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© Gilmar A r r u d a

A NATUREZA DOS RIOS: HISTÓRIA,


MEMÓRIA E TERRITÓRIOS

Coordenação Editorial
Daniele Soares Cárneiro

P r o j e t o Gráfico e E d i t o r a ç ã o Eletrônica
Simone Rodrigues Mansilla

Revisão
Vanessa Carneiro Rodrigues
Maria Cristina Perigo

Capa
Rachel Cristina Pavim

Série Pesquisa, n. 1 2 8
Ref.493

U n i v e r s i d a d e Federal d o P a r a n á
Sistema de Bibliotecas. Biblioteca Central
C o o r d e n a ç ã o d e Processos Técnicos
Ficha Catalográfica

A natureza dos rios: história, memória e territórios/


N 285 Gilmar Arruda (org.). - [Curitiba]: Editora UFPR, [2008],
266p.: il.; mapas, tabs. (Pesquisa; n. 128)

Anexos
Inclui bibliografia e notas
ISBN 978-85-7335-209-2

1. Rios 2. Ecologia dos Rios - Paraná. 3. Geografia -


Rios I. Arruda, Gilmar. Série.

CDD 22. ed. 551.4609

Samira Elias Simões CRB-9 / 755

ISBN 978-85-7335-209-2

Direitos d e s t a edição R e s e r v a d o s à
Editora U F P R
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www.editora.ufpr.br
editora@ufpr.br
2008
Pensando como um rio1
Donald Worster 2

Quando nos dirigimos a uma fazenda moderna, temos a expectativa


de ainda ver plantas verdes brotando do chão suportando a promessa de
oferecer comida, óleo para cozinhar ou, futuramente, uma camiseta de al-
godão. Puxando uma dessas plantas, nós ainda esperamos encontrar terra
agarrada em suas raízes. Apesar desta era de euforia high-tec, a agricultura
permanece essencialmente uma questão de plantas crescendo no solo. Mas
um outro elemento além do solo tem sido sempre parte da realidade fami-
liar do agricultor. A agricultura não se reduz somente ao cultivo de um pe-
daço de terra, é também o cultivo da lavoura em ágtia. Não quero, com isto,
referir-me a plantações hidropônicas. Refiro-me ao fato de que o agricultor
e suas plantas são inescapavelmente participantes no ciclo natural da água
no planeta. Agua é um elemento mais volátil e incerto que o solo na equa-
ção "agricultura". O solo naturalmente permanece na fazenda, a menos que
se perca por manejo inadequado, diferentemente da água que possui uma
natureza, sempre móvel, caindo das nuvens, encharcando as raízes, corren-
do para os córregos e mares. Devemos cultivar rios e a correnteza da água
tanto quanto os campos e as pastagens se quisermos continuar a progredir.
Mas nunca foi fácil extrair vida de algo tão móvel e esquivo, tão inflexível e
ainda tão vulnerável quanto a água.

Para existir uma agricultura sustentável a longo prazo nos Estados Uni-
dos ou em qualquer outro lugar, os agricultores devem pensar e agir de
acordo com a correnteza da água sobre, embaixo, através e além de suas

1 Este ensaio foi publicado primeiramente em Berry e Colman (1984). A presente tradução foi feita a partir de Worster

(1993). A tradução e a publicaçao foram autorizadas pelo próprio autor. A tradução foi de Gilmar Arruda. A revisão da tradução
foi de Juliana Reichert Assunção Tonelli.
1 Donald Worster é professor de História na Universidade do Kansas (EUA).
fazendas. Preservar a fertilidade dos recursos do solo é essencial para sus-
tentar tais recursos, mas não é mais do que manter a qualidade da água.
De qualquer forma, os dois objetivos são indissociáveis e qualquer fracasso
atinge os dois conjuntamente, como quando a chuva provoca erosão da ter-
ra — os córregos e rios sofrem.

Mas há diferenças entre estes dois recursos que devemos entender e


respeitar. Diferentemente do solo, a água não pode ser "construída". O
agricultor pode perdê-la, ou pode desviá-la, poluí-la, desperdiçá-la ou usá-
la em excesso, mas nunca conseguirá aumentar o seu volume, ou cercá-la
como pode fazer com o solo. Ele possui tão somente o que está circulando
na natureza, e nada mais. A agricultura sustentável é aquela que aceita e
trabalha cuidadosamente sem ultrapassar os limites claros do ciclo da água.
É aquela que produz tão perto quanto possível do ciclo natural da água,
seguindo a correnteza e não se opondo contra ela ou obstruindo-a, como os
filósofos taoistas chineses recomendavam a longo tempo atrás3.

Através da história, o ciclo da água tem servido aos humanos como


modelo do mundo natural. Civilizações antigas viram nelè a figura de
um modelo básico de vida; o ciclo do nascimento, da morte, e do retorno
à essência do ser humano. Mais recentemente, a ciência tem acrescenta-
do àquela antiga metáfora religiosa uma nova percepção: o movimento
da água em um interminável e estável movimento em círculo, como um
modelo para o completo entendimento da economia da natureza. Procu-
rando por uma forma de tornar os princípios da ecologia mais claros e
vívidos, Aldo Leopold sugeriu que a natureza é como um "rio circular",
como uma correnteza fluindo dentro dela mesma, girando em círculo
num incessante circuito, fluindo através de todo o solo, da flora e da
fauna da terra (LEOPOLD, 1953). Outro cientista, Robert Curry, tem ar-
gumentado que a área de drenagem seria a mais apropriada unidade
para pensar e tratar com a natureza (CURRY, 1976-77, p. 14-21). A área
de drenagem é todo um conjunto complexo da fauna e da flora de uma
região. Com uma geoquímica e uma energia singulares, tornando-se um
sistema independente, um tipo de sistema econômico, com um balanço

