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SUMARIO PREFACIO — por Jaan Valsiner 6 CRONOLOGIA 9 INTRODUGAO B 1. HISTORIA PESSOAL B HISTORIA INTELEC- TUAL... ”? 2, A MEDIACAO SIMBOLICA 2 © 0 uso de instramentos a7 = 0 uso de signos .. 30 © Orsistemas simbélicos ¢ 0 processo de interna- 3. PENSAMENTO E LINGUAGEM . 4 * O desenvolvimento do pensamento ¢ da li guagem 7 a © 0 significado das palavras 48 * O discurso interior e a fala egocéntrica 51 4. DESENVOLVIMENTO E APRENDIZADO ... 35 * O conceito de zona de desenvolvimento pro- wimal ... * O papel da intervengao pedagdgica © Brinquedo e desenvolvimento © A evolugao da escrita na crianga * Percepgio, atengio e memOria 5. O BIOLOGICO E O CULTURAL: OS DESDO- BRAMENTOS DO PENSAMENTO DE VY- GOTSKY . © A base bialigica do funcionarsento pricoligi- co: a neuropsicologia de Luria © Os fumdamentos cubturats e sociais do desen- a pesquisa intercultural * A teoria da atividade de Leontiev . CONCLUSAO .. BIBLIOGRAFIA * Obras de Vygotsky * Obras de outros autores © Obras da autora ...... PREFACIO JAAN VALSINER < Chapel Hill, North Carolina Outubro de 1991 A publicacao deste pequeno livro a respeito das idéias do judeu russo Lev Vygotsky, estudioso de literatura ¢ psicélogo do desenvolvimento, representa um aconteci- mento notavel por vartas raxdes. Ele é muito oportuno, ‘no momento em que a obra de Vygotsky este adquirin- do popularidade em todo 0 mundo, ¢ grande nimero de estudiosos se tem proclamado ardorosos seguidores des- ‘sa fascinante personagem do cenério da psicologia e do movimento de estudos sobre a crianca na Uniao Soviét ca, durante a década de 20. No decorrer de suas ativ dades, muitas pessoas — educadores, estudantes, socid- Jogos, psicélogas e muitos outros — vém-se tornando cada vex mais interessadas no que Vygotsky de fato pensave ¢ dizia. Na verdade, Vygotsky esta se tornando um ‘'he- r6t"' das ciéncias educacionais ¢ sociais de nosso tempo — mais de meio século apos sua morte, Contudo, bis um certo infortionio na fama, particular. mente na fama postuma, Nem sempre, ao crescer a fa- ‘ma de uma pessoa, a andlise substantiva de suas idéias avanga em ritmo correspondente, O nome de Vygotsky vem sendo cada vex mats mencionado nas conversas en- ire cientistas sociats e educadores, e suas idéias sao cita- das com freqiléncia cada vex maior, O tnteresse por sua obra em ambito mundial tem-se baseado, am geral, nos textos disponivets a respeito dele (sobretudo norte-ame- ricanos), bem como em tradugses da rasso para o inglés de alguns de seus trabathos. E importante que estudio- sos de outros paises por todo 0 mundo desenvolvam suas priprias andlises das idéias de Vygotsky. Dessa perspec- ‘tiva geral, o surgimento, em portugues, da cuidadosa and- Hise das idéias de Vygotsky, feita neste tivro por Marta Kohl de Olivetra, constitui basso significative para uma cobertura abrangente dos temas, funtamente com uma vinculagao destes a grande nitmero de importantes pro- blemas educacionais praticos. Neste livro, a exposipao das ideias de Vagotsky (e de Luria) é cuidadosa, clarae bem ilustrads. A autora tem acurado xelo em oferecer ao lei- tor iniimeras idétas complicadas sobre o desenvolvimen- to 4umano, de forma acessivel ao grande pitblico mas, ao mesmo tempo, exata. O quadro por ela tragado das conquistas da escola de pensamento histérico-cultural & rico de idéias ¢ equilibrado em sua abrangéncia 6 Jean Valsiner, natural da Estonia, é professor do Departamento de Paicologia, na Unsversity of North Carchna at Chapel Hill, Estados Unidos. Fstudioso do pentamen- 120 de Vygotsky, escreveu 0 lieve A quest for synthesis: life and work of Ley Vygotsky, em cola- Boragac com René Van der Veer. Publicon, anteriormente, 0 lero Developmental Psychology in the Soviet Union e siérios outros foros e artigos na area de Psicologia do Desenvolvimento, Ha muito boas raxbes para o interesse que temos hoje em dia pela obra de Vygotsky. Sua obra centrou-se, con- sistentemente, na idéia da emergéncie de movas formas na psyché humana sob orientagao social. Essa perspecti- va é tanto original quanto extremamente pertenente pa- ra as ciéncias sociais de nossos dias. A maior parte da psi- cologia ¢ das ciéncias educacionais contemporaneas es- 10 em estagnario uevido & perspective estética que ber daram da historia das ciéncias sociais do ocidente wos it. timos séculos. As ciéncias sociais tenden @ emcarar @ 50- ciedade e os seres humanos que a constituem como enti- dades relativamente estiticas e néo como sistemas com- blexos constantemente submetidos a processos de desen- volvimento, Contudo, nossa realidade cotidiana oferece- nos, 20 contririo, evidéncias dessa mudanga comstante: as criangas se desenvolvens, meuttas vezes, de manetra im- previsivel para pais, professores e politicos — todos eles, on quase todos, tentanda fazer com que a geragao mais fovem aprove ¢ seja fiel as visoes de mundo que posswem, Porém, como mostra a historia de maneira bastante no- savel, seus esforcos so em grande medida em vio — a gerago mats nova constréi seu préprio modo de com- preender o mundo, que apenas parcialmente acompanha a de seus pais, diverginda da compreensao destes de ma- neira significativamente inovadora. Analogamente, nenhuma cultura ou sociedade é or ganizada de modo imutavel ¢ estatico, Pode parecer que dada sociedade permanecen por décadas numa situapdo de status quo, ¢ somos tentados a descrevé-la como estd- vel. E ai, subitamente, numa soviedade assim aparente- mente