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Copyright © 2008 Livraria ¢ Faitora Lumen Juris Ltda ‘Categoria: Direitos Humanos PRoDUGKO EDITORIAL Livraria e Editora Lumen Juris Leda ALIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. iio se responsabiliza pelas opiniGes emitidas nesta obra, E proibiéa reprodusio total ou parcial, por qualquer ve quanto as caraceristicas ‘A violagio de direitos Penal, at. 184 §§,€ Le 2/1980), sujitando-se & busca e a indenizagdes diversas (Lei n® 9.610/98). rupresso no Brasil Printed in Brazil Igualdade, Diferenga e Direitos Humanos Redistribuigao, Reconhecimento e Participacao: Por uma Concepgao Integrada da Justiga Nancy Fraser* No mundo de hoje, as demandas por justia social parecem, cada vez ‘mais, dividir-se em dois tipos. As primeiras, e as mais comuns, slo as deman- das redistributivas que buscam uma distribui¢do mais justa de recursos e bens. (Os exemplos incluem demandas por redistribuicdo do Norte para 0 Sul, dos ricos para os pobres, e (hé no muito tempo) dos proprietirios para os traba- Thadores. Com certeza, 0 reaparecimento recente do pensamento do livre mercado pés os defensores da redistribuigdo na defensiva. Nao obstante isto, ‘demandas por redistribuicdo igualitaria forneceram o caso paradigmético para ‘a maior parte da teorizacdo sobre justiga social nos iltimos 150 anos. Hoje, entretanto, nés cada vez mais encontramos um segundo tipo de ‘demanda por justiga social, uma demanda que tem sido chamada de “a politi- ca do reconhecimento”. Aqui o objetivo, na sua forma mais plaustvel, é con- tribuir para um mundo amigo da diferenca, onde a assimilacdo a maioria ou as normas culturais dominantes nao ¢ mais 0 preco do igual respeito. Os exemplos incluem demandas por reconhecimento das perspectivas diferencia doras de minorias étnicas, “raciais” e sexuais, assim como da diferenca de politicos, além disso, alguns deles esto procurando desenvolver um novo paradigma de justica que pée 0 reconhecimento no seu centro. Steven Lukes, ane Navey Frater temente dividido entre demandas por redistribuicdo, de um lado, e demandas por reconhecimento, de outro. Cada vez mais, também, as demandas por reco- nhecimento tendem a predominar. A derrocada do comunismo, 0 ressurgi- mento da ideologia do livre mercado, 0 aumento da “politica da identidade” ~ tanto em sua forma fundamentalista quanto progressista ~ todos esses desen- volvimentos tém conspirado para retirar da posicao central, se no até para extinguir, a politica da redistribuicdo, ‘Neste novo panorama, os dois tipos de qiientemente dissociados um do outro ~ tanto pra ‘Nos movimentos sociais como o feminismo, por exemplo, tendéncias ativistas, que vislumbram a redistribuigao como 0 remédio para a dominagio masculi- na esto, cada vez mais, dissociadas das tendéncias que, ao invés, visualizam 0 reconhecimento da diferenca de género. E 0 mesmo ¢ verdadeiro para os seus companheiros na academia, onde as teorias sociais e as teorias culturais femi nistas mantém uma dificil relacio de queda de braco. O caso do feminismo ‘exemplifica uma tendéncia mais geral que separa a politica cultural da dife- itica social da igualdade, 8, a dissociagao tornou-se uma polarizagio. Alguns proponentes da redistribuigao rejeitam completamente a p reconhecimento, considerando as demandas pelo reconhecimento da diferen- ga como uma “falsa consciéncia”, um obstéculo & busca da justiga social Inversamente, alguns proponentes do reconhecimento aplaudem 0 relativo ar experiéncias-chave de ado como de classe \das de justiga estdo fre- ‘4 quanto teoricamente. eclipse da politica de distribuicdo, aq) ultrapassado que nao pode nem articula injustica. Nestes casos, nés estamos diante dag ‘uma escolha disjuntiva: redistribuicdo ou reconhecimento? Pol ou politica da identidade? Multiculturalismo ou democracia soci Estas, eu defendo, sio falsas antiteses. Minha tese geral é a de que tiga requer i¢io quanto reconhecimento. Nenhum deles 80% ho 6 suficiente. Téo logo alguém endosse esta tese, todavia, a questio sobre como combiné-Ios torna-se primordial. Argumentarei que 0s aspectos eman- cipatérios dos dois paradigmas devem ser integrados em uma tinica e abran- gente estrucura, Teoricamente, a tarefa é desenvolver uma concepcao bidi- ‘mensional da justica que possa acomodar tanto demandas d is pela igualdade social quanto demandas defensiveis pelo reconhecimento da dife renga, Na pritica, a tarefa é construir uma orientagao p\ que integre o melhor da politica de redistribuigao com o melhor da do reconhecimento. 1168 | | Meu argumento se divide em quatro etapas. Na segio I, eu apresentarei os pontos-chave do contraste entre os dois paradigmas politicos, da maneira como eles sao compreendidos atualmente. Em seguida, na seco II, eu proble- matizarei a sua atual dissociagdo miitua, apresentando um caso de injustica que no pode ser reparado por nenhum dos modelos sozinho, mas que re a sua integracio. Finalmente, considerarei algumas questées filos6fico-nor- mativas (se¢a0 III) e algumas questées sécio quando nés contemplamos de maneira incegrada re mento em uma tinica estrutura abrangente. 1, Anatomia de uma Falsa Antitese Eu comeso com algumas di 1 inigBes denotativas. A politica da redistri- buicdo, como a compreendo, engloba nio s6 orientagdes centradas em classes. sociais, como o liberalismo do New Deal, a social democracia ou o socialismo, sas também aquelas formas de feminismo e anti-racismo que vislumbram as reformas s6cio-econémicas como 0 remédio para as émico-raciais. Portanto, é mais ampla do que pol convencional. A pol somente movimentos justigas de gén -a de classe no sentido , em contraste, engloba nio depre- como a queer politics, a politica racial 1¢ rejeitam 0 “essencialismo” da p is ampla que a politica da identidade no sentido conve Em geral, entdo, eu me oponho a presungio raga”. Mais exatamente, eu trato re igo € reconhecimento como dimensées da justica que podem permear todos os movimentos sociais. Assim compreendidas, a politica da redistribuicao e a politica do reconhe- cimento podem ser contrastadas em trés aspectos-chave. Pri abordagens pressupdem diferentes concepcdes de injustiga. A p tribuigdo enfoca as injustigas que define como séci estarem enraizadas na economia politica. Os exempl econémicas e presume incluem exploracio, Nancy Fraser ‘marginalizac3o econdmica e miséria. A politica do reconhecimento, ao contra- ira injustigas que entende como culturais, as quais presume estarem enraizadas nos padtées sociais de representacao, interpretacdo e comunicacio. (Os exemplos incluem dominagdo cultural, nao-reconhecimento e