J Na verdade, os escritores taoistas tratam mais da correnteza do que irrigação, mas sua filosofia da água de nao-interferência

tem tido muitas aplicações modernas. Para uma útil discussão dessas idéias ver Neddham (I97Í).
dinamicamente equilibrado entre as forças de erosão e construção, de
produtividade e beleza ao contrário do desajeitado e perdulário sistema
econômico construído pelos homens. Cada área possuiria seu próprio e
peculiar formato e sua própria forma de movimento determinando um
elegante equilíbrio das forças. A linguagem desses cientistas pode ser
original, mas a inspiração é antiga e familiar. Na água podemos ver toda
a natureza refletida. E, no nosso uso da água natural, vemos muito de
nosso passado e futuro refletido.

O primeiro mandamento para viver bem sucedido na natureza - viver


por longo tempo e na mais alta possibilidade de desenvolvimento moral - é
entender como aquele "rio circular" e sua bacia hidrográfica trabalham em
conjunto e adaptar nosso comportamento de acordo com isso. Ao contrário,
assumir uma atitude puramente econômica em relação à água é a forma
mais acertada para fracassar na compreensão do "rio circular". Em uma
avaliação estritamente econômica, a água torna-se meramente um commodi-
ty- H20, avaliada como capital para ser investido num dia e gasto livremente
quando o mercado estiver em alta. Ao transformar a água em uma commodi-
ty, ela começou a ser vista como "fluxo de caixa" e não mais como o sangue
vital da terra. E então começamos a fazer bobagens com nossas correntezas
e rios, vendo os cursos sinuosos dos córregos através dos campos como
caos ou um movimento perdido, não percebendo que aquelas sinuosidades
fazem sentido, possuem uma racionalidade fundamental. Com essa visão,
os engenheiros governamentais, confiantes que eles sabem melhor do que
ninguém, passaram a endireitar os córregos com máquinas para tornar as
correntezas mais rápidas, e nesse processo destroem toda vida selvagem
das margens que expressavam a racionalidade que era diferente daquela
da visão econômica, a qual nós ainda não conseguimos compreender. A ne-
cessidade elementar em aprender como lidar, eficientemente, com a água,
Leopold teria dito, é parar para pensar sobre' o problema exclusivamente
sob o ponto de vista de economistas e engenheiros e começar a aprender a
lógica do rio.

O mais velho rio do mundo em termos de sustentabilidade humana é o


Nilo. Qualquer agricultor moderno, ou especialista em agricultura, deveria
ser aconselhado a estudar a história natural do uso do Nilo desde as mais
remotas eras (cerca de 5.000 a.C) até o presente4. É uma história com boas
e más lições: uma simbiose extraordinariamente longa entre o povo e o rio,
um recente cenário de mudanças ambientais cataclísmicas, uma persistente
tendência direcionada à concentração do poder baseada no gerenciamen-
to da água, uma rica acumulação da tradição do rio dada à vida egípcia.
Começando na era do Faraó Menes (cerca de 3200 a.C) os agricultores do
vale construíram uma série de diques e canais para direcionar as enchentes
anuais para os seus campos. Por milhares de anos consecutivos, a Mãe Nilo
alimentou os egípcios com regular abundância, com a água e a lama das en-
chentes enriquecendo as estreitas faixas de terra verde situadas entre o rio e
o deserto. Quando o rio estava baixo por falta de chuvas, a colheita não era
suficiente e a fome prevalecia. Finalmente os egípcios aprenderam como es-
tocar o excedente de cevadas e grãos das colheitas dos melhores anos a fim
de suprirem e se alimentarem durantes os anos magros. Não foi uma sorte
irracional que deu àquela agricultura a durabilidade não encontrada em
nenhum outro lugar; eles respeitaram o rio, aprenderam a usá-lo sem violar
sua ordem, e deste modo alcançaram um avançado nível de civilização.

Os egípcios desenvolveram um sistema técnico de irrigação simples que


tinha pequenos impactos adversos no meio ambiente e era gerenciável, sob
á maior parte das circunstâncias, pelos "povos comuns" nas pequenas vilas.
Mesmo assim, há evidências históricas de que já naquela época o gerenciamen-
to provou ser inadequado. Especialistas governamentais entraram em cena na
fundação de seu mais unificado e sofisticado programa de controle da água,
criando no Egito um poderoso estado despótico, o qual exercia a autoridade de
vida e morte sobre as massas. Um controle mais intensivo e centralizado sobre
o rio tornou-se o meio pelo qual alguns homens dominaram outros, dando
ênfase ao que Karl Wittfogel tem chamado de uma "sociedade hidráulica" 3 .0
Egito é um dos exemplos históricos excepcionais de uma ordem socioecoló-
gica na qual uma estrutura de poder concentrada emerge da engenharia e
coordenação da irrigação em larga escala.

4 Muito do .que segue está baseado nessas fontes: Hamdam (1961), Butzer (1976), Hammerton (1972), Waterbury (1979) e

Tignor (1963).
5 Wittfogel (1957). Este ê um esforço controverso para ligar a tecnologia da água a autoridade centralizada na história asiática.

