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Arjun Appadurai * A VIDA SOCIAL DAS COISAS AS MERCADORIAS SOB UMA PERSPECTIVA CULTURAL © 1986 by Cambridge University Press Titulo original: The social life of things: commodities in cultural perspective © 2008 (iraduggo brasileira) EUUFF - Editora da Universidade Federal Fluminens= Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraf - Niteréi, RU - CEP 24220-900 Tel.: (21) 2629-5287 - Telefax (21) 2629-5288 - hnp:iwww.editora.uff.br E-mail: eduff@vm.uif.br E proibida a reprodugdi total ou parcial desta obra sem autorizacdo expressa da Editora. AGG ‘Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio -(CIP} Appadurai, Aqun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural/ Arjun Appadurai; Tradug3o de Agatha Bacelar - Niterdi: Editora da Univer- sidade Federal Fluminense. 2008. 399 p.: 21em, — (Colegio Antropologia ¢ Ciéncia Politica: 41) Inetui bibliografias. ISBN 987-85-228-0420-6 1. Antropologia. 2. Simbolismo. 3. Mercadoria. L Titulo, LI. Série. CDD _306 Normalizagao: Caroline Brito Revisdo: Icléia Freixinho e Tatiane de Andrade Braga Traduciio: Agatha Bacelar Revisdo iécnica:Leticia Veloso Capa: Mareos Antonio de Jesus Editoragdo eletrénica: Ana Caroline Feneira Diagramagéo: V Macedo de Souza Supervisito griifica: Kathia M. P. Macedo UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Roberto de Souza Salles Vice-Reitor: Emmanuel Paiva de Andrade Pré-Reitor de Pesquisa e Pés-Graduacdao: Humberto Fernandes Machado Diretor da EAUFF: Mauro Romero Leal Passos Diretor da Divisdo de Editoragdo e Producdo: Ricardo Borges Diretora da Divisio de Desenvolvimento e Mercado: Luciene P. de Moraes tors Giada is Puccio mama. Assessora de Comunicagao e Eventos: Ana Paula Campos W I Iv VI vo SUMARIO AUTORES, 7 BREVE INTRODUCAO A EDICAO BRASILEIRA, 9 PREFACIO, 11 PARTE I - Por uma antropologia das coisas INTRODUCAO: , MERCADORIAS E A POLITICA DE VALOR, 15 Arjun Appadurai A BIOGRAFIA CULTURAL DAS COISAS: A MERCANTILIZACAO COMO PROCESSO, 89 igor Kopytoff PARTE II - Troca, consumo e exibicio DOIS TIPOS DE VALOR NAS ILHAS SALOMAO ORIENTAIS, 125 William H. Davenport RECEM-CHEGADOS AO MUNDO DOS BENS: O CONSUMO ENTRE OS GONDE MURIA, 143 Alfred Gell PARTE III - Prestigio, comemoracao e valor VARNA E 0 SURGIMENTO DA RIQUEZA. NA EUROPA PRE-HISTORICA, 181 Calin Renfrew MERCADORIAS SAGRADAS: A CIRCULACAO DE RELIQUIAS MEDIEVAIS, 217 Patrick Geary PARTE IV - Regimes de producio ¢ a sociologia da demanda TECELOES E NEGOCIANTES: A AUTENTICIDADE DE UM TAPETE ORIENTAL, 247 Brian Spooner VIE. QAT: MUDANCAS NA PRODUCAO E NO CONSUMO. DE UMA MERCADORIA QUASE-LEGAL NO NORDESTE DA AFRICA, 299 Lee V. Cassanelli PARTE V - Transformagées histéricas e cédigos mercantis IX AESTRUTURA DE UMA CRISE CULTURAL: PENSANDO SOBRE TECIDOS NA FRANCA ANTES E DEPOIS DA REVOLUCAO, 329 William M. Reddy X AS ORIGENS DO SWADESHI (INDUSTRIA DOMESTICA): TECIDOS E A SOCIEDADE INDIANA DE 1700 A 1930, 357 C. A. Bayly AUTORES ARJUN APPADURAL é associate professor de antropologia ¢ estudos sul-asiaticos na Universidade da Pensilvania. E 0 autor de Worship and conflict under colonial rule (1981). C. A. BAYLI é fellow do St. Catharine's College, na Universidade de Cambridge, ¢ smuts reader em Estudos do Commonwealth. Publicou The local roots of indian politics: Allahabad, 1880-1920 (1975) e Rulers, townsmen and bazaars: North Indian society in the age of British expansion, 1770-1870 (1983). LEE V. CASSANELLI é professor do Departamento de Histéria da Universidade da Pensilvania. B o autor de The shaping of somali society: reconstructing the history of a pastoral people (1982). WILLIAM H. DAVENPORT ensina antropologia na Universidade da Pensilvania, onde também é curador encarregado da Oceania no University Museum. Realizou pesquisa de campo na Jamaica e nas Iihas Salom4o e pesquisas histéricas sobre o Havai pré-europeu. Tem publicado diversos trabalhos sobre essas areas de estudos. PATRICK GEARY é associate professor de historia da Universidade da Florida. E 0 autor de Furta sacra: thefts of relics in the central middle ages (1978) ¢ Aristocracy in Provence: the Rhone Basin at the dawn of the carolingian age (1985). ALFRED GELL ensina antropologia social na Escola de Economia e Ciéncia Politica de Londres. E 0 autor de Metamorphosis of the cassowaries: umeda society, language and ritual (1975). IGOR KOPYTOFF, do Departamento de Antropologia da Universidade da Pensilvania, é co-editor (com Suzanne Miers) de Slavery in Africa: historical and anthropological perspectives (1977) e autor de Varieties of witchcraft: the social economy of secretpower (no prelo). WILLIAM M. REDDY € assistant professor de histéria na Universidade de Duke ¢ escreveu The rise of market culture: the textile trade and French society, 1750-1900 (1984). COLIN RENFREW €¢ Disney professor de arqueologia da Universidade de Cambridge e Fellow do St. John’s College. Eo autor de Problems in European prehistory (1979) e Approaches to social archaeology (1984). BRIAN SPOONER ensina no Departamento de Antropologia da Universidade da Pensilvania. Escreveu Ecology in development: a rationale for three-dimensional policy (1984). BREVE INTRODUCAO AEDICAO BRASILEIRA Laura Graziela Gomes A presente publicagao em lingua portuguesa da coletanea organizada por Arjun Appadurai (1988) vem completar e somar-se