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AV ortho. Monon diene Um outro referencial tebrico que serd apresentado é relativo aos estudos sobre 0 discurso pedagégico, em especial sobre 0 conceito de recontextualizagao (Bernstein, 1996). Este referencial foi incorporado porque possibilitou a compreensio do processo de construg3o do discurso ‘expositivo em cada uma das exposigdes estudadas na pesquisa. Por fim, aprofundou-se 0 tema sobre a transformacao do discurso cientifico que ocorre especialmente na elaboragdo das exposigdes nos museus, a partir da literatura especifica da érea museolégica, a qual diz respeito ao processo de transformagao da Jégica do discurso para a légica espacial (Davallon, 1999). Assim, foi possivel entender 0 proceso de constituiclo de um outro discurso, o discurso expositivo. IV.2 - A TEORIA DA TRANSPOSIGAO DIDATICA IV.2.1) Origem e Conceitualizagiio: O estudo sobre transposic&o didftica tem em Chevallard a principal referéncia. Segundo Astolfi e Develay (1990), a tcoria da transposigdo didética teve origem™ na diddtica das matemiticas, através dos autores Y. Chevallard e M. A. Joshua. Estes autores estudaram a matemética do conceito de distancia ¢ analisaram as transformagées softidas por este conceito desde a sua produgio, no “saber sibio”, até sua introdugao nos programas de geometria na sétima série, ou seja, analisaram as modificagSes de seu estatuto tedrico pelos circulos de pensamento intermediirios entre a pesquisa e o ensino (Astolfi e Develay,1990:47). ‘Tendo por base a idéia de que o saber cientifico sofre um processo de transformagio ao se tomar conhecimento ensindvel no espago escolar, Astolfi e Develay (Ibid., p.48) caracterizam este processo,m afirmando a existéncia de uma “epistemologia escolar que pode ser distinguida da epistemologia em vigor nos saberes de referencia”. Chevallard (1991), em seu livro “La Transposicién Didéctica: del saber sabio al saber inicialmente a possibilidade da existéncia de uma ciéncia ensefiado”, tem a preocupacao de discuti Neste sentido, 0 autor questiona o papel das didéticas chamada “didética da matemitica’ defendendo que 0 objeto de estudo desta seria o jogo que ocorre, na sala de aula concreta, entre 0s docentes, os alunos ¢ 0 saber (matemitico). Parte entdo do pressuposto de que o ensino de um determinado elemento do saber s6 serd possivel se esse clemento softer certas “deformagées” para que esteja apto a ser ensinade. © Forquin (1992:33), citao trabalho de Michel Verret (1975), o qual jé falava em uma transformapdo de um objeto em ‘objeto de ensino. 4 “O saber-tal-como-é-ensinado, 0 saber ensinado, é necessariamente distinto do saber-inicialmente-designado-como-o-saber-que-deve-ser-ensinado, 0 saber a censinar” (Chevallard, 1991:17). ‘Ao analisar o problema da resisténcia ao conceito de transposigio didética, o autor afirma que nio se pode compreender 0 que ocorre no interior do sistema didético sem levar em conta 0 exterior, tratando-se assim de um sistema aberto no qual a sobrevivéncia supée a compatibilizagio com 0 seu meio. “O saber que produz a transposigdo didética serd portanto um saber exilado de suas origens e separado de sua produgao histérica na esfera do saber sabio, legitimando-se, enquanto saber ensinado, como algo que néo é de nenkum tempo nem de nenhum lugar, e nio legitimando-se mediante o recurso da autoridade de wm produtor, qualquer que seja. ‘Podem crer-me’, parece dizer 0 | docente, para afirmar seu papel de transmissor, que ndo pode transmitir sendo | sob a condigdo de ndo produzir nada, ‘podem crer-me porque ndo se trata de | mim”. (Ibid. p.18). © autor procura entio indicar elementos que caracterizam 0 funcionamento didatico a partir do conceito de transposigio didética. Assirh, o saber ensinado supde processos de: a) descontemporalizagio: 0 saber ensinado é exilado de sua otigem e separado de sua produgo bistérica na esfera do saber sdbio; b) naturalizagao: o saber ensinado possui o incontestével poder das ‘coisas naturais’, no sentido de ‘uma natureza dada, sobre a qual a escola agora espera sua jurisdigdo, fundadora de valores que iro administrar a ordem didatica; | ©) descontextualizasio: existe algo invariante (significante) e algo varidvel no elemento do saber | sibio correspondente ao elemento do saber ensinado e, neste sentido, procede-se através de uma descontextualizagio dos significantes, seguida de uma recontextualizagio em um. discurso diferente (até aqui, trata-se de um proceso comum e facil de ser identificado). No entanto, neste processo, hi algo que permanece descontextualizado, j que nio se identifica com 0 texto do saber, com a rede de problematicas ¢ de problemas no qual o elemento descontextualizado cencontrava-se originalmente, modificando assim seu uso, emprego, ou seja, seu sentido original; d) despersonalizaco: o saber considerado em statu nascendi esté vinculado a seu produtor e se cencama nele. Ao ser compartilhado na academia, ocorre um certo grau de despersonalizagio comum ao processo de produgao social do conhecimento, que € requisito para sua publicidade. Porém, este processo € muito mais completo no momento do ensino (“Podem rer-me, porque us no sou eu..”), pois cumpriré uma fungio de reprodugdo ¢ representaglio do saber, sem estar submetid Chevallard explicita assim o sistema didético através de um esquema no qual pretende as mesmas exigéncias da produtividade, mostrar a relagdo entre os elementos intemos ¢ externos que o influenciam. Sistema Diditico v7 Saber Ensinado \ Professor Aluno Esse sistema didatico estaria inserido na noosfera que, por sua vez, se coloca no interior do “entomo”, ou seja, a sociedade. Tal idéia foi adaptada aqui procurando sintetizar a proposta deste autor. ENTORNO ‘NOOSFERA| Saber Ensinado Saber Ensinado co _Aluno ) G Professor Aluno » ‘SISTEMA DE ENSINO Segundo Chevallard, o conceito de noosfera é central para 0 entendimento da transposigao didética. E onde se opera a interag&o entre o sistema de ensino stricto sensu € 0 entomo societal; onde se enconttam aqueles que ocupam postos principais do funcionamento didético e se enfrentam com os problemas resultantes do conftonto com 2 sociedade; onde se desenrolam os conflitos, se 116 levam a cabo as negociagSes; onde se amadurecem solug6es; local de atividade ordindria; esfera de onde se pensa. Para explicar como ocorrem os fluxos do saber que vdo desde 0 entoro alé o sistema de ensino, passando pela noosfera, e que garantem a possibilidade de ensino, Chevallard aprofunda a idéia da necessidade de uma compatibilizagio entre este sistema e seu entorno. Nesse sentido este autor analisa a relago de proximidade/distincia entre saber sibio, saber ensinado e saber dos pais (classe média ¢ superiores). Em sintese, a idéia seria a ocorréncia de um controle entre essas distincias jé que o saber ensinado envelhece biologicamente e moralmente, se aproximando do senso comum ¢ se afastando do saber sibio. Tomando-se envelhecido em relagio a sociedade (banalizagao e deslegitimizagao), o saber ensinado recebe aportes para que se aproxime do saber sibio e se afaste do saber dos pais e aqui se encontra a origem da transposi¢do didatica. Para ele, a introdugdo de determinados conceitos do saber sdbio no saber ensinado (ele exemplifica através do conceito de operadores em matemitica, que apareceu negando 0 das quatro operagées) se dé por necessidade da manutengao do proprio sistema, dando-Ihe novamente legitimidade prineipalmente perante 0s pais, No entanto, ha uma outra dimenséo analisada pelo autor, que corresponde ao ponto de vista do aluno, Para ele existe algo como uma dualidade entre saber ensinado ¢ aluno, ja que ocorre desgaste do primeiro, Como niio se pode modificar o aluno, modifica-se o saber objetivando a aprendizagem. Segundo Chevallard (1991:42) isso feito de duas formas: a primeira, considerada pelo autor como uma forma simplista de transposigfio didatica, seria a de suprimir a dificuldade quando ela aparece; a segunda forma, mais complexa, seria através de uma reorganizagao do saber, uma verdadeira refundagdo dos conjuntos de conteiidos. Esse trabalho que a noosfera sealiza para claborar um novo texto do saber, se consagra como uma estratégia de ataque as dificuldades de aprendizagem, através de sua identificagao, Nesse movimento de compatibilizaca0 que @ noosfera realiza, onde também esté em jogo a composigo entre 0 antigo texto do saber ¢ 0 novo, logo a construgio de um novo texto que os integre, ela procura obstinadamente a organizagao de um born ensino, Segundo Chevallard, no entanto, sabe-se que, antes de ser bom, um ensino deve ser possivel ¢, neste sentido, a noosfera acaba somente por considerar alguns elementos referentes as condigdes didéticas, deixando muitos outros escaparem: “Quando os programas so preparados comega um outro trabalho: é a transposig&o didatica interna.”