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DRAY, William H. Filosofia da histéria. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. UM TRATAMENTO RELIGIOSO REINHOLD NIEBUHR Com Niebuhr, abandonamos a especulagao metafisica € as provas quase-cientificas por uma tentativa de “interpretar” a histéria do ponto de vista da {€ religiosa. Afirma Niebuhr que ‘nada menos que a revelacdo divina, tal como elaborada na teo- logia crista, é que propicia base “adequada” para aprender 0 significado dos acontecimentos historicos. Saber se seu proprio protestantismo ‘“neo-ortodoxo” pode ser olhado naturalmente co- mo algo que favorece a visio cristi da historia é outro assunto — ¢ assunto controvertido. Correligionérios cristios atacaram Niebuhr freqiientemente pelo fato de descobrir ele significado religioso demasiado amplo ou demasiado reduzido nos aconteci- mentos, E consideravel parte da energia de Niebuhr foi dedicada ‘a combater 0 que ele considera perigosas heresias crists a pro- pésito da hist6ria. Essas disputas teolégicas “intramuros” devem, fentretanto, ser tidas como assunto que esté para além de nosso escopo. Deve ser entendido que, daqui por diante, ao conside- rar “cristis” as maneiras de ver de Niebuhr, niio estaremos cogi- tando de tentar julgé-las. Para o proprio Niebuhr, a elaboragao de uma visio cristd da historia est intimamente associada & tarefa de mostrar a rele- vancia da {€ religiosa face aos problemas da vida secular — especialmente os problemas politicos; e, provavelmente, os Esta~ dos Unidos 0 conhecem tanto por seus comentérios severos © adicais acerca de questdes politicas quanto por sua erudicao teol6gica. A melhor apresentagao de sua posicao teolégica é feita no livro em dois volumes intitulado The Nature and Destiny of Man,\ da série das Gifford Lectures. As doutrinas que se 1 (Nova York: Chavles Scribner's Sous, 194143). The Philosophy of History in Our Fine, 4e'Wieyernott, conan um encerlo- dest obra 140 FILOSOFIA DA HISTORIA revestem de importincia especial para a interpretagéo da hist6- ria encontraram expresso mais acessivel e mais breve num livro intitulado Faith and History; ¢ a exposicio de sua teoria, no presente capitulo, basear-se-4 amplamente nesse livro. Deve-se reconhecer, entretanto, que mesmo 0 trabalho de caréter popular 6 por vezes, de acesso dificil para 0 ndo-iniciado. A linguagem € esquivamente teol6gica; o argumento, irritantemente frouxo ¢ repisado. E parece descer, por vezes, a uma retérica paradoxal ¢ misteriosa, simplesmente por amor’& retérica. Nao obstante, em seu feitio profético, a obra de Niebuhr causa consideravel impacto. E apresenta a vantagem, para nossos propésitos, de haver sido amplamente debatida. Trés VISOES DA HISTORIA A semelhanca de Hegel, Niebuhr apresenta sua interpre- tagao pondo-a em contraste com duas posicdes rivais por ele consideradas erréneas. A primeira é a que ele denomina grega clissica, Niebuhr no afirma que os gregos mostrassem inteiro acordo quanto & maneira de encarar a histria. Herdclito, por exemplo, no se prende & tradigiio que Niebuhr tem em mente, ea ela nao se prende também a religiao dionisiaca. Mas, espe- cialmente com referéncia a Platdo, Aristoteles ¢ 08 estdicos, acre- dita cle que se justifique falar de uma particular abordagem classica. Essa abordagem encontra a inteligibilidade da histéria em sua “sujeigdo recorréncia natural” antes que nas ““inovacdes gue a liberdade humana introduz no processo temporal” (p. 664). S6 se Ihe atribui sentido até o ponto em que 0 processo histérico reflete ou concretiza certas formas racionais ndo-tem- porais. Essa maneira de ver, observa Niebuhr, afasta a atenco de tudo que nés Yevemos encarar como caracteristicamente his- torico; e desencoraja os homens de enfrentarem criadoramente as situagSes sui generis em que se véem postos. Corresponde, em verdade, a uma “versio intelectual ocidental de um tipo universal de espiritualidade a-hist6rica”, encontrada em formas misticas, néo-intelectuais em varias religides do Oriente (p. 16) A semelhanga dessas religides, essa maneira de ver busca esca- 2. (Nowa York: Charles Seribae’s Sons, ploina feleremis a esa eaigho No tert, a5 Indleagses. 6 UM TRATAMENTO RELIGIOSO 141 em um mundo — neste aso, que transcende inteiramente a a hist6ria é na melhor das hipétese tiva; ndo ¢ significativa “em seu todo” (p. 64) No extremo oposto, esté a moderna visio ocidenta 35 enxerga significacio histérica nos efeitos singulares da dade humana e no padrio de acontecimentos, linear ¢ progres sivo, que dela decorre. Fendmeno: pés-renascentista, surgido numa época em que o homem ocidental experimentava uma vaga de confianca em seus poderes criadores, essa visio da his- toria ve, em verdade, suas origens remontarem as introspecgoes dos profetas hebreus, embora, adianta Niebuhr, ao secular as tenha interpretado mal, A esséncia ‘io. modern: passa a ser vista como €, com isso, se quer significar “crescimento de espirito ou de afinidade, dos prop6sitos implicitos que @ razao em desenvolvi- mento supostamente garante” (p. 68). Esses propésitos tem merecido interpretacdo variada: crescente controle sobre a natu- reza, crescente bem-estar fisico, democratizagio da sociedade, comunidade universal ou outras’desejaveis condigdes. A crenca fundamental é, contudo, a de que “crescimento significa liber- dade; e a liberdade, tal como no pensamento clissico, é presu- midamente, liberdade racional”. A esse propésito, um filésofo da Histéria como Hegel limita-se a apresentar mais si te aquilo em que a maioria dos teOricos ocidentais da Histéria tém acreditado. Do ponto de vista cristo, admite Niebuhr, essa visio mo- derna corresponde a um aperfeigoamento em relagio a clissica, ‘ado nos pormenores da efetiva existencia quem a sustenta a uma desas- trosa ingenuidade. Com efeito, ao apresentar a crescente liber- dade humana como asseguradora do progresso social racional, essa visio