Você está na página 1de 9
242| 7% U wivave ~Omundo OSC e.y Pot Thitt) PU Cre] COT cree ee ard od Corte) A existéncia ética A filosofia moral CMTE batt iit t) Ce) oe tee est tery Cee ee ee Cre) A vida politica eT) Ce Pa ere CEM Ce dg (ltd tee ofl PT €apiruto 1 Acultura Natureza humana? E muito comum ouvirmos e dizermos frases do tipo “Chorar é préprio da natureza humana” e “Homem nao hora”. Ou entao “E da natureza humana ter medo do des- conhecido” e “Ela é corajosa, ndotem medodenada”. Tam- bém & comum a frase “As mutheres sao naturalmente frs- gels e sensiveis, porque nasceram para a maternidade”, bem comoesta outra, “Fulana é uma desnaturada, pois nao temo menor amor aos filhos”. da pratica A experiéncia do sagrado e a institui¢ao da religiao OM Mutt Rem hice mane || As filosofias politicas (1) As filosofias politicas (2) Pec Rea CM Ce Lite) as do século XX A questao democratica Com freqliéncia ouvimos dizer: “Os homens sao fortes e racionais, feitos para o comando e para a vida publica’, donde, como conseqliéncia, esta outra frase: “Fulana nem parece mulher. Veja como se vestel Vejaoempregoquear- ranjoul”. Nao & raro escutarmos que os negros so indo: lentes por natureza, os pobres so naturalmente iolentos, 05 judeus séo naturalmente avarentos, os arabes sao na- turalmente comerciantes espertos, os franceses sao natu- ralmente interessados em Sexo e as ingleses sao, por na tureza, fleumaticos. Frases como essas, e muitas outras, pressupdem, por um lado, que existe uma natureza humana, a mesma em todos os tempos e lugares e, por outro, que existe uma di ferenca de natureza entre homens e mulheres, pobres eri- cos, negros, Indios, judeus, arabes, franceses ou ingleses. Haveria, assim, uma natureza humana universal, a mesma cultura para todos, e uma natureza humana diferenciada por es- pécies, & maneira da diferenca entre varias espécies de plantas au de animais: uma natureza feminina, uma mas: culina, uma brasileira, uma francesa, uma japonesa, uma negra, uma branca, uma judaica, uma ariana, etc. Emoutras palavras, anatureza teria feito o género hu- ‘mono universal e as espécies humanas particulares, de mo- do que certos sentimentos, comportamentos, idéias e va- lores seriam os mesmos para todo 0 género humano (Geriam naturais para todos os humanes) enquanto outros variariam para cada espécie (ou sexo, ou raca, ou tipo, ou grupo, ou classe social). Dizer que alguma coisa € natural ‘upor natureza significa dizer que essa coisa existeneces- sariamente (ou seja, nao pode deixar de existir nem pode ser diferente do que 6) e universalmente (em todos os tem- pose lugares) porque ela é efeito de uma causa necessa- ria universal. Essa causa é a natureza, que é sempre a ‘mesma em toda parte. Significa dizer, portanto, que talcoi- '2,por ser natural, ndo depende da aa inten;ao dos se- res humanose sim das operagdes necessarias euniversais, realizadas pela natureza. Assim como é da natureza dos corpos serem governados por uma lei natural, a lei da gra- vitacao universal, como é da natureza da agua ser compos- par dois étomos de hidrogénio e um de oxigénio, ou co mo é da natureza da abelha produzir mel e da roseira Pioduzir rosas, também seria por natureza queos homens sentem, pensam e agem: e por isso haveria uma natureza ‘humana. Que aconteceriacomas frases que mencionamos -acima se mostrdssemos que, havendo uma natureza hu- ‘ana, algumas delas sao contraditorias e outras néo cor- fespondem aos fatos da realidade? Assim, por exempla, dizer que “é natural chorarna tris ‘teza” entra em contradi¢ao com a idéia de que “homem nao chora”, pois, se isso fosse verdade, o homem teria de +erconsiderado um ser que no possui natureza humana ‘equeescapa