. (Ibid.,p.44) Desta forma, para Chevallard, os contetidos de saber designados como aqueles a ensinar so verdadeiras criagdes didaticas, suscitadas pelas necessidades do ensino. Sofrem assim um conjunto uT de transformagées adaptativas que véo tomné-lo apto para ocupar um lugar entre os objetos de ensino, Este trabalho de transformagio de um objeto de saber a ensinar em um objeto de ensino é 0 que ele chama de transposigao didatica, No posficio da segunda edigdo de seu livro, Chevallard (1991) discute, de mancira enfitica, algumas criticas feitas 4 teoria da transposigdo diditica. Em sintese, este autor vai afirmar que os estudo dos saberes deve se dar no que ele chama de uma antropologia didditica dos saberes, 34 que estes introduzem uma dinamica na sociedade e na cultura e emergem num ambito real antropolégico € esse seria 0 espago onde se deve situar a teoria da transposigio didatica. Ao seu ver, 0 que caracteriza os saberes ¢ sua caracteristica de “multilocago”, ou seja, 0 fato de que “um saber dado S se encontra em diversos tipos de instituigao T, que so para ele, em termos de ecologia dos saberes, respectivos habitats diferentes. Entretanto, segundo este autor, 0 saber em questéo ocupa regularmente nichos muito diferentes: “Ou, para dizer de outro modo, que a relagio institucional de 1 com S, Ri(S), a qual denominarei também de @ problemdtica de I em relagéo com S, pode set Giferente. Correlativamente, a maneira que os agentes da instituigao vo ‘manipular’ esse saber serd varidvel” (Chevallard, 1991:153), Para Chevallard ha quatro formas de manipulagfo dos saberes: uma instituigao pode utilizar uum saber, pode também ensinar, ou ainda produci-lo. O quarto tipo de manipulagio seria a transpositiva. “Mas a wansposigto diditica tal como a evocamos agui, deve ser analisada em wm marco mais vaste. Falaremos mais genericamente de transposi¢do institucional: transposicdo em uma instituigdo I que, se I é wma instituigdo didatica, entéo trata-se propriamente de uma transposigao didatica. Os processos de transposigéo institucional excedem sem nenhuma dtivida a wransposigao didética propriamente dita; mas jé indiquei até que ponto toda transposigéo institucional tende atualmente a articular-se em uma transposigao diddtica, que & um de seus momentos cruciais. Os processos transpositivos — diddticos e mais genericamente institucionais — sao tal como se imagina, a mola essencial da vida dos saberes, de sua disseminagdo e sua funcionalidade adequada (..)” (Ibid. p.158) Neste posficio, Chevallard também discute a legitimidade das praticas sociais enquanto saberes ¢, em linhas gerais, assume uma posi¢do que diferencia os saberes de priticas sociais. Para ele 0 conceit de saber diz respeito ao corpo de conhecimento que ¢ legitimado epistemologicamente, legitimacdo esta que se sobrepde, geralmente, a legitimago cultural. Neste sentido, 0 carter académico ou semiacadémico do saber, para Chevallard, 6 condig&o crucial para a ecologia didatica. Em sua visio, um saber sébio nao pode se autoproclamar um saber, muito menos 18 a escola ird se autorizar a si mesma ¢ menos ainda os docentes: “O que ocorre na Escola depende portanto eminentemente da legitimidade que a sociedade Ihe concede e Ihe nega. E entio quando se io a conhecer as virtudes de um saber sébio (...)” (Idem, p. 164). ‘A origem dos saberes, segundo Chevallard, pode se dar nas prdticas sociais, no entanto nem todo saber chega a ser legitimado e alcanga o status de saber sabio. Ao seu ver, existe uma distancia entre um saber e uma pritica, e 0 saber sobre 0 dominio de uma pritica no se constitui necessariamente em um saber dessa pritica. Assim, Chevallard indica que a esfera da produgao do saber, por meio da escola e da transposigto diditica, assume uma fungo mais ampla do que @ da pura produgdo ¢ reafirma que a esfera da investigagao em um saber sdbio é um luger privilegiado para observar a vida dos saberes. IV.2.2) As Criticas & Transposigdio Didética: limites da teoria ‘A nogio de transposig&io didatica vem ganhando cada vez mais espago nos debates na drea educacional®, em especial na diditica das ciéncias. Risky e Caillot (1996) organizaram publicagio que discute os conceitos “federativos”, ou seja, aqueles que possuem um certo consenso na érea educacional na Franga™. Nesse livro, Caillot (1996) apresenta uma forte critica a teoria da transposigao didética, sob 0 titulo “Teoria da Transposigiio Didatica: ser4 ela transponivel?”. Este autor inicia seu texto situando a origem do conceito ¢ afirma que, para Chevallard, a idéia principal seria a de que “a referéncia de um contetido de ensino e 0 que o legitima é o saber sdébio elaborado pela comunidade de pesquisadores” (Ibid.,p.20). Desta forma, a teoria da transposicdo didética definida por Chevallard seria uma teoria que, de acordo com Caillot, deveria evoluir ¢, por essa razio, possuir um poder explicativo universal, devendo ser aplicado a todos os saberes transmitidos pela escola, * Por exemplo, as “Diretrzes Curriculares Nacionsis para a Formagto de Professores da Educayio Bisica, em nivel superior, curso de licenciatura, ée graduagao plena” em discussdo no Conselio Nacional de Educagio, faz mengio & necessidade do professor saber efetuar a “transposigio diditica". Afirima 0 documento de 08/05/2001 que “(.) Entretanlo, nem sempre hé elareza sobre quais séo os conteiides que o professor em formapio deve aprender, em razio de precisar saber mais do que vai ensinar, ¢ quais os conteidas que sero objeto de sua atividade de ensino. Sao, assim, freqienterente desconsideradas a distingo © a necesséria relagio que existe entre o conhecimento do objeto de ensino, de um lado ¢, de outro, sua expressio escolar, também chamada de transposigao didética, Sem « mediagio da transposigio didatica, a aprendizayem € a aplicacdo de estitégies ¢ provedimentos de ensino tornam-se abstrata, dissociando teoria e pritica. Essa aprendizagem € imprescindivel para que, no futuro, o professor sia capaz tanto de selecionar conteddos como de eleger as estratégias mais adequadas para 2 aprendizagem dos alunos, considerendo sua diversidade eas diferentes fainas erias.” #1 Teis conceits seriam os de transpasicao didatic e percursos do saber, de contrato ddatico e de mediago didtica 9 Entretanto, Caillot prope que o saber sibio no é a tinica referéneia para o saber escolar. Para discutir seu ponto de vista, este autor utiliza diferentes trabalhos, comegando por citar Martinad (1982 e 1986), didata da drea de ciéncias experimentais idéia de que as priticas sociais podem também legitimar os contetidos de ensino. Para Caillot, 0 e técnicas, que desenvolveu em sua tese a conceito de transposigio didatica, introduzido a partir da didatica da matemética, apresenta limites. Na visio de Caillot a teoria da transposigao didética & problemética, ja que Chevallard parte do pressuposto que existe um saber que ¢ linico, Para ele, segundo Caillot, a produgfo de um programa novo é uma produco social de diferentes atores em jogo, que por sua vez vio compor a noosfera. No entanto, na lista de atores da noosfera feita por Chevallard s6 aparecem pessoas ligadas 4s matemiticas e ao seu ensino, com excego dos administradores, sendo revelador, para Caillot, que rela niio aparegam outros “atores” e nenhum outro “expert”. Contrério a essa posigo, para Caillot existem outros saberes para além do saber sibio; logo outros atores também fariam parte desta noosfera. Para exemplificar sua posigo, Caillot usa a prépria matemética, mas também outras éreas de conhecimento como.a linguagem, indicando que alguns profissionais dessas reas ligados mais diretamente & pritica social de seus campos — os engenheiros, no primeiro caso € os jornalistas no segundo - poderiam pertencer a esse grupo de atores integrantes da noosfera, Assim, para Caillot: “a teoria da transposicdo didética, como foi formulada por Chevallard, teria entdo um dominio de validade limitado, que seria aquele das mateméticas, Outras referéncias 23), Defende entiio que o saber sébio nio seria a tinica referéncia do saber ensinado, considerando assim além do saber sibio deverdio ser levadas em conta na definigéo de conteiidos de ensino” (Ibi que existem saberes ligados as priticas sociais que no pertencem forgosamente ao saber académico elaborado pela comunidade cientifica™, Desta forma, afirma Caillot que 0 conccito de transposi¢ao didatica forjado por Chevallard é discutivel e mesmo contestavel: “(..) Nbs vimos também que 0 aparecimento de um novo objeto de ensino era resultado de discussdes, as vezes de conflitos entre diversos membros da noosfera, tomado num sentido amplo ¢ ndo resirito dos especialistas das disciplinas que concernem. A definicao dos novos curriculos & sempre o resultado de forgas sociais, onde varios atores tem o que dizer € onde os cientistas € wniversitirios mtressante pereeber que Astolfi e Develay (1990) também defendem a necessidade de considerar as prticas sociis na elaboraedo do cwriculo escola, utlizando 0 mesmo autor que Caillot, ou sea, Martina No posticio do livro de Chevallard (1991) citado anteionnente este responde a eriticas fits & ransposigdodiditic, sem no entanto mencionar autores. Uma des ertcas que Chevallard rebate € exatamente a perspective spontada por Caillor, referente & pancipagdo das priticas socias na consttuigdo do saber escolar. Como foi visio para Chevallard saberese priicas soisis mio podem ser confundides ¢ para que as prticas se tornem saberes, deve ser legitimados «pistemologicamente endo 56 culuralmente 120 ndo sdo finalmente mas que um dos elementos do debate. A revelagiio dessas lutas de influencia é 0 nascimento de novos programas onde o surgimento de novos objetos de ensino que néo séo o resultado de uma transposigdo diditica do saber sdbio. So evidentes os casos dos ensinos técnicos ¢ profissionais onde os contetidos de ensino sao negociados pelos representantes dos profissionais como nds.” (Caillot, 1996:26) Através de exemplos dos saberes da quimica e da fisica, este autor defende a idéia de que o curriculo proposto no & sempre manifestagao de uma transposigio didética do saber sibio. Assim, afirma que: “(.J) Parece que a teoria da transposigto didética, na forma pela qual foi inicialmente elaborada, & muito ligada ao contexto da matemética e de seu ensino. Ela & talvez adaptada a um tipo particular de epistemologia. Além do mais, é revelador, aos meus olhos, que as criticas n@o vieram dos didatas das mateméticas, mas foram emitidas pelos didatas de outras disciplinas, A epistemologia de cada disciplina, assim como a inseredo destas disciplinas no campo dos saberes e das préticas sdo certamente as melhores referéncias para legitimagao dos saberes escolares que somente sua referéncia no saber sdbio. Assim talvez, ao que concerne d fisica, poder-se- 4 falar sem muita dificuldade de transposiodo diddtica dos saberes sdbios, porque o objetivo explicito da disciplina a produgao de conhecimentos cientificos destinados a tornar inteligivel o mundo {fisico. Por outro lado, para outras disciplinas de referéncia (quimica, linguas, ‘etc,), onde a finalidade 6 outra, entdo talvez a teoria da transposi¢do didética sefa insuficiente. E uma teoria de dominio de validade limitado, como numerosas teorias. Ela é entéo dificilmente transponivel, nesse estado, para outras disciplinas escolares.” (Ibid, p.34). As criticas feitas por Caillot & teoria da transposigo didética podem assim ser sintetizadas em alguns aspectos. Em primeiro lugar, Caillot reivindica enfaticamente 0 espago dos saberes das praticas sociais como referéncias tio legitimas quanto o saber cientifico ou sébio para a constituicio do saber escolar. Em segundo, discute a possibilidade de se transpor essa teoria para outros campos do conhecimento além das matematicas. Neste aspecto, Caillot traz para o debate a complexidade e particularidade do processo de construgao do saber cientifico nas diferentes dreas do conhecimento. Esta especificidade nio pode ser generalizada para as diferentes areas do conhecimento, jé que cada ‘uma tem uma histéria particular de construgdo, uma epistemologia propria. Além disso, esta historia diferentes perspectivas em conflito, sendo também influenciada, em algumas reas, por elementos extemos 4 produgao do conhecimento stricto sensu. Os saberes cientificos desta forma seriam plurais. 