bem organizada, tumultuam-se 0% processos s0- Giais, ¢ uma nova forma de organizagao social emerge 50 bre as ruinas das formas soviais pastadas, Essas novas for- mas podem se tornar temporariamente estéveis mas, @ seguir, novamente se desintegrarao e se reorganizardo. A gerapho rats nova que desabrocha — que pode ter ser- vido de instramento para ocasionar a mudanga social con: creta — constrain nowas utopias sociais e procurard viver de conformidade com elas. Esse empenho otimista pode ser efémero — em pouco tempo se descobrivd que ersas utopias nda podema ser integralmente implementadas. A total complexidade da vida humana é plena de incerte- as, acontecimentos inesperados, felicidade e sofrimen- to. E em meio a toda essa realidade pitoresca, mas am- plamente surrealista, 03 individuos inventam coisas di- ferentes, envolvem-se em disputas constantemente 10- ‘vas € por veres acaloradas, matam-se uns aos outros emt nome da "'verdade”’ ou da ‘patria’, reconciliam-se bem como desenvolvem novas potencialidades, ¢ perdem an- tigas habilidades. Nosco mundo real estd em permanen- te movimento ¢ transformagao. Notével, em si ¢ por si & que nds, como seres umanos comuns, sejarros capa zs de suporté-lo — pelo menos na maior parte do termpo. ‘Essa natureza fluida dos mundos social e psicolégico ria uma neceisidade premente de que todas as créncias sociais venbam a orientar-se para o estudo de processos de desenvolvimento — de pesioas (na psicologia), de ins- tibaigées sociais (na sociologia) e de culturas era geral (na antropologia cultural). Detmecessirio acrescentar que as ciénoias socials apenas comegam a compreender as com plexidades do desenvolvimento em nossos tempos. Dat ‘que o voltarse para as idéias de Vygotsky fundamenta- se na necessidade concrete de descobrir como concettuar ‘0 desenvolvimento. Vygotsky foi une dos poucos estudio- sos da primeira metade deste século que insistiv, de ma- neira persstente e firme, em assumir uma perpectiva cen- trada no derenvolvimento a respeito de todo tema que abordou. Essa énfase exté bem transmitida neste livro. En ver de um discurso avaliativo sobre a obra de um “'gé- nio'' (como repetidas vexes seus discipulos na Rétssia ¢ nos Estados Unidos tim-se referido a Vygotsky), a auto- 1a apresenta as idéias de Vygotsky suas aphcagbes de modo conciso, acessivel ao grande pithlica e com ilustra- goes pertinentes. A logica da abordagem de Vygotsky, sobre a génese da psyché humana em seu contexto histérico-caltural, centrada no desenvolvimento, emer- ge passo a passo dc paginas deste livro, e constitui um verdadeiro tributo 2 obra global de um homem cuja fas- cinagao por Hamlet era mais do que simples tépico para andlise literdria. O génio de Vygotsky pode ter estado em sua perseveranga na tarefa de resolver o problema do de- semvolvimento — ainda Jonge de estar resolvido neste nos- so final de século, mas que precisa ser resolvido, Para is- 50, este livro oferece rico material para ulterior reflexito ¢ oxala leve muitos leitores a oferecer novas soluries a esse momentoso problema. Tradugao de Lilio Lourengo de Oliveira 8 Exemplos de cartazes soviéticos sobre eventos eulturais da dpoca de Vygotsky. CRONOLOGIA 1896 Nasce Lev Semenovich Vygotsky, em 17 de novem- bro, na cidade de Orsha, em Bielarus. 1905 Revolucio popular contra o czar. Acentua-se a eri- se social na Riissia. 1911 Ingressa pela primeira vex numa instituigdo esco- Jar, apas anos de instrucho com tutores particulares. 1913 Forma-se no curso secundério, Ingressa na Universidade de Moscow, no curso de Direito. 1914 Passa a fregiientar aulas de bisténia e de filosofta na Universidade Popular de Shanyavskit. 1916 Escreve “A sragédia de Hanlet, principe da Di- wamarca’’, como trabalbo de fim de curso na Uni- versidade. 1917 Forma-se em Direito na Universidade de Moscow. Revolugéo Russa. E criado o Conselbo dos Comis- sitios do Pavo, presidido por Lénin. 1917-1923 Vive em Gomel, lecionando literatura e psi- cologea. 1918 Abre, com o amigo Semyon Dobkin e 0 prireo Da- vid Vygotsky, uma peguena editora de obras de li- teratura (fecbada pouco tempo depois, devido a uma crise de fornecimento de papel na Riissia). 1920 Toma conhecimento de que esté tuberculoso. 1922 Centralizagéo do poder. Stalin é nomeado secretério-geral do Partido Comunista. Constitui- eho da URSS. 1924 Fax uma conferéncia no Il Congreso de Psiconen- rologia de Leningrado, marco importante em sua histéria profissional, Muda-se para Moscou, a con- vite de Kornilov, para trabalbar no Instituto de Psi- cologia de Moscou. Morre Lénin. Stalin assume o poder. 1925. Escreve o ltvro Psicologia da ate (publicado na Riés- sia em 1965). Viaja para o exterior pela primeira e iimica vex em sud vida. Comeca a organizar o Laboratério de Psicologia para Crtangas Deficientes (transformado, em 1929, no Instituto de Estudos das Deficiéncias e, apés sua ‘morte, no Instituto Cientifico de Pesquisa sobre De- Siciéncias da Academia de Ciéncias Pedagégicas). 1925-1939 Pertodo em que, antes de 1962, sto publica dos trabalhos seus (sete artigos diversos) em publi- cagces do mundo ocidental. 1928 Proceso de modernixagio da URSS: industrializa- a0, reforma agriria, alfabetizacao. 1929 Inicio da ditedura stalinista, 1934 Morre de tuberculose, em 11 de junbo, aos 37 anos fe Publicagdo do livro Pensamento ¢ linguagem na URSS. 1936-1937 Period mais violento do regime staliniste, 1936-1956 As obras de Vygotsky deixams de ser publica- as na URS, por motivos politicos. 