desrespeito. Segundo, as duas abordagens propéem diferentes tipos de remédios para a injustiga, Para para a injustiga é a reestruturacao politico-econémica. Isto envolveria redistribuigdo de renda, reorganizagio da divisio do trabalho, ou transformagdo de outras estruturas, econdmicas basicas. (Muito embora esses diferentes remédios difiram bastan- te entre si, eu pretendo me referir ao grupo como um todo pelo termo gené- rico “redistribuicao”). Para a politica do reconhecimento, ao invés, o remédio para a injustica é a transformac3o cultural ou simbélica. Isto envolveria, sobretudo, a reavaliagio de identidades desrespeitadas, a valorizacio positiva da diversidade cultural, ou a total e a completa transformacio dos padrdes societérios de representaco, interpreta¢do e comunicacdo, de maneira que mudariam a identidade de todas as pessoas. (Muito embora estes remédios também difiram bastante entre si, eu me refiro, novamente, a0 grupo como ‘um todo pelo termo genérico “reconhecimento”). Terceiro, as duas orientagées politicas pressupdem concepcées diferentes idades que sofrem injustica. Para a politica da redistribuicao, os sujeitos coletivos da injustica sio classes sociais ou coletividades andlogas a classes (class-like), os quais sio definides economicamente por uma relacio caracteristica com 0 mercado ou com os meios de produgio. O caso classico, no paradigma marxista, é a classe trabalhadora explorada. Mas a concepcio pode abarcar outras classes ainda. Também esto inchuidos os grupos “raci zados” de imigrantes ou minorias étnicas que podem ser economicamente definidos, seja como um conjunto de humildes trabalhadores mal remunera- dos ou como uma “subclasse” largamente excluida do mercado de trabalho assalariado, considerados “supérfluos” e indignos de exploracio. Além disso, quando a nocao de economia ¢ ampliada para englobar trabalhadores nio jos, também as mulheres tornam-se visiveis ou reconheciveis como justica econémica, como 0 género sobrecarregado rte pesada do trabalho doméstico ndo assalariado e, conseqiiente- svantagem no mercado de trabalho. Também esto incluidos, finalmente, os grupos complexamente definidos que resultam quando teoriza~ ‘mos a politica econdmica em termos de interseccdo de classe, “raca” e género. Paraa do reconhecimento, em contraste, as vitimas da injustica parecem-se mais com os grupos de status weberianos do que com as classes marxistas. Definidos nao pelas relagdes de produgio, mas principalmente rio, 170 r Redisribuici Por uma Concepes pelas relacdes de reconhecimento, eles sio distinguidos pela menor estima, honra ou prestigio que desfrutam em face de outros grupos na sociedade. O caso clissico no paradigma weberiano é 0 do grupo étnico de baixo stacus, marcado pelo padrdo cultural dominante como diferente e menos valioso. Mas a concepgio pode englobar outras classes também. Na politica do reco- nhecimento atual, tem sido estendida para gays e lésbicas, cuja sexualidade é interpretada como desviante e desvalorizada pela cultura dominante, para grupos racializados, que sio marcados como diferentes e menores, ¢ para as mulheres, que sio trivializadas, sexualmente reificadas, e desrespeitadas em uma mirfade de maneiras. A concepgio também vem sendo estendida, final mente, para abarcar grupos complexamente definidos que resultam da zacio sobre as relagées de reconhecimento simultaneamente em termos de “raga”, género e sexualidade, como cédigos culturais que se interseccionam. Cada vez mais, como eu mencionei no inicio, a politica da r ¢ a politica do reconhecimento sio consideradas como alternat mente excludentes. Alguns proponentes da primeira rejeitam a “politica da identidade” como um desvio contraproducente dos reais temas econémicos, afirmando, com ef alguns proponentes cerrou os olhos para a diferenga como assimilassionista, afirmando, com efei- to, que “é a cultura, seu estipido”. Esta, todavia, é uma falsa antitese, 2. Classes Exploradas, Sexualidades Desprezadas Coletividades Bivalentes: Uma Critica a Justiga Truncada Para entender o porqué, vamos imaginar um espectro conceitual de dife ipos de coletividades sociais. Em um extremo esto modelos de coleti- Nancy Fraser Considere-se, primeiro, a ponta redistribucios Ponta, vamos assumir como pressuposto um tipo ideal de coletividade cuja existéncia esta pautada na estrutura econémica da sociedade, em oposicio 3 ordem pautada no status, Entio, por defini¢ao, quaisquer injusticas estruturais que seus membros sofram sero reconduzidas, causalmente, & politica econ6_ mica, O niicleo da injustiga sera a m4 distribuigo sécio-econdmica, ao passo que quaisquer injusticas culturais concomitantes derivardo, em iiltima instin- cia, da estrutura econémica, No fundo, portanto, 0 remédio necessatio para aliviar a injustiga sera redistribui¢a0, como algo oposto ao reconhecimento. ‘Um exemplo que parece se aproximar desse tipo ideal é a classe trabalha- dora explorada, como compreendida pelo marxismo econémico ortodoxo, Nessa concepcio, a diferenciacio de classe é um artefato de uma nomica injusta. A injustica é, no fundo, uma questio de distribuigo, com 0 proletariado arcando com uma parte indevida dos nus do si tem negada sua justa parte das recompensas do sistema. Para ser ¢ membros taml a, seus m sofrem sérias injusticas culturais, as “injirias ocultas de classe”. Mas, longe de estarem pautadas diretamente em uma ordem de sta- tus autonomamente injusta, elas derivam da estrutura econdmica como ideo- logias de inferioridade de classe proliferadas para justificar a exploragio. O remédio para a injustica, conseqilentemente, é a redistribuicao, nio 0 reco- nhecimento, A ultima coisa que o proletariado precisa é do reconhecimento de sua diferenca. Pelo contritio, a tinica forma de sokucionar a injustica é rees- truturar a politica econémica de tal maneira que ponha o proletariado fora de questo como um grupo distinto Considere-se agora a outra ponta do espectro conceitual. Nesta ponta, ‘vamos assumir como pressuposto um tipo ideal de coletividade que se ajusta & do reconhecimento. Uma coletividade deste tipo esté pautada na gure ‘educacional. Alem diso, as ocapagbes do colarinko rosa. Pior remuneradas. A locusZ0 opbe~e 3s proisbes de colar branco~ bem rerun ionadas,0 poder he azul = relacionadas alta qualiicagdo aba reptadss, senses e,orginaramente, ocupva remo nore dos Estados U be ema denominacio porque a comunidad ~ com cultorse wadicdes pre Pari as elagdes entre mal 1 or uina Concepgao Integrada da Justa no oposta a estrutura econémica da sociedade. Entio, -as estruturais que seus memb: ordem do status juaisquer injust Ccipelmente, em