superestima fortemente tanto a exfensdo em que a liberdade cresce na hist6ria como também a relagdo entre dade e virtude. E isso conduz a falsa conclusio de que venha a ser possivel, ao final, alterar © conjunto da “situacio human: (pp.15-16) ibilidade que se expressa em projecdes ut ia espécie. Em verdade, 0 mais superficial exame storia mostraré que 0 crescimento da liberdade fe poder humanos simplesmente “amplia a gama de problemas 142 ILOSOFIA DA HISTORIA humanos” (p. 98). Talvez nao se possa colocar li & extensio potencial do dominio humano sobre a naturezs nao hé divida de que a histéria tem sido 0 palco de grandes avangos técnicos. Mas o poder que assume importéncia em his- t6ria € 0 dominio que o homem tenha sobre seus proprios “dese- jos e impulsos egoisticos”. E cada aparente avango abre a estes Ultimos “um horizonte mais amplo do que o que tinham sob condigdes anteriores”. Assim, solveu as antigas formas de ue brotaram do seu brutais e vergonhosas que as anteriores Nivelaram-se as desigualdades baseadas na, propriedade da terra. Mas as desigualdades mais dinimicas de uma sociedade ‘rginicas mais antigas, sentiam-se perdidos na massa; © tor- rnaramsse presa de demagogos e charlaties que. transforma- ‘seus ressentimentos e ansiedades individuals em poder ico coletive de firia demoniaca (p. 7). A posigio crist, ao ver de Niebuhr, esti protegida contra as expectativas ingénuas da teoria do progresso, gragas a sua ‘mais realista concepeéo da natureza humana. Segundo essa po- sigio, 0 mal que a histéria pde em evidéncia nao é olhado como algo acidental ou passageiro; esta insito na permanente condicio humana de “pecado original”, simbolizada pela “Queda”. Em palavras mais simples, essa doutrina assevera “o fato dbvio de que todos os homens se inclinam persistentemente a ver-se mais forte © mais assiduamente preocupados com seus proprios inte- resses do que seria de esperar, a partir de uma visao ‘objetiva’ da propria importancia”.? Em linguagem teol6gica mais técnica, pecado é a tendéncia de o homem rebelar-se contra Deus — ou, 0 que € o mesmo, contra os limites de seu estado de criatui — de modo a transformar-se em “falso centro de significad Sustenta a doutrina cristd que o pecado, assim concebido, € um exercicio de liberdade humana; “néo é por natureza, mas na liberdade que os homens pecam” (p. 122). Dessa forma, ha pouco a esperar de um simples aumento de liberdade e de poder. 3 The Irony of Americon History (Nova York: Charles Sciter's Sons, 1952), BS UM TRATAMENTO RELIGIOSO 143 E essa é uma doutrina, acrescenta Niebuhr, que, em sua a cio, nio se confina a individuos; nagdes ¢ instituigdes tém tam- bém “vontades” e “interesses” identificdveis (p. 91). A inclina- do por negar a propria de fato, “particularmente evidente na vida coletiva da humanidade” (p. 114) ‘A vistio crista do homem choca-se frontalmente com 0 que Niebuhr considera ser presunco tacita da maior parte das teo- rias do progresso: que o mal histérico resulta principalmente de uma incompleta emancipacéo do homem em relagdo & natu- reza; que 0 orgulho € 0 egoismo humanos so devidos a um “atraso cultural” (p. 11) que seré vencido na medida em que ‘© homem venha, gradualmente, a trocar sua posigio de “criatu- ra" pela de “criador” da historia. De acordo com a visio mo- derna, “a histéria redime o homem da natureza” (p. 68); para © cristéo, a hist6ria ndo € “redentora”. Ha padrées ¢ continui- dade culturais que emprestam certa espécie de significado ou, pelo menos, de interesse ao fluxo dos acontecimentos. Niebuhr nao contesta esses aspectos; em verdade, ele critica Toynbee ndo por haver estabelecido padroes, mas por subestimar-Ihes o alcan- ce e complexidade. Concorda também com Hegel, no sentido de que a histéria é, entre outras coisas, a narragio do “desenvolvi- mento da liberdade”. Nega, porém, a superioridade moral dos homens que vivam no estado racional descrito por Hegel. Para Niebubr, se a hist6ria deve ser significativa, ela deve ter sentido moral. Do ponto de vista dessa preocupaco, a historia esté sob constante “ameaca de falta de sentido” (p. 121) por causa do mau uso que o homem faz de sua liberdade. ‘A SUPREMACIA DE DEUS SOBRE A HISTORIA Baste isso para ilustrar o que, segundo Niebuhr, € negado pela posicdo cristé. Que afirma cla a respeito da histéria? A simples € a de que afirma a supremacia de Deus idade da hist6ria. “Todos os destinos histéricos”, declara Niebuhr, “estio sob o domfnio de uma soberania divina singular” que, assim, fornece “uma estrutura geral de significado” para os acontecimentos hist6ricos (pp. 107, 20). Por esse mo- tivo, e mio por qualquer unidade que possa ser racionalmente demonstrada ou que possa ser estabelecida a partir de um levan- tamento empirico, é que a “histéria, potencialmente ¢ em Ultima andlise, € uma narracao” (p. 112) 144 FILOSOFIA DA HISTORIA Isso uma idéia, diz Niebuhr, que os antigos hebreus nos legaram. Como a maior parte de seus contemporaneos, acredi- tavam eles num “poder mais forte que qualquer vontade huma~ na”, a operar na hist6ria daquela nacio. Mas deram a essa ‘a uma forma especial, nao concebendo o poder divino nem como “projecio dos ideais e propésitos da nacdo ou do indivi- duo, nem como um poder paralelo ou suplementar ao poder da nagio” (p. 102). A relagao entre Deus ¢ Israel expressava-se através do Pacto do Sinai. Mas nfo foi Israel que escolheu Deus; Deus escolheu Israel, por misteriosos designios. A idéia do Pacto foi interpretada e reinterpretada pelos profetas hebreus, 4 luz de suas experiéncias hist6ricas. Essas experiéncias os for- garam a dar-se conta de que um povo “eleito” no tem imuni- Gade especial frente ao desastre. Se implicava alguma coisa, 0 Status especial parecia implicar Onus especiais. A descoberta de que a soberania divina nfo estava & disposicdo de um povo tem particular e de que os propésitos de Deus poderiam ser ser- vidos através de inimigos de Israel, e