das eis da natureza, que choraré conside- Fado natural. O mesmo se passa comas frases sobreo me- doeacoragem: nelasé dito que omedo é natural, mas que tuna certa pessoa é admiravel porque nao tem medo. Nes- tecaso, estamos diante de uma contradi¢ao. De fato, fala- ‘sede uma coisa natural — 0 medo — ese diz que ele po- de deixar de existir ou de acontecer — uma pessoa ‘admirével ndotemmedo — masissoé impossivel, pois tu- idoo que é natural é necessério, ou seja, acontece sempre necessariamente, uma vez que o natural € 0 que nao de- pende de uma intervengao ou de uma decisdo dos seres. ‘humanos. Além de ser contraditério dizer que omedoé na- tural e que hé pessoas que nao tém medo, ainda parece- moster admiracao por quem, misteriosamente, escapa da Ieida natureza, que consegue nao ter ou nao sentir algo falural, isto &, medo. Em certas sociedades tribais, osistemadealiangasen treastribos, que determina asrelacdes de parentesco que organizam e conservam a comunidade, exige que, ao nas- cer, crianca seja levadaa irma do pai, que deverarespon- sabilizarse pela vida e pela educagao da crianga. Em ou- tras, o sistema de parentesco exige que a crianca seja entregue a irma da mae. Nos dois casos, a relagao princi- pal da crianca é estabelecida coma tia e nao coma mae biolégica. Seassim é, como ficaa afirmagao de que as mu- Iheresamam naturalmente os seus filhos equeédesnatu- rada a mulher que nao demonstra esse amor ficando com os filhos e cuidando deles? Em certas sociedades, considera-sequea mulher éim- pura para lidar com a terra e com os alimentos. Por esse ‘motivo, ocultive daterra,o preparo dos alimentos eoscui- dados com a casa so da responsabilidade dos homens, ‘cabendo as mulheres a guerra eo comando da comunida- de. Se assim é, como fica a frase que afirma que ohomem forte, feito para o que exige forga e coragem, para 0 co- mando e a guerra, enquanto a mulher foi feita para a ma- ternidade, a casa, 0 trabalho doméstico, as atividades de ‘um ser fragile sensivel? Ou seja, se os homens eas mulhe- res possuem certas caracteristicas naturais, estas devem ser obrigatoriamente necessarias e universais, e as mes- 'mas em todos os tempos e lugares (pois anatureza opera ‘em toda parte e em todo tempo sempre da mesma manei- 1a), de sorte que serd impossivel que uma sociedade atri- bua aos homens tarefas que uma outra sociedade consi dere naturalmente femininas, e vice-versa, que atribua as -mutheres tarefas que uma outra sociedade considere na- turalmente masculinas. Sabe-se que os colonizadores europeus brancos, a0 instituirem a escravidao na América, escolheram os africa- nos como escravos preferenciais por considerarem que os negros possuiam extraordinaria forca fisica, grande capa- cidade de trabalho e muita inteligéncia para realizar tare- fas com objetos técnicos, como o engenho de agiicar. Se assim 6, se a escravidao dos afticanos foi institu da por causa de sua grande capacidade e inteligéncia pa- rao trabalho da agricultura e do engenho de acticar, como fica a afirmagao de que a natureza fez os negros indolen- tes, preguicosos e malandros? ra, os historiadares brasileiros mostram que a abo- licdo da escravatura (pela qual muitos negros lutaram e morreram) s6 foi realizada pelo Estado brasileiro quando elite econdmicaconsideroumais ucrativo o uso damao- de-obra imigrante para um certo tipo de agricultura (0 ca- fé) e para a indistria nascente. Foi, portanto, por raz6es econémicas que a classe dominante brasileira do século XIX admitiu a abolicdo da escravatura, 0 que acarretou a substituico dos escravos africanos pelos imigrantes eu- 244 ropeus. Aaboli¢do fezcom que o mercado de trabalho fos- ‘se ocupade pelos trabalhadores