Consulte também, entre um largo número de títulos sobre este tema, Harris (1997) e Mitchell (1973).
No começo do século XIX, o Egito foi invadido pelos exércitos francês
e britânico, cujos engenheiros procuravam, como agentes do Império, con-
verter aquele país para o estilo de agricultura do oeste. Os egípcios pode-
riam aumentar muito mais suas lavouras, eles argumentaram, e vender a
produção excedente com um bom lucro no mercado mundial, se represas e
reservatórios fossem construídos ao longo do rio. Começou então um longo
processo de transformação ambiental, que, mais recentemente, terminou na
construção da High Aswan Dam (Represa de Assua Alta), um imenso pedaço
de concreto que criou o Lago Nasser, um dos maiores corpos artificiais de
água no mundo. Agora, a lama, que por longo tempo havia fertilizado os
campos egípcios, acumulava-se atrás da represa. Rio abaixo, novos canais
de irrigação estimularam uma epidemia de caramujos, levando a esquis-
tossomose para dentro dos assentamentos de agricultores, enquanto isso,
um dos mais piscosos delta está desaparecendo. No lugar da velha hierar-
quia faraônica, há a moderna e poderosa burocracia, a qual sozinha tem o
competente treinamento para desenhar e manter o aparato hidráulico. Qual
será o tempo de vida deste novo regime de controle sobre a água? Asse-
guradamente nada tão diferente daquela antiga. O Egito colocou o cálculo
econômico no lugar da racionalidade ecológica, a produção máxima a curto
prazo no lugar da sustentabilidade do "rio circular". O resultado pode ser
um longo e duradouro declínio do vale do Nilo como um recurso agrícola.

Os americanos têm seguido em muito esse mesmo curso com os seus


rios em terras áridas. Durante o século passado, todo rio importante do oes-
te foi represado, suas águas desviadas e conduzidas para locais distantes,
arrasando a drenagem natural da água em muitos lugares. (Uma boa parte
dos rios do leste também foi alterada, especialmente aqueles submetidos às
autoridades da Administração do Vale do Tennessee.)

Uma das mais substanciosas conquistas que o controle dos rios conse-
guiu foi a industrialização da agricultura americana. Onde quer que seja
que a irrigação apareceu de forma intensa e em larga escala, a agricultu-
ra rapidamente tornou-se uma operação fabril, transformando-se em uma
produção em massa para um mercado de consumo de massa. Desde pelo
menos os anos de 1930, as fazendas irrigadas das costas sudoeste e oeste
têm levado a nação a adotar o modo industrial, e forçado os agricultores
em todos os lugares a ou manterem o passo ou a desistirem. A agricultu-
ra irrigada é cara, requer larga quantidade de investimento de capital; e
onde não há subsídios, somente um pequeno número de fazendeiros pode
ter recursos para isso. Uma vez que a agricultura começou a trilhar a es-
trada da industrialização, não é çiais fácil parar: sistemas hidráulicos são
acompanhados por pesticidas, fertilizantes químicos, um exército de traba-
lhadores em condições ilegais de trabalho e um alto grau de mecanização
(WORSTER, 1982). Os rios do oeste então acabaram tornando-se linhas de
montagem, caminhando incessantemente em direção à conquista da pro-
dução ilimitada. Depois que as necessidades humanas básicas estiverem
satisfeitas, parece não haver mais um propósito que justifique seriamente
a continuidade de tal produção; a água passa a ter meramente um valor
de comércio internacional, abstraído de seu ambiente natural e feito para
servir o imperativo do crescimento industrial como "um fim justificando
os meios". Quando nós não precisamos mais "beber" laranjas, milho ou ar-
roz irrigados, os profissionais de marketing nos dizem que podemos vender
nossos rios (vender, isto é, os produtos da irrigação) para o Japão ou para a
Alemanha. O resultado disso é a alienação final do povo de suas terras e do
rumo de suas vidas — trocados por um punhado de quinquilharias eletrô-
nicas oriundas dos cantos mais remotos do planeta.

Embora a palavra alienação seja algo abstrato, seus resultados são com-
pletamente reais. A palavra sede é algo mais concreto e mensurável, que
pode ser vista em nossa expressão facial. As fazendas-fábricas irrigadas do
oeste podem ser capazes de tornar seca a região. Plantações irrigadas usam
atualmente cerca da metade da água captada do país". Mas nos estados do
oeste com poucas chuvas aquela proporção é muito maior: 80 a 90 por cen-
to. De acordo com o Serviço Geológico dos Estados Unidos, a Califórnia
captou nos anos 1970 algo em torno de trinta e três bilhões de galões de
água por dia para irrigação, ou um quarto do total nacional dos recursos hí-
dricos superficiais e subterrâneos. Idaho foi o segundo estado de maior uso
da água para a agricultura, com uma captação diária de 15 bilhões de ga-
lões; Texas vem em seguida com 10 bilhões de galões. Outros treze estados

6 U. S Resources Council (1978). Em 1975 estimava-se que a agricultura norte-americana captava 159 milhões de galões de
um total de 339 milhões de galões por dia.
- todos menos a Flórida —, localizados a oeste do Mississipi, usaram pelo
menos um bilhão de galões por dia para a irrigação7. Em alguns lugares a
maior parte da água não é captada diretamente dos rios, mas de depósitos
subterrâneos acumulados durante um longo período de tempo. A cada ano
fazendeiros bombeiam do Aqüífero Ogalla das Grandes Planícies mais que
toda a água do rio Colorado. Aquele recurso, sobras do período do Pleis-
toceno, que uma vez fora um dos maiores sistemas de depósito natural de
água desse tipo, agora tem uma expectativa de vida útil estimada em cerca
de quarenta anos®. A agricultura irrigada têm-se mantido na moda e tem-se
tornado uma extravagância difícil de ser mantida por muito tempo, o que
a nação americana não pode suportar e, a qual, muitos de seus estados, por
sua vez, também não conseguirão manter por muito tempo.