mesmo a expensas de Israel, conduziu naturalmente & idéia de hist6ria universal como a ma- triz daqueles propésitos. A concepgdo cristi de um Segundo Pacto, nao entre Deus ¢ um particular povo, mas entre Deus e todos os crentes — em potencial, todos os homens — € um desenvolvimento posterior da mesma idéia, ‘Assim entendida, afirma Niebuhr, a soberania divina poe-se como “base da primeira genufna concepcao de uma histéria uni- versal”; e propicia “fundamento para tnico universalismo que torna possivel nio chegar nem simplificar indevidamente o sig- nificado da histéria no processo de universalizé-la” (p. 103) Contudo, se s6 a soberania de Deus dé unidade & histéria, de que maneira se manifesta ela, face & rebeliio humana contra os propésitos divinos? Segundo Niebuhr, essa manifestagdo tem lugar principalmente de duas maneiras. De um lado, Deus coloca um “limite. limo" ao desafio humano, e, de outro, oferece oportunidades de “renascimento e renovacao”, quando homens fe nagées demonstram arrependimento (pp. 27-28, 124-125). Sob © primeiro aspecto, a soberania divina revela-se nas inevi- taveis falhas a que so levados os homens quando se propoem concretizar suas pretensdes de se transformarem em “centros de significado” da historia, sendo essa falha interpretada pelo cris- tao como julgamento divino a respeito das pretensdes em jogo. Sob o segundo aspecto, mostra-se como graga, sempre que os homens renunciam a pretensdes falsas; com efeito, a graga “no apenas afasta 0 mau carter do pecado como também o vence” UM TRATAMENTO RELIGIOSO 145, (p. 22). Em razo dessa dupla forma de que a soberania divina opera no interior da histéria, acrescenta Niebuhr, esta pode ser fa narragdo da “luta de Deus com todos os homens” (p. 27); mostra seu continuo empenho em vencer os aspectos corruptes da natureza humana, ‘A versio que Niebuhr nos ofereceré do efetivo modo de que a providéncia divina opera na hist6ria encerra sob certos aspectos (como a teoria de Toynbee) reminiscéncias da dialética hegeliana. Para Niebuhr, a provi no interfere miraculo- ‘como a “razio”, para Hegel, a providéncia ¢ imanente processo histérico. Faz parte da “estrutura da exis- ‘téncia” que “as formas de vida que se constituem em fins de apenas precede a queda; ele a precipita. Assi tas, ha, em histéria, um padrao vagamente rnagdes estio constantemente a sobrepujarem a si mesmos e a serem humilhados, Entretanto, diversamente do que se dé na dialética hegeliana, a tenso que Niebuhr aponta entre a provi- dencia e a corrompida liberdade humana nio se reveste de ca- rater dinamico; nao hd progresso de sintese. O limitador da providéncia explica nao a direcao que a a © porque de nao conduzir ela a parte alguma. A dialética providencial da histéria tem outro cardter inte- ressante: € irdnica. A ironia nasce de alguma espécie de con- traste chocante: do contraste, digamos, entre as pretensdes de uma nac&o e suas realizacdes efetivas. ‘Para ser irdnico, 0 con- traste ndo deve ser apenas fortuito; um clemento deve consti- tuir-se em fonte oculta do outro. Assim, se um homem ou nagio considerados poderosos vém a revelar-se fracos, a ironia somente surgira se a fraqueza se ligar 2 alguma pretensdo de forga, Um sdbio que haja tlafmente s6 provocaré ironia se a tolice derivar de alguma pretensio de sabedoria. Niebuhr vé ironia dessa espé- cie no fato de a crucificacdo de Cristo haver sido levada a efeito pelos representantes do sistema legal mais aperfeicoado ¢ da mais pura religiio da época; sendo “perfeitos”, ndo poderiam admitir apelagdo a uma autoridade mais alta, Ironia ele descobre tam- bbém em circunstincias hist6ricas como as que se traduzem pelas atuais posigdes de defesa em que se colocam 0 Ocidente ¢ 0 Oriente. O proprio éxito das medidas de defesa, ao produzirem armas nucleares “eficazes”, levou ambos os lados a se sentirem inseguros. A hist6ria americana, assegura Niebuhr, € especial- mente passivel de interpretagdo irdnica. Hé ironia, por exemp.0, 146 LOSOFIA DA HISTORIA no fato de terem sido os que desejavam proteger seu exagerado poder econdmico os que entusiasticamente apoiaram as eriticas feitas por Jefferson a um Governo central forte, criticas feitas no interesse dos fracos; ¢ ironia no fato de que, com 0 correr do tempo, revelou-se que s6 a concentragio de poder politico no Goveno central € que tornava possivel proteger os fracos. Ao ver de Niebuhr, o cristianismo, 1a a visio do mal humano na ‘de redengao do mal a conduz para além di ites da ironia, massa interpretagio, da natureza. do iavistoria. humana € coerentemente irdnica. Essa coeréncia Econseguida com base na crenga de que O drama total da historia humana esti. sob contra iz divino que ti BeOMretensoes, humanas, sem mostrarse_hostil 8s aspiragdes dios homens. Quem ri ‘das_pretensdes € 0 juizo se transmuta em perdiio, se resulta em desapa ite tiensoes e num dispor os homens a contrito reconheci- mento da vanidade de sua imaginagio SIGNIFICADO E OBSCURIDADE ‘Apés essas afirmacées, Niebuhr é, entretanto, forcado a reconhecer que as provas da soberania divina, passiveis de bservacdo no fluxo da hist6ria, sio obscuras € imprecisas, Os julgamentos morais sio executados na hist6ria”, insiste ele, “mas jamais com precisio” (p. 129); em verdade “a pretensio © © mal humanos parecem gozar de longos periodos de imunidade” (p. 125). Embora, em razo da graca divina, haja “novos co- egos” na historia, o processo histérico globalmente considera~ do” nio aparece como progressivamente emancipado do mal’ (p. 136). Nao se pode, portanto, dizer que a historia, do ponto de vista cristdo, esteja inteiramente penetrada de sentido, Tem sentido (na curibsa terminologia de Niebuhr) apenas “poten, Cialmente” ou “provisoriamente”; apresenta apenas, “tangentes ou “Angulos” de significado (pp. 114, 125, 132, 233). ‘© motivo dessa obscuridade moral residual esti no fato, jf assinalado, de que a providéncia nao opera através