brancos imigrantes e que a maioria dos escravos libertados ficasse sem emprego, sem habitagao, sem alimentagaio esem nenhum direito so- cial, econdrmicoe politico. Em outras palavras, os ex-escra- ‘vos foram impedidos de trabalhar como trabalhadores ti ‘vtes e foram mantidos como eram em estado de cativeiro, isto é, sem direitos. Ndo houve preguica natural nem indo- Jéncia naturale sim condigées socials e econémicas que causaram desemprego, e falta de garantias paraa sobrevi véncia e impedimento de condicées de vida dignas (mora- dia, vestuario, alimentacao, instrucao escolar, etc.). Poderiamas examinar muito do que dizemos ou ouvi- ‘mos em nosso cotidiano notando o quanto naturalizamos ‘9s seres humanos, naturalizando seus comportamentos, idéias, valores, formas de viver e de agir. Veriamos entao ‘como, em cada caso, os fatos desmentem tal naturaliza- ‘so. Veriamos como os seres humanos variam em conse- léncia das condicdes sociais, econdmicas, politicas, his- ‘téricas em que viver. Veriamos que somos seres cujaacao ‘determina nosso modo de ser, agir e pensar e que a idéia de um género humano natural e de espécies humanas na- turais nao possui fundamento na realidade. Veriamos que a idéia de natureza humana como algo universal, intempo- rale existente em sie por si mesma nao se sustenta. Por qué? Porque os seres humanos sao culturais ou hist6ricos. UNIcAMP BLIOTECA-FEF |Culto, inculto: cultura “Pedro muito culto, conhece varias linguas, entende dearte ede literatura.” “imagine! E claro que o Lufs ndo pode ocupar o cargo que pleiteia. Nao tem cultura nenhuma.€semi-analfabeto!” “Nao creio que a cultura francesa ou alema sejam su: eriores a brasileira, Voce acha que ha alguma coisa supe- rior nossa masica popular?” “Ouviuma conferéncia que criticava a cultura de mas- sa, mas me pareceu que a conferencista defendia a cultu- rade elite. Porisso, nao concordet inteiramente com ela.” “Olivro de Silva sobre a cultura dos guaranis é bem in- teressante. Aprendi que o modo como entendem areligido eaguerra é muito diferente do nosso.” Essas frases e muitas outras que fazem parte do nos- sodia-a-dia indicam que empregamos a palavra cultura (ou ‘seus derivados, como culto, inculto) em sentidos muito di- ferentes e, por vezes, contraditorios. Naprimeirae na segunda frase que mencionamasaci- ima, cultura é identificada com a posse de certos conheci- mentos (linguas, arte, literatura, ser alfabetizado). Nelas, (© mundo da pritca fala-se em ter endo ter cultura, ser ou ndio serculto. Apos se de cultura é vista como algo positive, enquanto “ser in. culto” @ considerado algo negativo. A segunda frase deixa entrever que “ter cultura” habilita alguém a ocupar algum posto ou cargo, pois “nao ter cultura” significa nao estar preparado para uma certa posicao ou fun¢ao. Nessasduas primetras frases, a palavra cultura sugere também prest gio erespeito, como se “ter cultura” ou “ser culto” fosseo mesmo que “ser importante”, “ser superio Ora, quando passamosa terceira frase, aculturajéndo parece ser uma propriedade que oindividuo possatter,mas a qualidade de uma coletividade — franceses, alemaes, brasileiros. Também é interessante observar que a coleti vidade aparece como um adjetivo qualificativo para distin- guirtipos de cultura: a francesa, a alema, a brasileira. Nes- sa frase, a cultura surge como algo que existe em sie por simesma e que pode ser comparada (cultura superior, cul tura inferior). Além disso, na frase, cultura aparece representada por umaatividade artistica, a masica popular. Isso permite es tabelecer duas relacdes diferentes daterceira frase comas duas primeiras frases: 1. de fato, a terceira frase, como a primeira, identifica cub turae artes (entender de arte ¢ literatura, na primeira frase; a mdsica popular brasileira, na terceira); 2. no entanto, algo curioso acontece quando passamos das duas primeiras frases terceira, pois nas duas pr meiras “culto” e “inculto” surgiam como diferengas so ciais, Num pais como o nosso, dizer que alguém é incut to porque & semi-analfabeto deixa transparecer que cultura €algo que pertence a certas camadas ou classes sociais socialmente privilegiadas, enquanto a incultura esta do lado dos nao-privilegiados socialmente, portan- to, do lado do povo e do popular. Entretanto, a terceira frase afirma que a cultura brasileira nao é inferior a fran- cesa ou aalema por causa de nossa musica popular Nao estariamos diante de uma contradigaio? Como poderia haver cultura popular (amésica),seo popularé inculto? J4 a quarta frase (@ que se refere & confer€ncia sobre cultura de massa) introduz um novo significado para a pa- lavra cultura. Nela nao se trata mais de pessoas cultas ou incultas nem de uma coletividade que possui uma ativida- de cultural que possa ser comparada a de outras. Agora, estamos diante da idéia de que numa mesma coletividade ou numa mesma sociedade pode haver dois tipos de cule tura: a de massa e ade elite. Afrase nao nos dizo que é a cultura (seria posse deco- nhecimentos ou seria atividade artistica’). Entretanto, frase nos informa sobre uma oposico entre formas decul- tura, dependendo de sua origem ede sua destina¢ao, pois cultura de massa tanto pode significar “originada na mas cultura. 245) sa" como “destinada a massa”, e o mesmo pode ser dito a cultura de elite, ou seja, pode significar “originada na tite” ou “destinada elite”. Finalmente, a ditima frase que mencionamos como exemplo apresenta um sentido totalmente diverso dos an- teriores no que tocaa palavra cultura. Fala-se agora nacul- tura dos quaranis e esta aparece em duas manifestacoes: ‘guerra e a religido (que, portanto, nada tém aver coma posse de conhecimentos, com atividade artistica ou coma divisio social entre massa. elite). Nessa Gitima frase, acul- tua aparece nao S6 como algo préprio dos guaranis, mas também como alguma coisa que nao se limita ao campo dos conhecimentos edas artes, pais se refere arelacdodos guaranis com o sagrado (a religiao) ecom o conflito eamor- te(aguerra). Vernos, assim, que passar da natureza cultura quan- do falamos dos seres humanos nao resolve nossas dificul- ddades de compreensio desses seres, uma vezque, agora, precisamos perguntar o que queremos dizer quando afir mamos que os seres humanos so seres culturais, visto que a palavra cultura possui muitos sentidos, alguns deles contradit6rios entre si Natureza e cultura No pensamento ocidental, natureza possuivarios sen- tidos: princi ta os seres. Nesse sentido, fala-se em “deixar agi tureza” ou “seguira natureza” para significar que se tra- ta de uma forga espontanea, capaz de gerar e de cuidar, detodos os seres porela gerados. E esteosentidodapa- lavra grega physis coma qual, como vimos, se iniciaain- vestigacao filoséficas Nesséncia propria de um serou aquilo que um seréneces- sariamente em si mesmo. Nesse aspecto, a natureza de alguma coisa é 0 conjunto de qualidades, propriedades eatributos que definem propriamente, No casodosse- res vivos, é sua indole ou disposigao inata, espontanea; e, no caso dos seres humanos, essa disposicao inata é seutemperamento ou seu caréter. Aqui, natural ou inato opdem-se ao que é acidental (0 que pode ser ou deixar de ser) ea0 que é adquirido por costume ou pelarelacao como ambiente e comas circunsténcias de vida; ™organizacdo universal e necessaria dos seres segundo uma ordem regida porleisuniversais enecessérias. Nes- se sentido a natureza