Mesmo que haja água suficiente por muito tempo, em muitos casos po-
derá não haver energia suficiente para torná-la disponível. A irrigação mo-
derna envolve uma drástica reorganização do ciclo hidrológico, cuja tarefa
pode ser bem sucedida somente com uma quantidade razoável de energia
disponível e a um custo baixo. Nos Estados Unidos, o uso de abundante
energia artificial faz com que os rios se movam de forma artificial, tornan-
do-os menos eficientes nos termos de sua própria dinâmica.

Na natureza, explica Robert Curry, um rio constantemente direciona


a maior parte de sua eficiência energética para o oceano (CURRY, 1976-77,
p. 17-18). Sempre que um obstáculo aparece, o rio começa a trabalhar para
removê-lo ou encontrar outra rota. Colocar uma barragem entre um cânion
e um rio fará com que imediatamente o rio transborde e inunde tudo ao seu
redor, destruindo tudo o que estiver construído. De alguma forma os hu-
manos devem encontrar recursos energéticos prontos para manter os rios
bloqueados, forçá-los para fora de seu leito e sobre as margens e planícies,
ou elevá-los através de uma cadeia de montanhas para correr em canos nas
cidades. A exaustão ou a perda da fonte de energia externa como recur-
so para alterar a dinâmica dos rios também significa o fim da capacida-
de humana de superar as leis naturais da energia das bacias hidrográficas.

1 Curry e Reeves (1972). De 140 milhões de acre-feet (medida equivalente a 1.233,5 m3- nota do tradutor) de água captada
nacionalmente pela irrigação naquele ano, 82 milhões foram considerados "consumidos", isto é, não mais disponível para as
correntezas ou outros usos.
' THE BROWNING OF AMERICA (1981). Para um declínio comparável ver Todd (1971).
Deve-se, então deixar correr a água onde for mais fácil encontrá-la. Esta é a
perspectiva de se lidar com água que estamos agora enfrentando no nosso
modo humano.

No mundo do antigo Egito, a energia para a manipulação da água vi-


nha do trabalho obrigatório, de legiões de camponeses convocados pelo
governo para construir e manter obras, impelidos pelos chicotes quando es-
tavam cansados. A contribuição moderna tem sido substituir por combus-
tível fóssil muito daquele suor. Nós temos celebrado a mudança com uma
retórica expansiva: "ilimitada abundância" e "bastante água e eletricidade
jorrando da torneira". Mas ninguém tinha ainda nos dito precisamente e
compreensivelmente quanta energia é exigida para construir obras como a
Barragem Hoover; para mantê-las; para bombear a água estocada nelas e,
também, não tinha nos sido dito que a energia demandada compara-se a
energia elétrica que ela gera. James Bethal e Martin Masengale calcularam
que o bombeamento e a distribuição de água para a irrigação sozinhas con-
somem 13 por cento de todas a energia usada na agricultura americana9.
Em estados como Nebraska, onde um pivô central espalha água, captada
do subterrâneo, em círculos, como um jogo de damas em campos de milho,
dez vezes mais combustível fóssil é usado pela agricultura irrigada do que
em toda a necessidade não agrícola 10 .0 aumento atual do custo do combus-
tível pode colocar os fazendeiros fora dos negócios muito antes e fazer com
seus poços sequem. A água não pode correr morro acima ao menos que haja
dinheiro suficiente para empurra-lá. Ninguém, poderá dizer inequivocada-
mente que nenhum novo recurso combustível de baixo custo será um dia
descoberto, mas será um grande tolo quem nos disser que um grande avan-
ço poderá acontecer sem compromissos, sem efeitos colaterais indesejados,
sem confrontar os limites ecológicos. Como nós não pensamos como os rios
funcionam, nossa agricultura irrigada será sempre um exercício inútil de
tentar anular as leis naturais da correnteza.

A diminuição dos suprimentos de água e energia é somente a mais ób-


via ameaça para o império da irrigação americano. Talvez o castigo mais

9 O Projeto de Agua do estado da Califórnia financiado pelo Estado, o qual pega neve derretida do norte para a operação do

agronegócio em Kem County e para a área de Los Angeles, tem um enorme déficit de energia. Somente o bombeamento requer
13 bilhões de kw/h por ano, enquanto o projeto gera apenas 5 bilhões. Esses números foram retirados de Jeffrey Lee (1973).
10 Mary Bender e Wes Jackson (1981). Ver também Margaret Lounsbury, Sandra Hebenstreit e R. Stephen Berry (1978).
sério e de longo alcance seja a contaminação da terra agriculturável por sal,
a qual parece ser uma inevitável conseqüência do deserto irrigado11. Este é o
problema da degradação do solo e da água devido ao sobreuso. Em regiões
de escassa chuva, a terra contém uma larga quantidade de sais indissolú-
veis; jogar água por sobre esses campos traz esses sais para a superfície e os
leva para dentro dos cursos dos rios. Os constantes desvios da correnteza
levam inexoravelmente a contaminação rio abaixo, assim como a evapora-
ção da água de irrigação, proveniente dos reservatórios ou da transpiração
das raízes das plantas, deixa um esbranquiçado resíduo de sal para trás.
Esta salinização tirou dos negócios os agricultores que usavam a irrigação
na Mesopotâmia milhares de anos atrás. Atualmente, mais de um terço das
terras irrigadas no mundo tem problemas com a poluição por sal, que dimi-
nui a produtividade do solo e, em casos extremos, o arruina para sempre.
Há salinização muito séria em fazendas na Califórnia, Havaí, ao longo do
rio Grande, e através da bacia do rio Colorado. O vale Coachella, perto de
Palm Springs, usa boa parte seus canais de água não para lavouras mas
para jogar fora o sal deixado para trás pela irrigação anterior. Perto dali,
a The Imperial Irrigation District12 já gastou milhões para se manter a frente
da silenciosa salinização e agora espera que os contribuintes assumam a
conta para evitar a crise desta destruição auto-induzida. O problema não é
quem paga pelo remédio, pois a única cura é mais consumo de água, mais
drenagem para se livrar do excesso de água rapidamente, mais energia e
capital para desalinizar instalações — a cura torna-se, em alguns pontos, até
mesmo pior que a doença. Vale a pena manter o risco da contaminação ir-
reversível do solo para sustentar altas taxas de exportações agrícolas? Para
ter alfaces em janeiro?