ultima insnci, cultural da sociedade. O niicleo da injustica serd 0 ndo-reconhecimento, fenquanto quaisquer injustigas econdmicas concomitantes sero derivadas, em ima instancia, da ordem pautada no status. O remédio necessério para ali ica seré o reconhecimento, como oposto & redistribuigdo. Um exemplo que parece aproximar-se deste tipo ideal é 0 de uma sexua- lidade desprezada, compreendida através do prisma da concepcao weberiana de status. Nessa concepcio, a diferenciacao social entre heterossexuais © homossexuais esta fundada em uma ordem de status social, como padrdes ins- titucionalizados de valor cultural que constituem a heterossexualidade como natural e normativa e a homossexualidade como perversa e desprezivel. O resultado € considerat gays e lésbicas como outros despreziveis aos quais falta nao apenas reputagio para participar integralmente da vida social, mas até mesmo o direito de existir. Difusamente institucionalizados. heteronormativos de valor geram formas sexualmente especi znacao de status, incluindo a vergonha ritual, prisdes, “tratamentos” psiquitri cos, agressGes e homicidios; exclusdo dos direitos e privilégios da intimidade, casamento e paternidade e de todas as posicdes jurfdicas que deles decorrem; reduzidos direitos de privacidade, expressio ¢ associacao; acesso diminufdo ao emprego, & assisténcia em satide, ao servico militar e 4 educacao; direitos asilo; exclusio e marginalizacio da sociedade civil e da vida politica; ¢ a invisibilidade e/ou estigmatizacao na ia. Esses danos sio injustica por néo-reconhecimento. Para ser exata, gays ¢ lésbicas também sofrem sérias injustigas econdmicas. Eles podem ser suma- riamente despedidos do emprego e tém negados os beneficios sociais baseados nos vinculos familiares. Mas, longe de estarem pautadas diretamente na estru- ura econémica, elas derivam, ao invés, de um padrao de valor cultural injus- to, O remédio para a injustica, conseqiientemente, ¢ 0 reconhecimento ¢ nao € do heterossexismo requer uma modificagio na ordem do status sexual, desi lizando os padrdes heteronormativos de valor, substituindo-os por padres que expressem igual respeito para com gays e lésbicas. os i Jaramente ligados aos dois extremos de nosso espectro concei idamos com coletividades q tipo ideal da classe trabalhadora explorada, nés estamos distributivas que requerem remédios redistributivos. O que é necessirio ¢ a politica de redistribuicdo. Quando lidamos com coletividades que se ap reduzidos de Nancy Fraser mam do tipo ideal da sexualidade desprezada, em contraste, nés entfrentamos injustigas por nio-reconhecimento que requerem remédios de reconheci- mento. O que é necessério aqui é a politica de reconhecimento. (Os temas tornam-se mais obscuros, entretanto, a partir do momento em que nos afastamos desses extremos. Quando assumimos como pressuposto «um tipo de coletividade situado no meio do espectro conceitual. nés encon- tramos uma forma hfbrida que combina caracteristicas do tipo ideal da clas- se explorada com caracteristicas do tipo ideal da sexualidade desprezada. Eu chamarei tal coletividade de “bivalente”. Pautadas a0 mesmo tempo na estru- ura econémica e na ordem de status da sociedade, elas sofrem injusticas que so reconduziveis & politica econémica e a cultura, simultaneamente. Grupos subordinados bivalentemente sofrem tanto com a mé distribuicdo quanto com 0 ndo-reconhecimento, de tal forma que nenhuma dessas injusticas é um efeito indireto da outra, mas so ambas primérias e co-origindrias. No caso delas, assim, nem uma politica de redistribuicao sozinha, nem uma politica do reconhecimento sozinha bastaré. Grupos subordinados bivalentemente necessitam de ambas. genero, eu acredito, é uma coletividade bivalente. Nem simplesmen- te uma classe, nem simplesmente um grupo de status, 0 género é uma cate~ goria hibrida pautada simultaneamente na politica econémica e na c Da perspectiva da justica distributiva, 0 género estrutura a divisio funda mental entre 0 trabalho “produtivo” remunerado ¢ o trabalho “reprodutivo" e doméstico nao remunerado, assim como a divisio dentro da c trabalho remunerado entre trabalhos melhor remunerados, ocupagées fissionais e industriais, dominados por homens, e trabalhos pior remunera dos, ocupagdes domésticas e do “colarinho rosa’ (pink collar)\, dominados pelas mutheres. O resultado é uma estrutura econdmica que gera modos especificos de exploracdo baseados no género, marginalizacao econémica e privacdo. Aqui, o género aparece como uma diferenciacio andloga & classe. E a injustiga de género aparece como uma especie de injustica econdmica que reclama por solugdes redistributivas. Da perspectiva da ordem do status, entretanto, o género abrange ele- ‘mentos que so mais préximos da sexualidade do que da classe e que o langam diretamente na problemstica do reconhecimento. O género codifica padres difundidos de valor cultural, que sio centrais para a ordem do status como um todo. Como um resultado, no apenas as mulheres, mas todos os grupos de baixo status, correm o risco de ser feminilizados (feminized) e, conseqliente- mente, diminuidos. Assim, uma das principais caracteristicas da injustica de género € 0 androcentrismo: um padrio de valor cultural institucionalizado 14 Redistribuigdo, Recanheciment © Ps Poroms Concepeto Integrada da que privilegia tragos associados & masculinidade, enquanto deprecia tudo 0 que codifica como “feminino”. O resultado é interpretar mulheres e meninas como outras subordinadas e deficientes que no podem participar como iguais na vida social. Difusamente institucionalizado, esse padrio valorativo andro- céntrico gera formas de subordinagao de status especificas de género, incluin~ do violéncia sexual, violéncia doméstica, tutela por toda a vida, casamentos arranjados, mortes por dote, estupros em massa como uma arma de guerra, rmutilagdo genital e escravizacio sexual. E ainda, negagéo da integridade cor- poral, da liberdade reprodutiva, e da autodeterminagio sexual. Além disso, reduzido acesso @ moradia, 8 alimentacao, a terra, & satide e & educacao: pre- juizos em seus direitos de imigracdo, naturalizacao e asilo; exclusdo e margi- nalizagao da sociedade civil e da vida politica, estereotipagem (stereotyping) ¢ objetificacio (objectification); e perseguicao e depreciacdo na vida cotidia- ra, Esses danos sao injustigas de reconhecimento. Eles sio relativamente inde- pendentes da politica econémica e no sio meramente “superestruturais” Dessa forma, eles nao podem ser superados somente pela redistribuigao, mas requerem os remédios adicionais e auténomos do reconhecimento. O género, em suma, é um modelo “bivalente” de coletividade. Ele com: bina uma dimensio de classe, que o lanca no ambito da redistribuicao, com ‘uma dimensio de status, que o lanca, simultaneamente, no ambito do reco nhecimento. E uma questo aberta se as duas dimensdes possuem o mesmo peso. Mas a solucio da injustica de género, de qualquer forma, requer altera ges tanto na estrutura econémica quanto na ordem de status da sociedade. O caréter bivalente do género produz. estragos na idéia de uma escolha do tipo “ou esta ou aquela” entre a politica da redistribuigao e a politica do reconhecimento. Tal interpretacdo pressupde que os sujeitos coletivos da injustiga sao ou classes ou grupos sociais, nao ambos; que a injustica que eles sofrem é ou mé distribuicdo ou nao reconhecimento, ndo ambos; que as dife rencas de grupo em questao sio ou diferenciais injustos ou variacées culturais, injustamente desvalorizadas, ndo ambos; que o remédio para a injustica é ou redistribuigdo ou reconhecimento, nao ambos. © género, agora podemos agora ver, explode essas s sas antiteses. Aqui, nds temos um sujeito coletivo que é um componente tanto do status quanto da classe, que sofre ¢40 quanto por nao-reconhecimento, cuja di por diferencas econdmicas quanto por distinc: das. A injustica de género pode sex remediada, portanto, apenas por uma abordagem que abranja tanto a a redistribuicao quanto a politica do reconhecimento. 1s inteiras de tigas tanto por dade é composta tanto ss culturalmente O género nao ¢ especial nesse aspecto. A “raga” também é um modelo de coletividade bivalente, um composto de status ¢ de classe. Pautadas simulta neamente na estrutura econémica e na ordem de status da sociedade, as injus- tigas advindas do racismo incluem tanto a mé distribuigo quanto 0 nao-reco- a “raca” organiza divisdes estruturais entre empre- nhecimento. Na econo! 08 remunerados subalternos e nio-subalternos, por um lado, e entre forca de trabalho exploravel e “supérflua”, por outro. Como um resultado, a estrutura econdmica gera formas racialmente especificas de m4 distribuicdo. Imigrantes racializados e/ou minorias étnicas sofrem desproporcionalmente com altas taxas de desemprego e pobreza, e com a super-representagao nos trabalhos subalternos mal remunerados. Estas injusticas distributivas podem ser reme- diadas apenas por uma politica de redistribuicao. Na ordem do status, enquanto isso, padroes de valor cultural eurocéntri- 0s privilegiam tragos associados a “brancura” (whiteness), enquanto estigma- tizam tudo que codificam como “negro”, “pardo” e “amarelo”, paradigmatica- ‘mente ~ mas ndo apenas ~ pessoas de cor. O efeito é interpretar minorias étni- as, imigrantes raciais, populagdes nativas, e/ou métis{ como outros inferiores e degradados, que nao podem ser membros plenos da sociedade. Difusamente institucionalizadas, as normas eurocéntricas geram formas racialmente espe~ cificas de subordinacio de s éncia, bruta- ia, desvalorizacio lizagao nas esferas nas instituigdes politicas; perseguicao e depreciacio na vida c na; ¢ denegacao dos plenos direitos e da protegio igualitéria da cidadania Quintesséncia dos danos por nio-reconheci ‘gas podem ser remediadas apenas, i politica do reconhecimento Além do mais, nenhuma dimensio do racismo é completamente um efei- eto da outra. Para ser exata, as dimensdes de distribuicdo e de reconhe- cimento interagem uma com a outra, Mas a mé distribuigao racista nao é sim plesmente um subproduto da hierarquia do status, nem 0 ndo-reconhecimen- to racista é completamente um subproduto da estrutura econémica. Ao con- lependéncia relativa quanto & outra ‘ma pode set solucionada indiretamente, portanto, mediante remédios dirigidos exclusivamente para a outra. A superagao das injusticas do racismo, fem suma, requer tanto a redistribuicdo quanto o reconhecimento. Nenhuma serd suficiente sozinha v8 Redistibuigdo, Reconhes Por uma Concepcso ‘Também a classe, por propésites praticos, é provavelmente melhor com- preendida como bivalente. Mais exatamente, a causa iltima da injustica de Jasse € a estrutura econdmica da sociedade capitalista. Mas os danos resultan- tes incluem 0 nio-reconhecimento, assim como a mé distribuicio. E os danos culturais originados como subprodutos da estrutura econémica podem ter desenvolvido, entdo, uma vida prépria. Deixado de lado, 0 nao-reconheci mento de classe pode minar a capacidade de mobilizacao contra a mé~dis buicéo. Assim, a politica de reconhecimento de classe pode ser necesséria para -a de redistribuigao.5 ‘A sexualidade também pode ser tratada como bivalente por propésitos Para ser exata, a causa tiltima da injustica heterossexista ¢ o padrdo de valor heteronormativo que est4 institucionalizado na ordem de status da sociedade contemporanea.§ Mas os danos decorrentes incluem a ma distribui- slo, tanto quanto 0 ndo-reconhecimento. E os danos econémicos originados como subprodutos da ordem de status possuem um inegivel peso préprio. Deixados de lado, além do mais, podem minar a capacidade de mobilizacao contra 0 ndo-reconhecimento. Assim, uma politica de redistribuigao sexual pode ser necesséria para iniciar com sucesso uma politica do reconhecim Para propésitos priticos, entio, virtualmente todos os eixos de subordi nacao do mundo real podem ser tratados como bivalentes. Virtualmente todos implicam tanto ma distribuicdo quanto ndo-reconhecimento, de modo que cada uma dessas injustigas possui algum peso independente, quaisquer que sejam suas bases tiltimas, Para ser exata, nem todos os eixos de subordinacao sao bivalentes no mesmo sentido, nem no:mesmo grau. Alguns, como a clas- se, inclinam-se mais pesadamente em dire¢io a0 extremo distributivo do espectro; outros, como a sexualidade, inclinam-se mais para 0 extremo do Nancy Fa reconhecimento, enquanto outros ainda, como a “raca" e o género, agrupam: se mais préximos do Nio obstante, em virtualmente todos os c3s0s, os anos em questo compreendem tanto a mé distribuigdo quanto o nao-reco~ nhecimento, de modo que nenhuma dessas injusticas pode ser solucionada indiretamente, mas que cada uma requer alguma atenco pr Como uma questéo pratica, portanto, solucionar a injustiga, em virtualmente todos os casos, requer tanto a redistribuigo quanto o reconhecimento. Annecessidade desse tipo de abordagem bifronte se tora mais premente, além do mais, assim que deixamos de considerar esses eixos de injustica sin~ gularmente e comecamos, ao invés, a consideré-los em conjunto, como mutuamente interligados. Enfim, o género, a “rasa”, a sexualidade e a classe ndo esto caprichosamente isolados um do outro. Pelo contririo, todos os eixos de injustica interseccionam-se um com