10 1953 Morre Stélin; Kruchev sobe ao poder. 1956 Krucheo dé inicio ao processo de “‘desestaliniza- a0”" da URSS. 1962 Publicagao do livro Pensamento e linguagem nor Estados Unidos. 1982-1984 Bdiciio das obras completas de Vygotsky na URS. 1984 Pubticacio da coletinea A formacio social da mente no Brasil. 1987 Publicagao de Pensamento ¢ linguagem no Brasil, 1988 Publicagdo de ‘Aprendizagem ¢ desenvolvimen- Jo intelectual na idade escolar’ na coletinea Lin- guagem, desenvolvimento aprendizagem no Brasil il Introducao i 4 | i i i i | juando vemos, hoje, a crescente penetragio das idéias ide Vygorsky nas reas da psicologia ¢ da educacio ¢, plincipalmente, quando tomamos contato com o con- tedido de seu pensamento, podemos imagina-lo bastan- imo de nés, no tempo € no espaco. Esse teérico soviético, entretanto, nasceu ainda no século passado, ren- do vivido apenas até a década de 30 de nosso século, au- ma situagio social, politica e cientifica completamente diferente da noss O momento histérico vivido por Vygotsky, na Réssia pés-Revolusio, contribuiu para definir a tarcfa intclec- tual a que se dedicou, juntamente com seus colaborado- tes: a entativa de reunir, num mesmo modelo explicati- vo, tanto os mecanismos cerebrais subjacentes ao funcio- namento psicolégico, como o desenvolvimento do indi- viduo ¢ da espécie humana, a0 longo de um processo sécto-histético. Esse obj teérico implica uma abor- dagem qualitativa, interdisciplinar ¢ orientada para 0s pro- cessos de desenvolvimento do set humano. 0 objetivo te6tico ¢ a abordagem utilizada sao de extrema contem- poraneidade, o que provavelmente explica o recente ¢ in- tenso interesse por seu trabalho, ndo apenas no Brasil, mas em muitos outros paises. ‘Vivernos hoje um momento em que as ciéncias em ge- tal, ¢ as ciéncias humanas em particular, tendem a bus- ‘ar freas de intetsecgao, formas de integrar o conhecimen- to acumulado, de modo a alcangar uma compreensio mais completa de seus objeras. A interdisciplinaridade e a abor- dagem qualitativa tém, pois, forte apelo para o pensa- mento contemporinco. Do mesmo modo, a idéia do ser humano como imer- so num contexto hist6rico ¢ énfase em seus processos de transformacio também sio proposigées muito impor- tantes no ideario contemporanco. Embora, atualmente, o trabalho de Vygotsky seja bas- tante divulgado e valotizado no ocidente, permaneceu quase que complecamente ignorado até 1962, quando seu livto Pensamento e linguagem foi publicado pela primeira vex nos Estados Unidos. Ainda que alguns artigos seus ji tivessem sido publicados antetiormente em inglés, suas idéias nfo tinham sido apreciadas ¢ difundidas fora da Unio Soviética. Isso deveu-se, em parte, a situagao de isolamento cm que a Unio Soviética se colocava em relacio aos centros de producéo cientifica europeus ¢ norte-americanos, por meio de batteiras politicas, culeu- rais e lingiisticas. Deveu-se também a mecanismos in- 14 © fier A formacio social da mente, editada nos Estados Uni- dos em 1978 por une grupo de (perguisadores americans, inclii ‘uma listagem completa das obras de Vygotsky publicadas na Uniao Soviétca ¢ em pates de lingua in- lesa até essa data. Sobre o irabalbo de Vygotsky, cons excegdo de algunas feses que 0 stilizam como referencia cen ‘nal, existe no Brasil apenas uma coletines, receniemente publica das por um grupo de pesguisado- 12s da Universidade de Campinas, ©. temos da sociedade soviética: entre 1936 ¢ 1956, aproxi- madamente, a publicagao das obras de Vygotsky, junta- mente com a de muitos outros autores, foi suspensa pela censuta violenta do regime stalinista. ‘Atualmente, a publicagio de textos esctitos por Vygotsky ¢ seus colaboradotes, bem como de textos so- bre seu trabalho, esta em tépida expansio nos paises oci- dentais. No Brasil, onde as tradugées tém sido feitas a partir das edigdes norte-americanas, foram publicados ape- nas dois livras de Vygotsky: A formagdo social da mente ¢ Pensamento e linguagem. Ha também um artigo seu, denominado “‘Aprendizagem c desenvolvimento intelec- tual na idade escolar", na coletinea Linguagem, desen- volvimento ¢ aprendizagem. ‘A discussio do pensamento de Vygotsky na Srea da educagio ¢ da psicologia nos remete a uma feflexo so- bre as relagdes entre ele e Piaget. No Brasil, Piaget tem sido a teferéncia tedrica basica nessa dtea ¢ a penettagao das idéias de Vygotsky sugere, inevitavelmente, esse con- fronto. Esses dois teéricos, coincidentemente, nasceram ‘no mesmo ano (1896), mas Vygotsky teve uma vida muito mais curta: Piaget falecea quase cingiienta anos depois de Vygotsky. Vygotsky chegou a ler ¢ discutir, em seus textos, os dois primeitos trabalhos de Piaget (A /ingua- gem ¢ 0 pensamento da crianga, de 1923, ¢ O raciocinio na crianga, de 1924). Piaget, por outto lado, s6 foi to- mar conhecimento da obra de Vygotsky aproxirmadamente 25 anos depois de sua morte, tendo escrito 0 texto ““Co- mentirios sobre as observagées ctiticas de Vygotsky"’, co- mo apéndice & edigdo norte-americana de 1962 do livto Pensamento ¢ linguagern, de Vygotsky. Ao longo dos ca- pitulos que se seguem, comentaremos algumas conver- géncias e divetgéncias no pensamento desses autores, con- forme sua celacdo com os temas especificos que estiver- mos abordando. i Histéria pessoal e hist6ria intelectual L ev Semenovich Vygotsky nascen na cidade de Orsha, prdxima a Mensk, capital de Bielarus, pais da hoje extinta Unido Soviética, em 17 de novembro de 1896. Vive, com sua familia, grande parte de sua vida