121 Pode-se assim afirmar que o ceme do debate entre a perspectiva de Chevallard ¢ a de Caillot ‘std na compreensdo do que seria considerado saber e do papel ¢ legitimidade das priticas sociais 1a constituigio do saber escolar IV.2.3) A Transposigtio Didatica Vista por Outros Autores: Serio apresentados aqui, de forma bastante sucinta, alguns autores que tm trabalhiado com o conceito de transposi¢ao didética na literatura internacional ¢ nacional. Estes trabalhos sio de naturczas diferenciadas, pois alguns discutem a importincia do uso deste conceito ¢ outros utilizam ‘ mesmo como referéncia para o desenvolvimento de pesquisas. Neste mapeamento, foi intencional a indicago de algumas das utilizagdes ¢ reflexdes sobre 0 mesmo em diferentes perspectivas, niio havendo a pretensio de se esgotar a produgZo tedrica relativa ao tema, Destacou-se, em cada obra, aqueles itens considerados relevantes para as reflexdes desta pesquisa Um dos trabalhos que mais divulgou 0 conceito de transposigéo diditica. entre os pesquisadores de ensino das ciéneias no Brasil foi o livro “A Didética das Ciéncias”, de Astolfi ¢ Develay (1990). Neste livro, os autores propdem uma reflex’ epistemolégica i) que examine a estrutura do saber ensinado, ii) que esteja alenta aos aspectos historicos das ciéncias, bascada na idéia de ruptura ¢ obsticulo e iii) que promova a relagio entre epistemologia e diditica, Sobre 0 tema da transposigio diditica, estes autores utilizam o trabalho de Yves Chevallard e Marie-Albert Joshua para defender a existéncia de uma epistemologia escolar. Afirmam entdo que na escola 0 saber sabio'sofre uma mudanga em seu estatuto epistemolégico e, desta forma, o que se ensina nela nio seriam saberes em estado puro, mas, sim, contetidos de ensino. Ao discutirem os processos de reformulago, dogmatizagao e transposigao dos saberes, citam o trabalho de M. Develay (1987) na drea da biologia, pois essa autora estudon um exemplo da reificagdo do saber escolar com respeito 20 conceito de meméria, tal como este é apresentado nos textos dos cientistas, em suas obras de valgarizagto e como este é encontrado nos manuais. Outro exemplo, também no campo da biologia, citado por Astolfi ¢ Develay (1990:49), & o estudo de Rumelhard (1979) sobre os processos de dogmatizagio das nogdes de genética, 0 qual indica como os manuais escolares apresentam explicagSes diferentes daquela do saber sébio. Astolfi ¢ Develay, nesta obra, propdem a sistematizagdo da transposicao didética, afirmando porém que, além dela, outros determinantes pesam sobre a eluboracio curricular. So eles as priticas sociais de referéncia, os niveis de formulagao de um conceito (nos planos lingtiistico, psicogenético ¢ epistemolégico) ¢ as tramas conceituais.. 12 | { | Em outra perspectiva, uma anélise pautada na sociologia da educagio é realizada por Forquin (1992) também recorre 20 conceito de transposigo didética. A respeito dos seberes escolares, este autor aponta que a conservagii ¢ a transmissfo da heranga cultural é fungo essencial da educago. Nesse sentido, para Forquin, ¢ preciso admitir que esta reprodugo “se efetua ao prego de uma enorme perda 20 mesmo tempo de uma reinterpretagdo ¢ de uma reavaliagéo continuas daquilo que & conservado” (Ibid., p.29). Baseando-se nos trabalhos de historiadores e socidlogos da educacio, Forquin indica que aspectos que constituem a referéncia, a interpretagao e a transmissfio no contexto dos programas escolares sto influenciados pela época, pelas sociedades, pelos niveis de estudo, pelas clientelas escolares, pelas ideologias pedagégicas, pelo sistema de relaydes de forgas entre os grupos que buscam 0 controle de tal transmissio. Para Forquin, o trabalho de reorganizaglo e restruturagio dos saberes ¢ dos materiais culturais de uma sociedade num dado momento feito pela educago escolar - a transposigdo didtitica -, € bem mais amplo que o de selego, ja que para comunicar ao aluno a cigneia do erudito necessério a intercesstio de dispositivos mediadores. Segundo ele, a exposigio didética, diferentemente da tedrica, deve evar em conta, além do estado do conhecimento, elementos como 0 “estado do conhecente, os estados do ensinado e do ensinante, sua posigdo relativa ao saber © a forma institucionalizads da relagdo que existe entre um e outro, em tal ou qual contexto” (Forquin, 1992:33). De acordo com este autor, a cultura escolar & vista como uma cultura segunda em relagio a cultura da criago ou da invengao, estando esta primeira subordinada inteiramente & mediagio diditica - 0 que pode ser visto nos programas e instrugGes de ensino, nos manuais, materiais didéticos, ete. O autor caraeteriza, enti, 0 processo de didatizagao do saber sdbio: “Desta necessidade funcional da didaticagao decorre um certo mimero de tragos morfolégicos e estlisticos caracteristicos dos saberes escolares, por exemplo a predomindncia de valores de apresentagio ¢ de clarificagao, a preocupagao da progressividade, a importincia atribuida a diviséo formal (em capitulos, ligdes, partes ¢ subpartes, a abundancia de redundincias no fluxo informacional, 0 recurso aos desenvolvimentos perifrdsicos, aos comentarios explicativos, as glosas e, simultaneamente, as téenicas de condensagao (resumos, sinteses documentarias, técnicas mneménicas), a pesquisa de concretizagdo (ilustragdo, esquematizagao, exemplificagdo), o lugar concedido as questbes e aos exercicios tendo uma funcdo de controle ou de reforgo, todo este conjunto de dispositivos e de marcas pelo que se reconhece um ‘produto escolar’ e que , discerniveis em certas sitagies de comunicacdo ndo escolares, podem denotar a pregnéncia do ‘espirito escolar’ na cultura de certos individuos ou de certos ‘grupos (devido & perduracdo do habitus fora do seu meio original de constituigdo ede habilitagéo)”. (Ibid. p.34) 123 | Forquin compara também a distingfo entre a ciéncia dos manuais e a ciéneia viva, no sentido kuhniano, com a rotinizagio e neutralizagio realizada pela didatizagdo do saber sébio. Neste caminho, este autor afirma ser o processo de transposi¢Ho didética dinmico ¢ variavel ¢ questiona se de fato todos os saberes ensinados nas escolas no so, senio, 0 resultado de uma selegio ¢ de ‘uma transposigio efetuadas a partir de um corpo cultural pré-existente, e se “nao se pode considerar ‘a escola como sendo também verdadeiramente produtora ou criadora de configuragées cognitivas e habitus originais que constituem de qualquer forma o elemento nuclear de uma cultura escolar sui generis” (Idem., p.34). Forquin utiliza entio os estudos de Chervel (197) que afirma serem estas configuragées cognitivas “entidades culturais préprias, criagbes didaticas originais", recusando, desta forma, a idéia da escola como mero recepticulo de subprodutos culturais. Na sua visio a escola seria também uma instincia produtora de conhecimentos. ‘Um importante trabalho que discute 0 tema da transposigtio didética no Brasil foi a tese de doutorado de Lopes (1996). Nela, a autora apresenta uma contribuigao da epistemologia histérica ¢ da perspectiva descontinuista e pluralista da cultura para interpretagio do conhecimento escolar, argumentando a favor da existéncia de uma ruptura entre conhecimento cientifico © conhecimento cotidiano, ‘Ao discutir 0 proceso de transposi¢io didatica, Lopes questiona 0 uso do temo transposigdo didtica © propde, em substituiglo, a expresstio mediacdo diditica. Afirma também que, no caso das ciéncias fisicas, esses processos de mediago didética voltados para a aproximagio com 0 senso comum se realizam, normalmente, através da construgdo de metiforas e analogias na cigncia e no ensino de ciéncias, elementos que tém sido objetos de estudo nas pesquisas desta érea, Lopes (Idem.,p229) apresenta ainda o que chama de uma “contradigdo do conhecimento escolar” que, 20 mesmo tempo, produz configuragdes cognitivas préprias e socializa 0 conhecimento cientifico. Sinaliza entio para duas posigdes distintas e questionaveis a que esta contradiglo pode levar: uma delas € que a escola ndo tem como superar essa contradigo, pois © conhecimento cicntifico em si apresenta uma dificuldade superdvel apenas pela via da simplificago ¢, por conseguinte, da distorgao de conceitos, cabendo apenas as instituigdes eminentemente produtoras de conhecimento o trabalho de veiculagfio do mesmo de forma correta; a outra consiste em que a tinica forma de superar essa contradigdo & resgatar na escola o seu papel de transmissora/reprodutora de conhecimentos produzidos em outras instincias, procurando estabelecer a correspondéncia entre conhecimento escolar e conhecimento cientifico. Colocando-se contra ambas as posigdes, para esta 4 autora 0 conhecimento escolar é um tipo de conhecimento priprio que se caracteriza por ser uma (ce) construgo do conhecimento cientifico: mediagao didética no deve, portanto, ser interpretada como um mal necessario ou como um defeito a ser suplantado. A didatizagdo nio é meramente um proceso de vulgarizacdo ou adapiaciio de um conhecimento produzido em outras instancias (universidades ¢ centros de pesquisa). Cabe & escola o papel de tornar acessivel um conkecimento para que possa ser transmitido, Contud, isso ndo lhe confere a caracteristica de instincia meramente reprodutora de conhecimentos. O trabalho de didatizagao acaba por implicar, necessariamente, uma atividade de produedo original. Por conseguinte, devemos recusar a imagem passiva da escola como receptéculo de subprodutos culturais da sociedade. Ao contrdrio, devemos resgatar e salientar 0 papel da escola como socializadora/produtora de conhecimenios” (Lopes, 1996:231) Essa mesma autora, em palestra proferida durante no 12° Congresso de Leitura - COLE”, amplia a discussio sobre a constituigtio de uma epistemologia escolar a partir do referencial dos estudos de linguagem. Nesta palestra, Lopes (1999) situa a questo da linguagem por meio do conceito bachelardiano de obstéculos verbais. Define entio 0 conceito de obsticulo epistemolégico, afirmando que, para Bachelard, esses so inerentes ao processo de conhecer ¢ “constituem-se como entorpecimentos e confusdes da razio, causas de inércia, acomodagdes 20 que jd se conhece, que dificultam 0 desenvolvimento do pensamento”, Segundo esta autora, os obstéculos epistemolégicos ‘manifestam-se como analogias ¢ metiforas que “visam tornar familiar todo conhecimento abstrato, de forma a mascarar os processos de ruptura", podendo, entfo, serem entendidos como “anti- rupturas” (Ibid., p.3). Desta forma, em fungdo da relagéo entre obsticulos epistemolégicos © proceso de conhecer, para Lopes nfo se deve interpretar os obsticulos como ignorancia ou identificé-los com qualquer erro. “Ao contrério, trata-se da acomodagao ao ja sabido, da negago do processo de retificagao, da cristalizagao das intuigdes (..)”