o outro de maneira que afetam os interesses ¢ as identidades de todos. Assim, qualquer um que seja simulta- neamente gay e membro da classe trabalhadora necessitaré tanto de redistri- buigdo quanto de reconhecimento. Visto dessa forma, ainda, virtualmente todo individuo que sofre injustica precisa integrar aqueles dois tipos de demandas. E assim também deverd fazé-lo qualquer um que se preocupe com 4 justiga social, independentemente de sua prépria posigio social Em geral, portanto, deve-se rejeitar completamente a construcio da redistribuigdo e do reconhecimento como alternativas mutuamente excluden- tes. O objetivo deveria ser, ao invés, desenvolver uma abordagem integrada que possa incluir e harmonizar ambas as dimensdes da justica social 3. Questdes Normativo-Filoséficas: Justica como Participagdo Paritaria Como, portanto, podemos desenvolver esta abordagem bifronte? Como podemos integrar redistribuigao e reconhecimento em uma tinica estratura de ‘maneira que se possa superar sua atual dissociacio? No rest gostaria de considerar dois tipos de questées: as normal as, que se ibutiva como categorias ite deste ensaio, 0-filos6! © projeto de integrar a redistribuigio e © reconhecimento em uma mesma estrutura repercute nos debates cantemporineos acerca de filos Redistibuiglo, Resonhecimento e Participate: tributiva e 0 reconhecimento constituem dois paradigmas normativos distin- tos, sui generis, ou podem ser subsumidas um a0 outro? E terceiro, a justiga requer 0 reconheci vo em relacio a individuos ou gru- pos, ou o reconhecimento de nossa humanidade comum é suficiente? ‘Com respeito a primeira questo, proponho que se compreenda 0 reco- , no de auto-realizaco. Portanto, nhecimento como um problema de just io se deve responder a questo “o que hi de errado com 0 ndo-reconheci- mento?” dizendo que ele impede a auto-realizacao por distorcer a “relacdo com seu ser”,7 Ao invés disso, deve-se dizer que é injusto {duos e grupos tenham negado o status de parceiros plenos da | simplesmente como uma conseqiiéncia de padroes de valor zados, em cuja construgao eles néo participaram em condicdes de igualdade e que desconsidera as suas caracteristicas distintivas ou as caracteristicas éspecificas a eles conferidas. ce-me explicar. Ver 0 reconhecimento como um problema de justica lo como uma questio de status. Isso, por sta vez, significa examinar 03 padres institucionalizados de valor cultural pelos seus efeitos sobre a posicao relativa dos atores sociais. Se ¢ quando tais padrdes constituirem 0s atores ‘como pares, capazes de participar paritariamente um com 0 outro na vida social, ent poderemos falar em reconhecimento reciproco e em igualdade de status. Quando, pelo contrario, padrdes i ral constituirem alguns atores como inferiores, exclufdos, completamente jesmente invisiveis, portanto como menos do que parceiros 10 poderemos falar em nio-reconhecimento ¢ plenos na interacio soci em subordinacao de status. Essa perspectiva possui uma série de vamtagens. Primeiro, permite-nos deixar de lado os insoliveis desacordos acerca da auto-realizacao e do bem, Segundo, explica por que 0 ndo-reconhecimento nao é simplesmente uma sicolégicos, mas, spedem a questio de atitudes preconceicuosas que resultam em da uma questdo de padres institucionalizados de valor cultural que a visdo patentemente igual participagao na vida social. Finalmente, evi diibia de que toda pessoa tem um igual direito & pectiva realmente garante a todos é um igual direito a perseguir a estima -s imparciais de aportunidades iguais. E tais condigdes nao a social. O que essa pers Nancy Fraser so obtidas quando, por exemplo, os padrées de valor cultural difusamente institucionalizados diminuem a feminilidade, a “ndo-brancura’, a homosse xualidade, e tudo 0 que esteja culturalmente associado a eles. Quando é esse 0 caso, mulheres e/ou pessoas de cor e/ou gays e Iésbicas enfrentam obsticulos nna busca por estima que ndo sio enfrentados pelos demais. E todos, inc os homens brancos heterossexuais, enfrentam obsticulos adicionais se opta- rem por perseguir projetos e cultivar tracos que so culturalmente codificados como femininos, homossexuais ou “nao-brances” (nonwhite). Disso decorre, partindo agora para a segunda questio, que a justiga dis tributiva ¢ o reconhecimento constituem dois paradigmas normativos distin. tos, sui generis? Ou qualquer um deles pode ser rediuzido a0 outro? No meu ponto de vista a resposta é nao. Como vimos, o reconhecimen- to nio pode ser reduzido a distribuico, pois 0 status de alguém na sociedade nao é simplesmente uma decorréncia da sua posicao de classe. Considere-se 0 caso do banqueiro afro-americano de Wall Street que nao consegue tomar um taxi para levé-lo. Nesse caso, a injustica do nao-reconhecimento tem pouca relacéo com a mé distribuicdo. E muito mais uma conseqiiéncia de padroes. institucionalizados de valor cultural que constituem as pessoas de cor como comparativamente no merecedoras de respeito e estima. Para lidar com casos assim, uma teoria da justica deve ir além da distribuicao de recursos e de bens para examinar 0s padrdes de valor cultural. Ela deve considerar se 0s padres institucionalizados de valor cultural constituem alguns atores sociais como menos do que parceiros plenos da interacio social Reversamente, também a distribuigo nao pode ser reduzida ao reconhe- cimento, pois 0 acesso de alguém a recursos nio € simplesmente uma decor- réncia de seu status. Considere-se 0 caso do trabalhador de industria, bem ‘ado, homem e branco, que fica desempregado devido ao fechamento ima fabrica, resultante de uma especulativa fusdo corporativa. Nesse caso, injustica da mé distribui¢do tem pouca relacdo com 0 néo-reconhecimento E muito mais uma consequéncia de imperativos intrinsecos a uma ordem de relacdes econémicas especializadas, cuja raison d’étre é a acumulac3o de lucros. Para lidar com casos assim, uma teoria da justica deve ir além dos padres de valor cultural para examinar a estrutura econdmica da sociedade Ela deve considerar se os mecanismos econdmicos, que sio relativamente des- los padrdes de valor cultural e que operam de uma mai impessoal, privam alguns atores sociais dos recursos Em geral, portanto, nem a ser reduzidos um ao outro. 