de inter~ Vengdes miraculosas; utiliza os instrumentos hist6ricos ¢ estes So sempre moralmente deficientes, Forcas sociais progressistas, jque constituem “de um ponto de vista absoluto, instrumentos 4 The Irony of American Mistors, p. 138 UM TRATAMENTO REI 1050 147 com que a justica divina opera sobre todas as instituigées exis- tentes, sempre se véem envolvidas pelas mesmas idolatrias que se propdem combater (pp. 227-28). ‘Nao Ihes basta serem instrumentos da providéncia”, mas colocam-se, em vez disso, como falsos centros de significacdo histérica — verdade triste~ mente ilustrada, segundo Niebuhr, pelas revolugdes proletirias de nossa época. Tanto o julgamento como a graca, tal como operam na histéria, ligam-se necessariamente ao “moralmente inrelevante fator do poder” (p. 129). Nagdes inescrupulosas somente sero punidas “se for reunido poder suficiente para ‘pulsionar a condenacéo moral que as vitimas de sua tirania friormente decretaram”. Por outro lado, a virtude social néo € necessariamente recompensada. Do ponto de vista da sobre- Vivéncia histérica, € possivel ser puro em demasia — adotando, por exemplo, uma posi¢ao inutilmente indefensivel. O amor Cristao, observa Niebuhr, de maneira obliqua, se no algo cinica, normativo para a historia, mas nela nao defensével” (p. 143). E significativo, acrescenta, que o proprio Cristo haja sofrido uma derrota hist6rica. Mesmo quando se faz uso moral do poder, © significado moral da histéria pode ver-se obscurecido pelo fato de que toda destruigéo de um mal social envolve sofrimento de inocentes. A atuagio da graca divina é também deficiente. As novag6es nunca podem ter éxito completo no sobrepujar as ntradigdes da existéncia hist6rica do homem’”. Exemplo espe- cialmente amargo dessa generalizada presenga do “pecado origi- nal” é a incapacidade de os missiondrios cristios ocidentais se verem livres da nédoa imperialista de seus antecedentes cultu- rais. Segundo Niebuhr, alguns dos piores males da hist6ria apre- sentaram-se como “esquemas de redensao” (p. 214) — inclusive 0s cristdos. Confrontados que se viram com 0 ¢: to” da soberania divina e colocando “um julgamento divino além © acima dos grosseiros e inexatos julgamentos histéricos”, os profetas hebreus buscaram naturalmente “uma_retribuicdo ivina mais perfeita e mais exata numa idade messidnica futura”™ (p. 126). Esta era vista como um reino de justica, onde se resolveriam, finalmente, todas as obscuridades morais da_hist6- ria, Na atitude de expectativa que essa viséo faz surgit em rela~ do ao futuro, Niebuhr vé a génese da teoria do progresso. Mas Cla difere drasticamente desta ltima porque entende que as re~ solugdes morais da hist6ria ocorcem através de uma interven¢do que &, de certa forma, externa, o que envolve uma transformasao em toda a condigio humana.” Nao hé presungéo de que a pro- 148 FILOSOFIA DA HISTORIA pria histéria alcance, por si mesma, gradualmente, as condicdes Mmessidnicas. A diferenca qualitativa entre a época atual © as idades messidnicas — andloga, como cabe notar, a que separa, segundo a teoria marxista, a atual época de luta de classes de tuma futura sociedade sem classes — esti simbolizada em termos de Antigo Testamento em ap6logo como o do ledo convivendo com o cordeiro. ‘A apresentagio que 0 Novo Testamento nos faz do Anti- cristo, que surge no fim da histéria, equivale a repiidio explicito no apenas do utopismo progressista, mas também da esperanca messianica. O Anticristo simboliza 4 crenca cristé de que a his- téria como um todo, a despeito de julgamentos ¢ renovacdes parciais, permaneceré até o fim “moralmente ambigua” (p. 135). Nao ha possibilidade de que se emancipe do mal, seja progressi- vamente, seja miraculosamente. Imagina-se, em verdade, que as mais explicitas formas do mal” hao de manifestar-se tardia- mente na historia (p. 136). Chega a haver, assinala Niebuhr, q amedrontadora sugestio” de que a propria fé possa desapa- recer da terra (p. 112). Isso, entretanto, nao significaria “a derrota de Deus”. Em verdade, a visio cristé também antecipa um Juizo Final e uma Ressurreigdo Geral. O simbolo do Juizo Final expressa a confianga crista em que /id um julgamento para além dos falhos julgamentos da historia comum ¢, ao mesmo tempo, exprime rentincia & crenga de que ele se realize no campo da historia. O simbolo da Ressurreico implica que Deus tem recursos de amor e de misericérdia para final superaciio da mal- dade, embora, ainda uma ver, isso esteja além das possibilidades da histéria. Os simbolos da escatologia crist assinalam uma jidade trans-hist6rica, que pode ser “sentida” ou “apreen- ou dida pela f€". Para o cristo, declara Niebuhr, “a graca de Deus completa a estrutura de significagéo para além dos limites da inteligibilidade racional nas fronteiras da histéria” (p. 103) De todas as afirmativas feitas por Niebuhr para transmitir a visio cristi da histéria, talvez trés devam ser isoladas € co- mentadas criticamente. A’ primeira é a afirmativa de que a visio biblica da natureza e da situacao do homem € mais realista do que qualquer outra visio; @ segunda é a de que a doutrina crista 2 propésito do significado do fluxo dos acontecimentos pode, pelo menos até certo ponto, ser verificada ou comprovada; a ferceira é a de que tanto 0 “mistério” como a “significas devem figurar numa adequada interpretagdo da histéria — sendo © reconhecimento desse fato um mérito especial e niio uma de- ficiéncia da posigéo cristé. UM TRATAMENTO RELIGIOSO 149 LIBERDADE E PECADO ORIGINAL Segundo Niebuhr, somente a doutrina cristi da hi “enfrenta, até as tiltimas consegiiéncias, os problemas do mal (p. 22). A doutrina do pecado original frustra qualquer apres- sada hip6tese de possibilidade de aperfeicoamento humano atra- vvés de “autodesenvolvimento”. Ao mesmo tempo, a doutrina da ‘praca divina garante-nos que, embora “preso a um destino histé- rico”, o homem nunca esté completamente impossibilitado