em Gomel, na mesma regito de Bielarus. Era membro de ‘uma familia judia, sendo o segundo de oito irmaos. Seu pai era chefe de departamento em um banco em Gomel € representante de uma companhia de seguros. Sua mae fra professora formada, mas nio exetcia a profissio. Sua familia tinha uma sicuacio econdmica bastante conforivel, moravam num amplo apartamento ¢ podiam oferecer oportunidades educacionais de alta qualidade aos 18 Em alguns textos a data de naici- mento de Vygotsky & dada como endo dia 5711/1896, Essa diver- gincia se deve 20 foto de que Bouve uma mudanga de odlenda- rio ma ex-Uniéo Soviétice em 1918, Pelo antigo caleniiri a da- 4a de sen nascimento seria 5 de novembro pelo atwal 17 de no- vembro. Semyon Dobin ere arr de in- fancia de Vygotsky de ua fami. ia, Algumist reminiscéncias suas redo registradas no livre One is ot Bom a Personality: peoiles of Soviet Education Psychotogists (Nao s¢ asce uma personalida- de: pettis de psicélogos da edu- ‘agd0 soviéticos), (11), prosavel- mante a principal fonte de infor- masdes disponieel sobre a sida pessoal de Vygotsky. Intelectuas da epoca de Vagostiey 0 chamado curio de Dircito na Universidade de Motcou, na épo- a, era um curso ample na rea de citncias bumanas, incluindo o gue atualmente comespondena a Direivo¢ Literatura, Sau trabalho de fire de curso na wniversidade foi una andlise do Harolet, de ‘Shakespeare. Bisa anélise fot mais tarde incorporada, sob forma mo- ificads, teu Haro Psychology of Att (Psicologia da are) (1), esenta em 1925 filhos. Segundo Semyon Dobkin, a familia de Vygotsky era “das mais cultas da cidade"’. A casa tinha uma at- mosfera intelectualizada, onde pais ¢ filhos debatiam sis- tematicamente sobre diversos assuntos. A biblioteca do ai estava sempre a disposicdo dos filhos ¢ de seus ami- 80s pata o estudo individual e as reunides de grupos. Crescendo nese ambiente de grande estimulacio in- telectual, desde cedo Vygotsky interessou-se pelo estudo € pela teflexio sobre vatias éreas do conhecimento. Or- ganizava grupos de estudos com seus amigos, usava muito a biblioteca pablica e aptendeu diversas linguas, inclusi- ve 0 esperanto. Gostava muito, também, de ler obtas de literatura, poesia e teatto, atividade & qual dedicou-se du- rante toda a vida. Vladimir Meiakorsks Sergei Eisenstein (1893-1930) (1898-1948) A maiot parte de sua educacao formal nao foi cealiza- da na escola, mas sim em casa, pot meio de tutores par- ticulares, Apenas aos 15 anos € que ingressou num colé- gio privado, onde freqitentou os dois iiltimos anos do cur- so secundério, formando-se em 1913. Ingressou, entio, na Universidade de Moscou, fazendo o curso de Direito ¢ formando-se em 1917. Ao mesmo tempo em que se- guia sua carteita universitaria principal, freqientou cur- sos de hise6ria c filosofia na Universidade Popular de Shanyavskii. Embora niio tenha recebido nenhum titulo acadérmico dessa universidade, af aprofundou seus estu- dos em psicologia, filosofia e literatura, o que foi de gran- de valia em sua vida profissional posterior. Anos mais tar- de, devido a seu interesse em trabathar com problemas ‘neurolégicos como forma de compreender o funcionamen- to psicolégico do homem, estudou também medicina, parte em Moscou e parte em Kharkov. 19 Do mesmo modo que sua formagio académica, sua ati- vidade profissional foi muito diversificada. Trabalhou em diferentes localidades dentro da ex-Uniao Soviética, tendo safdo do pais uma Gnica vez, em 1925, para uma viagem de trabatho a ouctos paises da Europa, Foi professor e pes- quisador nas Areas de psicologia, pedagogia, filosofia, li- teratura, deficiéncia fisica e mental, atuando em diver- sas instituigées de ensino e pesquisa, 20 mesmo tempo em que lia, escrevia ¢ dava conferéncias Vygotsky trabalhou, também, na étea chamada “pe- dologia’” (ciéncia da ctianga, que integra os aspectos bio~ ligicos, psicol6gicos ¢ anteopol6gicos). Ele considerava essa disciplina como sendo a ciéncia basica do desenvolvimento humano, uma sintese das diferentes disciplinas que e5- tudam a crianca, Na verdade, ‘os aspectos da psicologia de Vygotsky que nés, nos anos 80, lentamente aprende- mos a apreciat — énfase consistente nos processos de de- senvolvimento, na emergéncia de novas (superiores) for- mas de organizacio dos processos psicolégicos € tecusa em reduzir a dinamica complexidade psicolégica a seus elementos constitutives — eram considerados, por Vygorsky, como o centro da pedologia enquanto ciéacia mais geral que a psicologia’’. Criou um laboratério de psicologia na escola de for- macio de professores de Gomel e participou da criacl0 do Instituto de Deficiéncias, em Moscou. Paralelamente a sua vida profissional propriamente dita, Vygotsky man- tinha intensa vida intelectual, fazendo parte de varios gru- pos de estudos, fundando uma edicora ¢ uma revista li- tetitia, coordenando o setor de teatto do Departamento de Fducacio de Gomel € editando a seco de teatro do jornal local, Ao longo de seus textos Vygotsky recorre, freqiientemente, a sicuagbes extraidas de obras litetitias. O capitulo 7 do live Pensamento e lingsuagemt, pot exem- plo, tem como epigrafe um verso do poeta Osip Man- delshtam: “‘Esqueci a palavra que precendia dizer ¢ meu pensamento, privado de sua substincia, volta 20 reine das sombras”” Vygotsky casou-se em 1924 com Roza Smekhova, com quem teve duas filhas. Desde 1920 conviveu com a tu- berculose, doenga que o levaria 4 morte em 1934, Sua producio esctita foi vastissima para uma vida to