180 mas com exclisio do outro, eu proponho desenvolver o que chamarei de uma concepcao “bidimensional” da justica. Uma concepcao bidimensional trata a distribuigao e 0 reconhecimento como perspectivas @ dimensdes distintas da dimensfo a outra, engloba ambas em uma estru- tura mais ampla e abrangente Como jé mencionado, o micleo normativo de minha concepgio é a nocéo de participagio paritéria, De acordo com essa norma, a justiga requer arranjos sociais que permitam a todos os membros adultos da sociedade interagir uns com os outros como pares. Eu sustento que, para a participagao paritaria ser possivel, pelo menos duas condicoes sociais devem ser satsfeitas. Pri ” a0s participantes. A isso eu chamo de condigao “objetiva” da participa dria. Ela profbe arranjos que institucionalizam privacao, exploracio e ‘grosseiras disparidades de riqueza, renda, trabalho e tempo de lazer. Em contraste, eu chamo a segunda condic3o para a participacio paritéria de “intersubjetiva’. Ela requer que os padries institucionalizados de valor cul- 1al expressem igual respeito por todos os participantes e assegurem igual a da estima social. Essa condigdo proibe padroes wrais que depreciam sistematicamente algumas categorias de pessoas e as, dades a clas associadas, seja por sobrecarregi-las com uma excessiva iferenca” dos outros, seja por falhar em reconhecer sua di jade Tanto a condigo objetiva qu: fa sho necessérias para a participacio paritéria. Nenhuma sozinha € suficiente. A condigio objetiva wz a lume preocupagdes tradicionalmente associadas & teoria da justica dis- tributiva, especialmente preocupagées relac sociedade e as diferengas de classe definidas economicamente. A cor intersubjetiva traz a lume as preocupacées recentemente destacadas pela sofia do reconhecimento, especialmente preocupacées relacionadas & ordem do status da sociedade ¢ as hierarquias de status culturalmente definidas. rma da a intersubj Assim, uma concepgio bidimensional da participacio paritaria abrange tanto a redistribuicdo quanto o reconhecimen- to, sem reduzir um ao outro. Isso nos leva para a terceira questio: a justica requer o reconhecimento do que é ‘0 em individuos ou grupos, sobre e além do reconhecimen- jdade comum? Aqui é importante notar que a part ‘ria é uma norma universalista em dois 05 parceiros adultos na interacdo. E segundo, pressupde o igual valor moral dos seres humanos. Mas o universalismo moral nestes sentidos ainda deixa em aberto a questao sobre se 0 reconhecimento da distintividade indivi 281 Nancy Fraser ‘grupal pode ser requerida pela justica como um elemento, dentre outros, da condicéo intersubjetiva para a participagao paritéria, Essa questao nao pode ser respondida, entretanto, somente mediante uma andlise conceitual abstrata. Ela precisa, ao invés, ser abordada no espirito do pragmatismo, como informado pelos insights da teoria social critica. Tudo depende do que as pessoas atualmente nao-reconhecidas necessitam para que possam participar como pares na vida social. E nao h4 razao para pressupor que todas elas precisem da mesma coisa em todos os contextos, Em alguns casos, elas podem precisar ser desoneradas de uma distintividade excessiva, deferida ou construida, para que possam participar como parceiros plenos na interacio. Em outros casos, elas podem precisar que se leve em consideracao a sua pouco conhecida distintividade. Em outros casos ainda, elas podem precisar reverter © foco para os grupos dominantes ou avantajados, expondo a distintividade desses iltimos, a qual tem sido falsamente considerada como universalidade. Alternativamente, elas podem precisar desconstruir os pr que as diferencas atribuidas sao correntemente elaboradas. Finalmente, elas podem precisar de todas as alternativas mencionadas, ou de muitas delas, em combi- nagdo uma com a outra e em combinagio com a redistribuigio. Quais pessoas precisam de quais tipos de reconhecimento e em quais contextos, depende da natureza dos obstaculos que elas enfrentam em relagio & participacao paritaria, 4, Questdes Sécio-Teéricas: um Argumento em Favor da “Perspectiva Dualista” Isso nos leva as questdes sécio-tedricas que surgem quando abarcar redistribuigdo ¢ reconhecimento em uma tinica estrutura. Aq principal tarefa é compreender as relagdes entre classe e status, e entre ma dis- tribuicio e nio-reconhecimento na sociedade contemporinea. Uma aborda- gem adequada deve estar aberta para toda a complexidade dessas relagies. Ela precisa considerar ranco a diferenciacao entre classe e status quant ‘¢0es causais entre eles. Ela precisa acomodar, tambén ibilidade da mé distribuigdo e do ndo-reconhecimento quanto a interconexio rética de um com 0 outro. Para esse fim, proponho um experimento mental. Considere-se um tipo ideal de sociedade pré-estatal, do modelo descrito na clisrice, sinds que se ponl da acuricia etnogrifica, Em tal sociedade, o idioma chave das relagdes sociais é 0 parentesco. O paren tesco organiza nao sé o casamento e as relacdes sexuais, mas também 0 proces 182 CConcepa0 Integraca da Justiga so de trabalho e a distribuicao de bens; relagdes de autoridade, reciprocidade € obrigaglo; ¢ hierarquias simboticas de status e prestigio, Em tal sociedade, a escrutura de classe e a ordem de status estdo efetivamente fundidas. justamente porque o parentesco constitui o principio central de distribuigdo, o status do parentesco dita a posigo social. A subordinacao do status transmuda-se imedia~ tamente em (0 que nds deveriamos considerar como sendo) injustigas distribu- tivas. O ndo-reconhecimento acarreta diretamente mé distribuigao. Agora considere-se o extremo oposto, uma sociedade completamente “mercadologizada” (marketized), na qual a estrutura econémica dita o valor cultural. Em tal soci ia determinante é 0 mercado. Os merca- dos organizam ndo s6 0 processo de trabalho e a distribuicao de bens, mas também casamentos ¢ relacdes sexuais; relacdes politicas de autoridade, reci- procidade e obrigacio; e hierarquias simbélicas de status e prestigio. Em tal sociedade, também, a estrutura de classe e a ordem do status estio efetiva- mente fundidas. Mas as determinagées caminham na direcdo oposta. Justamente porque o mercado constitui o tinico e mais penetrante mecanismo de valoracio, a posicio no mercado dita o status social. Na auséncia de qual- quer padrao de valor cultural quase-auténomo, as injusticas distributivas transmudam-se imediatamente em subordinacio de status. A mé distribuicao acarreta diretamente o nio-reconhecimento. essa forma, nessas duas sociedades, (0 que nds chamariamos) classe € status sobrepdem-se perfeitamente um no outro. © mesmo ocorre com (o que nds chamarfamos) a mé distribuigio e 0 ndo-reconhecimento, que se conver- tem completamente e sem sobras um no outro. Como resultado, pode-se com: preender razoavelmente bem ambas as sociedades atendo-se exclusivamente ‘a uma tinica dimensao da vida social. Para a sociedade completamente gover- nada com base no parentesco, pode-se derivar a dimensio econdmica da dominagao