. Sobre a epistemologia escolar, Lopes afirma que 0 conhecimento neste ambito se dé através de um proceso de selecdo cultural. Defende assim a existéncia mesma de uma disciplina escolar diversa da disciplina cientifica e, neste sentido, aponta para os trabalhos cm histéria das disciplinas (HDE), de Chervel, Goodson, Ball ¢ Popkewitz, j& que estes estudos contribuem para a compreensio do curriculo como artefato social e histérico: “Especialmente no que se refere as disciplinas da érea de ciéncias fisicas e biolégicas, a HDE tem nos ajudado a compreender que as opcdes por determinados conteiidos e métodos nfo sito expressdo exclusiva do desenvolvimento técnico-cientifico e econdmico, bem como nao se referem 5 Este congresso ocorreu em julho de 1999, na UNICAMP. 12s principalmente a aspectos didéticos, epistemolégicos ou psicolégicos. Por exemplo, 0 processo de maior abstracdo associado ao ensino de ciéncias em diferentes paises em épocas distintas ¢ sua consegiiente transformagdo em wn ‘ensino mais académico e distanciado das interesses sociats dos alunos vem sendo analisado como expresso da necessidade de que cumprisse um papel bem delineado de diferenciagdo social: tornar-se um conhecimento voltado ds classes médias e superiores (Goodson, 1983, 1997)” (Lopes, 199! Lopes cita ainda os trabalhos de Develay que ampliam a interpretagao de Chevallard e que incluem as préticas sociais como referencia para o conhecimento escolar. Segundo ela, Develay centende que a transposigfo didética comresponde a todas as transformagdes que afetam os saberes eruditos/cientificos e as priticas sociais de referéncia pelos quais derivam no apenas os saberes a ensinar mas saberes ensinados e saberes assimilados pelos alunos: “Trata-se de um duplo trabalho de didatizacio ¢ de axiologizagao: na medida em que sfo didatizados, os saberes incorporam determinados valores sociais”. Logo, para Lopes “nem toda diferenga entre o saber cientifico eo saber escolar pode ser corisiderado um erro. O mais importante ¢ compreendermos quais mediagSes existem entre os siberes de referéncia e os saberes escolares ¢ entender as razdes das diferengas entre esses saberes” (Lopes, 1999:6). Assume assim a existéncia de uma especificidade do conhecimento escolar, Lopes enfatiza a importdncia de se considerar os objetivos sociais da escola, 05 quais so diferentes dos objetivos da ciéncia, e assim nfo seré na légica cientifica ou na linguagem cientifica que se encontrardo as bases para selegiio e organizagio do conhecimento escolar. almente Lopes indica que a posiglo de considerar distintas a epistemologia escolar e a das, cigneias de referéncia abre espago para se pensar em “logicas diversas para 0 conhecimento escolar que nao a Iégica do conhecimento cientifico” (Idem, p.7). Assumindo assim uma perspectiva pluralista, a autora afirma que o conhecimento cientifico & “mais um” dentre os possiveis conhecimentos sobre o mundo e que através deste referencial ¢ possivel nos colocar diante do desafio de pensar historicamente o conhecimento, na sua provisoriedade e contingéncii Outro trabalho relacionado & produgdo do conhecimento escolar no contexto brasileiro é especificamente sobre a Biologia. Cicillini (1997) em sua tese sobre “A Produgao do Conhecimento Biolégico no Contexto da Cultura Escolar - A Teoria da Evolugao como Exemplo”, teve como objetivos verificar a produgio de conhecimento biol6gico em escolas pablicas de ensino médio ¢ clucidar alguns aspectos das condigdes de construgao desse conhecimento, tendo por foco a Teoria da Evolugio. Para este trabalho, a autora analisou o processo de selegao de contetidos, percebendo as formas de incluso € exclusio dos mesmos feita pelo sistema de ensino. Também realizou a 126 | | | | descrigo das aulas, caracterizando-as e percebendo o fator “tempo” como responsével pela selego, organizago ¢ abordagem dos contetidos. Analisou ainda as “formas de abordagem dos contetidos biolégicos” a partir de elementos como “forma de interagdo” e “apresentagdo do contetido”, onde discutiu os processos de “simplificago” dos mesmos, os “destaques”, a “apresentagio de palavras com conotagées diibias” e as “regras de memorizagdo” feitas pelos professores. Estudou as caracteristicas da fala do professor, como o tempo verbal, a utilizagdo de linguagem coloquial ¢ a fala truncada. Em linhas gerais, Cicillini conclui que 0 ensino de biologia oferecido é fragmentado, impregnado de conotagSes ideolégicas, 0 que foi verificado através da exclusio de partes do conhecimento evolutivo, da forma de apresentagao deste para os alunos e pelas carateristicas da linguagern dos professores. Mais recentemente, Rovira ¢ Sanmart{ (1998) discutem a importéncia da transposi¢io didética a0 proporem as “bases de orientagio” como instrumento para ensinar a pensar teoricamente 1 biologia, Tais “bases de orientagéo” so instrumentos para auxiliar o aluno a desenvolver sua capacidade de antecipar ¢ planejar operagdes necessérias para realizar uma ago, ajudando’ a desenvolver a habilidade de selecionar as caracteristicas relevantes e antecipar um plano de ages. Segundo as autoras, este instrumento deve ser construido pelos alunos em atividades conjuntas com 08 professores ¢ devem proporcionar situagdes didéticas que favoregam a interago em sala de aula, pois através deles os alunos explicam um fendmeno, a partir da selegao das idéias relevantes, ‘estabelecem relagdes com aquilo que observa, No entanto, para Rovira e Sanmarti, esses procedimentos nfo podem se encerrar nestas etapas jé que 0 conceito no contexto escolar deve ser “cientificamente correto e, desde 0 ponto de vista didético, potente o bastante para permitir a aprendizagem atual dos alunos ¢ alunas, como também para que nao obstaculize aprendizagens futuras”, Neste momento as autoras fazem uso do conceito de transposigao didética: “Acontece que os conceitos e os modelos tedricos da ciéncia, para serem utilizados em aula, devem ser reconstruidos através de um processo de mansposi¢io didética. Podemos falar, portanto, de uma ‘ciéncia escolar’ (Sanmarti e lequierdo, 1997) que nao é uma simples reducdo ou simplificagéo da ciéncia dos cientistas, se ndo uma reconstrugao que deve cumprir a condigdo de selecionar aspectos fundamentais de cada teoria ou modelo e, ao mesmo tempo, devem ser relevantes e titeis para os alunos na elaboracdo de explicagées significativas acerca dos fenémenos naturais” (Rovira e Sanmarti, 1998-1). Para exemplificar a aplicagao da idéia de transposigao didatica no contexto escolar, Rovira Sanmarti (Ibid.) apresentam 0 caso do conceito de “ser vivo”, cuja transposi¢ao didética “requer 27 utilizar um modelo de ser vivo que permita incluir qualquer ser vivo, desde uma bactéria a um animal”. Assim a definigdo usual de que todo ser vivo “nasce, cresce, se reproduz ¢ morre” n&o seria valida, visto que excluiria, por exemplo, os Monera e Protistas, que nem crescem nem morrem. Discutem também o limite de definigées que incluem “alimentar-se”, “mover-se” ¢ “reproduzir-se” como caracterizagdo dos seres vivos, mostrando como alguns grupos de organismos néo se enquadram exatamente nesses aspectos, 0 que Jeva A nevessidade de discuti-las com os alunos. ‘Afirmam entio que: “Bssas caracteristicas néo podem ser introducidas simplesmente ‘explicando-as’ aos alunos desde a elaboracdo feita pelo professor. Cada ‘estudante tem seu modelo inicial de ‘ser vivo" e, na aula, & necessério ‘pensar conjuntamente’ — professores e alunos ~ para chegar a construir um novo modelo proposto desde uma ‘ciéncia escolar’.” (Idem., p.17) ‘As autoras afirmam assim que é possivel ensinar aos alunos e alunes “pensar teoricamente” em Biologia, através do planejamento de atividades que tenham esse objetivo: “No entanto, é possivel chegar a melhores resultados se se parte, por uma Jado, de wna boa selegdo de conceitos ¢ uma id6nea transposicdo diddtica, que ossibilite um bom processo de construed de modelos teéricos ao longo da escolaridade. E, por outro, se exige inovar em relaciio as estratégias de ensino e de planejamento de instrumentos facilitadores de aprendizagem, no qual a base de orientagdo cremos, é um bom exemplo”. (Rovira e Sanmarti, 1998:20) ‘A partic desta apresentagdo dos diferentes trabalhos sobre transposigo didatica e produgio de conhecimento escolar, alguns pontos podem ser ressaltados. Em sintese, estes apontam para a idéia de que existe uma cultura escolar sui generis, resultante de selegées feitas a partir da cultura mais ampla (Forquin, 1992). Na escola, ocorre uma reconstrugdo e/ou uma nova produgio de conhecimento, existindo mesmo uma “ciéneia escolar”, com uma epistemologia prépria (Astolfi de Develay, 1990). Destaca-se, no entanto, que alguns autores indicam a existéncia de outros elementos, além do saber sébio como referéncias para a construgio do saber escolar. Lopes (1996), por um lado, defende a importincia de se considerar a ruptura entre os objetivos, a logica ¢ a linguagem cientifica e a escolar, O “erro”, ao seu ver, deve ser visto dentro da perspectiva de “obstdculo” proposta por Bachelard. Por outro lado, Cicillini (1997), chama atengao para algumas implicagbes do processo de transposigao diditica, que sto, por elas, criticadas. Tais implicagdes estariam relacionadas a uma certa proximidade excessiva entre conhecimento cientifico € senso comum, promovida no processo de escolarizacao deste conhecimento, 128 Finalmente, Rovira e Sanmtarti (1998) propdem pensar o trabalho em sala de aula no ensino de biologia a partir da constatagao da existéncia da transposigao didatica. Sugerem a necessidade de realizi-la de forma “idénea” e de desenvolver estratégias fucilitadoras de aprendizagem. IV.2.4 - A Literatura sobre Transposigdo Diddtica nos Museus: conceito de Transposigiio Museogréfica. ‘Ao se fazer o levantamento da literatura foram encontrados alguns trabalhos sobre o tema da transposi¢o didatica em espagos como museus (Allard ef ail, 1996; Simonneaux ¢ Jacobi, 1997 € Asensio ¢ Pol, 1999). Contudo, em nenhum deles & realizado um estudo sobre 0 processo de transposigao nesses locais, como fez Chevallard no contexto da escola. Os autores, em sua maioria, partem da accitaglio da ocorréncia da transposigdo didética e utilizam esse pressuposto para referendar seus estudos. Em Allard et all (1996) se discute a relagdo entre museu e escola. Afirmam, com base em pesquisas realizadas pelo grupo GREM™, no Quebec - Montreal, que se deve trabalhar na perspectiva de compreender esta relagio e no de submieter 0 museu a escola, Tais agdes devern ser feitas através do desenvolvimento de articulagdes entre essas duas instituigdes, na forma de parcerias. Neste sentido, esses autores indicam, fazendo referéncia ao trabalho de Chevallard ¢ Joshua (1982), ser conveniente “proceder através de uma transformagio adaptativa do saber exposto verbalmente em um saber proposto para os alunos-visitantes. Em suma é preciso transpor o saber". Assim, a ops pela nordo de transposigdo esté relacionada a idéia de que a relacio didatica “nio implica em uma redugo do discurso cientifico ou artistico, mas sim uma adaptacdo & capacidade de compreensio dos grupos escolares, levando em conta a motivagao € 0 grau de desenvolvimento mental dos alunos” (Ibid.,:18). Desta forma, pode-se dizer que esses autores se apropriam do 10 didética para auxiliar no processo de compreensio do conhecimento conceito de transp% existente nos museus pelo pliblico escolar, afirmando que seria parte da educagéo museal a adaptagdo do discurso cientifico ou artistico para facilitar o acesso a este. * GREM: Groupe de Recherche sur L"Education et les Musées 129 Em outra perspectiva, o trabalho de Simonneaux ¢ Jacobi (1997), ao estudar a linguagem presente na produgto de pésteres numa exposigtio cientifica, propde a nogdo de iranspasicdo museogréfica, usando como referéncia 0 conceito de transposigao didética de Chevallard (1985). Indicam que este autor definin tal nogdo no ambito da educagio formal ¢ propdem 0 uso do conceito de transposiggo museogrifica para descrever a transposigio do conhecimento aprendido em conhecimento a ser apresentado em exibigdes. Para Simonneaux e Jacobi, a transposigio museogréfica € uma operacdo delicada, onde elementos como espago, linguagem, conceitos ¢ texto esto em jogo. Procuram ento discutir algumas das escolhas feitas na elaboragao de uma exposigao sobre Biotecnologia, durante a fase de transposigio museogrifica. Para tal, baseiam-se na idéia de uma aproximagao epistemolégica ¢ de uma anélise histérica da construgdo do conhecimento que encontra-se subjacente as escolhas quanto as informagdes a serem apresentedas. Num primeiro item, os autores citados discutem as biotecnologias da reproducao bovina, indicando ser este um objeto de conhecimento ainda nio estabelecido. Analisam assim as caracteristicas deste conhecimento, exemplificando e criticando a forma como este aparece em um Jomal de popularizagio. Apresentam entio como o conhecimento sobre clonagem vem sendo- construido e os verdadeiros elementos em jogo misturados com as intengdes de pensamentos © propagandas sobre as pesquisas em biotecrologia de reprodugéo animal. Discutem também algumas das caracteristicas linglisticas que aparecem no discurso sobre biotecnologia ¢ reprodugo bovina, analisando para isso artigos cientificos e percebendo como clonagem ¢ definida e como as escolhas, de declaragbes sobre o tema sto feitas. Outros pontos discutidos pelos autores so as escolhas lingliisticas e de contetidos feitas na montagem dos pésteres, onde analisam particularmente o tema da transposigdo museogréfica. Finalizam seu trabalho apresentando os prineipais resultados de uma avaliago formativa da exposigao. Asensio e Pol (1999), em seu trabatho, discutem alguns dos desafios assumidos pela nova museologia. Partem do pressuposto de que os museus se tornaram uma realidade cada vez mais complexa, sendo atualmente as pessoas mais importantes que os objetos nesses locais. Os autores indicam entio a necessidade de devolver a “cultura material o lugar que Ihe corresponde, como mediador intercultural entre a cultura inicial de referéncia que a produziu ¢ a cultura atual ¢ futura que a recebe”. Defendem a importincia dos objetos, jd que sfo os “mediadores interpessoais entre as pessoas que os produziram e as que agora os contemplamn”. Entretanto, “um objeto ou uma colegio serio valiosos na medida em que sejam capazes de comunicar mais e melhores mensagens, mas claborados entre ambas pessoas, grupos ¢ culturas.” (Idem.,p.2). Para isso é importante a realizagao 130 de estudos sobre a eficdcia da mediagio comunicativa das colegées no ambito especifico dos museus e exposighes. Em um dos itens do trabalho, Asensio ¢ Pol (1999:10) discutem os fundamentos da “transposigio expositiva”, afirmando que “A adequago de um saber cientifico para ser exposto em um museu e portanto recebido pelo pablico ¢ um processo muito complexo”. Para eles varias consideragdes devem ser realizadas para que as variéveis que influenciam este processo tenham um minimo de éxito. Discutem assim a questo da transposigdo do conhecimento cientifico, usando trabalho de Chevallard, afirmando que este autor nomeou de forma “poética” 0 que chamou de “saber sibio”. Nesta perspectiva, Asensio e Pol propbem que, para a adequayio e comunicabilidade deste saber em situagbes de ensino ou de exposi¢do, deve-se ter por base cinco fontes fundamentais de reflexdo: a sécio-cultural, a disciplinar, a psicologica, a didética e a museolégica. ‘Ao abordar cada uma dessas fontes, Asensio e Pol levantam questdes sobre a influéncia social ¢ antropolégica na determinagdo de certos projets muscoldgicos. Apontam também a importincia do rigor cientifico nas investigagdes de colegdes, a adequacdo de conhecimentos gerais a dominios expecificos, no bastando a informagdo psicolégica geral, mas uma investigagzo com novos aportes te6ricos e mais contextualizada sobre os problemas reais do Ambito dos muscus © exposigdes. Além disso, os autores chamam atengo para o desenvolvimento das didaticas especificas que vém acumulando conhecimentos que podem orientat 0 uso ou nfo de certos tipos de téeni experiénoias j6 utilizadas. Estes conhecimentos da area das didéticas especificas auxiliariam na is ¢ aportes, desaconselhar outros jé utilizados e evitar erros, incluindo reciclar materiais ¢ adequagéo e simplificagao de contetidos complexos, sem perder a relago com a disciplina de referéncia ou cair numa vulgarizagdo ridicularizada ou superficial dos saberes cientificos. Finalizam este item indicando as diferengas entre a sala de aula e 0s museus ¢ enfatizando a necessidade de ‘uma reflexo museolégica sobre o que constitui este espao como projeto intelectual, sobre seu funcionamento, caminhando na dirego de um projeto comum. Os trabalhos citados possuern como elemento consensual a idéia de que & necessétio ‘considerar e aprofundar os estudos sobre a transposicao do saber cientifico nos museus, soja na elaboragio das exposigdes, seja na utilizag2o dessas pelo piblico especialmente escolar. O trabalho de Asensio ¢ Pol (1999) enfatiza a necessidade desta reflexio ser realizada levando em conta as especificidades do esparo do museu, ja que possui difereneas daquele relativo a escola, Assim, os trabalhos ressaltam a necessidade de se levar em conta diferentes aspectos para se pensar a transposigdo museogréfica, como aqueles relacionados ao espago, a linguagem ¢ texto, 20 BL ‘objeto, aos conceitos, além da reflexdo sobre as areas do conhecimento envolvidas no processo de ‘comunicabilidade do conhecimento cientifico. IV.3 - DA _TRANSPOSIGAO —DIDATICA/MUSEOGRAFICA =A RECONTEXTUALIZAGAO: CAMINHOS NA CONSTRUCAO DO REFERENCIAL TEORICO Neste item do capitulo serio discutidas as criticas apontadas a teoria da transposigao didatica, no sentido de se explicitarem os limites tedricos do seu uso e de indicar 0 caminho adotado nesta pesquisa ao incorporar 0 conceito de recontextualizagio, a partir dos estudos sobre o discurso pedagégico de Bernstein (1996). IV.3.1 - Do “saber sébio” a “outros saberes”: discutinde & concepgtio de saber de Chevallard O conceito de transposigiio didatica aplicado aos museus, logo de transposigo museografica, foi apresentado no intuito de levar o leitor @ percebor que 0 objetivo desta pesquise era estudar os processos de transformagao que 0 conhecimento biolégico sofre ao ser exposto em museus de ciéncias. Entretanto, algumas criticas e limites deste conceito foram colocados e a principal dessas criticas diz respeito a0 papel das préticas sociais na constituigo do conhecimento escolar. Como foi visto na revisdo sobre a teoria da transposigao diditica, o trabalho de Chevallard enfatiza a relago entre o saber sdbio ¢ o saber ensinado, apontando, no entanto, a existéncia de uma verdadeira ruptura entre ambos no processo de construgo do iltimo. Por outro lado, os criticos a essa posigao reclamam a participagdo das priticas sociais na constituigo do saber ensinado, questionando desta forma a idéia de que somente o saber sibio € responsdvel pela constituigo do saber ensinado, Haveria assim outros saberes, oriundos das préticas sociais, que entrariam no jogo da constituigao do saber ensinado. Para Chevallard 0 conceito de saber nao pode ser confundido com 0 de priticas sociais, ja ‘que, para ele, saber seria um corpo de conhecimento que é legitimado epistemologicamente, sendo que esta legitimagao se sobrepée a legitimagao cultural. Ao seu ver um saber pode até ter origem nas préticas sociais, mas nem todo saber chega a ser legitimado, alcancando o estatuto de saber sé Desta forma, o saber para este autor tem cardter académico e é 0 elemento capaz de legitimar socialmente —¢ usado socialmente para legitimar - uma instituigo didética. ‘Ao considerar 0 caréter de multilocagto dos saberes, ou seja, o fato deste poder ser encontrado em diferentes instituigdes, Chevallard afirma que dependendo da relacdo ontre a 132 instituigio © 0 saber, seus agentes poderio manipulé-lo de diferentes formas”. No