curta e, naturalmente, seu inreresse diversificado ¢ sua formacao intecdisciplinar definiram a natureza dessa pro- ducdo. Escreveu aproximadamente 200 trabalhos cienti- ficos, cujos temas vio desde a neuropsicologia até a criti- 20 ¢ VAN DER VEER ¢ VALSINER, (28), Foren gaat oe ees {pric neem sence em ‘Trecho do poema Tristi, de Osip Mandelshiane, cont 0 versos ¢i- tados por Vygotsky. Seas dois fnicos haros publicados ‘no Brasil nao foram exeriios como Hivros: 80 0 residiada do agrups mento de véris textos, excritos em diferentes momentos Extaé uma das diferengas impor tantes entre 2 produto de Vgorsky ¢ a de Pisget: Piaget, emt sua vial quase cingitenta anos ‘mais longa, constrain ura tears hastonte aticulada e nos detson informarbes precixas sobre seus srabathos de investigagao. No Brac, antes mesmes de tor sew nome assoviado a0 de Vygority, Luria i era um autor bastante co- nbecido, particularmente nas teas de newrologia e fonoauae Jogi, core diversos teabathos pe blicados em portugus, Isso se de. ve a sua expressiva produgio em nearpitologi, especutnente em distirbios ds lingnagem, ¢ também ao fata de que, tendo vi vido até 1997, teve sua obra bas- tante difundida no ovcidente. Leonties, por saa ve2, teve wma rodusio escriza bemn menor que 2 Lurie e menor repercussio no Yrasil © em outros paises do cocidenie. LURIA, p. 36 (14} VAN DER VEER ¢ VALSINER, (28). ca litecétia, passando por deficiéncia, linguagem, psico- logia, educagdo ¢ questoes teéricas ¢ metodolégicas rela- tivas as eigneias humanas. Sua morte prematura (37 anos), juntamente com 0 enorme volume de sua producao intelectual, marcou, de certa forma, 0 estilo de seus textos esctitos: so textos den- 505, cheios de idéias, nua mistuta de reflexdes filoséficas, imagens literarias, proposigdes gerais ¢ dados de pesqui- sa que exemplificam essas proposigdes gerais. Também devido a sua enfermidade, muitos dos textos de Vygotsky ‘no foram originalmente produzidos na forma escrita; fo- ram ctiados oralmente ¢ ditados a outza pessoa que os copiava, ou anotados taquigeaficamente durante suas aulas ou conferéncias. Esse fato também tem clara influéncia no estilo dos textos de Vygotsky. Sua produgio esctita ndo chega a constituir um siste- ma explicativo completo, atticuiado, do qual pudésse- mos extrait uma “*teoria vygotskiana’” bem estruturada. Nao constituida, tampouco, de relatos detalhados dos scus trabalhos de investigagio cientifica, nos quais o lei- tor pudesse obter informacses precisas sobre scus proce- dimentos ¢ resultados de pesquisa. Parecem ser, justa- mente, textos “jovens’’, escritos com entusiasmo e pres- sa, tepletos de idéias fecundas que precisariam ser cana- lizadas num programa de trabalho a longo prazo para que pudessem ser explorados em toda a sua tiqueza. Esse programa de trabalho existiu, de fato, ¢ as idéias de Vygoisky nao se limitaram a uma elaboracio indivi- dual. Ao contrétio, multiplicaram-se e desenvolveram- se na obra de seus colaboradores, dos quais os mais co- nhecidos entre nés sao Alexander Romanovich Luria ¢ Ale- xei Nikolaievich Leontiev. A atuagio intelectual de Vygotsky parece ter sido muito marcante para as pessoas a seu redor. Ele cra um orador brilhante, que encancava a platéia que o ouvia. Entre seus alunos ¢ colegas havia muita admiracdo pelas suas idéias, que foram consideradas pontos de partida para elabora- ches tedricas ¢ projetos de pesquisa posteriores, Luria afir- mava, repetidas vezes, que Vygorsky foi um individuo muito especial (“"am genio”), que the ajudou a alargar ¢ aprofundar a compreensio de-sua tarefa enquanto pes- quisador: “No final dos anos 20 o futuro percurso de mi- ‘nha carteira jd estava estabelecido. Eu dedicatia meus anos subseqitentes 20 desenvolvimento dos varios aspectos do sistema psicol6gico de Vygotsky’’. As palavras de um alu. no de Vygotsky também evidenciam essa admiracao: “E 21 rr dificil determinar o que exatamente nos atrafa nas expo- sigdes de Lev Semenovich. Além de seu conteiido pro- fundo ¢ interessante, nds ficdvamos fascinados pela sua sinceridade genuina, pelo continuo esforco em progre- dir no seu raciocinio, com 0 qual cativava seus ouvintes, {e] pela bela expressdo literatia de seu pensamento. O proprio som de sua suave voz de baritono, flexivel e rica ‘em entonacdes, produzia uma espécie de encanto estéti- co. A gente queria muito entrar no efeito hipnotizador da exposicéo dele ¢ era dificil abster-se do sentimento in- yoluntatio de frustracio quando ela acabava’’. Vygotsky, Luria ¢ Leontiev faziam parte de um grupo de jovens intelectuais da Russia pés-Revolucio, que tra- balhava num clima de grande idealismo ¢ efervescéncia intelectual. Baseados na crenca da emergéncia de uma nova sociedade, seu objetivo mais amplo era a busca do “novo, de uma ligacio entre a producao cientifica ¢ 0 regime social recém-implantado. Mais especificamente, buscavam a construgdo de uma ‘nova psicologia"", que consistisse numa sintese entre duas fortes tendéncias pre- sentes na psicologia do inicio do século. De um lado ha- via a psicologia como ciéncia natural, que procurava cexplicar processos elementares sensoriais ¢ reflexos, toman- do o homem basicamente como corpo. Essa tendéncia re- luciona-se com a psicologia experimental, que procura aproximar seus métodos daqueles das outras ciéncias ex- perimentais (fisica, quimica, etc.), preocupando-se com 2 quantificagdo de fendmenos observaveis e com a sub- divisio dos processos complexos em partes menores, mais facilmente