta regionalizacio cultural criou formas plu- rais na unidade brasileira. Os trés grupos que aqui se enconiraram — 0 portugués, o indigena, o negro africano — eram internamente diversificados, nenhum deles forman- do uma unidade fisica ou cultural; e por isso mesmo sua influéncia variou, na propria variedade com que os: grupos humanos ocuparam as diferentes regides do Brasil. Se os indigenas ndo eram uma unidade, nem fisica, nem culturalmente, também néio o cram os negros trazidos da Africa; tanto aque- les como estes apresentavam diferentes est4gios culturais, e também diferen- gas decorrentes da'tribo ou nacéo a que pertenciam. O que sucedia’ tam- bém com o préprio portugués, variado, diversificado, em suas caracteristi- cas fisicas e culturais, face as diferentes influéncias pré-histéricas.e histé- ricas que contribufram; em varias épocas, para sua formagio. Neste processo de relacionamento, iniciado no século XVI, com o sis- tema de colonizacao implantado por Portugal, foram diferentes’ as posigdes impostas para indjgenas e africanos. Se os primeiros conservaram suas formas tribais de vida, ora afastando-se, ora mantendo contacto embora preservando sua sociedade, o que assegurou a permanéncia da unidade cul- tural das respectivas tribos, no caso do africano isso nae sucedeu..;Trazido como escravo, destribalizado, nfo’ raro-misturadas as nagdes de que cram BIBLIOTECA FACULDADE DE SAUDE PUDLIOA UNVERSIDADE DE SAD PAULD 4 Manuel Diégues Jinior originais, os africanos espalharam-se, ndo puderam conservar sua coesdo, sem prejuizo do que influenciaram ¢ transmitiram & formac&o brasileira. Nao raro conservando também suas formas religiosas, se bem que, em muitos casos, j4 influenciadas pelos valores cristdos, 9 que cra uma forma de sua prética ser permitida pelos senhores. Se bem que o processo de ocupacio humana tenha resultado na uni- dade territorial, foi contudo diferenciada quanto aos grupos ¢ néo menos quanto as condigGes com que, cm cada regido, a terra foi ocupada. Cada regio se formou pelo atendimento As condigdes que a terra oferecia, na di- versidade da atividade agrdria, extrativista, pastoril ou mineradora que se implantou como elemento de fixagdo do homem. A terra ocupada, foi possivel entio surgirem condigdes culturais proprias que se traduziam nao apenas no comportamento humano, se nfo também:na criagio de valores expressivos da influéncia de cada grupo ali presente. Mais tarde, no século XIX, a paisagem humana caracterizada até en- to pela presenga de lusos, indigenas e negros africanos, ¢ seus descenden- tes mestigos, foi ampliada com a introdugao de imigrantes europeus — a principio, alemics ¢ italianos, e posteriormente poloneses, sirios, libaneses ~—e mais tarde, j4 em nosso século, de imigrantes asidticos — japoneses - Esta contribuigao vai alterar a fisionomia fisica e cultural,do Brasil, de modo particular em certos nicleos urbanos —— Rio, Sio Paulo, Curitiba, por exemplo — ¢ em Areas rurais do sul, onde formaram nicleos de coloniza- go, constituindo uma regiao caracteristica que abrange areas do Rio Gran- de do Sul, Santa Catarina’e Paranda’ Esta presenga mais caracterizou, se nao mesmo mais acentuadamente definiu, o pluralismo cultural do Brasil na diversidade de aspectos que en- contrames nas diferentes regides culturalmente marcadas pelas caracteris- ticas. peculiares que apresentam. Sern que se tenha perdido o sentido de unidade nacional, ou melhor o que poderemos definir como identidade: na- cional . Aspecto que acentua ainda mais este pluralismo é a presenga atual de populacces indigenas distribuidas, sobretudo, em reas do territério na regidio do extremo norte e na centro-oeste. Embora seja diffeil compor um quadro das complexas relagdes