A lista dos problemas ambientais causados pelo programa de irrigação


do oeste tem crescido longa e continuamente nos periódicos científicos. Em
alguns lugares, onde uma considerável quantidade de água subterrânea é
extraída, a terra pode ceder e formar grandes cavidades, destruindo estra-
das, casas, pontes e tumultuando a vida da superfície13. Quando um rio ces-

. 11 O problema da salinização é discutido nos seguintes trabalhos: Myron Holburt e Vernon Valantine (1972). Gaylord
Skogerboe (1973). George Cox e Michael Atkins (1979, p. 300-308)
u Companhia que opera e distribui água e eletricidade na região do Imperial Valley desde 1911 (nota do tradutor).

15 J. F. Poland e G. H. Davis noticiaram que ao menos 30 por cento das terras da Califórnia onde houve bombeamento de

água subterrânea têm cedido e, em alguns lugares, o desnível chega perto de 30 pés (POLAND; DAVIS, 1969).
sa de levar água doce para o oceano, a rica vida biológica dos estuários ao
longo da costa é destruída. Rejeitos industriais despejados a montante, na
correnteza diminuída, não podem ser carregados para longe e ser adequa-
damente diluídos; o oxigênio das águas dos rios conseqüentemente é redu-
zido. Em correntezas represadas, pode ocorrer a mudança da temperatura
da água, matando os peixes nativos se a diminuição de oxigênio ainda não
tiver matado-os. Só recentemente começamos a investigar o impacto que
a irrigação em larga escala provoca no clima regional: águas de irrigação
evaporadas, por exemplo, podem aumentar significativamente as chuvas
de vento14. Em face de potencial tão destrutivo, de possibilidades sempre
imprevisíveis, está se tornando claro que fazer o "deserto florir como rosas"
é um trabalho muito mais complicado do que nós, uma vez, em nossa arro-
gante e inocente juventude, acreditamos15..

Agora, também, começamos a aceitar o que algumas críticas há muito


vem expressando: que o desenvolvimento da irrigação no oeste dos Estados
Unidos tem provocado muito estrago para a próspera agricultura e a vida
rural de outras regiões. Em um debate no Congresso sobre o "Ato Nacional
de Aproveitamento de 1902" os oponentes do leste protestaram que eles
estavam sendo taxados para criarem concorrência para eles mesmos16. Com
um longa estação ensolarada, uma rede nacional de transporte, e vima polí-
tica de água subsidiada, as fazendas irrigadas no oeste desfrutaram, de fato,
de uma clara vantagem no mercado. Atualmente os efeitos da competição
têm sido meticulosamente estudados e calculados e eles não podem mais ser
desmentidos pelos apologistas do oeste. Somente o Bureau of Reclamation's
Projects substituiu entre cinco a dezoito milhões de acres cultivados por ou-
tros lugares. No sul, por exemplo, viu-se um claro declínio de cerca de um
terço do total das terras cultiváveis entre 1944 e 1964. No mesmo período,
os projetos de aproveitamento do oeste acrescentaram mais de 60 por cento
em sua área, e muito desse espaço tem sido usado para cultivar algodão, o
que já havia acontecido no passado. O cultivo, também, de batatas, trigo,
cereais, beterrabas, frutas e verduras está se mudando para o oeste. Se isso

M Goldman (1971. p. 109-124) e Hangan e Roberts (1972). O último é o relatório mais compreensível e um modelo diluído

de conclusão.
15 O perigo representado pela deterioração das represas é muito mais sério que o público tenha consciência. Um estudo in-

dica que as represas são 10-000 vezes mais provavelmente causa de grandes desastres do que as usinas nucleares (SHAN, 1978).
16 Ver, por exemplo, os comentários feitos por Joseph Sibley, Congressista da Pensilvânia, em Congressional Record, 21, Janua-

ry 1902, p. 836; e de Gilbert Tucker, editor do Country Gentleman, em Congressional Record, 13 June 1902, p. 6723-24.
não era suficiente, o governo federal pagou, nos mesmos anos, em tomo
de 179 milhões de dólares anuais em incentivos para redução de produção
aos fazendeiros dos projetos de aproveitamento. O que era acrescentado
pelas lavouras por uma mão era tomada pela outra. Em ambos os casos, os
fazendeiros do leste pagaram de seus próprios bolsos, enviando seus im-
postos para mais regiões áridas, em seguida sofrendo a queda dos preços
das commodities provocada pela superprodução e, então, puxando a carteira
dos incentivos para redução da produção".