ao conjunto de textos académicos produzidos no contexto da antropologia anglo- americana ¢ francesa sobre 0 tema do Consumo e do consumismo modernos nas trés Ultimas décadas do século XX, mas que comega- ram a ser publicados entre nés somente nos ultimos anos (a partir de 2000).” Deve ser ressaltado que uma caracteristica fundamental desses textos, cuja publicacao no Brasil se iniciou com A ética romiintica e 0 espirito do consumismo moderno de Colin Campbell (2001), foi a retomada de uma perspectiva propriamente socioantropolégica sobre o fenémeno do consumo, que desautorizava algumas teses vigentes de carater trans- cendente e moral. Esta abordagem surgiu, portanto, como uma “terceira via” para aqueles que nao se adequavam ou nao conseguiam mais en- xergar este importante fato social do mundo contempordnea — o consumo — pela ética exclusiva das polarizagées e dos dualismos. De algum modo, todos esses textos apresentam um ponto em comum. Todos eles respondem, de uma forma ou de outra, a algumas acusa- goes graves feitas a0 consumo ¢ ao consumismo, além da classica atribuigdo de fetichizagao dos objetos. Uma dessas acusagées seria a incapacidade de ambos para estabelecer vinculos sociais “auténti- cos”. Ao contrario, tal como uma espécie de cancer, 0 consumisma moderno veio para destruir os “verdadeiros” laos sociais. Para com- pletar este cenério de Deus ¢ o Diabo na Terra do Sol, a literatura de negocios, salvo excegées, também sempre deixou muito a desejar porque, partindo de premissas reificadoras, ela acabou consagrando uma concep¢’o pecaminosa do consumo. * Uma exeegio foio livrade Marshall Salins, Cult e raze prética,cuja 1 edigio brasileira foi em 1979, Para os antropdlogos, ele anunciava uma nwa perspectiva em relagio ao tema do consumo, -ftmbora.na época nao fase lidie discutide somente por esse viés. ‘Autores como Bourdieu, Mary Douglas, Marshall Sahlins, Colin Campbell, Daniel Miller ¢ outros demonstraram exatamente 0 con- trdrio, sem cairem na tentagao de destituir o sentido c a importancia das formas de sociabilidade tradicionais criadas a partir da familia, da produgdo e do trabalho. Baseados em pesquisas empiricas, eles mostraram que 9 consumo est4 na base da formacao do gosto, da distingdo, sem o que nao se poderia falar de individualismo e de es- tratégias de reprodugdo de muitos grupos e identidades sociais no mundo moderno. Assim, além de produzir vinculos sociais, o consu- mo também gera formas particulares de solidariedade, confianga ¢ sociabilidade fundamentais para a vida social. Como as demais obras, a coletanea organizada por Arjun Appadurai é uma demonstracio eloqiiente dessa perspectiva. Ela ainda tem a vanta- gem de trazer consigo todo 0 vigor provocativo que a polémica adquiriu durante as décadas de 1980/1990, Isso se tora evidente no momento em que Appadurai apresenta 0 ponto de vista que propés aos autores dos capitulos: 0 que acontece se deixarmos de prestar atengdo apenas nos vinculos sociais que supostamente precedem ou deveriam prece- der as coisas, € comecarmos a observar as coisas durante os variados percursos ¢ trajetdrias que elas fazem e tragam na sociedade por meio das diferentes esferas de circulagao nela existentes? O livro é importante no apenas pelas respostas que cada autor en- controu no seu universo de pesquisa para esta proposicao, e que o leitor tera condigdes de avaliar, mas pela evocagao de algo importan- te em termos metodolégicos. A coletanea nos faz lembrar que a pesquisa sociolégica nao pode, de forma alguma, fiear refém de ob- jetos pré-construidos. Niteréi, 13 de fevereiro de 2008. 10 PREFACIO Embora antropélogos ¢ historiadores falem cada vez mais uns so- bre os outros, eles raramente falam uns com os outros. Este livro € o resultado de um didlogo entre antropdlogos ¢ historiadores sobre o tema das mercadorias, que se estendeu por um ano. Trés dos arti- gos (os de Cassanelli, Geary e Spooner) foram apresentados no workshop de Etno-hist6ria na Universidade da Pensilvania em 1983- 1984. Os outros (A exceg’o de meu préprio ensaio introdutério) foram apresentados em um simpdsio sobre as relacdes entre merca- dorias é cultura, sediado no Programa de Etno-histéria, na Filadélfia, nos dias 23 a 25 de maio de 1984. Lee Cassanelli, meu colega no Departamento de Histéria da Univer- sidade da Pensilvania, propds primeiramente o tema “Mercadorias & cultura” para o workshop de Etno-histéria de 1983-1984, A ele ¢ a Nancy Farriss (também do Departamento de Histéria, e mentora do workshop desde seu princ{pio em 1975), devo varios anos de estimu- lantes didlogos interdisciplinares. A proposta de Lee Cassanelli coincidiu fortuitamente com uma conversa que eu havia tido com Igor Kopytoff e William Davenport (meus colegas no Departamento de Antropologia, na Universidade da Pensilvania), no desenrolar da qual concordamos que j4 era tempo de ser feita uma revitalizagao da antropologia das coisas. O simpésio de maio de 1984, que levou diretamente ao projeto deste livro, foi possibilitado pelos auxilios que o programa de Etno-hist6- tia recebeu do National Endowment for the Humanities ¢ da Escola de Artes e Ciéncias da Universidade da Pensilvania. O sucesso desse simpésio deve muito ao apoio organizacional ¢ intelectual de estu- dantes e colegas participantes. Em particular, agradego a Greta Borie, Peter Just e Cristine