de con- tacto entre a sociedade brasileira ¢ as inimeras sociedades indigenas exis- tentes, é.possivel estabelecer uma tipologia que cxpresse, as diferentes si tuagées de convivio que foram historicamente desenvolvidas entre ambas. Ao lado de populagées indigenas que nao estabeleceram, até o mo- mento; contacto com a sociedade nacional, podendo deste modo preservar sua cultura ¢ modo de vida tradicional, observam-s¢ no Brasil, comunidades que, embora vivam hd longo terhpo em estreita relagao com populagées re- gionais; sendo a elas incorporadas como miio de obra em atividades extrati- Pluralismo cultural ¢ identidade nacional 5 vistas, agricolas ou de pastoreio, nao podem ser consideradas assimiladas. Ainda que tenham perdido, em grande parte, os elementos que definiam sua organizacdo social, em termos de um modelo tribal, e freqlientemente até a propria lingua — instrumento que permite a representagdo do universo cultural em que o homem se encontra — continuam a considerar-se indige- nas € sdo consideradas como tais pela populagao envolvente. Este é 0 caso concreto das populacées indigenas da regiio nordeste, cujo litoral era ocupado, no século XVI, por grupos do tronco lingitistico Tupi ¢, no interior, por grupos de tronco lingiiistico Jé . Ja no inicio do século XVIII a maior parte destas populacgées havia desaparecido, vitimada pelas epidemias e pela resisténcia & escravizagiio imposta pelos colonizadores curopeus. Extinguiram-se antes que as mar- cas de sua cultura e vida social pudessem ser registradas. Ainda assim, esta mesma tegido abriga, no presente, cerca de 13.000 remanescentes de 12 tribos, que se encontram profundamente mestigadas: os Xucurdé, Fulnié ¢ Pankararu, em territério de Pernambuco; os Potiguara, no litoral da Parai- ba; nas Alagoas se situam os Xucurti-Kariri, préximo a cidade de Palmeira dos Indios, ¢, nas margens do Rio Sao Francisco, os Xocé e Kariri, No norte da Bahia tocalizam-se os Kariri, os Kaimbé e os Tuxé, Estas comunidades, dentre as sociedades indigenas brasileiras, podem ser consideradas as de maior grau de aculturagao, juntamente com os Te- Tena cm territério do Estado de Mato Grosso, e parecem exemplificar o que tende a ser uma caracteristica do processo de integrac¢do A sociedade bra- sileira; € que, embora adaptados A situagao de convivio, apresentam uma forte resisténcia cultural, ocupando, enquanto grupo étnico distinto, posi- ¢do de part-society tendo em vista o sistema nacional. Cabe assinalar, alids, que se constitui hoje em dia um dos problemas mais sérios no pais a preservacio desses grupos, néo raro porque suas Areas de ocupagdo so invadidas por aventureiros ou empresas em sua expansio Por terras aptas A criacdo ow A apricultura. A propria. expansio do povoa- mento nacional contribui para a ameaga que pesa sobre estas populagdes, 0 Estatuto do Indio (Lei n° 6 001, de 19 de dezembro de 1973) és- tabeleceu as normas de contacto do governo e.da sociedade brasileira com estas populacées; por vezes surgem problemas relacionados com a emanci- ‘pagiio desses grupos ou sua integracio A sociedade’ nacional. Contudo, possuindo valores culturais préprios — ¢, inclusive, como mais expressivo, uma lingua propria — essas poputagGes representam um dos aspectos de nosso pluralismo cultural. Nao apenas a lingua, mas os valores que preser- vam nas manifestagGes artisticas, como a plumaria, coreografia, 0 canto, nos padres arquiteténicos ¢ de relacionamento social expressam os elemen- tos que caracterizam especificamente estes grupos. . Se a ocupag&o da terra se faz respeitadas as condigdes oferecidas por cada meio, n@o menos expressivo foi o movimento de grupos humanos in- 6 Manvel Diégues Sénior terligando esses diferentes