analisaveis. De outro lado havia a psicologia como ciéncia mental, que descrevia as propriedades dos processos psicolégicos superiores, tomando o homem co- 22 Processos poicalégicos superiores do agueles que caracteram 0 funcionamento pricolégico tips ‘mente bumano: apies conscien- semente controladas, atengao 70. buntiris, memonzagio ativa, pen- samento abstrato, comportamen a intencional, Os processgs pst coltigicas supertorés se diferen- iam de mecanivmos mats ele. mentares, como reflexos, reaps aubomitcas,associagber simples Essa diferenciagdo, exrencial para a comprecniia da functonamen- to humana, foca privlegiado da preocupayso de Vygotsky, serd ‘shrofindade no capitulo 2. Sintese, para Vagotiky > Vygotsky fex uma conferéncia no Hi Congresso de Priconeurologia emn Laningvado (atual Sao Peters. argo), ais 1924, sobre as rela. {fies entre os reflexos condiciona. os € 0 comportamento conscien te do homem, onde apresenta ma proposta de sintese entre brocewos elementares e conscitn. ia, Foi esta proposts que levow Komiloo a convidi-lo para traba Aber no Instituto de Piicologis de Moscow a iniciar, assim, sua par- ‘isipagbo no projeto de constrw lo ds “nova psicologia". K.N, Kornilov (1879-1957). ‘mo mente, consciéncia, espirito, Essa segunda tendén- ia coloca a psicologia como sendo mais proxima da filo- sofia ¢ das ciéncias humanas, com uma abordagem des- critiva, subjetiva e dirigida a fendmenos globais, sem prco- ‘cupacio com a anilise desses fenémenos em componen- tes mais simples Enquanto a psicologia de tipo experimental deixava de abordar as fungdes psicalégicas mais complexas do ser humano, a psicologia mentalista nao chegava a produzit desctigdes desses processos complexos em termos aceita- veis para a ciéncia. Foi justamente na tentativa de supe- rar essa ctise da psicologia que Vygotsky ¢ scus colabora- dores buscaram uma abordagem alternativa, que possi- bilitasse uma sintese entre as duas abordagens predomi- nantes naquele momento, E importante destacar qual o significado de sintese para Vygorsky, pois essa é uma idéia constantemente presen- te em suas colocagdes e € central para sua forma de com- preender os processos psicaldgicos. A sintese de dois ele- mentos ndo é a simples soma ow justaposicdo desses ele- menos, mas a emergéncia de algo novo, anteriormente inexistente, Esse componente novo no estava presente nos clementes inicizis: foi tornado possivel pela intera- Glo entre esses clementos, num proceso de transforma- ¢40 que gera novos fenémenos. Assim, a abordagem que busca uma sintese para a psicologia integra, numa mes- ma perspectiva, 0 homem enquanto corpo € mente, en- quanto ser biolégico ¢ ser social, enquanto membro da espécic humana € participante de um processo histético. Essa nova abordagem para a psicologia fica explicita em trés idéias centrais que podemos considerar como sen- do os “pilates” basicos do pensamento de Vygotsky * as fungdes psicolégicas tém um suporte biolégico pois sio produtos da atividade cetebral: * 0 funcionamento psicol6gico fundamenta-se nas rela- ges sociais entre o individuo e 0 mundo exterior, as quais desenvolvem-se num processo histético; © arelacdo homem / mundo € uma relagio mediada por sistemas simb6licos. Essas idéias serdo brevemente delineadas a seguir, ¢ dis- cutidas em maior detalhe ao longo dos préximos capitulos, A postulagio de que 0 cérebro, como 0 drgao mate- rial, € a base bioldgica do funcionamento psicol6gico to- ca um dos exttemos da psicologia humana: 0 homem, enquanto espécie biolégica, possui uma existéncia ma. 23 terial que define limites ¢ possibilidades para o seu de- senvolvimento. OQ cétebro, no entanto, nio é um sistema de funcées fixas ¢ imutaveis, mas um sistema aberto, de grande plasticidade, cuja esecutura e modos de fancio- namento sio moldados ao longo da historia da espécie ¢ do desenvolvimento individual. Dadas as imensas pos- sibilidades de realizacio humana, essa plasticidade é es- sencial: 0 cérebro pode servir a novas fungoes, eriadas na histria do bomem, sem que sejam necessdsias transfor- macics no érgio fisico, Bssa idéia da grande Alexibilida- de cerebral no supde um caos inicial, mas sim a presenca de uma estrutura basca estabelecida ao longo de evell, Gao da espécie, que cada um de seus membros traz con- sigo a0 nascer. ‘A concepeao de uma base material em desenvolvimento ao longo da vida do individuo e da espécie estd direta- mente ligada 20 segundo pressuposto do trabalho de Vygotsky, que toca 0 outro extremo do funcionamento humano: 0 homem transforma-se de biolégico em sécio- hist6rico, aum proceso em que a cultura € parte essen- cial da constituigio da navureza humana. No podemos pensar 0 desenvolvimento psicolégico como um proces- so absteato, descontextualizado, universal: 0 funciona. mento psicolégico, patticulatmente no que se tefere is funcées psicolgicas superiores, tipicamente humanas, est baseado fortemente nos modos culturalmente construi- dos de ordenat o real. Um conceito central para compreendermos o funda- mento s6cio-histérico do funcionamento psicoldgico € 0 conceito de mediacao, que nos remete ao terceiro pres- suposto vygotskiano: a retagdo do homem com o mundo niio € uma telacio direta, mas uma relagio mediada, sen- do os sistemas simbolicos os elementos intermediscios en- tre o sujeito eo mundo, O capitulo 2, a seguir, € inte mente dedicado a complexa questo da mediacio sim- Délica, 24 Plasticidade é 2 qualidade dagui- fo que & " plistica", isto é, que pode