diretamente da cultural; pode-se inferir a classe diretamente do status ea ribuicdo diretamente do nio-reconhecimento, Para a socie- dade completamente mercadologizada, ao contririo, pode-se derivar a dimen- so cultural da dominagdo diretamente da econémica; pode-se inferir o status diretamente da classe € 0 ndo-reconhecimento diretamente da mé distribui- so. Para compreender as formas de dominacao prépria pletamente governada com base no uma teoria social perfeitamente apr Dancy Fraser compreender a sociedade completamente “mercadologizada”, apenas se pode aprimorar a compreensio no “economismo"3 Quando nos voltamos para outros tipos de sociedades, entretanto, tais abordagens simples e elegantes nao sio mais suficientes. Elas sfo patentemen- te inapropriadas para as sociedades contempordneas, que contém tanto arenas “mercadologizadas”, nas quais a acdo estratégica predomina, quanto arenas nao-mercadologizadas, nas quais a interacdo orientada pelo valor predomina. © resultado é um desatrelamento parcial entre distribuigdo econémica ¢ as estruturas de prestigio e entéo uma lacuna entre status e classe. Nas socieda~ des contemporneas, portanto, a estrutura de classe deixa de espelhar perfei- tamente a ordem de status, muito embora cada uma delas influencie a outra. Porque o mercado nao constitui o tinico e mais penetrante mecanismo de valoragio, a posigao no mercado nao dita o status social, Padrées de valor cul- tural parcialmente resistentes ao mercado evitam que as injusticas distributi- vas convertam-se completamente e sem sobras em subordinacao de status. A ma distribuigo nao acarreta diretamente 0 ndo-reconhecimento, apesar de aquela, certamente, contribuir para o tltimo. Da mesma forma, porque nenhum principio de status, como 0 parentesco, constitui sozinho o tinico € mais penetrante principio de distribuigao, 0 starus nao dita a posicdo de clas- se. InstituigSes econémicas relativamente auténomas evitam que a subordina~ cao de status converta-se completamente e sem sobras em injusticas distribu- tivas. O nao-reconhecimento ndo acarreta diretamente mé distribuicio, muito embora aquele certamente também contribua para esta. Como resulta~ do, nao se pode compreender as sociedades contempordneas observando ‘exclusivamente uma tinica dimensio da vida social. Nao se pode derivar a dimensio econdmica da dominagio diretamente da cultural, nem a culeural diretamente da econdmica. Da mesma maneira, nio se pode inferir a classe diretamente do status, nem o status diretamente da classe. Finalmente, nio se pode deduzir a m4 distribuigao diretamente do nao-reconhecimento, nem © nio-reconhecimento diretamente da ma distribuigio. Disso segue que nem 0 culturalismo, nem o economismo sio suficientes para compreender as socie- dades contempordneas. Ao invés, necessita-se de uma abordagem que possa acomodar a diferenciagao, a divergéncia ¢ a interagao em todos os niveis. sabsentor 104 | | Que tipo de teoria social pode levar a cabo essa tarefa? Se nem o econo- mismo, nem 0 culturalismo esto prontos para ela, algum tipo de dualismo faz-se necessério, Mas tudo depende do tipo. Duas possibilidades se apresen- tam.l0 A primeira eu chamarei de “dualismo substantivo”. Ele trata a redistri- bbuicdo e 0 reconhecimento como duas diferentes “esferas de justica”, perten- centes a dois dominios societérios diferentes. Um pertence ao dominio econd- ‘mico da sociedade, outro ao dominio cultural. Quando consideramos as ‘matérias econdmicas, como a estrutura dos mercados de trabalho, devemos assumir a perspectiva da justica distributiva, observando o impacto das estra- turas econémicas na posic¢do econdmica relativa dos atores sociais. Quando, em contraste, consideramos questOes culturais, como a representacao da sexualidade feminina na MTV, devemos assumir a perspectiva do reconheci- ‘mento, observando o impacto dos padrées institucionalizados de valor cultu- ral no status e na posicdo relativa dos atores sociais. © dualismo substantivo pode ser preferivel ao economismo e ao cultu- ralismo, mas é, ainda assim, inadequado. Ao tratar a economia e a cultura como duas esferas separadas, ele interpreta mal diferenciagdes.sociais, mediante divisdes impermeaveis e agudamente demarcadas. De fato, a eco- nomia nao é uma zona livre da cultura, mas uma zona ressignificadora da cultura, Assim, o que se apresenta como “a economia” ja esta sempre per- meada por interpretacdes ¢ normas culturais ~ de que so exemplos as dis- tingGes entre “trabalho” e “cuidado”, “trabalhos de homem” e “trabalhos de mulher", que sio to fundamentais para o capitalismo histérico. Nesses casos, 0s significados e normas de género foram apropriadas de culturas pré- Na existentes e remodelados para prop6sitos econdmicos, com enormes conse- uéncias tanto para a distribuigao quanto para o reconhecimento. Da mesma forma, 0 que se apresenta como “esfera cultural” esté profundamente per- meada pela “margem de lucro” (bottom line) - por exemplo, o entreteni- mento de massa global, 0 mercado artistico, a publicidade transnacional, todos fundamentais para a cultura contemporanea. Contra o dualismo subs” tantivo, assim, questées nominalmente econémicas normalmente afetam nao somente a posicio econdmica, mas também o status ¢ as identidades dos atores sociais. Da mesma forma, questées nominalmente culturais afetam nao somente 0 status, mas também a posicio econdmica. Em nenhum caso, portanto, estamos lidanido com esferas separadas, dualismo substantivo nao ¢ uma solucéo, mas um sintoma do desatre Jamento atual entre redistribuicao e reconhecimento, Uma perspectiva critica, a0 contrario, deve provar as conexdes entre eles. Deve tornar vistvel e criticd- vel tanto os subtextos culturais dos processos nominalmente econémicos ¢ os subtextos econdmicos das priticas nominalmente culturais. Para tratar cada pritica como simultaneamente econémica e cultural, mesmo que nao necessa- riamente em iguais proporgdes, deve-se avaliar cada uma delas a partir de duas perspectivas diferentes. Deve-se assumir tanto 0 ponto de vista da distribuigdo quanto o do reconhecimento, sem reduzir nenhum deles a0 outro Uma tal abordagem eu chamo de “dualismo de perspective’. Aqui, a redistribuigao e 0 reconhecimento nao correspondem a dois dominios socie- trios substantivos, economia e cultura. Ao invés, eles constituem duas pers~ pectivas analiticas que podem ser assumidas a respeito de qualquer dominio. Essas perspectivas podem ser dispostas criticam em disso, contra 0 con- texto ideol6gico. Pode-se usar a perspectiva do reconhecimento para identifi- car as dimensdes culturais de politicas econémicas, normalmente