de redengdo. Toda a teoria que Niebuhr elabora em torno da tens histérica entre uma liberdade humana pecadora e uma provi ncia divina convida-nos claramente a uma andlise dos esquivos conceitos teoldgicos utilizados. Algo ja foi dito acerca do carater supostamente imanente do julgamento ¢ da graca. Que diremos acerca da nogio do pecado original e de sua relacéo com a liberdade humana? © pecado original, lembremos, foi definido como a incli- ago que tém todos os homens para se rebelarem contra Deus e para se erigirem em falsos centros de significacdo. Dito de maneira breve e menos teolégica, é uma tendéncia para a propria clevagio e para a agio auto-interessada — inclinacdo que @ maioria dos criticos de Niebuhr concordaria talvez que encontre base nos fatos. Uma dificuldade surge, entretanto, quanto & negativa de que essa inclinagio con: osicao “natu- ral” (“nfo € por natureza, mas quando livres que os homens pecam”). A despeito disso, a doutrina do pecado original ¢ encarada por Niebuhr como base adequada para fazer 0 que Hegel evitou e 0 que levou Toynbee a hesitar: provar o fluxo futuro da histéria. Por certo que a predigio de Niebuhr néo é muito especifica, Limita-se a sustentar — contra a posicao mo- derna — que nio ocorrera progresso moral significativo. Trata~ se, apesar de tudo, de uma predigio. E pie-se a questo de Saber se isso nao introduz uma contradicao na teoria de Niebuhr, contradic semelhante aquela em que se suspeitou incide a teoria de Toynbee. ‘Nao ha divida de que Niebuhr afirma a realidade da dade humana, Segundo ele, a hist6ria é “fruto © prova da dade do homem”. E concebe-se a liberdade como introdutora as inovagdes na hist6ria; € 0 que distingue a histéria da natureza. Que pretende Niebuhr que a liberdade signifique? H. D. Lewis sustentou que o uso do conceito se faz de maneira totalmente confusa: que ele € usado segundo varios sentidos que 150 FILOSOFIA DA HISTORIA a palavra admite.S Algumas vezes, Niebuhr parece emprestar-he principalmente o sentido de racionalidade ou coeréncia de acio — aproximando-o assim da nogio de “acio livre” a que fre~ Giientemente recorrem os metafisicos idealistas. Outras vezes, Niebuhr parece querer significar autodeterminaciio — em con- traste com a determinacéo de uma aco por algo “externo” ao agente. Vez por outra, 0 termo parece nao significa mais do que consciéncia das necessidades sob as quais as ages so pra- das, sendo isso interpretado como uma forma de “transcendé- las". © sentido que mais comumente Niebuhr Ihe empresta € 0 sentido habitual de um grau de “emancipacio relativamente & necessidade natural”: uma possibilidade de agir de maneira ndo- predizivel, nem mesmo com 0 conhecimento de todas as leis da natureza, inclusive as relativas & ratureza humana (pp. 93, 124). Certo € que Niebuhr acentua fortemente algumas limitagdes a essa “emancipagio”. Lembra-nos, por exemplo, que, mesmo a0 praticar uma acao historicamente significativa, o homem perma- nece como parte do mundo fisico ¢ biolégico. E, por exemplo, uma criatura que tem sexo; e mesmo os santos, embora 0 tassem, foram inteiramente’incapazes de transcender a prépria sexualidade, como o revela freqiientemente 0 inconsciente simbo- lismo erético das formas de expresso a que recorreram. Somos Iembrados também de que toda acdo tem lugar num contexto hist6rico que, para o proprio agente, é em grande parte, dado. ‘Assim, a ninguém € permitido desfazer as tremendas alteragdes, ‘ocorridas na Europa, como resultado das aventuras de Hitler, e ninguém pode comecar do zero face ao problema das relacdes raciais numa América anteriormente dada ao trafico de escravos. Entretanto, essas consideragdes s6 tém procedéncia diante de uma doutrina jamais sustentada por um indeterminista sensato: a doutrina de que a escolha da acdo por parte do homem nao sofre restriges de nenhuma espécie. Aquelas consideragdes ape- rnas tornam licita a conclusio de que ha certas coisas que os homens ndo podem fazer; nfo que hi certas coisas que € possivel predizer que eles fardo. E cabivel imaginar que poderfamos interpretar de maneira semelhante a doutrina do pecado original proposta por Niebuhr — simplesmente como colocando um limite.nas escolhas abertas aos seres humanos, Em passagem obscura, mas crucial, declara Niebuhr: “O eu sente-se livre; mas, como sugeriu Santo Agos- ‘5 Freedom and History (Londres: Geotge Allen & Unwin, 1962), pp. 221 © sta. UM TRATAMENTO RELIGIOSO 151 10, no se sente livre para praticar o bem”. Poderfamos admi- que isso equivale a dizer que a inclinagdo humana para car-se como centro de importincia € também algo “dado” — algo que limita a liberdade humana, sem tornar previsiveis as acdes. FE duvidoso, porém, que a posicio de Niebuhr seja tio extremada. Com efeito, o trecho de Santo Agostinho do qual foi retirada a cilagio é, no seu todo, o seguinte: © eu real... envolve-se em males, particularmente nos males rocura a gue se entrega, O eu esta sempre st ‘emaneipado da necessidade natural joa seguir o caminho ditado pe Nao’ obstante, se ele assim age, € tido por culpado tanto face 2 opiniao publica quanto 20 segredo de, seu proprio coragi. © ‘Gu procura a si mesmo, a despeito de sua liberdade para perceber um bem mais valioso que © seu interesse proprio (pp. 93-94), Sendo-lhe necessério tornar sua teoria moralmente accitavel — racionalizar a acomodacao entre sua posigio religiosa ea visio comum, segundo a qual o egoismo € “condendvel” — Niebuhr admite que as escolhas que se abrem para os homens incluem @ procura de um “bem mais valioso”. Nao obstante, em muitos outros pontos, ele parece negar essa possibilidade. E dito que 0 pecado original é “uma corrupgio que exerce dominio universal sobre todos os homens”; o desafio humano a Deus é uum “‘clemento permanente na histéria”; a Queda “simboliza uma inevitével... corrupgio da natureza humana” (pp. 122, 140, 33. Grifos meus). Acrescentar, no tiltimo caso, que a