caso das manipulagdes do tipo transpositivas, essas quando ocorrem em instituigdes didéticas, “excedem a transposi¢ao didética propriamente dita” (Chevallard, 1991:158). Entretanto, ao scu ver “toda transposicdo i ‘seus momentos cruciais”. E so os processos transpositivos didéticos ¢ institucionais que titucional tende atualmente a articular-se em uma transposigdo didatica, que é um de determinam a disseminagao e a funcionalidade dos saberes. E possivel afirmar que, na pesquisa aqui desenvolvida, estudaram-se os processos de manipulagio do saber, entre eles os processos transpositivos, que ocorrem num espago diferenciado da escola, no caso, o museu. Assim, considerou-se nesta pesquisa 0 museu como uma instituiggo didética e, neste sentido, para além das transposicdes didéticas que ocorrem neste local, seria mais adequado falar em transposigSes institucionais, sendo estas mais amplas que as didéticas, como aponta 0 préprio Chevallard. Logo, considerou-se que, para além do saber sibio, outros elementos determinam 2 elaborago do saber ensinado, no caso, 0 “saber exposto”, A catitica de Caillot, que reclama a participaglo de outros-atores na noosfera além daquetes apontados por Chevallard, faz com que a nogao de transposigo didatica saia dos campos restritos da universidade/centros de pesquisa ¢ da escola ¢ penetre nas priticas sociais mais amples. & interessante verificar que Caillot (1996:22) aponta a perspectiva da sociologia do curriculo como forma de criticar a idéia do saber sébio como Gnica referéncia do saber a ser ensinado. Esta perspectiva mostraria “outras forgas” que esto presentes na construedo do curriculo, questionando assim a proposta de Chevallard. 0 mesmo faz Lopes (1999) quando cita os autores dos estudos sobre a Histéria da Disciplina que, em seus trabathos, indicam que as opgdes por contetides © ‘métodos feitas no contexto escolar nao se dao somente no dmbito do saber sibio, Com base nessas reflexdes, poderia se afirmar que existiriam outras “transposigées” ¢ nfo 36 a do saber sabio durante a construgio do saber escolar, como indica Develay (apud Lopes, 1999). Chevallard, por um lado, esteve preocupado em mapear © que acontece com o saber sibio ao ser transposto. Entretanto, haveria outros saberes que poderiam servir de referéncia na constituigao dos contetidos de ensino, como reclamam os eriticos & teoria da transposiedo didatica. Esses saberes no seriam transmitidos em estado puro e também passariam por processos de didatizacdo, nos moldes da definigio de mediagao didética proposta por Lopes. Como indica esta autora “(.) O termo transposicéo tende a ser associado a idéia de reproduga movimento de transportar de um lugar a outro, sem alteragdes. Mais ® ara lembrar, Chevallard (1991) afirma que uma insttuigdo pode utilizar, ensinar, producir ow transpor um saber. Essa seriam as formas de manipulaedo exercida institucionalmente sobre os saberes. 133 coerentemente, devemo-nos referir a um processo de mediacao diditica. Todavia, ndo no sentido genérico, agao de relacionar duas ou mais coisas, de servir de intermedidrio ou “ponte”, de permitir a passagem de uma coisa a outra, Mas no sentido dialético: processo de constituigdo de uma realidade através de mediagdes contraditérias, de relagies complexas, néo intermediatas, com um profundo sentido de dialogia”. (Lopes (1997:564) Outro aspecto critieado no conceito de transposigio diditica ¢ 0 fato do saber sibio ou cientifico ndo ser um bloco homogéneo de conhecimento, Além da histéria e da epistemologia ser particular a cada érea da ciéncia, no interior de cada uma delas hé controvérsias, embates e niveis diferenciados de construgio. A Biologia, como péde ser visto no capitulo III, é um exemplo de cigncia que apesar de jé estar consolidada em termos de legitimidade, vive até hoje profundos desafios quanto a sua unificago e autonomia. Percebe-se, desta forma, alguns limites na aplicagtio direta da transposicio didética para 0 campo da Biologia ¢ estudos devem ser feitos nesta perspectiva. As criticas feitas a0 conceito de transposigdo didatica de Chevallard podem também ser ampliadas para 0 conceito de transposigao museogrifica’ Neste sentido, considera-se que na constituigo do objeto de divulgagdo da ciéncia nos museus, diferentes saberes, originados de variadas instituiges de produgdo de conhecimento e de priticas sociais, poderiam servir de referencia, Tais saberes, no processo de transposigZo museografica, seriam mediados (no sentido indicado por Lopes), resultando no saber exposto, Por um lado, hé o saber sibio, com uma natureza propria e com especificidades correspondentes a cada area do conhecimento. Por outro, para @ anzlise do saber escolar ou museal, outros saberes poderiam ser ponto de partida, cada um deles com sua natureza particular. Além disso, ndo se pode esquecer que, entre esses saberes existe uma relagdo de poder ¢ legitimago social. Como na sala de aula, também na exposigio cientifica de museus tais saberes se encontram em didlogo/conflito, constituindo nesta relagio um novo objeto de ensino ¢ divulgagdo, um novo texto do saber. Sala de aula ¢ exposigio sio vistas assim como espagos de conffito e/ou didlogo entre diferentes saberes. ‘A idéia de transposigao didética diz respeito & passagem de um conhecimento de um contexto para outro, sendo que nesta passagem hé uma nova configuragao e uma reelaboragio desse conhecimento, com vistas a0 seu ensino. O conhecimento produzido com esse fim ¢ elaborado a partir do referencial pedagégico e no mais do cientifico, j4 que possui objetivo diferenciado do conhecimento produzido no ambito da ciéncia. ‘Assim, por uma lado, 0 referencial teérico da transposigo diditica/museogréfica ajuda a pereeber que, na construgdo de exposigdes cientificas, o saber cientifico é um dos elementos que fazem parte da construgio do saber exposto. Contudo, outros fatores também entram no jogo da construsio do saber apresentado nas exposigdes. As consideragdes feitas tomaram por referéncia no 86 as eriticas ao conceito de transposi¢ao didatica, mas também os dados obtides na pesquisa em questo, Na medida em que outros aspectos, relacionados a outros campos do conhecimento, & prépria prética muscol6gica, as colegdes ¢ & histéria dos museus de ciéneias, entre outros, surgiram como participantes no jogo de construgdo das exposigées, 0 foco da tese se direcionou para a relagio entre esses elementos — sejam eles saberes ou nao®. Os questionamentos sobre 0 conceito de transposigo didética surgidos ao longo da elaboragdo desta tese levaram @ procura de outros referenciais que pudessem auxiliar na compreensio do processo transformago do saber cientifico na elaborayao das exposigdes e, desta forma, o trabalho de Bernstein (1996) foi entdo utilizedo c sera apresentado a seguir. IV.3.2 - © Discurso Pedagégico e 0 conceito de Recontextualizactio de Bernstein Bernstein (1996) & um socidlogo da educag4o que analisa a estruturagio social do discurso pedag6gico ¢ das formas de sua transmissdo ¢ aquisigdo, interessando-se, em especial, pela relagio entre as estruturas de classe - com as desigualdades sociais - a linguagem da educagio. ‘Ao abordar o tema da construgdo social do discurso pedagégico, Bernstein (1996:229) afirma que a Sociologia da Educago ndo tem dado atengao as caracteristicas da forma especializada de comunicagio do discurso pedagégico © que as anilises deste campo tém tomado como dado o proprio discurso, que o objeto de sua anslise. Segundo ele, as teorias da reprodugao: “(..) véem 0 discurso pedagégico como meio para outras vozes: classe, género, raga. Os discursos da educagdo so analisados por sua capacidade para reproduzir relacdes dominantes/dominados que, embora externas ao discurso, penetram as relagées sociais, os meios de transmissdo e a avaliagdo do discurso pedagégico. Considera-se, fregitentemente, que a voz da classe operdria é a voz ausente dos discurso pedagdgico, mas argumentaremos aqui que 0 que esté ausente do discurso pedagégico € a sua prépria voz”. (Ibid,) Através de seu trabalho, Bemstein pretende dar “um passo possivel em diregio 4 especificagio dos principios de ordenamento intrinsecos & produgdo, reprodugtio ¢ mudanga do Ou, se considerarmas as colocagtes de Tardif (2000), seriam “equisitisses epistemologicas”, saberes com um estatuto diferente do sabres legtimados epistemologicamente. BBs discurso pedagégico”. Neste sentido, este autor vai discutir intensamente as teorias da reprodugao, afirmando que essas esto mais preocupadas “com uma anilise do que € reproduzido na (e pela) educago do que com uma andlise do meio de reprodugo, com a natureza do discurso cespecializado”. como se 0 discurso especializado da educagao fosse apenas wna voz através da qual outras vozes falam (classe, género, religido, raca, regio). E como se o discurso pedagégico fosse ele préprio ndo mais que 0 condutor para as relagdes de poder externas a ele; um condutor cuja forma ndo tem qualquer consegiiéncia para aquilo que & conduzido” (Ibid. p. 231). Em sua critica as teorias da reprodugdo, Bernstein tem a preocupagao de garantir que uma teoria da reprodus2o cultural seja capaz de, entre outras coisas, “lidar com os problemas de traduco centre os niveis, utilizando a mesma linguagem (...). Além disso, essas teorias deveriam ser capazes de lidar com a produgao, a transmissto e a aquisiga0 da cultura pedagégica” (Idem., p. 235) Bernstein procura entdo indicar as relagbes fundamentais de iuina teoria de conmmicagio pedagégica e, para isso, analisa as condigdes de constituigdo do texto pedagégico. (...). Na verdade, com respeito a tiltima, ‘aquisigdo’, se formos incapazes de especificar as regras que regulam a construcdo, representacdo € contextualizagdo do ‘texto privilegiante’, isto é, de especificar as ‘relagBes no interior de’, entdo ndo podemas saber 0 que foi adquirido, seja positivamente, seja negativamente. E se ndo conhecemos essa relagéo, entéo em que sentido podemos falar de reprodugao, resisténcia, transformacGo? (Idem,). Desta forma, este autor inicia a construgao de seu modelo de estudo do discurso pedagogico, através da definigiio dos conceitos de dispositivo lingtistico e dispositive pedagdgico. Ambos so regidos por regras estiveis, no entanto, as regras que regulam a comunicago que surge do dispositivo so varidveis ou contextuais. O dispositivo linggiistico diz respeito ao sistema de regras, formais que regem as distintas combinagdes que fazemos ao falar ou escrever. Jé 0 dispositive pedagégico possui um ordenamento interno que determina as condigdes de produedo, reprodugio ¢ transformacdo da cultura. Para se entender como se dio esses processos, & necessério, para Bernstein, compreender a base social da distribuigio do poder € os prinefpios de controle que fazem parte do jogo, jé que entre o poder ¢ 0 conhecimento ¢ entre 0 conhecimento € formas de consciéncia encontra-se 0 dispositive pedagégico. Assim, para Bernstein, “este dispositive fomece a gramitica intrinseca do discurso pedagégico, através de regras distributivas, regras recontextualizadoras © regras de avatiagao” (Bernstein, 1996:254), as quais estto hierarquicamente relacionadas. 