entendidas como redistributivas, Enfocando na produgdo e na ci pode-se avaliar os efeitos ides € 0 status social dos Da mesma forma, pode-se usar a perspectiva da redistribuigao para trazer a lume as dimensdes econ6micas daquelas questées que sio nor- malmente entendidas como de reconhecimento. Enfocando os altos “custos de transacdo” de viver no armirio,!2 por exemplo, pode-se avaliar os efeitos do no reconhecimento heterossexista sobre a posicao econdmica de gays e lés bicas.'8 (11) Com o dualismo de perspectiva, portanto, pode-se avaliar a justi- ga de qualquer prética social a partir de duas posig6es normativas estratégicas, analiticamente distintas, perguntando: a pritica em questdo funciona para assegurar tantoascondigoes econémicas quanto as conig6es cultura da par- icipagao paritaria? Ou ela, 20 invés, as cori nePiMias ainda, o dualismo de perspectiva oferece uma vantagem pritica importante. Ele nos permite conceituar algumas dificuldades préticas que podem surgir no curso das lutas politicas por redistribuicao e reconhecimen- to. Ble estima que nem as demandas por redistribuigdo, nem as demandas por reconhecimento podem ser contidas em esferas separadas. Pelo contrério, elas influenciam uma a outra de formas que podem viabilizar surgimento de seitos nao pretendidos. ae Gonsidere se primeito, que 9 redstribugao intuencia orecanhecimen to. Virtwalmente qualquer demanda por redistribuigao teré alguns efeitos de reconhecimento, voluntérios ou inv jos. Politicas redistributivas desti- nadas a mitigar a pobreza, por exemplo, tém implicacdes para o status, que podem prejudicar aqueles que pretendia beneficiar. Por exemplo, os progra- mas de assisténcia publica destinados especificamente aos pobres freqiiente- ‘mente funcionam para marcé-los como “desviantes” e “exploradores”. Nesses adicionar o insulto do nao-reconhecimento a injé= |. Em geral, portanto, demandas redistributivas fre- «casos, 0 efeito resulta a da privagio mate GKentementeafetam o statue ae Hensader soca dow ators sons, Exes efeitos devem ser tematizados e escrutinados, para que se astecer © nao-reconhecimento enquanto se remedia a mé distribuigio ‘Da mesma forma, entretanto, 0 reconhecimento influencia a distribuicdo Virtualmente qualquer demanda por reconhecimento tera alguns efeitos dis- wos, voluntérios ou involuntérios. AS propostas para compensar os padres androcéntricos de avaliacio, por exemplo, possuem implicagdes eco- némicas, que funcionam algumas 187 suir efeitos negatives sobre a posigao econdmica das mulheres afetadas, confe~ rindo-Ihes o status de “nao-casiveis”, a0 mesmo tempo em que defxam de asse~ gurar meios alternatives de sobrevivéncia a elas. Assim, demandas por reco- mhecimento podem afetar a posigio de classe, sobre e além de seus efeitos no status, Esses efeitos também devem ser escrutinados, para que se deixe de abas~ tecer a mA distribuicio enquanto se tenta remediar o ndo-reconhecimento. ‘A moral é que é preciso avaliar o mérito de qualquer demanda a partir das duas perspectivas, Deve-se perguntar: a proposta em questio funciona para ‘solucionar tanto 0 no-reconhecimento quanto a mé distribuic20? Ou ela, a0 invés, mitiga um desses danos aa custo da exacerbaco do outro? Dessa mane\- ra, pode-se antecipar, e esperancosamente evitar, efeitos nao pretendidos. "A necessidade, em todos 0s casos, é pensar de forma integrada, como no exemplo do valor comparavel. Aqui, uma demanda por redistribuicio de renda entre homens e mulheres est4 expressamente integrada com uma Gemanda para mudar os padrées codificados de valor cultural vinculados 20 ‘género, A premissa subjacente é que as injusticas de distribuigao e de reco- nhecimento vinculadas ao género esto td complexamente interligadas que nenhuma pode ser inteiramente solucionada independentemente da outra ‘Assim, os esforcos para reduzir 0 abismo salarial entre géneros néo podem ser plenamente bem sucedidos se, permanecendo completamente “econdmicos”, les deixam de desafiar os significadas de género que codificam as ocupagoes s de baixa remuneragao como “trabalho de mulher”, largamente des~ Jncia e qualificacio, Da mesma maneira, 0s esforgos para reavaliar tracos femininos codificados, como sensibilidade interpessoal ¢ cui- ‘cultu- ras’, eles deixam de por em xeque as condicdes econémicas estruturais que gam aqueles tracos a dependéncias ¢ & auséncia de poder. Somente uma abordagem que remedie a desvalorizagao cultural do “feminino” precisamen- te dentro da economia (e em qualquer outro espaco) pode promover uma redistribuigdo séria e um reconhecimento genuino. dado nao podem ser bem sucedidos se, permanecendo completament Conclusao Deixe-me concluir recapitulando me impor uma escolha disjuntiva entre a pol reconhecimento € apresentar uma falsa antitese. Ao contrario, a justica hoje requer ambas. Assim, sustentei uma estrutura abrangente que engloba tanto Redistribugdo, Reconhecimento¢ P areipage Por uma Concepedo Inegrada da Justis 2 redisibuigéo quanto o reconhecimento para enfrentar a injusiga em Entio examinei duas ordens de questdes que surgem quando imaginamos ‘uma tal estrurura, No plano da teoria moral, sustentei uma tinica e singular concepsao bidimensional de justica que engloba tanto a redistribuigo quanto © reconhecimento, sem reduzir nenhum deles a0 outro. E propus a nogo de ‘ipagdo paritéria como seu niicleo normativo. No plano da teoria social defendi um dualismo de perspectiva de redistribuicio e reconhecimento, Somente essa abordagem, afirmei, pode nos alertar para as potenciais tensées préticas entre demandas por redistribuicgdo e demandas por reconhecimenteo. © dualismo de perspectiva na teoria social complementa a participacao paritéria na teoria moral. Tomadas em conjunto, essas duas nogSes consti- tuem uma porcio dos recursos conceituais necessérios para comegar a res~ ponder 0 que eu considero a questao politica chave de nossos dias: como podemos desenvolver uma perspectiva programai redistribuigdo e o reconhecimento? Como podemos desenvolver uma estru- tara que integre o que continua cogente ¢ insuperivel na visio soci com o que é defensavel e forcoso na visio aparentemente “pés-soci multiculturalismo? “ sparentemense Se deixarmos de nos perguntar isto, se nos debrucamos, a0 invés, sobre falsas antiteses e dicotomias disjuntivas equivocadas, perderemos a chance de entrever arranjos sociais que podem solucionar t as injusticas econémicas quanto as sociais. Somente olhando para as abordagens integrativas que unem redistribuigdo e reconhecimento podemos encontrar as exigéncias da justica como um todo.

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