meios. Esse relacionamento se estabelece desde os comecos do” povoamento. Sertanistas pernambucanos ¢ baianos chegam ao vale:do Sao Francisco, onde vao alcancar 0 planalto. mineiro, dai ¢x- «pandindo-se para os sertdes goianos e mato-grossens¢s. Os sertdes maranhenses ¢ piauienses sfo‘cruzados pelos vaqueiros per- nambucanos, Do planalto paulistano os bandeirantes paulistas ¢ fluminen- ses descem para o sul, ¢ nao encontrando’as desejadas minas de ouro de- dicam-se’a criagdo de gado nos campos de Guarapuava. Mais tarde esses mesmos bandeirantes; em direcdo-para o nordeste, devassam o interior e chegam até as vizinhangas do mar € do Sio Francisco no combate aos quilombos dos Palmares. Essa movimentacao niio cessa; e nos fins do século XIX os seringueiros amazonenses espraiam-se’ pela-regiZo e-incorporam 0 Acre ao patriménio territorial do Brasil. E ji em nosso século migrantes espalham-se pela Amazénia para o cultivo da seringueira e nordestinos descem para 0 ‘sul baiano onde se dedicam a cultura do cacau.- Nos anos 30 s4o nordestinos que se encaminham para Sao Paulo, dedicando-se a cultura do café, € nao satisfeitos continuam sua caminhada para 0 oeste ‘paranzense Ba mesma época em que brasileiros descendentes de antigos imigrantes alemaes ¢ italianos abandonam o planalto sul-riograndense e ocupam 0 este cata- Tinense. Toda essa_movimentacio, séculos seguidos, desde os primérdios da colonizacio, e que se aviva ainda em nossos dias, iria contribuir para a preservacao de'um espirito comum, de um sentimento‘nacional, que permi- te identificar 0 mesmo brasileiro em qualquer dessas regides sem prejuizo de sua vivéncia no respeito das caracteristicas regionais. Se levarmos em conta a’idéia de que’o pluralismo cultural se apresen- ta como uma especial forma de diferenciag4o baseada sobre instituigGes di- ‘ferentes, — tal como assinalam varios autores — verificamos que, no caso do Brasil, em“particular,-ele surgé do sentido de criatividade com que se desenvolveu o processo de relacGes entre’ grupos ¢, conseqientemente, 0 que’ dai resultou de modo mais especifico. O pluralismo cultural no Brasil decorre, em ‘especial, dessa diferencia- co que surgiu como resultado da presencga maior ou menor dos grupos humanos em cada regido, Se instituicdes podem ser, igualmente considera- das, sua feicio, todavia, tomou aspecto préprio pela'influéncia aqui do ele- ‘mento indigena, ali do elemento negro africano, acol4 do portugués. O que distingue, por exemplo, a regido amaz6nica, com a presenca indigena ainda mais viva, da regiio Nordeste Agrario do litoral, onde ‘a participagao do elemento negro se tornou marcante. Foi esta também a influi cia maior verificada na regifio de Mincracéo, mas ai as condigdes de ocupac3o hu- mana, tendo em vista a atividade exercida,=criaram aspectos culturais di- ferentes do que se verificou no Nordeste Agririo. Pluralismo enltral e identidade nacional 7 J4 no extremo sul, a presenga portuguesa, nao apenas dos metropoli- tanos, sendo também, sobretudo, no século XVIII, de ilhéus agorianos, mar- cou mais nitidamente sua paisagem; entretanto, esta‘ sofreu alteragdo mais profunda, em determinada regio, com a imigrag’io de europeus — alemaes e italianos, a partir do século XIX — num processo de colonizagio que caracterizou a regido do planalto sul-riograndense e marcou também: partes de Santa Catarina e do Parané, ‘constituindo uma tipica regido cultural: a que chamamos, em outra oportunidade, de Regi’o de Colonizacao' Estran- geira. E certo que por todo o territério a presenga husitana se fez sentir, con- tudo, com aquela admirdvel capacidade de adaptacdo ao meio e de relacio- namento com outros grupos; daf o contacto com indfgenas ou com negros africanos, intercruzando