corrupcao, embora inevitével, “nao € natural” (a isto Niebuhr chama o ‘“mistério” do pecado original) muito se assemelha a jogar com palavras. Com efeito, a corrupsao €, afinal, algo em que Niebuhr se disp0e apoiar-se. REVELAGAO E VALIDAGAO ‘A dificuldade gira em torno do termo “inelinagio”. © uso que dele faz Niebuhr parece freqiientemente equivaler a uma Caleulada tentativa de impedir que a posicdo crista venha a con- fundir-se inequivocamente ou com o determinismo ou com 0 indeterminismo. Parece essencial para a visto que ele tem da hist6ria — algo moralmente significative, mas ndo moralmente 152 FILOSOFIA DA HISTORIA cumulative — a possibilidade de encaré-la de ambos 0s modos. Muitos criticos diréo que essa nao é uma dificuldade isolada encaréla-do como um traco frustratério, mas muito caracteris- tico, do pensamento teol6gico em geral. E, de fato, encontrare- mos algo semelhante, se prosseguitmos ¢ colocarmos a segunda indagagdo: com que fundamento é a posicdo cristi recomendada por Niebuhr a seus leitores? Poder-se-4 imaginar que 0 que Niebuhr tem a dizer acerca da histéria no poderia ser apresentado como “verificivel” em nenhum sentido empirico. A doutrina cristé propde-se_inter- pretar o que acontece, & luz dos dogmas da teologia crista. Estes so produtos da revelagdo ¢ nao da razio ou da experiencia. E, em parte, por ter isso em mente que Niebuhr insiste em que cle nio oferece uma Filosofia da Histéria a que se pudesse chegar “analisando as seqiéncias e recorréncias, as estruturas © padroes da historia” (pp. 26-27). A cristandade, diz ele, “conhece, pela 6, alguns acontecimentos histéricos através dos quais se revelam a fonte e o fim transcendentes de todo 0 panorama da hist6ria” (p. 22). Um acontecimento desse tipo é “a vida, morte ¢ res- surreigdo de Cristo” — 0 ultimo de uma série de “poderosos atos de Deus". Nao que esses atos hajam sempre sido reconhe~ cidos como tais. Em verdade, “devem ser apreendidos através da fé, € s6 podem ser apreendidos em humildade e peniténcia” (pp. 26-27). Percepcio da revelagao divina é por si mesmo, ‘um “dom da graca”. Sem embargo, & maneira de Hegel, Niebuhr ndo renunciaré inteiramente a afirmar que encontra algo semelhante & compro- vago empirica de sua interpretacdo da histéria. Nao é posstve diz cle, apresentar um argumento “racionalmente convincente” em prot da doutrina crista; mas dela € possivel oferecer “uma limitada validagio racional”: “provar racionalmente sua impor- tancia” (p. 101). [sto se faz, diz ele, de duas manciras. [Negativamente, 0 Evangelho pode ¢ deve ser validado por exa- me. dos. limites das formas hist6ricas de sabedoria © virtude, Positivamente, ele se valida quando a verdade da fé se cor- ‘verdades que podem ser conhecidas é ido-te meio de fofundo e mais © caminho negativo foi esbocado por Niebuhr, quando de uma comparagio preliminar entre a visio cristi da histéria € UM TRATAMENTO RELIGIOSO 153 as duas outras, destas se dizendo que 86 permitem “uma inade- quada apreensio da situacdo humana em seu todo” (p. 164). © caminho positivo implica interpretar ocorréncias especificas em termos de manifestagdes de pecado e de arrependimento humanos ¢ do julgamento e graca divinas. Segundo Niebuhr, “todos 0s fatos hist6ricos de que se tem noticia comprovam a interpretagio do destino humano que esté implicita logia do Novo Testamento”.® Por outro lado, a derna, em especial, esté “em flagrante contradic fatos da experiéncia contemporanea” (p. 30). E certo que Niebuhr oferece exemplos especificos da ma- neira como ele concebe que a doutrina cristé corresponda aos fatos. Sua maneira de fazé-lo, entretanto, torna aceitago de suas afirmativas. Para admitic seus exemplos como “validagdo” genuina, necessitamos saber néo apenas que hi alguns acontecimentos hist6ricos que, por ilustrarem os conceitos teolégicos de Niebuhr, do apoio a sua interpretago como um todo, mas necessitamos saber também 0 que, se ovorresse, po- deria ser tido como evidéncia contra aquela interpretacdo. E necessitamos saber também que os sinais da providencia, supos- tamente encontrados em exemplos especificos, sio reconheciveis, A luz de critérios claramente formulaveis e cocrentes com @ po- sigdo global de Niebuhr. Sob nenhum desses aspectos € con- vincente a ‘‘validagao”. Quanto A primeira dificuldade: pode muito bem ocorrer que se levantem as suspeitas de um critico ao ver ele Niebubr afirmando redondamente que, para um cristo, “nada do que pode abalar sua confianca no significado da existéncia” (p. 136). Caberia pensar que isso ndo é, da parte de Niebuhr, nada mais do que a expresso de uma piedade convencional. Nio obstante, o tratamento que ele di & evidén- cia historica sugere que se trata de algo mais do que isso. En- contramo-lo, por exemplo, dizendo a respeito da ascensio © decadéncia de civilizagdes © culturas uum testemunho do poder eriador da histria, assim ome sua decadéncia 6 prova do pecado na historia, A vasta Nariedade de. organismos hist6ricos, a riqueza de elaboragdes das. potencialidades ‘humanas, @ diversidade de suas mites Desay of Mon, M18. Reaeodurdo em The Piotephy of History in Our Ti 154 FILOSOFIA DA HISTORIA formas culturais ¢ configuragses constituem, por certo, tum testemunho. da providéncia ‘que thes permitiu 0 de- rivolvimento, assim como sua destruigdo € uma vinganga do ‘gamento eterno, que nao podem desafiar impunemente.? Em outras palavras, se uma instituicio histérica floresce, isso & prova da graga de Deus. Se entra em decadéncia, € evi- déncia do que um julgamento divino se abateu sobre ela. Essa forma de argumentar torna quase impossivel contestar as afir- magées de Niebuhr a respeito da providéncia; sua teoria parece conter em si mesma as defesas contra a propria destruigio. ‘Apesar de tudo, ainda é possivel que essa teoria nos diga a verdade acerca da hist6ria, Mas é dificil perceber como possa cla afirmar ser validada pelos fatos histéricos a que faz apelo. Nao