se caracteriza pelo ordenamento dos seres, pela regularidade dos fendmenos ou dos fa- tos, pela frequiéncia, constancia erepeticao de encadea- ‘entos fixos entre as coisas, isto é, de relacdes de cau salidade entre elas. Em outros termos, a natureza é a or- dem ea conexaio universal e necessaria entre as coisas, expressasemleis naturais. Trata-se danatureza talcomo estudada pelas ciéncias ditas naturais (fisica, quimica, biologia, astronomia, etc.) ‘tudo o que existe no Universo sema intervencao da von- tade eda agao humanas. Nesse sentido, natureza ou na- tural opde-se a artificial, artefato, artficio, tecnico e tec- rnolé gico. Natural étudo quanto se produzese desenvolve sem nenhuma interfer€ncia humana; ™ conjunto de tudo quanto existe e é percebido pelos hu- ‘manos como o meio ambiente no qual vivem. Anatureza, aqui, tanto significa 0 conjunto das condicées fisicas em que vivemos como as coisas que contemplamos com emogao (a paisagem, o mar, o céu, as estrelas, terremo- tos, eclipses, tufdes, erupcées vulcanicas, etc.). Anature- za€ o mundo visivel como meio ambiente e como aquilo que existe fora de nés e que provoca idéias e sentimentos: emnés; ™ para as ciéncias contemporaneas, a natureza nao é ape- nasa realidade externa, dada e observada, percebida di- retamente por nés, mas € um objeto de conhecimento elaborado pelas operacées cientificas para explicara rea- lidade externa. Quanto a cultura, dois sao seus significados iniciais: Vinda do verbo latino colere, que tem o sentido de “cul- tivar”, “criar”, “tomar conta” e “cuidar”, cultura signifi- cava, na Antiguidade romana, o cuidado dohomem com anatureza — donde agricultura. Tinha o sentido tam- bém de “cuidado dos homens com os deuses” — don- de a palavra culto para se referir aos ritos religiosos — e ode “cuidado coma almae corpo das criangas”,com sua educacao e formago — donde a palavra puericul- tura (em latim, puer significa “menino” e puera, “meni- na”). Nessa Giltima acep¢ao, cultura era o cultivo ou a educagdo do espirito das criancas para tornarem-se membros excelentes ou virtuosos da sociedade pelo aperfeigoamento e refinamento das qualidades naturais arater, indole, temperamento). Com esse sentido, cul- tura correspondia ao que os gregos chamavam de pai- déia, a formacaio ou educacao do corpo e do-espirito dos membros da sociedade (de paidéiavem anossa palavra pedagogia). Nessa primeira acepsaoa culturaeraoaprimoramen- todanatureza humana pela educacaoem:sentidoamplo, isto 6, como formagdo das criancas ndo s6 pela alfabeti- za¢dio mas também pela iniciagdo a vida da coletividade por meio do aprendizado da dancaeda gindstica (para educacao ou formacao do corpo, preparando-o para as a atividades da guerra), e de exercicios mentais, com 0 aprendizado de gramatica, poesia, orat6ria ou eloqiién- cia, historia, ciéncias e filosofia (para a educago ou for- mac do espirito, preparando-o para as atividades da politica). Apessoa cultaeraa pessoafisicamente bem pre- parada, moralmente virtuosa, poiticamente conscientee participante, intelectualmente desenvolvida pelo conhe- cimento das ciéncias, das artes e da filosofia, Podemos-observar que, nesse primeiro sentido, cul- tura e natureza no se opunham. Os humanos sao con: siderados seresnaturais, embora diferentes dos animais e das plantas porque séo dotados de linguagem e de pensamento, isto é, porque possuem espirito. Sua na- tureza, porém, nao pode ser deixada por conta prépria, porque tenderé a ser agressiva, destrutiva, ignorante, precisando por isso ser educada, formada, cultivada de acordo com osideais de sua sociedade, Aculturaé uma segunda natureza que aeducagaoe os costumes acres: centam a matureza de cada um, isto €, uma naturezaad- guirida, que methora, aperfeigoa e desenvolvea nature- 2a inata de cada um. A partir do século XVIII, cultura passa a significar os re- sultados e as consegiiéncias daquela formacao ou edu- cago dos seres humanos, resultados expressos em obras, feitos, acdes e instituigbes: as técnicas e os off = © mundo da price cios, as artes, a religido, as ciéncias, a filosofia, a vida moralea vida politica ou o Estado. Torna-se sindnimode civilizagao porque os pensadares julgavam que 0s re- sultados da formacao-educagao se manifestam com maior clareza e nitidez mas formas de organizacao davi da social ¢ politica ou na vida eivil, pois a palavra civil vem do latim cives, que quer dizer “cidadao”, de onde vem civitas, a cidade-Estado, donde civilizacdo, Nessa segunda acepeao tem inicioa separacaoe, pos- teriormente, a oposicao entre natureza e cultura. Os pens sadores consideram que ha entre o homem e a natureza uma diferenca essencial: esta opera por causalidade ne: cesséria ou de acordo com leisnecessatias de causa e efel to, mas ohomem é dotado de liberdade e razao, agindo por escolha, de acordo comvalorese fins estabelecidos porele préprio. Por conseguinte a natureza é 0 campo danecessi dade causal ou de séries ordenadas de causas e efeitos que operam por si mesmos, sem depender da vontade de al- gum agente; em contrapartida, a cultura é o campo insti tuido pela ago dos homens, que agem escolhenda live ‘mente seus atos, dando a eles sentido, finalidade e valor porque instituem as disting6es (inexistentes na natureza) entre bom e mau, verdadeiro e falso, itl e nocivo, justoe injusto, belo e felo, legitimo ¢ ilegitimo, possivel e impos: sivel, sagrado e profano. ‘Além da conquista do direito at na socedade brasieira, de peri patrarcal inino, © movimente sutragista proporcionou um avango a condigao dat mulher Amedida que este segundo sentido foi prevalecendo, além de civilizagao, cultura passou também a significar a relacdo que 0s seres humanos socialmente organizados {sto é,civilizados) estabelecem com 0 tempo e com 0 es- 'paco, com os outros seres humanos e com a natureza, re- Jkgdes que se transformam no tempoe variam conforme as ndicdes do meio ambiente. Agora, cultura torna-sesind- fimo de historia. Adistingdo entre natureza.e cultura passa, entdo, al yarem conta a maneira como © tempo se realiza: na natu- seza 0 tempo é repeti¢do (0 dia sempre sucede a noite, as ‘stages do ano se sucedem sempre da mesma maneira, ‘asespécies vegetais e animais se reproduzem sempre da ‘mesma maneira, os astros realizam sempre os mesmos mo: Jimentos, etc.); 0 tempo dacultura, oda ransformacdo (is- 106, das mudangas nos costumes, nas leis, nas emogdes, ospensamentos, nas técnicas, no vestuario, na alimenta- ‘go, nalinguagem, nas instituigdes socials epoliticas, etc.). Para varios fil6sofos e historiadores, a cultura surge ‘quando os homens produzem as primeiras transformacoes: fanatureza pela a¢ao do trabalho. Com o trabalho, os se- ‘es humanos produzem objetos inexistentes na natureza asa, utensilios, instrumentos), organizam-se socialmen- ‘epararealizé-lo, dividindoas tarefas entre homens e mu- ‘heres, adultos criancas. Para aumentar 0s recursos pro- “dzidos, instituem a familia e as relagdes de parentesco, asaldeiase vilas. Para protegé-las, inventamas armasea ‘guerra. Para conseguir sempre candigées favoraveis para trabalho e para a melhoria do que produzem, invacam e axdoram forcas divinas, instituindo a religiao. Os varios ‘grupamentos humanos, nascidosdo trabalhoe dos siste- ‘mas de parentesco, trocam entre si produtos de seus tra- ‘alhos, inventando 0 comércio, As desigualdades surgem quando uma parte da comunidade toma para