valores, fazendo predominantes aqueles que mais adequadamente se ajustavam ao meio. Quer dizer, a preocupagio maior para que o processo de ocupacéo humana se adequasse as condicées do meio e aos valores culturais mais convenientes & fixacio dos grupos huma- nos. Se portugueses colonizadores assimilam valores ‘culturais indigenas, onde cles sio mais adequados, também :assimilam valores africanos, onde melhor correspondam a sua integragio. Ha um movimento recfproco .de assimilac&o, surgindo dai n&o apenas a coexisténcia pacifica, sendo ainda uny processo de criatividade cultural. Dele € que resultaram, em especial, as caracteristicas mais particulares que podemos encontrar em cada regio. A criatividade cultural como fonte do pluralismo, tornando possivel o equi- Iibrio na ocupacao do meio ¢,'ac mesmo tempo, o interrelacionamento en- tre grupos. Sao tais'relagdes de equilibrio que tornam adequado esse re- lacionamento, que se reflete, portanto, nos resultados da criatividade cul- tural. -B.de considerar também, no caso do Brasil, um aspecto particular: © que se refere ao meio urbano, De fato, em areas urbanas o processo teve a influéncia, sobretudo a partir do século XIX, de valores europeus nao portugueses, mas com forca cultural de tal expressividade que se im- puseram aos h4bitos, aos usos, aos costumes regionais. O caso, por exem- plo, dos franceses, no Rio de Janeiro ¢ em’Sao Paulo, em particular; ode alemaes, como marceneiros, no Recife; ode espanhéis, em Belém e em Salvador da Bahia. Nem sempre eram apenas imigrantes; em alguns casos foi uma influén- cia cultural mais forte: a do prestigio de atividades profissionais do res- pectivo grupo. E isso manifestando-se através de idéias,-de pensamentos, do livro, da revista, da culindria, de habitos sociais, de arquitetura, de fes- tas religiosas. E até mesmo, de certo modo, na ecologia das cidades:. 0 grupo alienigena implantando-se em determinado espago fisico, formando 8 Manuel Diégues Jiinior como que ruas especializadas. O caso, por exemplo, de italianos em Sio Paulo (bairro do:Bras); também o de sirios’¢ libaneses ou, em geral, Ara- bes, no Rio de Janeiro (rua da Alfandega), no Recife (rua do Rangel), ou em Maccié (antiga rua 1° de Margo) - © que consideramos pluralismo cultural no caso do Brasil reflete jus- tamente esta situagdo: a da expansio do povoamento criando condig6es yegionais com peculiaridades que caracterizam cada regido em face de outras. & claro que isto decorreu, em grande parte, da presenga de diferen- tes grupos humanos predominantes, em seus valores culturais, em cada re- gidio; mas represcatou também uma adequada integracio ao respectivo ambiente, do que resultou a criagao. de formas proprias de.vivéncia. For- mas regionalizadas,: com peculiaridades que caracterizam cada uma delas em face das demais. Mesmo_na expressao lingiiistica, um universal cultural, o portugués do Brasil tomou formas préprias, quer pela influéncia que as linguas indi- genas ou as afticanas introduziram, quer pelas formas regionals que -s¢ traduziram nfo apenas em sotaques tipicos — 0 nortista, © sulista, 0 caipira, por exemplo;‘também na influéncia maior ou menor, conforme a presenca dos respectivos grupos, do indigena ou do negro africano na lin- guagem, ou seja o significado das palavras,. nas formas de expressdo, nas maneiras de dizer. © portugués do Brasil, sobretudo o falado, se enriqueceu ao contacto com outras linguas — as africanas-ou: as indigenas — ¢ mesmo também com as linguas trazidas pelos imigrantes no século XIX. A esse enriqueci- mento o portugués do Brasil correspondeu, incorporando tais palavras, ¢ nio raro as abrasileirando como foi o caso do Tinguajar inglés do football; e nes- ta lingua