cresceré a confianga nas ‘‘validacdes” de Niebubr, se examinarmos algumas das mais pormenorizadas aplicagoes de seu principio & interpretacdo das circunstancias hist6ricas. Bom exemplo é sua tese de que 0 surgimento da monarquia consti- tucional na Europa ocidental corresponde a uma “renovagao” da hist6ria que deve ser parcialmente atribuida & graca divina, ‘A monarquia absoluta foi destruida em todas as_nagdes em es ‘modernas. Mas a instituigo da um dos mais ficazes nstrumentos da democracia em muitas das mais ricas nagGes modernas, Sua virlude esté em sua capacidade de simbol 2 vontade permanente da comunidade nacional, independen- Temente dos momentineos © cambiantes atos de vontade que fe expressam e se encarnam em Governos particulares. A sabe- dloria politica incorporada na monargula constitucional Iiteralmente, uma sabedoria concedida ao homem “pela gra: a". Nem’ os adeptos.tradicion: Spositores tiveram a sabedoria de conceber a ‘Constitucional, Os primeiros desejavam_conservar imos desejavam destruir a ins- tituigdo. O surgimento dessa velha instituigao sob forma nova fexinn que seus defensores cedessem, embora com relutar S'novas forgas sociais. © monarea foi privado do, poder; dessa fancira se descobriu que essa auséncia de poder dotava a lade de uma nova forma de poder, inteicamente com pativel com ‘as exigéncias de uma just ‘democratica (pp. 22627). Ibid, p. 317, Para malog dscstio do problema da re eballesophy of etalon, Prentice late caps) (Nt do. Er Traduriso Wesoll ‘de Roti, pot Zaher Eaiores, Ri. 18>) UM TRATAMENTO RELIGIOSO 155 ‘Mas este € por certo, um caprichoso exemplo de “graga tomada num sentido qualquer que néo 0 de “boa fortuna ime- recida”, Além disso © por ap fortemente no mecanismo da prudéncia, 0 exemplo tem, indiscutivelmente, pouca relagdo com a teoria geral de Niebuhr, segundo a qual as “renovacdes” so (grosseiramente, pelo menos) a recompensa do arrepen- dimento. FICADO PROVISORIO E SIGNIFICADO ULTIMO © problema de validar a teoria de Niebuhr nao é, por certo, ‘um problema isolado. Sua afirmacdo de que nao ha um sentido moralmente significativo na historia € relativamente linear; ¢, presumivelmente deve ser testada em relagio ao conhecimento i que estamos preparados para formulat relativamente a acdes passadas. Até considerdvel extensio, 0 mesmo poderfamos dizer da afirmativa de Niebuhr acerca da ubiqiiidade do pecado original, entendido como um importiincia, caso fossem ‘ultrapassadas as difi- cil 0 pri 0s para a assercio de que ha, na histéria, evidencias do j oe da graca divina, Mas, se 0 significado dessa assercio € pelo menos em parte, o de que as pessoas ¢ instituigées recebem a justa contrapartida quando seu orgulho se enche de presungio ¢ encontram oportunidades novas quando renunciam a suas falsas pretensdes, entio isso é também algo que pode ser sub- metido ao teste de conhecimento hist6rico. E esse teste, ainda gue nio se constitua em “prova” do significado teol6gico inte- gral que Niebuhr atribuiria a essas padronizagdes dos aconteci- mentos, poderia, de qualquer modo, permitit a afirmativa de que a histéria esta “aberta” a uma interpretacdo crista, Nos termos em que Niebuhr coloca 0 assunto, entretanto, hé importante porcéo da doutrina cristé que parece pér-se além do escopo até mesmo dessa limitada espécie de validacdo. Com efeito, somos informados de que € fundamental para a_ visio crista’ 9 fato de que, além do significado “provisério” que se traduz nas obras inexatas ¢ discerniveis da providéncia, deve wer também um significado “éltimo” que, de alguma forma, resolva o residuo de obscuridade moral que historia apresenta (pp. 28, 102, 125, 135, 144, 214). Tal significado, como vimos, encontra expresséo em nogdes como a de Juizo Final 156 FILOSOFIA DA HISTORIA de Ressurreigio. Contudo, segundo Niebuhr, os proprios cristos jerpretaram corretamente a doutrina das “Coisas . Sua versio estd, assim, estreitamente ligada & tarefa de apontar o que ele considera como dois repetidos erros cris- tos — os de permitir que se reflitam no interior do pensamento cristo os erros das posigoes classica e moderna, respectivamente. © primeiro erro poderia ser chamado “apelo a outro mundo". Consiste em abandonar a esperanca de encontrar um significado moral integral na esfera historica ¢ em procurd-lo além do curso da histéria. Isso pode expressar-se num aban- dono da vida social ou numa tendéncia de olhé-la cinicamente — a suposta posicio dos fundamentalistas protestantes € dos luteranos, respectivamente. O erro brota de se perceber clara~ mente “o fato de que o individuo é sempre capaz de atingir is pura concretizacao do significado que € possivel de con- cretizar em comunidade” (pp. 198-200). A tentagio € “con- finar a redencao & vida individual”, individualista e pietista da f€ crista obscurece o significado moral social da existéncia humana ¢ afasta a responsabilidade que tem o homem de chegar a tolerdvel acordo com seus concida~ O segundo erro (erro oposto) é 0 da “limitagdo a esse erro a que, segundo se diz, catolicismo e calvinismo esto igualmente inclinados. De acordo com Niebuhr, estes procuram corrigir a inexatidgo dos juizos hist6ricos, pondo as igBes sociais sob a soberana diregdo de alguma “vontade reta”, Para 08 catélicos, esta é a Tgreja; para os calvinistas, é fa tegra dos santos. Em’ ambos os casos, novos males se intro- duzem na hist6ria pela presuncdo de que hé, seja na Igreja, como comunidade redimida, seja nos santos, como individuos redimidos, uma “fonte de pura bondade ¢ justiga”. Em ambos 0s casos, “Cristo deixa de ser... uma fonte de julgamento da Tereja ou da ‘comunidade santa’ © passa a ser olhado como “algo segurament® possuido” (p. 201). ‘Afirma Niebuhr que a visio crista, corretamente interpre- tada, nem abandona a esperanga de “realizagiio” do significado moral potencial da histéria nem outorga a qualquer particular instituigéo hist6rica ou particular estado de coisas a possibilidade de alcangar essa realizagio. Assevera que a obscutidade moral encontrada na historia se dissolverd de alguma forma, porém nega que isso venha a ser conseguido através de novos acontecimen- 10s histéricos. Ao dizé-lo — negando, ao mesmo tempo, que fo seja “trans-hist6rica” no sentido da teoria cléssica UM TRATAMENTO RELIGIOSO 157 — Niebuhr se coloca em dificil contexto, cuja fundamentagio teol6gica foge a nosso atual propésito questionar.