si, como pro- ‘piiedade privada, terras, animais, aguas: comegaadivisao social de onde surgirdo as classes socials e os conflitos e, estes, a instituicao do poder. m7 ~ Cultura e antropologia Apalavra antropalogia é composta de duas palavras gregas: antropos, que significa “homem”, € logia, “estu- oi do” (palavra derivada de l6gos, que significa “pensamen- toourazdo”, “linguagem oudiscurso”). Aantropologiaes- tuda os seres humanos na condicao de seres culturais. O antrop6logo procura, antes de mais nada, determinar em quemomentoede que maneira os humanos instituem sua diferenca em retacao a natureza, fazendo assim surgir 0 mundo cultural. Osfilésofos, a partirdo século XVIII, consideraram que os humanosdiferem da natureza gracasao pensamento, & linguagem, ao trabalho e & aco voluntaria livre. Os antropélogas, a partir do século XX, sem negar a afirmagao dos filésofos, procuram aquela a¢ocom a qual os seres hufmanos instituem a cultura propriamente dita, Ou seja, como os filésofos, os antropGlogos também con- sideram que as condig6es para que haja cultura sa00 pen- samento, a linguagem, o trabalho e a aco voluntaria, po rm julgam que nao basta apontar essas condiigdies e que 6 preciso dizer que aco os homens praticaram ou que de- cisdo tomaram que os fizeram passar da possibilidade da cultura a realidade efetiva dela. Se, para muitos historiadores, essa acao foi o traba tho, para muitos antropélogos a cultura foi institufda quan- do os humanos marcaram simbolicamente sua diferenca com relagfo & natureza, decretando umalei que nao pode- tiasertransgredida ¢, se 0 fosse, a comunidade exigiriare- paraco com amortedo transgressor. Adiferenca entreho- mem e natureza, que da origem a cultura, surge coma lei da proibigaa do incesto, lei inexistente entre os animais.. Essa leidd inicio a sexualidade propriamente humana, que nao € apenas a satisfagao imediata de uma necessidade biol6 ica, mas 6 definida por regras que instituem o proi: bido eo permitido na expressao do desejo. Os seres huma- nos dao sentido a sexualidade. Para alguns antrop6logos, além dessalei, a diferenca entre homem e natureza também é estabelecida quando os humanos definem uma outra lei que, se transgredida, causa a ruina da comunidade e do individuo: a lei que se- para 0 crue cozido, lei também inexistente entre os ani: mais. A Separa¢ao entre 0 cru e 0 cozido e a exigéncia de que os humanos comam alimentos que passaram pelo fo- go colocam aculinéria no ponte inicial da cultura. Assim co- moa sexualidade humana, também a alimentagao huma- nandoéapenasasatisfacdode umanecessidade biolégica de sobrevivéncia, mas esté ligada a regras que lhe dioum sentido propriamente humano. Essas duas primeiras leis estruturam o mundo huma- no a partir da oposigio entre puro (permitido) e impuro (proibida), oposigao inexistente para tado orestanteda na- tureza, Sexualidadee culindria intraduzem adimensao sim. bélica da vida humana. © mundo da pritica mo ordem simbélica Aculturaé institufda no momento em que os humangs determinam para si mesmos regras e normas de conduta que asseguram a existéncia e conservagao da comunida- de e por isso devem ser obedecidas sob pena de punigao (que pade ir desde um castigo ou a expulsao para onge do grupo de origem até a morte) O que é ale’ humana? A tei humana € um mandamen- to social que organiza toda a vida dos individuos da co- munidade, tanto porque determina o modo de estabeleci- mento dos costumes ¢ de sua transmissao de geracao ‘geraco como porque preside as acGes que criamas insti tuigdes sociais (rligido, familia, formas de trabalho, guer- rae paz, distribuigao das tarefas, formas de poder, etc.).A lei nao é uma simples proibigao para certas