falada e nfo raro também escrita, onde muitas vezes as palavres taudaram de significado, fez as adaptagdes indispensdveis, mas preservando SM principalmente presetvando — sua estrutura original e ainda hoje persis- tente. H também o caso das manifestagdes de dangas e cantos que surgem em cada regio; representam estas manifestacdes uma expressio da influ- éncia exercida pelo elemento humano que ocupou a regido, fazendo prepon- derar seus valores culturais. A presenga indigena no extremo norte, na regiao Amazénica, vai produzir o surto do carimbé, como danga e canto caracteristico dessa regiao, ¢ que somente se expande as demais quando os modernos meios de comunicacao participam dessa irradiagao. F também o que sucede com o frevo do Nordeste, de origem pernam- bucana, irradiada aos Estados vizinhos;'ov do coco, danga e canto igual- mente nordestinos, surgido inicialmente nas: Alagoas; originaram-se ambos de influéncias africanas a que se aliaram, posteriormente, outros elementos Pluralismo cultural ¢ identidade nacional 9 culturais. Contudo cles cxpressam uma caracteristica da regido, uma forma cultural que somente vai surgir em outras regides pela influéncia dos mo- dernos meios de comunicaciio. O samba no Rio de Janeiro como o jongo em Sad Paulo representam, de igual modo, expressdes culturais dessas regiées, um ¢ outro primitiva- mente originados do escravo africano, embora, especialmente no caso do samba; com a superposicéo posterior de outros elementos. De qualquer forma, porém, expressam criagées dessa”regido, da mesma forma que em outras regides igualmente se encontram manifestacdes tipicamente regionais. O que succdcu também na regifio de presenca do imigrante, a partir do século XIX, com a formaciio de colénias de italianos’ou de alemies, princi palmente, no Rio de Grande do Sul, no Parané, em Santa Catarina; surgi- fam ai manifestagdes culturais originadas desses grupos’ como o uso da sanfona, as sociedades recreativas, o tipo de arquitetura, a festa do kerb, tudo enfim que se foi, a0 poucos, incorporando A paisagem regional. Se se traduzem hoje como express’o de criatividade cultural, participam, no quadro brasileiro, como um testemunho desse pluralismo . F evidente que essa diferenciagéo regional, nas _manifestagées cultu- rais, encontrou, todavia, um elemento comum que, aglutinando as popula- cGes, permitiu estabelecer-se uma unidade de sentimento, ou seja, o espiri- to nacional. E que, no Brasil, a idéia nacional, ou seja, 0 sentido de Nagio, se antecipou a idéia de Estado; o Brasil foi Nacio antes de ser Estado, ¢ isto criou a presenga de uma identidade que se tornou nacional. Daf podermos encontrar as mesmas maneiras de pensar de uma regiio em relac&o a outras, ou melhor, como o nordestino vé o paulista; como 0 paulista vé 0 gaticho, como o gaiicho vé.o mineiro;-como o minciro vé o nordista, ¢ assim por diante. Vai muito, neste modo de ver,-a propria psi- cologia tanto do que é observado como do que observa. O observado ma- nifesta scu espirito ¢ suas tendéncias; o observador revela seu sentimento pessoal. Muito das manifestagdes de sentimento, ou de.-pensamento do brasileiro haveria de deduzir-se dessas maneiras de'ver ¢ de pensar. Nao é de estranhar, por isso mesmo, ‘o brasileiro apresentar-se como tipo caracterizado por um conjunto de modos, que Ihe sao peculiares, de andar, de falar, de sorrir; essa singularidade se diversifica em aspectos par- ticulares 4 sua regido, dando ao nacional aquelas' especificidades que o dis- tinguem' regionalmente, sem prejuizo do que nele ha de tipo éssencialmente nacional. Nao raro se distingue, conforme a regiio de origem, em certos aspectos de comportamento, na maneira de falar, em atividades que so ti- picamente locais, ao expressar suas crengas ou idéias n@o raro marcadas 10 Manuel Diégues Iuinior~ pela influéncia' mais forte do ambiente. Daf aquela observagao que, embo- Ta expresse o sentimento a respeito de alguns brasileiros regionais, .