Hoepfner por toda a assisténcia antes e durante o simpdésio. Eu também desfrutei de muita generosidade durante a preparagdo deste livro. Susan Allen-Mills, da Cambridge University Press, foi uma valiosa fonte de orientagao intelectual ¢ editorial. Tenho uma divida especial com a equipe do Centro de Estudos Avangados em Ciéncias Comportamentais, cujos recursos da secretaria ¢ adminis- il tragéo ajudacam materialmente na rdpida preparagéo dos originais. Em particular, é um prazer agradecer a Kay Holm, Virginia Heaton e Muriel Bell. Stanford, California Arjun Appadurai 42 PARTE I Por uma antropologia das coisas I INTRODUCAO: MERCADORIAS EA POLITICA DE VALOR Arjun Appadurat Este ensaio tem dois objetivos: o primeiro ¢ apresentar ¢ estabelecer a contexto dos artigos que compéem este livro; o segundo é propor uma nova perspectiva sobre a circulacdo de mercadorias na vida so- cial, Tal perspectiva pode ser sintetizada da seguinte forma: a troca econdmica cria o valor; o valor é concretizado nas mercadorias que sio trocadas; concentrar-se nas coisas trocadas, em vez de apenas nas formas ¢ fungées da troca, possibilita a argumentag’o de que o que cria 0 vinculo entre a troca ¢ o valor é a politica, em seu sentido mais amplo. Este argumento, que sera elaborado no decorrer deste. texto, justifica a tese de que as mercadorias, como as pessoas, tém. uma vida social.? Pode-se definir mercadorias, ainda que de um modo provisdrio, como. objetos de valor econémico. Quanto ao significado da expressio “valor econdmico”, o melhor guia (embora nao seja o padrao) é Georg Simmel. No primeiro capitulo de A filosofia do dinkeiro (1907), Simmel fornece uma descricao sistemaética da melhor forma de se definir o valor econémico. Para ele, o valor jamais ¢ uma proprieda- de inerente aos objetos, mas um julgamento que sujeitos fazem sobre eles, Mas, de acordo com Simmel, a chave para se compreender 0 valor reside em uma regio onde “essa subjetividade é apenas provi- Soria ¢, com efeito, nao muito essencial” (SIMMEL, 1978, p. 63). Ao explorar esse dominio dificil - nem totalmente subjetivo, nem exatamente objetivo, de onde o valor emerge ¢ onde ele ope- ta ~, Simmel sugere que os objetos nao sao dificeis de se adquirir Porque sio valiosos, “mas chamamos de valiosos aqueles objetos que opdem resisténcia a nosso desejo de possui-los” (1978, p. 67). O que Simmel denomina, em particular, objetos econdémicos existe no €spaco entre o desejo puro e a frui¢ao imediata, com alguma distancia entre eles e a pessoa que os deseja. Tal distancia pode ser ultrapassada, © que ocorre e por meio da troca econémica, na qual se determina ios reciprocamente 0 valor dos objetos. Ou seja, o desejo de alguém por um objeto é satisfeito pelo sacrificio de um outro objeto, que € 0 foco do desejo de outrem, Tal troca de sacrificios é 0 que constitui a vida econémica, e a economia, como forma social especifica, “consiste nao apenas em trocar valores, mas na troca de valores” (SIMMEL, 1978, p. 80). O valor econdémico é, para Simmel, gerado por essa espécie de troca de sacrificios. Essa andlise do valor econémico na discussio proposta por Simmel tem diversos desdobramentos. O primeiro € que o valor economico nao é simplesmente um valor genérico, mas uma quantidade definida de valor, que resulta da comensuragdo de duas intensidades de de- manda. A forma que essa comensuragao assume é a troca de sacrificio por ganho. Assim, o objeto econdmico nao tem um valor absolute como resultado da demanda que suscita, mas é a demanda que, como base de uma troca real ou imaginaria, confere valor ao objeto. E a troca que estabelece os parametros de utilidade ¢ escassez, nao o contrario, ¢ € a troca que é a fonte de valor: “A dificuldade de aquisi- ao, 0 sacrificio oferecido em troca, é o dnico elemento constitutive do valor, de que a escassez € té0-somente a manifestagao externa, sua objetivagdo sob a forma de quantidade” (SIMMEL, 1978, p. 100). Em suma, a troca néo é um subproduto da valoragao mitua de obje- tos, mas sua fonte. Com estas observagdes concisas ¢ brilhantes, Simmel prepara o ter- reno para a andlise do que considerava ser 0 mais complexo instrumento do procedimento de troca econdmica — 0 dinheiro -¢ de seu lugar na vida moderna. Mas suas observacdes podem ser toma- das em um sentido um tanto diferente. Este sentido alternativo, que se exemplifica no corpo deste ensaio, consiste em explorar as condi- des sob as quais objetos econémicos circulam em diferentes regimes de valor no tempo ¢ no espago. Muitos dos artigos que compdem este livre examinam coisas (ou grupos de coisas) especificas, uma vez que circulam em ambientes culturais ¢ histéricos especificos. O que estes artigos permitem é uma série de olhares sobre os modos como desejo e demanda, sacrificio reciproco ¢ poder interagem para criar o valor econémico em situagGes sociais especificas. Nos dias atuais, 0 senso comum ocidental, caleado em diversas tradi- des historicas da filosofia, do direito e das ciéncias naturais, tem uma forte tendéncia a opor “palavras” ¢ “coisas”. Muito embora isso nao 16 tenha sido sempre assim, nem mesmo no Ocidente, como observou Marcel Mauss, cm seu célebre Ensaio sobre o dom, a forte tendéncia contemporanea é considerar o mundo das coisas inerte e mudo, sé sen- do movido ¢ animado, ou mesmo reconhecivel, por intermédio das pessoas € de suas palavras (ver também DUMONT, 1980, p. 229-230). Nao obstante, em muitas sociedades histéricas, as coisas nao estavam tio divorciadas da capacidade das pessoas de agir ¢ do poder das pala- yras de comunicar (ver Capitulo 2), Que uma tal visao a respeito das coisas nao tenha desaparecido mesmo nas circunstincias do capitalis- mo industrial moderno é uma das intuigdes que sustentavam a discussao famosa de Marx sobre 0 “fetichismo das mercadorias”, no Capital. Mesmo que nossa abordagem das coisas esteja necessariamente con- dicionada pela idéia de que coisas nao tém significados afora os que Jhes conferem as transagGes, atribuigdes e motivagdes humanas, o problema, do ponte de vista antropoldgico, é que esta verdade formal nao langa qualquer luz sobre a circulagao das coisas no mundo con- creto e histérico. Para isto temos de seguir as coisas em si mesmas, pois scus significados estao inscritos em suas formas, seus usos, suas trajetérias, Somente pela andlise destas trajet6rias podemos interpre- tar as transagées € os calculos humanos que dao vida as coisas. Assim, embora de um ponto de vista tedrice atores humanos codifiquem as coisas por meio de significagGes, de um ponto de vista merodolégico sao as coisas em movimento que elucidam seu contexto humano ¢ social. Nenhuma anidlise social das coisas (seja 0 analista um econo- mista, um historiador da arte ou um antropdlogo) é capaz de evitar por completo o que pode ser denominado fetichismo metodoldégico. Este fetichismo metodolégico, que restitui nossa atengio as coisas em si mesmas, é, em parte, um antidoto a tendéncia de atribuir um excessive valor socioldgico as transagées realizadas com as coisas, tendéneia que devemos a Mauss, conforme Firth observou recente- mente (1983, p. 89). Mercadorias, e coisas em geral, despertam, de modo independente, o interesse de diversos tipos de antropologia. Constituem os principios basicos ¢ os iiltimos recursos dos arquedlogos. Sao a substancia da “cultura material”, que une arquedlogos a antropélogos culturais de diversas linhas. Na qualidade de objetos de valor, ocupam uma posi- io central na antropologia econémica ¢, com igual importancia, na teoria da troca ou na antropologia social em geral, uma vez que S40 0 instrumento do ato de presentear. Analisar as coisas sob a perspecti- va das mercadorias constitui um ponto de partida de grande utilidade para o interesse na cultura material, renovado pela orientagao semidtica, e que foi recentemente ressaltado ¢ exemplificado em uma. secao especial da RAJN (MILLER, 1983), Mas as mercadorias nao sao um interesse fundamental apenas dos antropologos. Também cons- tituem um tépico privilegiado na histéria econdmica e social, na hist6ria da arte ¢, antes que nos esquegamos, na economia, embora cada disciplina possa formular o problema de um modo diferente. As mercadorias representam, pois, um tema sobre o qual a antropologia pode ter algo a oferecer as plinas afins, como também tem muito a aprender com esias disciplinas. Os ensaios deste livro abrangem uma boa parte das questdes histéri- cas, etnograficas e conceituais, mas nde pretendem fazer, absolutamente, uma andlise exaustiva das relagGes da cultura com as mereadorias. Entre os colaboradores, ha cinco antropélogos saciais, um arqueélogo ¢ quatro historiadores sociais. Economistas e histo- riadores da arte nio estdo aqui representados, mas suas idéias nao foram de modo algum negligenciadas. Algumas das principais areas do mundo nao foram abordadas (notadamente a China ¢ a América Latina), mas a cobertura geografica é de uma extensio bem razodvel. Embora os artigos tratem de uma séric considerdvel de bens, a lista de mercadorias néo discutidas aqui seria um tanto longa, havendo uma preferéncia por bens especificos ou de luxo, em vez de merca- dorias “em estado bruto” e de “primeira necessidade”. Enfim, a maiori: dos autores dedica-se a bens em vez de servicos, embora estes tam- bém sejam importantes objetos de mercantilizagéo. Ainda que cada uma destas omissées seja grave, pretendo sugerir, ao longo deste en- saio, que algumas tm menos relevancia do que parecem. As cinco segdes que se sucedem neste ensaio dedicam-se aos seguin- tes objetivos. A primeira, “O espirito da mercadoria”, é um exercicio critico de definigo, na qual se atgumenta que as mercadorias, devi- damente compreendidas, nao sao monopélio das economias industriais modernas. Em seguida, “Rotas ¢ desvios” discute as estratégias (se- jam individuais ou institucionais) que fazem da criagdo de valor um. processo mediado pela politica. A segao subseqiiente, “Desejo ¢ de- manda”, articula modelos de longo e curto prazo na circulagao de mercadorias para mostrar que 0 consumo esta sujeite ao controle so- cial e a redefinigao politica. A dltima se¢io t40 fundamental quanto 18 as dem *Conhecimenta ¢ mercadorias”, busca demonstrar que politicas de valor sao, muitas vezes, politicas de conhecimento. A conclusao retoma a discussao sobre a politica como instancia media- dora entre a troca e 0 valor. O ESPIRITO DA MERCADORIA Poucos negariam que a mercadoria é algo completamente socializa- do. Logo, em busca de uma definigao, a questio a ser colocada & em que consiste esta sociubilidade? A resposta purisla, que se tornou rotina atribuir a Marx, é que uma mereadoria é um produto destina- do, sobretude, & troca e que tais