se7 moldado pela apa0 de elementos externos. A mediacao simbolica Ve, dedicou-se, principalmente, a0 estudo da- {quilo que chamamos de fungées psicolégicas supe- riores ou processos mentais superiotes. Isto é, interessou-se por compreender os mecanismos psicolégicos mais sofisti- cados, mais complexos, que sao tipicos do ser humano € que envolvem o controle consciente do comportamen- to, a acdo intencional e a liberdade do individuo em re- Jago As caracteristicas do momento e do espaco presentes. set humano tem a possibilidade de pensas em ob- jetos ausentes, imaginar eventos nunca vividos, planejar ages a serem realizadas em momentos posteriores. Esse tipo de atividade psicolégica é considetada ‘‘superior"” na medida em que se diferencia de mecanismas mais ele- mentares tais como ages reflexas (a sucgio do seio ma- temo pelo bebé, por exemple), reages automatizadas (0 movimento da cabesa na direcdo de um som forte epen- tino, por exemplo) ou processos de associagio simples en- tre eventos (0 ato de evitar 0 contato da mao com a cha- ma de uma vela, por exemplo). Um exemplo interessante ilustra a diferenca entre pro- cessos elementares € processos superiores: € possivel en- sinar um animal a acender a luz num quarto escuro. Mas © animal no setia capaz de, voluatariamente, deixar de tealizar 0 gesto aprendido porque vé uma pessoa dor- mindo ne quarto. Esse comportamento de tomada de de- cisdo a partir de uma informacao nova € um comporta~ mento superior, tipicamente humano. © mais importante desse tipo de comportamento é o seu carater voluntario, intencional. ‘Um conceito central para a compreensio das concep- Bes vygotskianas sobre o funcionamento psicolégico € 0 conceita de mediaga0. Mediagao, em tetmos genéricos, €0 processo de intervencZo de um elemento intermedi tio numa relagio; a relacao deixa, entao, de ser direta € passa a ser mediada por esse elemento. Quando um in- dividuo aproxima sua mao da chama de uma vela ea re- tira rapidamente ao sentir dor, esta estabclecida uma re~ lado direta entre o calor da chama ¢ a retirada da mao. Se, no entanto, 0 individuo retirar a mao quando ape- ‘nas sentit o calor ¢ lembrar-se da dor sentida em outra ocasiZo, a relagdo entre a chama da vela ¢ a retirada da mio estard mediada pela lembranca da experiéncia an- terior. Se, em outro caso, 0 individuo retirar a mio quan- do alguém Ihe disser que pode se queimar, a relacio es- tari mediada pela intervengio dessa outra pessoa “[...] © processo simples estimulo-tesposta € substi- 26 Esse modo de funcionamento psi- colégico,iipica da espécie bum. tna, nao esté presente 20 indiof uo desde 0 ieu naicimente. Co ‘mo veremos nos capitules que se seguem, as atividades psicolbgt cat mais sofiticadas ste fresos de um proceiso de desencolrimen- 10 que enrvolve a interazio do oF- ‘ganismo individual com 0 meio fisico @ social em que vive. A ‘aquisicto da hinguagen definiré sem salto qualiterioa no desensol- sinento do ser bamano << VYGOTSRY, p. 45, (2). Mae estimulo resposta clo intermediério ou clemento medindor tuido por um ato complexo, mediado, que representa- mos da seguinte forma: Se Ne Nesse novo processo o impulso direto para reagir é inibi- do, ¢ € incorporado um estimulo auxiliar que facilita a complementagao da operacao por meios indiretos.’” No exemplo da vela, o estimulo (S) setia 0 calor da chama € a tesposta (R) seria a tetitada da mao. Numa telagao direta entre o individuo ¢ a vela, € necessétio que o cator provoque dor para que a mio seja retirada. A lembranca da dor (isto €, algum tipo de representago mental do feito do calor da chama) ow 0 aviso de outta pessoa so- bre o isco da queimadura setiam elementos mediado- res, intermediarios entre o estimulo ¢ a tesposta. A pre- senga de elementos mediadores introduz um elo a mais nas relagdes organismo/ meio, tornando-as mais comple- xas. Ao longo do desenvolvimento do individuo as rela- ‘goes mediadas passam a predominar sobre as relagdes diretas. ‘Vygotsky trabalha, entao, com a nocdo de que a rela- do do homem com o mundo nao ¢ uma relacao direta, mas, fundamentalmente, uma relacdo mediada. As fun- 6¢s psicol6gicas supcriores apresentam uma estratura tal que entre 0 homem e o mundo teal existem mediado- tes, ferramentas auxiliares da atividade humana. ‘Vygotsky distinguiu dois tipos de clementos media- dorcs: os instramentos ¢ os.signos. Embora exista uma analogia entre esses dois tipos de mediadores, cles tém caracteristicas bastante diferentes e merecem ser tratados separadamente. O uso de instrumentos A importancia dos instcumentos na atividade huma- na, para Vygotsky, tem clara ligagao com sua filiagdo te6- rica 20s postulados marxistas. Vygotsky busca compreen- der as caracteristicas do homem através do estudo da ori- gem e desenvolvimento da espécie humana, tomando 0 surgimento do trabalho e a formacao da sociedade hu- mana, com base no trabalho, como sendo o processo ba- 27 sico que vai marcar o homem como espécie diferencia da. Eo trabalho que, pela acao transformadora do ho- mem sobre a natureza, une homem e nacureza ¢ eria a cultura ¢ a histéria humanas. No trabatho desenvolvem- se, porum lado, a atividade colctiva e, portanto, as rela gées sociais, e, por outro lado, a ctiacio ¢ utilizagao de instcumentos. Representarao de bomen wil zando instrumento em pinture primitiva feita numa caverna. idéias marcistas que influenciaram Vygotsky Marcado pela orientagio da natureza) é 0 processo pri- predominanie na Unido So- eilegiado messss relagbes