é, por outro Jado, definidora das maneiras de pensar ou de agir de cada um: “La- tim de minciro, Riqueza de paulista, Valentia de gaucho, Eloquéncia de baiano, a metade ainda é 0 dobro”. & curioso assinalar que este sentimento que poademos chamar de iden- tidade nacional, faz com que mesmo. as geragdes surgidas das primeiras correntes imigrantistas européias ou asidticas participem desse sentimento: Sentem-se todos brasileiros, ou um mesmo brasileiro. Reportagem, de um matutino carioca, h4 alguns anos passados, assinalava a presenca da fita yerde-c-amarela adornando cabelos de jovens descendentes de indigenas ta- puias ‘na Amazonia e de japoneses no sul — duas regides afastadas — co- mo sentimento que as irmanava no amor ao Brasil, pois se proclamavam “somos brasileiras”, tal como declararam aos jornalistas.. Estas diferentes manifestagdes que encontramos, nas varias regides, ‘como express6es de sua criatividade, vém sendo afetadas pela influéncia dos modernos meios de comunicagéo. O r4dio, de modo particular o transistor, ¢ a televisio contribuem hoje para uma unificacdo, cujos efeitos nem sem- pre se podem considerar validos para as respectivas populaées. A lin- guage regional procura imitar o que é ouvido no rédio; as atitudes, as maneiras de falar, os gestos sio imitados pelo que a televisao reproduz. Essa tentativa dé unificagéo, que transcende de uma pura unidade, quebra sem diivida o que h4 de auténtico e'de original na criatividade regional. Nem o surgimento da idéia dé Estado como uma forma ‘specifica de governo ou organiza¢do politica, deitou por terra o sentimento de identi- dade nacional, traducao do pluralismo brasileiro. Em uma sotiedadé vasta como a brasileira, onde se encontram misturadas diversas tendéncias ideo- I6gicas, filosdficas e religiosas, o pluralismo é 0 esforco de organizacao ge- ral da'vida em sociédade sob bases comuns, respeitando as diferentes ten- déncias. Fundamentalmente, o pluralism brasileiro implica um certo reconhe- cimento geral de direitos e deveres do homem em sociedade, de sua digni- dade, de sua missdo, de suas responsabilidades. Assim, em termos politicos, ele se traduz no exercicio da democracia, na coexisténcia de diferentes va- Jores culturais, implicando em uma certa neutralidade por parte do poder supremo, ele mesmo reconhecedor: das forgas ¢ instituigdes diferentes que colaboram, cada uma A sua maneira, para a promocio do bem comum, para a unidade da nagio. Assim, o Estado como que reforca o pluralismo. Desse sentimento nacional, que se traduz em formas caracteristicas de expressao regional, € que se construiu a unidade brasileira bascada expres Pluralismo cultural ¢ identidade nacional AL sivamente nas caracteristicas regionais de cultura que traduzem o nosso plu- ralismo. Um pluralismo cultural unido pela identidade nacional. Um plura- lismo nao apenas cultural, mas também humano, traduzido este nos tipos brasileiros originados da mestigagem sob a influéncia de diferentes ambien- tes; um pluralismo, portanto, que constitui, nos tempos atuais, nossa ca- racteristica mais viva e expressiva, Um pluralismo que se soma na identi- dade nacional que faz do brasileiro, apesar das peculiaridades regionais, um 86 brasileiro. © avtor agradece as Professoras Maria Madalena Diégues Quintella e Claudia Menezes Pais de Oliveira, suas antigas alunas, pela leitura do original ¢ pelas sugestées apresentadas que muito melhoraram este artigo.

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