Mesmo nos termos dos economistas de maximização dos lucros, há


pouco senso na política americana de irrigação. Ela tem empobrecido mui-
tos residentes na terra, deteriorado comunidades de agricultores, e envia-
do desenraizados e derrotados para a cidade como desempregados. Esses
homens do leste têm suas malas cheias de experiência duramente adquiri-
da no trabalho com a terra. Algum dia, quando nós precisarmos encontrar
uma experiência prática para lavrar as terras do leste, muito dela poderá ter
sido perdida. Ao invés de investir na preservação do conhecimento exis-
tente entre o povo comum do leste, nós temos perdido bilhões de dólares
na conquista dos rios do deserto, na virtuosidade tecnológica, no poder da
burocracia governamental e do agronegócioiO resultado é uma agricultura
aparentemente imune às variações climáticas, mas na realidade altamente
frágil como todos os sistemas largamente centralizados de produção18.

O oeste fornece a mais gritante evidência da confusão econômica e dá


irracionalidade ecológica do pensamento americano sobre a água. Entretan-
to, nos estados ricos em chuva, também há amplos testemunhos que não es-
tamos aprendendo a cultivar o ciclo hidrológico com uma visão consistente
e prudente. Por que estamos perdendo solo pela erosão como nunca antes?
Com toda a ciência agronômica e biológica ao nosso alcance, com uma ri-
queza coletiva jamais experimentada antes, nós permitimos que cerca de
cinco toneladas de solo em média desapareça de um acre por ano. No oeste
do Tennessee, não tão longe do rio Mississipi, onde proprietários de terras
têm arado suas pastagens montanhosas para plantar soja, a perda média

11 Howe e Easter (1971). Ver também Berkman eVicusi (1973).


" No original: "but in reality highly fragile as all leviathan system are". Em esclarecimento posterior ao tradutor Donald
Worster afirmou que se referia a fazendas massivavente mecanizadas, como a produção de feijão soja no Brasil contemporâneo,
(nota do tradutor).
anual de solo por acre é de 30 a 40 toneladas, e em algumas fazendas chega
a 150 toneladas. Os fazendeiros do Termessee, nas palavras do jornalista
James Risser do jornal especializado em agronegócios Des Moines, "que têm
sido pegos no descontrolado crescimento da máquina de produção agrícola
americana e em uma espiral inflacionária dos preços podem estar hipote-
cando o futuro por um lucro rápido hoje"19.

O "Velho homem do Rio" disse para aqueles homens e mulheres: Man-


tenham a terra coberta ou eu a levarei. Mas eles não podiam ouvir aquele
aviso, porque algo mais alto dizia em seus ouvidos: Faça dinheiro - pague
por um novo trator - produza, produza, produza.

E tempo de começarmos a repensar nossas relações agrícolas com a


água. Os problemas são tão numerosos e complexos que uma tempesta-
de de soluções rápidas não é mais adequada. O que está se necessitando
é fundamentalmente de novas contribuições para o desafio de obter uma
agricultura viva do ciclo hidrológico, tanto nas regiões úmidas quanto nas
áridas. Isto requer mais do que apenas uma visão técnica: requer uma nova
forma de percepção, novos quadros mentais, uma nova ética controlando as
práticas e as políticas agrícolas. Demanda, como eu tenho dito, apreender a
pensar como um rio.

Por um longo tempo este país tem aperfeiçoado uma abrangente es-
tratégia de planejamento dos rios. Nós temos chamado esta estratégia de
"conservação", embora ela tenha mais refeito do que conservado o que a
natureza nos deu. A estratégia tem sido sempre baseada no pensamento tec-
nológico em vez do pensamento ecológico; planejadores têm definido suas
tarefas tomando os rios como sistemas separados, juntando-os novamente,
então, em termos de arranjos mais "úteis" e correspondendo no atacado as
expectativas dos fazendeiros20. Uma estratégia mais razoável poderia estar
concentrada na fazenda isolada, perguntado quais são suas necessidades e
como elas podem ser conseguidas com a menor interferência possível no

19 Risser (1981). Outras áreas com séria erosão são Iowa, que perdeu metade de sua esplêndida camada superior de solo em

um século e a nação Palouse, ao leste de Washington, perdeu 17 milhões de toneladas de um milhão de acres de lavoura - algo
como 200 tonelas por acre.
20 Alguns engenheiros estão começando a questionar a antiga autoconfiança. Elmo Huffman do Departamento de Recur-

sos Hídricos da Califórnia escreveu: "Nós devemos aprender que a interferência não é sinônimo de gerenciamento... Em muitos
casos, o gerenciamento mais pmdente é simplesmente preservar as coisas como elas são agora, e no máximo, tentar curar as
feridas tão descuidamente provocadas pelo homem no passado" (HUFFMAN, 1966). Ver também White (1977), o qual sugere
algumas mudanças de atitudes.
ciclo da água. Partir do específico e local é melhor do que do geral e glo-
bal. Desenvolver finalidades bem pensadas para a política pública da água.
Procurar, então, encontrar essas finalidades com a forma mais simples e
elegante possível do uso da água, maneiras econômicas e apropriadas para
as necessidades locais e capazes de durar indefinidamente.

Nenhum fazendeiro precisa plantar milho no deserto ou usar a água do


Rio Colorado para fazê-lo. Ele pode estar inclinado a escolher plantar milho
porque ele cresceu em Indiana onde o milho era um cultivo tradicional e,
então, levou seus hábitos para o oeste, ou porque autoridades locais disse-
ram a ele que o preço mundial do milho iria disparar após a colheita. Mas
isto não é uma análise das necessidades; é uma seleção de métodos. O que
o fazendeiro realmente precisa é uma vida confortável para ele e sua famí-
lia, junto com uma oportunidade para usar a inteligência e a iniciativa para
obter uma medida de satisfação de seu trabalho. Os consumidores ameri-
canos precisam comer — nutrição e sabor à mesa por um preço justo. Essas
genuínas necessidades podem ser encontradas sem transformar o Colorado
ou o Snake River em um sistema artificial de encanamento, atormentado
por custos de montagem e destruição ambiental a cada ligação de dutos e
torneiras. Sim, elas podem, se estivermos dispostos a colocar nossa criativi-
dade para trabalhar inventando, disciplinando e adaptando; elas podem ser
encontradas se assumirmos uma reconstrução radical dos métodos.