136 “Essas regras distributivas regulam a relacdo fundamental entre poder, grupos sociais, formas de consciéncia e pratica e suas reproducbes e producdes. As regras recontextualizadoras regulam a constituigéo do discurso pedagogico especifico. As regras de avaliagdo sao constituldas na prdtica pedagdgica (...)” (ibid) Para explicar as regras distributivas, Bernstein parte da idéia de que existem duas classes de conhecimentos: o mundano, possivel, pensével e 0 esotérico, impossivel, impensavel. Sabendo que a linha diviséria entre essas duas classes de conhecimentos depende do periodo histérico das sociedades, ele afirma que o controle sobre o impensivel recai sobre o ambito do sistema escolar responsivel pela produgdo do conhecimento. Fé 0 pensével, por outro lado, recai sobre os niveis inferiores do sistema escolar, niveis esses mais reprodutivos do que produtives. No entanto hé uma lar entre © conhecimento “mundano” e o “transcendental” e no processo de relagio par estabelecimento desta relagio, cria-se uma lacuna, um espago entre o material ¢ o imaterial, o local do impensivel, do “potencial do ainda @ ser pensado”. Este potencial tende a ser controlado regulado pela distribuigdo do poder, “no interesse do ordenamento social que ele cria, mantém ¢ legitima” (Bernstein, 1996:256). Segundo este autor, na linguagem dos cédigos, o chamado eédigo elaborado é 0 principio que regula suas orientagdes, é 0 condutor cultural/pedagdgico, sio os meios para se pensar o “impensdvel” pois através deles se embute 0 contexto local no contexto transcendental, estabelecendo assim a relagdo entre esses dois ambitos. As relagdes entre poder, conhecimento ¢ formas de conseincia ¢ pritica so feitas através das regras distributivas do dispositivo pedagdgico. Através dessas regras, 0 dispositivo pedagégico representa o controle sobre impensavel sobre aqueles que podem pensa-lo, controla o processo de embutir o material no imaterial, 0 mundano no transcendental, Em sintese, as regras distributivas slo aquclas pelas quais 0 dispositive pedagégico controla a relagio entre poder, conhecimento, formas de consciéneia e pritica no nivel da produgio do conhecimento. Através delas o dispositive pedagégico controla o impensivel, a produgio do conhecimento. Elas marcam e distribuem quem pode transmitir 0 qué, a quem e sob que condigdes & assim tenta estabelecer limites interiores e exteriores ao discurso legitimo. Logo, 0 discurso pedagégico é a regra de comunicago especializada onde os sujeitos pedagdgicos sio criados. No que se refere as regras recontextualizadoras, Bernstein entende que o discurso pedagégico pode ser definido como as regras para embutir ¢ relacionar dois discursos ¢, nesse proceso de relagdo, 0 discurso da competéncia, instrucional é embutido no discurso regulativo, de ordem social. Em se tratando de um principio que desloca outros discursos de sua pritica ¢ contexto 137 segundo sua légica, a0 deslocar e recolocar o discurso original, este & transformado. O principio recontextualizador do discurso pedagégico age de forma seletiva, apropriando, refocalizando e relacionando outros discursos, a partir de sua prépria ordem, tormando-o assim um outro discurso, Bemstein chama aten¢o para o fato dos textos produzidos pelo principio recontextualizador tenderem a proclamar seu carter tinico, negando a intertextualidade e afirmando uma autoria exclusiva. O campo recontextualizador transforma a intertextualidede do texto em intratextualidade ¢, 20 embutir o discurso instrucional no discurso de ordem social, produz uma especializagio do tempo, do texto (ou equivalente metaférico), do espago e das condigdes da inter-relag’o, Logo, na pratica, o discurso pedagdgico confere uma especiatizacao ao tempo, transformando, por exemplo, 0 texto num contetido especial relacionado com a idade: “A prética pedagégica cria uma autorizagio para falar em suas préprias marcagdes, em suas proptias divisdes temporais” (Ibid., p.262). Quanto as regras de avaliagdo, Bernstein vai afirmar que a chave da pritica pedagégica é a avaliagio continua ¢ esta se encontra na relago entre a aquisig&o e a transmisso do conhecimento. Assim, as regras distributivas estariam relacionadas ao nivel de produgio do discurso, as regras recontextualizadoras, ao nivel da transmissio ¢ as regras de avaliagdo, ao nivel da aquisi¢ao. Bernstein distingue trés contextos fundamentais dos sistemas educacionais. O contexto primério scria 0 da produgio do discurso e rofere-se ao processo de criago e modificagao seletiva de novas idéias, formando 0 “campo intelectual” do sistema educacional. Este ¢ criado pelas posigdes, relagées e priticas da produgio ¢ ndo da reprodugdo do discurso educacional ¢ suas -priticas. O contexto secundério seria o da reprodugao seletiva do discurso educacional e é formado por varios niveis — pré-escolar/primério, secundario e tercidrio, agéncias, posigdes e priticas. O terceito contexto proposto ¢ 0 recontextualizador, no qual as posigdes, agentes e priticas estio preocupados com os movimentos de textos e praticas do contexto primario de produgdo discursiva para o secundario, de reproduedo discursiva. A fangdo daqueles que se encontram nesse contexto & a de regular a circulagao dos textos entre os dois outros contextos. O campo recontextualizador pedagégico oficial seria composto, para Bemstein, pelos “departamentos especializados do Estado ¢ as autoridades educacionais locais, juntamente com suas pesquisas ¢ sistema de inspegao”. JA 0 campo recontextualizador pedagdgico mais amplo inclui as universidades © seus departamentos/faculdades de educago, com suas pesquisas, mas também as fundagdes privadas, os “meios especializados de educagio, jornais semanais, revistas, etc. ¢ as editoras, juntamente com seus avaliadores e consultores” ¢ pode se estender “para campos nfo especializades do discurso educacional”, mas que exercem influéncia sobre o Estado (Idem., p.270). 138 Segundo Bersntein, o discurso pedagégico é definido pelas “regras para embutir¢ relacionar dois discursos”. Esta regra, que & 0 proprio discurso pedagégico, embute o discurso da competéncia num discurso de ordem social, “de uma forma tal que o iltimo sempre domina o primeiro” (Ibid., p. | 258). Assim, para Bernstein, o discurso instrucional € aquele que transmite as competéncias | especializadas ¢ sua mitua relago ¢ o discurso regulative é aquele que cria a ordem, a relagao e a j identidade espocializadas. | “As regras que constituem o discurso pedagégico nao sao derivadas das regras que regulam as caracteristicas internas das competéncias a serem transmitidas. Num sentido importante, 0 discurso pedagégico, desse ponto de vista, é um discurso sem um discurso especifico. Ele nao tem qualquer discurso proprio, O discurso pedagégico é um principio para apropriar outros discursos € polocd: los numa relagdo miitua especial, com vistas a sua transmissio e aquisigiio Seletivas, O discurso pedagégico é, pois, um principio que tira (desloca) um “iseurso de sua pritied e contexto substantivos e reloca aquele discurso de acordo Gam seu proprio principio de focalizagdo e reordenamentos seletivos. Nesse processo de deslocacto e relocagio do discurso original, a base social de sua Pnitica (incluindo suas relagdes de poder) é eliminada. Nesse processo de Teslocagio e relocagdo, 0 discurso original passa por uma transformagio: de uma prética real para uma prética virtual ou imagindria. O discurso, pedagdgico ria sujeitos imagindrios”, (Bernstein, 1996:259) Neste sentido, 0 autor vai refinar o prineipio de constituigao do discurso pedagégico: "(.) Trata-se de um principio recontextualizador que, seletivamente, apropria, reloca, refocaliza e relaciona outros discursos, para constituir sua propria ordem e seus préprios ordenamentos. Neste sentido, 0 discurso pedagdgico no pode ser identficado com quaisquer dos discursos que ele vecontextualiza. Ele ndo tem qualquer diseurso préprio que ndo seja um discurso recontextualizador” (Ibid.) Segundo Bernstein, 0 processo de recontextualizagio torna o diseurso recontextualizado diferente dele préprio e 0 que varia neste “outro” discurso dependera dos principios dominantes de | uma dada sociedade. Para explicar como se di essa recontextualizagao, o autor exemplifiea através da aquisigio da Fisica na escola secundlria. Afirma ele que esta Fisica é resultado de principios | recontextualizadores que fizeram uma selecao ¢ a deslocaram do contexto primario da produgao do equivalentes) para 0 contexto secundirio da reprodugdo do ' discurso (universidades ou agénci discurso: “Neste processo, a Fisica sofre uma complexa transformagao: de um discurso original para wm discurso virtualfimagindrio. As regras de relagio, ‘seleedo, seqiienciamento e compassamento (a velocidade esperada de aquisico das regras de seqitenciamento) néo podem, elas préprias, ser derivadas de 139 alguma légica interna a Fisica, nem das priticas dagueles que produzem Fisica. ‘AS regras da reproducdo da Fisica sdo fatos sociais, no légicos. As regras de recontextualizagao regulam néo apenas a seleco, a seqiiéncia, o compassamento eas relacdes com outros sujeitos, mas também a teoria de instrugito da qual as regras de transmissdo sao derivadas (..). A forga da classificagio e do enquadramento da Fisica recontextualtzada é, ela prépria, no final, wma caracteristica do discurso regulative. O discurso pedagégico €, pois, um principiofdiscurso recontextualizador que embute a competéncia na ordem ¢ a ‘ordem na competéncia, ou, mais geralmente, 0 cognitivo no moral e 0 moral no cognitive (..)” (Bernstein, 1996:261) Bernstein ainda indica que quando um texto é apropriado por