produtos emergem, por definigag, sob as condigdes institucionais, psicoldgicas e econémicas do capi- talismo. Definigdes menos puristas vécm as mercadorias como bens destinados & troca, independentemente da forma de troca. A defini- cio purista dé um fim prematuro 4 questao. As definigdes mais frouxas correm o risco de tornar equivalentes mercadoria, didiva e diversos outros tipos de coisas. Nesta segao, por meio da critica 4 concepgan marxista da mercadoria, pretendo sugerir que mercadorias sio coisas com um tipo particular de potencial social, que se distinguem de “pro- dutos”, “objetos”, “bens”, “artefatos” ¢ outros — mas apenas em alguns aspectos ¢ de um determinado ponto de vista. Se for convincente, meu argumento resultaré no reconhecimento de que, com vistas a uma definigao, é de grande utilidade considerar as mereadorias como algo que existe em uma enorme gama de sociedades (embora tenham uma forca e projecdo especiais nas sociedades capitalistas moder- nas), ede que ha uma convergéncia inesperada entre Marx ¢ Simmel sobre o tépico das mercadorias. A discussio mais elaborada ¢ instigante acerca da idéia de mercado- tia consta da primeira parte do primeiro livro de O Capital, de Marx, ainda que a idéia estivesse muito difundida nos debates sobre econo- Mia politica do século XIX. A revisao, feita pelo proprio Marx, do conceito de mercadoria foi uma parte fundamental de sua critica 4 economia politica burguesa ¢ a base para a transig&o que se verifica entre seu proprio pensamento inicial sobre 0 capitalismo (ver, cm especial, MARX, 1973) ¢ a andlise mais madura de O Capital. Atual- mente, a centralidade conceitual da idéia de mercadoria foi substituida Pelo conceito neoclissico ¢ marginalista de “bens”, A palavra “mer- cadoria” é usada na economia neoclassica apenas com referéncia 4 ig uma subclasse especifica de bens primdrios ¢ j4 ndo exerce um papel analitico central. E claro, esse nao é 0 caso das abordagens marxistas na economia e na sociologia, ou das neo-ricardianas (como as de Piero Sraffa), nas quais a andlise da “mercadoria” ainda tem uma fungio teérica fundamental (SRAFFA, 1961; SEDDON, 1978). ‘Todavia, na maioria das anlises modernas da economia (fora da an- tropologia), 0 significado do termo mercadoria ficou restrito a repercutir apenas uma parte do legado de Marx e dos primeiros eco- nomistas politicos. Ou seja, na maioria dos usos contemporaneos, as mercadorias s40 um tipo especial de bens manufaturados (ou servi- os), que se associam somente aos modos de producao capitalista ¢, portanto, s6 podem ser encontradas onde penetrou o capitalismo, Assim, mesmo nos debates atuais sobre a proto-industrializacao (ver, por exemplo, PERLIN, 1982), a questéo nao é se as mercadorias se associam ao capilalismo, mas se certas formas de organizagio e de técnicas associadas ao capitalismo tém uma origem exclusivamente: européia. Mercadorias sao, em geral, vistas come lipicas representa- des materiais do modo de producado capitalista, mesmo quando classificadas como triviais, seu conteato capitalista como incipiente. Porém, ¢ evidente que tais andlises se valem de apenas uma parte da concepgéo de Marx da natureza da mercadoria. Pode-se dizer que 0 tratamento dado 4 mercadoria nas primeiras cento e tantas paginas de O Capital é uma das partes mais dificeis, contraditérias e ambiguas da obra de Marx. Inicia-se com uma definigao de mercadoria extrema- mente vaga (“A mercadoria €, antes de tudo, um objeto exterior, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie"). Continua, entéo, dialeticamente, com uma série de definigées mais parcimoniosas, que possibilitam a elaboragao gradual da abordagem marxista basica do valor de uso e valor de troca, 0 pro- blema da equivaléncia, a circulagao a traca de produtos ¢ 0 significado do dinheiro, E a elaboragao desta concepgao das relagdes entre a for- ma-mercadoria ¢ a forma-dinheiro que permite a Marx estabelecer a famosa disting&o entre as duas formas de circulagao de mercadorias (Mercadorias—Dinheiro—Mercadorias ¢ Dinheiro—Mercadorias—Di- nheiro)sendo a segunda a representagao da formula geral do capitalismo. No decurso deste movimento analitico, as mercadorias so intricada- mente atreladas ao dinheiro, a um mercado impessoal ¢ ao valor de troca. Mesmo na forma mais simples de circulagao (ligada ao valor de uso), as mercadorias relacionam-se por meio da capacidade de 20 comensuragao do dinheiro. Hoje, a ligacdo entre mercadorias e formas pés-industriais, sejam tais formas sociais, financeiras ou de troca, éem geral um ponto pacifico, mesmo entre os que, noutros ee nao levam Marx a sério. Contudo, nos textos do préprio Marx, pode-se encontrar a base para uma abordagem das mercadorias muito mais abrangente e proficua de um ponto de vista intercultural e histérico, cujo espirito se vai atenuan- do, 4 medida em que cle passa a estar envolvido nos detalhes de sua anélise do capitalismo industrial do século XIX. De acorde com esta primeira formulagao, para produzir mercadorias, em vez de meros pro- dutos, um homem tem de produzir valores de uso para os outros, valores de uso sociais (MARX, 1971, p. 48). A esta passagem, Engels acres- centou uma interessante glosa, inserida entre parénteses no texto de Marx, em que se reformula a idéia da seguinte forma: “Para se tornar mercadoria, 0 produto tem de ser transferido