O primeiro passo específico em direção a uma nova consciência so-


bre água é pôr fim a todo subsídio federal para os projetos de irrigação no
oeste21.Os subsídios não devem ser suspensos abruptamente, mas gradual-
mente, revertendo com cuidado e sensibilidade a política existente que está
perto, de fato, de fazer cem anos. Os americanos não têm razão para recear
tanto a mudança. A maior parte das áreas artificialmente irrigadas no oeste
cultiva produtos que podem crescer mais facilmente em outros lugares: 37
por cento de todas as terras federais aproveitadas, por exemplo, são usa-
das para plantação de feno e forragem; 21 por cento para milho, cevada e
trigo; 10 por cento para algodão (BUREAU OF RECLAMATION, 1977). Os
Estados Unidos terão muita fome se não subsidiarmos estas plantações, ao

21 Uma recomendação semelhante é feita também pelo grupo de estudos liderado pelo impecável economista agrícola con-
servacionista Earl Heady. Ver National Water Commission (1973). O precipitado grupo queria, porém, nenhum novo projeto
aprovado.
contrário, os fazendeiros do leste irão agravar a situação elevando os preços
e prejudicando em muito o ecossistema.

Mas desde que os fazendeiros têm sido há longo tempo induzidos pe-
los incentivos governamentais a se mudarem para o oeste e estabelecerem
seus planos de irrigação, eles não devem sofrer por causa dessa reversão de
política. O que se está necessitando é de um novo programa baseado nas
necessidades locais, equivalente àquele que foi criado na metade do século
XIX, que encorajará muitos fazendeiros do oeste a se realocarem em áreas
mais úmidas e a aprenderem melhores práticas, adequadas a esses luga-
res. Na maior parte da história nacional americana assumimos que ir para
frente era ir para o oeste. Agora, uma agricultura sustentável requer um
redirecionamento do progresso. Vá para o leste, homens e mulheres jovens,
e cresça com o país.

O oeste está agora superpovoado, excedendo em muito a capacidade


natural de seus rios. Um novo senso dos limites da água poderia estimular
os habitantes das cidades na região, tanto quanto os fazendeiros, a se move-
rem em direção ao Leste onde eles poderiam ser suportados mais facilmen-
te. Aqueles que permanecessem, constituiriam uma população permanente
em equilíbrio com o meio ambiente. Deverá ser criada uma nova tecnolo-
gia para o uso da água tornando possível a sua sobrevivência, propiciando
uma modesta prosperidade e crescimento com a comida que estiver por
perto. Infelizmente, quase nenhum pensamento oficial tem sido dedicado
a tecnologias alternativas que poderia atender aquela população, embora
saibamos que em alguns pontos os grandes reservatórios estarão cheios de
"lama". É tempo, talvez tarde, de começar o processo de reinventar o oeste.
O previdente fazendeiro do deserto ou das planícies comeeçaria a trabalhar
em sua própria salvação, não esperando pelos planejadores, embora ele
possa usar os conselhos de hidrologistas, geniticistas e engenheiros. Ele es-
tudará a arte de adaptação do cultivo na seca. Irá demandar algumas novas
variedades de sementes que podem sobreviver em locais de pouca chuvas
e, talvez, conseguirá convencer os legisladores a conceder alguma ajuda
para facilitar aquela transição, tanto quanto eles têm subsidiado a conver-
são de casas para a energia solar. Com seus vizinhos, o agricultor criará
meios de desviar as correntezas sem apropriar-se do rio inteiro, uma forma
de garantir um mínimo de correnteza no canal para que possa suportar sua
ecologia enquanto se utiliza do rio para as lavouras. Onde os mercados lo-
cais requerem frutas frescas, verduras e leite instalarão irrigação por goteja-
mento, o qual usa muito menos água que o método de sulco. Para enfrentar
o declínio dos combustíveis fósseis deixará o sol e a gravidade fazerem a
maior parte do trabalho de elevar e circular a água através de sua fazenda.
Estes são alguns dos caminhos que a agricultura precisa começar a trilhar
para se adpatar a uma área árida. Melhor que insistir em transformar terras
áridas em uma versão do Missouri, produzindo culturas para as quais elas
estão mal adaptadas, deveríamos começar a imaginar um futuro oeste fina-
mente afinado com seu meio ambiente único.

Na maior parte das áreas úmidas os fazendeiros estão em face do de-


safio de não deixar uma chuva abundante acabar com seu conhecimento
baseado na experiência e, com ele, os seus solos. O primeiro princípio de
uma boa administração da água, vale a pena repetir, é a manutenção da
cobertura do solo. Em muitos lugares isto significa a restauração da vegeta-
ção florestal natural ou através do reflorestamento com árvores cultivadas.
Em outros lugares uma grossa esponja de grama poderá ser suficiente para
absorver o impacto da queda d'água, diminuindo sua corrida para o mar,
e mantendo os rios limpos e agradáveis. Novas plantações perenes que tor-
nem o arado desnecessário podem diminuir a perda pela erosão para um
nível de reposição natural. A diminuição do uso de pesticidas e adubos
químicos poderá reduzir, também, a contaminação das águas subterrâne-
as. Estas terapias familiares fazem parte de uma visão mais abrangente de
uma agricultura na qual todas as fazendas estarão harmonicamente inseri-
das dentro da dinâmica de sua própria bacia hidrográfica, ao contrário da
agricultura em que todas as fazendas procuram maximizar sua participação
na economia monetária.