coisas e obr aco para outras, mas € a afirmacao de que os humanos so capazes de criar uma ordem de existéncia que nao é simplesmente natural (fisica, biolégica). Essa ordem éa or- dem simbélica. Aordem simbélica consiste na capacidadehumanapa- ra dar &s coisas uth sentido que esta além de sua presen camaterial, isto é, na capacidade de atribuir significacées evalores as coisas e aos homens, distinguindo entre bem emal, verdade e falsidade, beleza e feitira; determinando ‘se uma coisa ou uma ago é justa ou injusta, legitima ou ilegitima, possivel ou impossivel. Eessa dimensao simbs- lica que 6 instituida com a leida proibicaodoincestoeak da proibigdo do cru Gragas a linguagem e ao trabalho, os seres humanos tomam consciéncia do tempo e das diferencas temporais, (pasado, presente, futuro), tomam consciSncia da morte e the dao um sentido; organizam o espaco, humanizando. 0 (isto 6, dando sentido ao proximo e ao distante, aoaltoe a0 baixo, ao grandee ao pequeno), aovisivel eaoinvisivel, A diferenciagao temporal e espacial permite que os seres, humanos se relacionem com o ausente diferenciando nao 86.0 presente do passado e do futuro e 0 préximo do dis- tante mas também distinguindo o sagrado e 0 profano, os, deuses eos homens. Podemos, entao, definira cultura como tendo tréssen- tidos principais: 1. criagao da ordem simbélica da le, isto é, de sistemas de interdigGes e obrigagdes estabelecidos a partir da atr- buigdo de valores as coisas (boas, mas, perigosas, sa- gradas, diabélicas), aos humanos e suas relacdes (dife renga sexual, significado da virgindade, fertilidade, viriidade; diferenga etaria e forma de tratamento das eriancas, dos mais velhos e mais jovens; formas de tra- tamento dos amigos e dos inimigos; formas de autori- cultura simibolo judaico, em snagog dade e formas de relacao com o poder, etc), aos acon: tecimentos (significado da guerra, da peste, dafome, do nascimento € da morte, obrigagao de enterrar os mor- t0s, etc); 2. criagéio de uma ordem simbélica da sexualidade, da lin guagem, dotrabalho, de espago, do tempo, do sagradoe do profano, do visivel edo invisivel. Os simbolos surgem tanto para representarcomo para nterpretara realidade, dando- Ihe sentido pela presenca do humano no mundo; conjunto de prticas, comportamentos, aces e institu ses pelas quais os humanos se relacionam entre sie com a natureza e dela se distinguem, agindo sobre ela ouatravés dela, modificando-a (rituais do trabalho, r- tuais religiosos, construgao de habitacdes, fabrieacdo de utensilios e instrumentos, culinaria, tecelagem, ves tuério, formas de guerra e de paz, danca, mésica, pintu ra, escultura, formas de autoridade, etc) Na realidade, nao existea cultura, no singular, mas cul: turas, no plural, poisos sistemas de proibigao.e permissao, asinstituigdes sociais, religiosas, politicas, os valores, as crengas, 0s comportamentos variam de formacao social pa- raformacao social e podem variar numa mesma socieda E25: de no decorrer do tempo. Aesse sentido amplo podemos acrescentar um outro, restrito, proveniente do antigo sen tido de cultivo do espirito: a cultura como cria¢ao de obras da sensibilidade e da imaginacao — as obras de arte — e como criagao de obras da inteligéncia e da reflexdo — as obras de pensamento, isto é,a ciéncia ea filosofia. € esse segundo sentido que leva 0 senso comum a identificar cultura e escola (educacao forma), de um lado, e, de outro, a identificar cultura e belas-artes (miisica, pin- tura, escultura, danca, literatura, teatro, cinema, etc). € também esse sentido que leva distingao entre cultos e in cultos, entendida respectivamente como “escolarmente instrufdos” e “sem instrugao escolar”

Você também pode gostar