para outrem, a quem ira servir de valor de uso, por meio de troca” (MARX, 1971, p. 48). Em- bora Engels se contentasse com esta elucidagao, Marx prosseguiu com uma série extremamente complexa (¢ ambigua) de distingdes entre pro- dutos ¢ mercadorias, mas, para propdsitos antropolégicos, a principal Passagem merece ser citada na integra: Todo produto do trabalho é, em todas as estados da sociedade, valor de uso, mas 56 em uma determina- da época do desenvolvimento histérico da sociedade o produto do trabalho se transforma em mercadoria, asaber, aquela cm que o trabalho gast na producgso de objetos leis s¢ toma a expresso de uma das qua- lidades inerentes a esses objctos, ou seja, expressio de seu valor. Resulta daf que a forma-valer elemen- tar é também a forma primitiva sob a qual o produto do trabalho surge histaricamente como uma merca- doria ¢.que a transformagao gradual desses produtos em mercadorias prossegue passo a passo com o de- senvalvimento da forma-valor, (MARX, 1971, p.67) A dificuldade em distinguir 0 aspecto légico do aspecto histérico nessa argumentacao foi observada por Anne Chapman (1980), em uma dis- Cussao que retomarei em breve. No excerto de O Capital citado acima, a Passagem do produto 4 mercadoria € tratada em termos histéricos, mas 0 Fesultado final permanece muito esquemitico e € dificil especificd-lo. ou testd-lo com alguma clareza. 27 A questio é que Marx ainda estava preso a dois apriorismos da episteme de meados do século XTX: um estabelecia que s6 se podia observar a economia com referéncia 4s problemiticas de produgio (BAUDRILLARD, 1975); 0 outro considerava o movimento em di- tegio A produgéo de mercadorias como evolutivo, unidirecional € histérico. O resultado: mercadorias existem ou nao existem e sao produtos de uma espécie particular. Cada uma dessas suposigées pre- cisa ser modificada. A despeito dessas limitagdes epistémicas, em sua célebre discussdo0 sobre o fetichismo das mercadorias, Marx de fato observa, como 0 faz em outras passagens de O Capital, que a mercadoria nao € uma invengdo do modo de producéo burgués, mas se manifestava “em datas antigas da histéria, embora nao de um modo tao predominante ecaracteristico como nos dias de hoje” (MARX, 1971, p. 86). Ainda que explorar as dificuldades do préprio pensamento de Marx sobre economias pré-capitalistas, sem Estado ¢ nao monetizadas, seja algo que ultrapasse os limites do presente ensaio, poderiamos observar que Marx nao afastou a possibilidade de haver mercadorias, ao me- nos em uma forma primitiva, em muitos tipos de sociedade. Aestratégia de definigdo que proponho aqui consistc em um retorno 4 versdo da emenda feita por Engels 4 definigao mais abrangente formulada por Marx, que inclui a produgao de valor de uso para os outros € possui pontos convergentes com a énfase de Simmel na tro- ca como fonte do valor econémico. Comecemos com a idéia de que uma mercadoria ¢ qualquer coisa destinada 4 troca, o que nos liberta de uma preocupacio exclusiva com o “produto”, a “produg’o” intengao original ou predominante do “produtor”, e possibilita nos concentrarmos nas dinamicas de troca. Para fins compurativos, en- (Go, a questao deixa de ser “O que é mercadoria?” para ser “Que tipo de troca é a troca de mercadorias?”. Aqui, como parte de um esforgo em definir mercadorias da melhor forma possfvel, temos de lidar com dois tipos de troca que sio convencionalmente contrastades com a troca de mercadorias. O primciro é a permuta (algumas vezes chama- da de troca direta); 0 segundo é a troca de presentes. Comecemos com a permuta. A permuta é uma forma de troca que Chapman (1980) analisou re- centemente, em um ensaio que, entre outras coisas, discorda da andlise do préprio Marx sobre as relagées entre a troca direta € a troca de 22 mercadorias. ‘Combinando aspectos de diversas definigdes correntes da permuta (inclusive a de Chapman), sugiro que se trata de uma froca mutua de objetos sem alusao a dinheiro e com a maxima redu- ao factivel nos custos sociais, culturais, politicos ou pessoais da transaciio. O primeiro critério distingue a permuta da troca de merca- dorias num sentido estritamente marxista, enquanto o segundo a distingue da troca de prescntes em praticamente qualquer definigao, Chapman tem razao ao afirmar que, na medida em que a teoria do valor de Marx é levada a sério, o tratamento nela dado a permuta apresenta problemas tedricos ¢ conccituais que permanecem insoli- veis (CHAPMAN, 1980, p. 68-70), pois Marx postulava que a permuta assumia a forma tanto de uma troca direta de produtos (x do valor de uso. = y do valor de uso 8), quanto de uma troca direta de mercado- rias (x da mercadoriaA = y da mercadoria 2). Mas esta concepcao da permuta, por mai ptoblematica que seja para uma teoria marxista sobre a origem do valor de troca, tem a virtude de estar em harmonia com a reivindicagio mais persuasiva de Chapman, a saber, que a permuta, seja como forma de troca dominante ou secundiria, existe em uma grande variedade de sociedades. Chapman critica Marx por jncluira mercadoria na permuta ¢ pretende manté-las bem separadas, alegando que mercadorias assumem a fungao de objetos monetarios. (e, portanto, de valor de trabalho congelado), nao apenas a fun¢gdo de unidade de calculo ou de medida de equivaléncia. Para Chapman, a ‘troca de mercadorias sé ocorre quando um objeto monetario