Atualmente, parece evidente que o mercado jamais pagará para os


fazendeiros se acomodarem em suas próprias bacias. Para estar seguro, o
mercado recompensará, num cálculo de longo prazo, mais generosamente
que muitos dos fazendeiros estão conscientes. É possível, embora não seja
a norma, enfatizar a produtividade a longo prazo e não o ganho rápido da
economia capitalista. Talvez, os empreendimentos mais bem sucedidos e
duradouros sejam aqueles que vão contra a lógica e desconsideram o pâni-
co e a pressão imeditata dos mercados, não sacrificando o ideal de fazer di-
nheiro eventualmente. A racionalidade econômica do capitalismo não é ne-
cessariamente, ou sempre, a obteção de lucros imediatos22. Mas, em última
instância, o mercado é uma instituição que ensina auto-progresso, aquisição
privada e a dominação da natureza. Sua forma de pensar é incompatível
com o "rio circular". A harmonia ecológica é um valor não mercadológico
que necessita de um desejo coletivo para ser atingida. Ela requer que os
fazendeiros vivam em cooperação com a correnteza para preservá-la e para
deixar um mundo fértil às novas gerações. Esta harmonia requer que os
consumidores urbanos estejam dispostos a pagar aos fazendeiros pelo uso
de boas técnicas de conservação tanto quanto pela produção de alimentos.
Sem uma disposição pública para barrar as pressões do mercado, não have-
rá uma reconstrução radical dos métodos agrícolas ou uma reaproximação
entre agricultura e natureza.

Os americanos, como povos em outros lugares e tempos, tem uma his-


tória de violência em relação à terra e seus vivificantes rios. Talvez tenha-
mos praticado mais violência que a maioria das nações - certamente fize-
mos mais danos em um curto período que a maioria. Violência é um ato
tipicamente esporádico, uma doença considerada destrutiva tanto para o
predador quanto para a vítima; não é nunca a base para a permanência. O
que é requerido agora em nossa agricultura, se é para ela estar segura, é a
rejeição da violência. Felizmente, ainda podemos encontrar em nosso país
uma fronteira com suficiente margem de recursos que ainda não foram sub-
metidos ao uso forçado da terra e da água, ainda podemos fazer escolhas
diferenes e evitar medidas desesperadas e draconianas23. Na nossa posição
precisamos pensar não somente sobre auto-preservação mas também sobre
generosidade e paz — sobre ética.

11 No original: "By now it should be evident that no market will ever pay farmers for accommodating themselves to their

watershed. To be sure, the market-place will reward long-range calculation more handsomely than many farmers are aware .
Em esclarecimento solicitado pelo tradutor, o autor escreveu: "It is possible, though not the norm, to emphasize long-range
productivity over short-run gain in a capitalist economy. Perhaps the most successful and long-lasting enterprises are those that
are run on that logic, disregarding the immediate pressures and panics of the marketplace but not sacrificing the ideal of making
money eventually. The economic rationality of capitalism is not necessarily or always short term." Este trecho foi acrescentado
ao texto (nota do tradutor).
13 O Terceiro Mundo, em face de uma pressão populacional muito maior, pode ser forçado a adotar uma violência ambien-

tal para sobreviver. Simplesmente para manter no mesmo estado suas necessidades de alimento, eles precisarão no ano 2000
perto de 22 milhões de novos hectares irrigados, conforme o prognóstico da Food and Agriculture Organization (1977, p. 4).
Quase quarenta anos atrás, Aldo Leopold escreveu que nós nunca vi-
veríamos bem com a natureza até que aprendêssemos a considerá-la mo-
ralmente. Temos que desenvolver — sustentava Leopold — um senso de
pertencimento a uma larga comunidade natural, a um grupo de pessoas
que têm muitos interesses e desejos acima dos nossos próprios. Nós temos
que cultivar uma sensibilidade moral para aquela bela e integra comunida-
de. Ele falou da necessidade de pensar a "terra ética", incluindo a respon-
sabilidade moral de todas as partes da ecologia como um todo24. Mas dado
à centralidade da água em nossas vidas e à magnitude dos problemas que
confrontamos ao cultivar nossas bacias hidrográficas é também fazer com
que o falar sobre a "ética da água" faça sentido. A água, afinal de tudo, co-
bre a maior parte da superfície do planeta. Até mais que do que a terra, a
água é a essência e o contexto da vida, a esfera de nosso ser e de outras cria-
turas. Tem um valor que ultrapassa o seu uso econômico em nossas fazen-
das. Preservar o valor da água através de uma nova agricultura americana
é uma extensão da ética tanto quanto da sabedoria.

24 O ensaio The land ethic de Leopold apareceu em seu Sand County Almanac. New York: Oxford University Press, 1949. Seu

filho Luna Leopold um dos maiores especialistas em hidrologia nos Estados Unidos e autor de muitos trabalhos tecnicamente
sofisticados como Water in environmental planning. Mas em nenhum lugar seu filho parece impressionado com a preocupacão
ética de seu pai ou ter procurado estender aquela preocupação para o uso humano dos rios. Mais uma vez, a obtenção de cre-
denciais científicas aparentemente tem sido alcançada ao custo da visão moral.
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