agentes recontextualizadores, soffe uma transformagao antes de sua relocagao. Assim, “A forma dessa transformacao ¢ regulada por um principio de descontextualizagdo”, que assegura que o texto nao é mais 0 mesmo. Destacam-se ainda dois aspectos importantes do trabalho de Bernstein para a compreensio do processo de constituigdo do discurso pedagégico. Em primeiro lugar, segundo este autor, a atividade prineipal do contexto recontextualizador é constituir 0 “qué” © o “como” do discurso pedag6gico. © “qué” seria uma recontextualizagdo a partir dos campos intelectuais (Fisica, Inglés, Histéria) © expressivos (Artes) ¢ 0 “como” se refere a recontextualizagao de teorias das Ciéncias Sociais, principalmente da Psicologia. Esse campo recontextualizador pode produzir subcampos especializados relativos a ntveis do sistema educacional, a curriculos, a grupos de alunos, sendo possivel distinguir entre as agéncias de reprodugio pedagégica, dentro de limites amplos, aquelas que podem determinar sua recontextualiza¢lo, independentemente do Estado. Assim, a determinagao de quais sto os contextos de discurso pedagégico da reproducio “depende da autonomia relativa concedida aos niveis ou agéncias, no diferentes niveis do sistema educacional” (Bernstein, 1996:279). Por sua vez, a escola “pode incluir, como parte de sua pritica recontextualizadora, discursos da familia, da comunidade, das relagées de colegas do adquirente, para propésitos de controle social, a fim de tomar seu préprio discurso regulativo mais eficaz”. Estes outros discursos também podem exercer sua prépria influéncia sobre 0 campo recontextualizador da escola, afetando a sua pritica. Existe assim uma dinémica entre posigdes, agentes, praticas nos trés contextos, sendo possivel ocuparem diferentes contextos, dependendo da autonomia concedida a eles. Como indica 0 autor, o que é “impensdvel” e “pensével”, a forma de regulagao, a composigao social do diferentes agentes podem variar de uma situagdo historica para outra, podendo, no campo pedagégico, ao nivel da universidade ou de instituigo equivalente, aqueles que produzem 0 novo conhecimento serem seu proprios recontextualizadores. 140 Bernstein afirma que o scu modelo permite uma dindmica interna considerdvel na producZo, Gistribuigao, reprodugio © mudanga do discurso pedagégico, jé que os préprios principios istribuigdo do. dominantes ~ express4o da relagio entre os grupos dominantes ¢ regulados pela poder — se referem a uma arena de conflito, em vez de significarem um conjunto estivel de relagées. Logo ha uma fonte potencial ou real de conflito, resisténcie e inércia entre os agentes politicos administrativos do campo recontextualizador oficial, entre as posigdes no interior do campo recontextualizador pedagégico ¢ entre ele e 0 campo recontextualizador oficial. Também esté presente 0 contexto cultural primério do adquirente (familia/comunidade, relagdes no grupo de colegas) as priticas e principio recontextualizadores da escola. Além disso, os transmissores podem se ver incapazes on pouco dispostos a reproduzir 0 eédigo de transmisséo esperado” (Ibid, p.280). ‘Com essas palavres, 0 autor em questo caracteriza a complexa dindmica de relagdes entre poder, discurso pedagégico e formas de consciéncia, reforgando com sua critica as teorias reprodutivistas, j4 que considera as relagdes entre os diferentes discursos repleta de conflitos, resistencias ¢ inércias. > “Uma vez que todo discurso & um discurso recontextualizado, todo discurso e seus subseqiientes textos sao ideologicamente reposicionados no processo de sua transformagao do campo original de sua produgio ow existéncia para o campo de sua reproducdo. (..) Finalmente, 0 modelo mostra qudo complexo é 0 processo entre 0 movimento inicial (circulagao) de um discurso € 0 efeito desse discurso sobre a consciéncia e 0 pasicionamento especifico do cadquirente” (Idem) Assim sendo, utilizou-se, nesta pesquisa o conceito de “discurso pedagdgico” apresentado por Bemstein (1996). Para este autor, a priitica pedagégica é um condutor de cultura, um dispositive humano de reprodugao e produgao de cultura, O discurso pedagégico € aquele que, na pritica pedagégica, embute o discurso de competéncia num discurso de ordem socil.®' Desta forma, 0 conceito de discurso pedagégico de Bemstein néo se restringe s eompeténcias relativas a0 campo de conhecimento especifico, mas inclui — e submete - este discurso instrucional a0 contexto social e suas regras. Na pesquisa aqui desenvolvida trabalhou-se com museus de cigncias. No campo da museologia, um dos procedimentos inerentes pritica museolégica ¢ 0 da elaboragao de “discursos "Em seus trabathos sociolingtistcos, Bemstein distingne quatro contextos de socializacio, entre ees ctam-se dots: 0 contexto regulativo, “que diz respeito is relagdes do autridade, nas quss a crianga se toraa consiente das regras de 141 expositivos™?, Se a pratica museolégica comporta agdes educativas através das exposigdes, seria possivel caracterizar 0 discurso expositivo como um tipo de discurso pedagégico, nos termos de Bemstein? Serd a pritica das agdes educativas levadas a cabo nos Museus a exemplo da pritica pedagégica que ocorre na escola? A opsao pelo referencial tedrico de Bernstein se deu, em um primeiro momento, pela idéia de que este discurso expositivo tivesse muitas semethangas com 0 discurso pedagdgico. No movimento histérico dos Museus de Histéria Natural ¢ dos Museus de Cigncias ¢ Tecnologia, as perspectivas educacionais foram sendo assumidas intensamente na concepeao de suas exposigdes, 0 que parece aproximar o discurso pedagégico daquele expositivo. De qualquer forma, a possibilidade ‘Ancias entre ambos os discursos ser discutido no decorrer da de identificagZo de semethangas & tese. Os saberes que entram no jogo da construgsio das exposigbes sto de diferentes campos, como foi percebido na pesquisa em questo. Na verdade, mais do que saberes, so efetivamente os discursos dos diferentes campos do conhecimento que fazem parte deste jogo. Como discurso entende-se um “efeito de sentido entre interlocutores, enquanto parte do funcionamento social geral. Fntio, os interlocutores, a situago, © contexto histérico-social, i, ¢. as condigdes de produgdo, constituem o sentido da seqincia verbal produzida” (Orlandi, 1996:26). Com base nessas consideragdes ¢ nos dados obtidos na pesquisa em questo, percebeu-se que a categoria “discurso” era mais adequada para a compreensio do processo de constituigdo das exposigdes. Esta categoria & mais abrangente do que a de “saber”, no sentido utilizado pelos autores escolhidos, ¢ incorpora as relagées sociais de produgiio e reprodugao do conhecimento, indo além do Ambito intemo da propria génese e histéria da ciéncia de um determinado saber, para uma dimenso ‘mais sociolégica ¢ mesmo cultural desta produgio. ‘Assim, a op¢ao por analisar 0 discurso expositivo — nfo somente 0 saber expositivo - implicou # adogdo de um referencial mais amplo, que reconhece 0 processo de transposigao diddtica/museogréfica, mas que fosse para além dele. Configurou-se assim como objeto de pesquisa o-estudo dos processos recontextualizadores que ocorrem na construgio do discurso expositivo, corde moral e seus vérios tipos” e o contexto instrucional “no qual a crianga aprende sobre a natureza objetiva dos objetos, pessoas e adquite destrozas de varios tipos” (Bernstein, 1996:296). *'No campo educacional, costuma-se utilizar o termo “expositivo” para caracterizar um tipo de pritica pedagégica paulada na transmissio do conhecimento, em contraposi¢2o a uma prética pautada na construgio deste. No caso dos ‘Museus, 0 “discurso expositive” é o discurso “da exposigao”, nto se tratando assim de uma quaificagae deste tipo de discurso. 2 entendendo que tais processes no se restringem ao ambito dos saberes de referéncia — sua historia e epistemologia, mas que englobam também outros elementos. Do ponto de vista metodolégico, as opgdes tomadas durante a realizagio da pesquisa acabaram também por determinar 0 caminho na diregdo de uma anilise que transcendeu 0 aspecto da transposigdio dos saberes € centrou-se na construgao do discurso expositivo, Como foi visto, optou-se por analisar cinco exposigdes que tratavam de temiticas biolégicas. Fm se tratando de museus que abordavam diferentes aspectos do conhecimento biolégico, ndo houve a sclegiio de um contetido ou conceito especifico para anilise do processo de transposigo. Assim, ao adotar essa perspectiva mais abrangente e diversa, no foi possivel analisar o caminho percorrido por um conceito desde sua origem, no ambito da produc cientifica, até sua apresentagdo nas exposiges. Entretanto, a partir da andlise realizada, foi possivel 0 estudo do processo de construgdo do discurso expositivo, entendendo assim de forma mais ampla essa pritica social. Os dados obtidos dessa anélise so fundamentais para a ‘compreensio deste processo pelos profissionais envolvidos e tem por fungéo auxiliar na determinagio de priticas e-de politicas ligadas & elaboragtio de exposigdes e ao planejamento € avaliagio de ages sociais e educativas em museus de ciéncias. Através deles também foi possivel aprofundar 0 que tem sido chamado de pedagogia museal, compreendendo melhor a relaydo entre o campo cientifico, ‘educacional ¢ 0 museolégico. No que se refere ao saber especifico, no caso 0 conhecimento biolégico, a opeo tebrico- ‘metodolégica adotada levou A percepedio de que existe, por um lado, uma grande diversidade na forma de abordar os diferentes aspectos pertencentes a este campo de saber, tendo por base as diferentes concepgées ¢ paradigmas da Histéria Natural e da Biologia. Nesse sentido, como seré visto, a idade do discurso biolégico € também um elemento a ser considerado na claboragio de IV.4 - OS ESTUDOS SOBRE A CONSTRUCAO DO DISCURSO EXPOSITIVO NOS MUSEUS (Os museus so espagos que possuem uma cultura prépria. Esta afirmagio tem por base 0 conceito antropolégico de cultura apresentado por Geertz (1989, apud Gohn, 19:28)", o qual dofende o conceito semidtico para o termo, como teias de significados e a sua anilise. Assim, estudar a © Gohn (1999) em um dos capinulos do fivro “Educag20 Nao-Formal © Cultura Politica’, apreseuta as diferentes perspectives fileséficas, histiricas, marxista, antropolégica, sociolbgica,psicol6gica, lingistica e poltice sobre a nogao de cultura 143

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