inter- vém na troca. Como, em seu modelo, a permuta exelui tal intervengao, hd uma distingao formal e completa entre a troca de mercadorias € a permuta, embora possam coexistit em algumas socicdades (CHAPMAN, 1980, p. 67-68). Patece-me que Chapman, em sua critica a Marx, adota uma visdo demasiado restritiva do papel do dinheiro na circulagao de mercado- tias. Marx, mesmo tendo encontrado dificuldades em sua propria andlise das relagdes entre permula ¢ troca de mercadorias, tinha ra- zo em observar, como o fez Polanyi, que a permuta e a troca capitalista de mereadorias tinham um espirito comum, ligado (em Seu ponto de vista) 4 natureza centrada no objeto, relativamente im- Pessoal e associal, de ambuas as formas de troca. Em diversas formas simples de permuta, percebemos um esforco em trocar coisas sem as Coercées da sociabilidade nem as complicagées do dinheiro. No mun- do contemporineo, a permuta esté em alta: hd uma estimativa de que 23 movimente 12 bilhées de délares cm bens e servigos por ano apenag nos Estados Unidos. Permutas internacionais (por exemplo, xarope de Pepsi por vodea russa; Coca-cola por palitos de dente coreanos ou por empilhadeiras bilgaras) estéo-se transformando em uma com- plexa economia alternativa. Nestas circunstancias, a permuta ¢ uma freag4o ao nimero cada vez maior de barreiras impostas ao comércig © as finangas internacionais e tem um papel especifico a exetcer na economia global. Assim, como forma de comércio, a permuta articu- la a troca de mercadorias nas mais diversas circunstancias sociais, tecnolégicas ¢ institucionais. Pode-se, portanto, considerd-la uma forma especial de troca de mercadorias, na qual, por uma série de razOes, o dinheiro nao desempenha qualquer papel, ou um papel muito indireto (como uma mera unidade de calculo). Com esta definigdo de permuta, seria praticamente impossivel encontrar qualquer socieda- de humana cm que a troca de mercadorias seja completamente irrelevante. A permuta parece ser a forma de troca de mercadorias em que a circulagio de coisas mais se divorcia das notmas sociais, politicas ou culturais. Porém, onde quer que haja evidéncias disponi- veis, a determinagao do que pode ser permutado, onde, quando e por quem, assim como o que impulsiona a demanda por bens de “ou- trem”, é um fato social. Ha uma forte tendéncia de perceber tal regulamentagao social como uma questéo em grande parte negativa, de modo que a permuta em sociedades de pequena escala ¢ em periodos remotos é, com freqiiéncia, considerada uma forma de troca restrita 4 relacdo entre comunidades em vez de no interior das comu- nidades, Neste modelo, a permuta é tomada como algo inversamente proporcional a sociabilidade e, pot extensio, o comércio exterior é visto como algo que “precedeu” o comeércio intemo (SAHLINS, 1972). Mas ha bons motivos empiricos e metodolégicos para questionar este pento de vista, A idéia de que o comércio em economias pré-industriais nao monetizadas é, em geral, percebido como anti-social sob a perspecti- va das comunidades de contato direto ¢, portanto, restringia-se com freqiiéncia a negociagdes com estranhos tem como contrapartida im- plicita a visio de que © espirito da dadiva e o da mercadoria séo profundamente opostos. Sob tal ponto de vista, a troca de presentes & a troca de mercadorias 840, por esséncia, contrastantes ¢ excluem-se mutuamente. Apesar das tentativas recentes de amenizar 0 exagera- do contraste entre Marx ¢ Mauss (HART, 1982; TAMBIAH, 1984), a 24 tendéncia de ver uma coposigio fundamental entre estas duas modali- dades de troca continua sendo um trago distintivo do discurso anteopolégico (DUMONT, 1980; HYDE, 1979; GREGORY, 1982; SAHLINS, 1972; TAUSSIG, 1 980). Aampliagao e areificacdo do contraste entre dadiva e mereadoria na jugio académica antropoldgica ttm muitas fontes, entre as quais esto: a tendéncia de idealizar as sociedades de pequena escala de um modo romantico; de confundir valor de uso (no sentido de Marx) com gemeinschaft’ (no sentido de Toennies), de esquecer que tam- bém as sociedades capitalistas operam de acordo com padroes culturais; de marginalizar ¢ minimizar os aspectos calculistas, im- pessoais ¢ auto-enaltecedores das sociedades nao-capitalistas. Estas tendéncias, por sua vez, s40 0 produto de uma viséo demasiado simplista da oposigao entre Mauss e Marx, que, como observou Keith Hart (1982), deixa escapar aspectos importantes dos pontas em co- mum que se verificam entre eles. Dadivas — ¢ 0 espirito de reciprocidade, sociabilidade e espontanei- dade em que sao normalmente trocadas - sio em geral postas em oposigao ao espirilo ganancioso, egocéntrico e calculista que anima a circulacao de mercadorias. Ademais, enquanto presentes vinculam coisas a pessoas e inserem o fluxo de coisas no fluxo de relacdes sociais, mercadorias supostamente representam 0 movimento — em grande parte livre de coerg6es morais ou culturais — de bens uns pe- los outros, movimento mediado pelo dinheiro, mao pela sociabilidade. Muitos dos ensaios deste livro, assim como minha propria argumen- tagdo aqui, destinam-se a mostrar que esta série de contrastes é exagerada ¢ simplista. Porém, por enquanto, apresento apenas uma importante propriedade comum A troca de presentes ¢ a circulagdo de mercadorias. O mado como compreendo o espirito da traca de presentes deve muito 4 Bourdieu (1977), que