* Para colocar sua abordagem em contraste com a de Hegel ¢ a de Toynbee, ‘um ou dois comentérios eriticos podem, entretanto, ser valiosos. Cabe notar que asseverando, como assevera, a realizagio inal” da histéria, Niebuhr apela para a revelagio de maneira muito diferente da que ha pouco examinamos. Com efeito, con- quanto se diga que a tese de que 0 julgamento divino e a graca divina operam (embora de forma obscura) no plano da hist6ria uma tese que, de algum modo, se coloca “além da razio”, jsso s6 se diz no sentido que ela ultrapassa o que, por meio da razio, pode ser descoberto a propésito do fluxo dos aconteci- mentos. Afirmando, com base na autoridade da revelacdo, uma realizagio que nem se coloca inteiramente “além” da histéria nem € algo que se projetard na histéria como um estado de coisas moralmente satisfat6rio, Niebuhr afirma algo “além da razio” ¢ num sentido novo: o de situar-se “além da inteligibi- lidade racional”. Como ele proprio diz, a revelacdo afirma um “mistério”. O motivo por que temos de utilizar simbolos esea- tol6gicos, a0 falar acerca do significado “fi que nos falta — e sempre nos faltaré — uma concepcdo clara do que possa ser esse significado, (Cabe lembrar aqui a restri- cdo geral de Hegel em relagéo as teorias providenciais da historia.) © segundo comentitio brota do primeito, E 0 de que a posigiio de Niebuhr, a despeito do que ele diz acerca do signi- cado “éltimo” significado “final”, nega, em verdade, que a histéria, em si mesma, seja inteiramente significativa. Nao obs- tante seus ataques 20 quietismo cristéo, ele também se vé for- gado a procurar, além da histéria, algo inexplicdvel e “trans- hist6rico", a fim de afastar as “ambiglidades morais” da his- toria. Hé, sem divida, indicios ocasionais de uma diferente dou- trina, Assim é que Niebuhr cita, aprovadoramente, a confissio de E. L, Woodward: “Posso, indubitavelmente, enxergar evi- déncias do propésito, mas 0 padrao esté em escala que foge & minha compreensio” (p. 112) — parecendo deixar em aberto a questio de saber sc a histéria pode, afinal, ser inteiramente significativa, embora nés (em contraste com Deus) estejamos privados do discernimento para perceber qual seja esse signi- f Pary crtics teoogica de Nicbuts, wer, W. Kesley ¢ RW, Bret ein" Ricbune? she Reiions, Social and’ Poca! Though, ‘Nova "York. TRO Macmilan "Co, 1956: Exise edt0 158 FILOSOFIA DA HISTORIA ficado, Impresso semelhante pode ser colhida a partir de clara sugestio que Niebuhr faz ao discutir 0 profetismo dos hebreus, a sugesto de que, embora ndo percebamos a precisa “execucdo da justica divina” em plano histérico, “mais correto seria dizer que ela no se conforma a nenhuma nogao acerca do que deva ser a justica divina” (p. 132). A nogdo de que a historia pode ser inieiramente significativa, apesar da aparéncia em contrat provavelmente néo corresponde 2 mais refletida posicdo de Nie- Bubr. De modo geral, ele parece contentar-se com dizer que 0 significado integral da historia é “‘trans-hist6rico”, sem se dispor fa dizer que ele seja “nao-histérico” — como € possivel que isso aconteca permanece De fato, Niebuhr diz explicitamente que a nocao de ‘tério” € essencial para uma adequada interpretagdo da ; Por vezes, em verdade, parece sugerido que, para 0 cristo, 0 “ joria explicativa. “O mis- tério da divina providéncia”, diz Niebuhr, “confere significado a historia” (p. 38). E ainda: “O mistério nfo aniquila o signi- ficado, mas enriquece-o” (p. 103). A muitos criticos isso poderd parecer uma tentativa de reagir da melhor mancira possivel Biante de uma dificuldade. A descortesia poderia, talvez, ser perdoada, uma vez que, tal como Niebuhr expde a doutrina Crista da historia, € essa doutrina, e nao a historia, que se faz misteriosa. LEITURAS ADICIONAIS Cann, E. H,, What is History?, Nova York: Alfred A. Knopf, Inc. ima boa critica "da investigagdo hist6rica, ‘feita por um Cortincwoor, R. G., The Idea of History, Nova York: Oxford Univer ipa Jo Galaxie, Uma das obras mais Ganpiwen, Patrick, Theories of History, Nova York: Free Press of ‘Glencoe, Ine,” 1959. Contém trechos tanto da corrente especula a quenio da critica, Inclui uma bibliografia muito boa. Fonte liosa, particularmente exame das recentes discusses em torno do problema da explicacio. History and Theory: Studies in the Philosophy of History. Um. perié- ‘Sco, publicado. desde 1961, para o qual escrevem historiadores ¢ fos. Excelente bibliografia, cobrindo publicagées na Grea da (Sra, no perfodo 1945-1957, apareceu nessa revista, em 1961 Hook, Sidney, Philosophy and History, New York Univer 1963. Inclui contribuigées apresentadas por fildsofos © hist snum’simpésio no qual foram debatidas as questOes abordadas na primeira metade deste livro. A obra retrata muito bem a contro- Vérsia contemporinea em torno de tais questbes. ty, Press, Lown, Karl, Meaning in History, Chicago: University of Chicago Press, ivro da colegio Phoenix. Estimulante discussio acerca imentos da corrente especulativa. Mevernore, Hans, The Philosophy of History in Our Time, Garden City, Doubleday & Company, Inc., 1959, livro da Anchor. Boa fantGlogia, especialmente para’ exame da questo da objetividade, ‘apoiada em esctitos de fildsofos e de historiadores. |. H., Philosophy of History, New York: Harper & Row, Publishers,” 1960, livro da coleséo Torchbook. € melhor introdugao eral, Trata de’ questées criticas e especulativas

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