expandiu um aspecto até entao negligenciado da analise de Mauss sobre a didiva (MAUSS, 1976, p. 70-73), no qual se enfatizam certos paralelos estratégicos entre a troca de pre- Sentes e as prilicas “econGmicas” mais ostensivas. A discussao de Bourdieu, que ressalta a dindmica temporal do ato de presentear, empreende uma andlise perspicaz do espirito comum subjacente & troca de presentes ¢ 4 citculacao de mercadorias: 25 Sc é verdade que o intervalo de tempo interposto €0 que possibilita ae dom ou ao contra-dom ser visto ¢ experimentado cumo um ato inaugural de gencrosi- dade, scm qualquer passado ou futuro, quer dizer, sem célcwlo, entéo fica clare que, ao reduzir o poli 0 ae monotttico, v Objelivisme aniquila a especifividade de todas us praticas que, camo a tro- ca de presentes, (endem a, ou pretendem, colocar a lei do interesse préprio em suspenso. Por dissirau- lar, estendendo no tempo. a transagao que o contrato tr al condensa cm um instante, a troca de dons, é,sendo 0 tinico modo de circulagdo de mereadorias a ser praticado, au menos © nico modo plenameme reconhecido, em sociedades que, camo coloca Lukaes, negam “o verdadeiro solo de suas vidas”, e qe, como se nao quisessem ¢ nao pudcssem confe- rir 4s realidades ccon6micas seu sentido puramente econdmica, ém uma economia em si ¢ ndo para si (BOURDIEU, 1977, p. 177) Esse tratamento dado a troca de presentes como uma forma particu lar de circulagao de mercadorias procede da critica que Bourdieu dirige Nao apenas a tratamentos “objetivistas” da agao social, masa um tipo de etnocentrismo, em si mesmo um produto do capitalismo, que toma por incontestavel uma definicao demasiado restrila do interesse eco- némico.’ Bourdieu sugere que “a pratica jamais cessa de obedecer ao cdlculo econdmico, mesmo quando da uma impressio de completo desinteresse por escapar 4 légica do calculo interessado (no sentido estrito) ¢ estar norteada por apostas que sao imateriais ¢ dificilmente quantificadas” (BOURDIEU, 1977, p. 177). Suponho que esta sugestao converge, ainda que de um angulo ligei- ramente diferente, com as propostas de Tambiah (1984), Baudrillard (1968, 1975, 1981), Sahlins (1976) e Douglas & Isherwood (1981). ‘Todas estas propostas sao tentativas de restituir a dimensao cultural de sociedades quase sempre descritas apenas, em termos gerais, como economias, ¢ de restituir a dimensdo calculista de sociedades quase sempre retratadas apenas em termos estritos de solidariedade. Parte das dificuldades que se encontram nas andlises interculturais de mer- cadorias, como também de outros dominios da vida social, reside no fato de a antropologia ser demasiado dualista: “nds e eles”, “mate- nalistac religioso”; “objetificagao de pessoas” versus “personificagao de coisas”; “troca comercial” versus “reciprocidade”; ¢ assim por 26 diante. Estas oposigées sdo caricaturas de ambos os pélos ¢ reduzem as diversidades humanas de um modo artificial. Um sintoma deste blema tem sido uma concepgio demasiado positivista da merca- doria como um determinado tipe de coisa ec, portanto, restringindo, assim, © debate a questao de decidir de qual tipo de coisa se trata. ‘Mas, quando sc lenta comprcender o que é especifico 4 troca de mer- cadorias, nao faz sentido distingui-la radicalmente da permuta nem da troca de presentes. Como sugere Simmel (1978, p. 97-98), € im- portante considerar a dimensao calculista em todas estas trés formas de troca, mesmo se variam as formas ¢ intensidades de sociabilidade associadas a cada uma delas. Resta-nos, agora, caracterizar a troca de mereadorias de um modo comparativo e processual. Fagamos uma abordagem das mercadorias como coisas cm uma deter- minada situagao, situagdo cesta que pode caracterizar diversos tipos de coisas, cm pontos diferentes de suas vidas sociais. Isso significa olhar para 0 potencial mercantil de todas as coisas, em vez de buscar em vao amAgica distingao entre mercadorias ¢ outros tipos de coisas. Também significa romper de um modo categérico com a visao marxista da mer- cadoria, dominada pela perspectiva da produ¢do, e concentrar-se em toda a trajetéria, desde a produgau, passando pela troca/distribuigao, até o consumo. Mas coma deveriamos definir a situagdo mercantil? Proponho que a situagdo mercantil na vida social de qualquer “coisa” seja definida come a situagae em que sua trocabilidade (passada, presente ou fu- fura) por alguma outra coisa constitui seu truco social relevante. Ademiais, a situagio mercantil, assim definida, pode ser decomposia em: (1) fase mercantil da vida social de qualquer coisa; {2) a candi- datura de qualquer coisa ao estado de mercadoria; (3) 0 contexto mercantil em que qualquer coisa pode ser alocada. Cada um destes aspectos da “mercantilidade” cxige alguma cxplicagao. A nogio de fase mercantil na vida sacial de uma coisa é uma forma de sintetizar a idéia central do importante ensaio de igor Kopytoft que consta deste livro, em que se observam cerlas coisas transitando dentro ¢ fora do estado de mercadoria. Terei mais a dizer sobre esta abordagem biografica das coisas na proxima segao, mas note-se, por enquanto, que coisas entram ¢ saem do estado de mercadoria, que tais movimentos podem ser répidos ou lentos, reversiveis ou termi- Tals, hormativos ou discrepantes.* Embora o aspecto biogrifico de inn

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