bo- wittiea pésrevolucionénis, memlmund. Vygotsky via no marerialismo —« sociedade humana é Bisténco e dialético de Marx uma totalidade ema constante Engels uma fonte importante sransformagio. E age sistema para suas priprias elabora — dinimica e coniraditiria, que pes tedricas. Alguns postal: precisa ser compreendida €0- dos Basicos de marrismo cli ‘mo processo em madanga, em mente, inconporados Por desenvoiniment, ‘ygotsky sto: © as sramsformagées quali- © 0 modo we produsao de tatinas ocortem por meio da vide material condiciona avi. chamada “‘sintere dialética” ds social, politica ¢expiritual onde, a panir de elementos do bomem. presentes numa determinada © obomem & um ser his- sttuagdo, fenGmenos novos t6rico, que se constr6i através emergem. Bisa é exatamente de suas relapses com 0 mun. 2 coricepeao de sintese usiliza do matural¢ social O proces- a por Vagotshy 20 longo de 0 de trabalho (samsformmago ‘0k sua obra Engels (1810-1895). 28 Dentre ox colaboradores de Vygotsky, Alexei Nekolaievich Heonties (1904-1979) foi quem ‘mais exploron a questio da rela (0 homem tirabalho, formusan- doa chamada "seoria da otivida- de” (rer capitulo 3). Chimpanzé usando msteumenio. ade a pen destacar que o exh do do comportamento animal aeancun musto nos ilsimos amos, produrrnds dados 40s quais Vygotsky nao chegon a ter aces 19, Bmbora consroverser, bd da dos que demmonsizare um w0 matt sofisticado de instramentos centre primatas superiores do que 0.430 suposto por Vygotsky nesta comparaezo. Q inscrumento € um elemento interposto entre o tra- bathador ¢ 0 objeto de seu trabalho, ampliando as possi- bilidades de transformacio da natureza. O machado, por exemplo, corta mais e methor que a mio humana; a va- silha permite armazenamento de gua. O instrumento € feito ou buscado especialmente para um certo objeti- vo. Ele cartega consigo, portanto, a funcio para a qual foi criado ¢ 0 modo de utilizacko desenvolvido durante a hist6ria do trabalho coletivo. E, pois. um objeto social ¢ mediador da relacéo entre o individuo ¢ 0 mundo. £ importante mencionar que animais também utili- zamn insitumentos de forma rudimentar. S40 bastante co- nhecidos os experimentos com chimpanzés que usam vatas para alcancar alimentos distantes ou sobem em caixotes para atingir frutas penduradas no teto. Embora esses ins- tramencos também tenham uma funcio mediadora en- tre individuo ¢ objero, Vygotsky os considera como sen- do de natureza diferente da dos instrumentos humanos. Os animais, diferencemente do homem, nao produzem, deliberadamente, instrumentos com objetivos especifi- cos, no guardam os instrumentos para uso futuro, no preservam sua funcio como conquista a ser transmirida a. ovtros membros do grupo social. Sao capazes de trans- formar o ambiente num momento especifico, mas nao desenyolyem sua relagdo com o meio num processo histérico-culcural, como 0 homem. 29 O uso de signos “A invencdo € 0 uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicol6gico (lembrar, comparat coisas, relaar, escolher, etc.), € andloga a in- vengio e uso de insttumentes, s6 que agora no campo psicol6gico. O signo age como um instrumento da ativi- dade psicol6gica de maneica andloga 20 papel de um ins- trumento no trabalho”. Os instrumentos, porém, sio ele- mentos extemos ao individuo, voltados para fora dele: sua funcio € provocar mudangas nos objetos, controlar processos da natureza. Os signos, por sua vez, também chamados por Vygotsky de “‘instrumentos psicolégicos’”, sio ofientados para o préprio sujeito, para dentro do in= dividuo; dirigem-se a6 controle de agdes psicolégicas, seja do préprio individuo, seja de outras pessoas. Sao ferra- mentas que aurxiliam nos processos psicoligicos ¢ nio nas ‘agdes concretas, como os instrumentos. Ao longo de sua histéria, o homem tem utilizado sig- ‘nos como instrumentos psicologicos em diversas situates, conforme vetemos a seguir. Na sua forma mais elemen- tar o signo € uma marca externa, que auxilia 0 homem em tarefas que exigem meméria ou atengio. Assim, por exemplo, a utilizagdo de varetas ou pedras para registro € controle da conzagem de cabegas de gado ou a separa- do de sacos de cereais em pilhas diferentes que identifi- am seus proprietirios sio formas de recorrer a signos que ampliam a capacidade do homem em sua ago no mun- do. Assim como 0 machado, instrumento de tabalho, corta melhor que a mao humana, as varetas usadas na contagem do gado petmitem que o ser humano armaze- ne informagbes sobte quantidades muito superiores as que ele poderia guardar na meméria. Isto €, as varetas repre- sentam 2 quanudade de cabecas de gado, 2 qual pode sef recupetada em momentos postériores. £ neste senti- do que as varetas s40 signos: sao interpretaveis como re- presentacfo da realidade e podem teferir-se a elementos ausentes do espaco e do tempo presentes. A meméria me- diada pot signos é, pois, mais poderosa que a meméria io mediada. Sao intimeras as formas de utilizar signos como ins- teamentos que auxiliam no desempenho de atividades psicol6gicas, Fazer um lista de compras por esctito, uti- lizar um mapa para encontrar determinado local, fazet um diagrama para otientar a construgio de um objeto, 30 <1 VYGOTSKY, p. 59-60, (2), Signos podem ser definidos como elementos que representa o1 expressam outros objetos, even 10s, sitwagoes. A poleera mesa, porexemplo, é.um signo que re- (presenta objeto mesa; 0 simbalo 3 & ume sigmo rare @ quantidade tres, o desenbo de wma cariola na borta de ume sanitirio E um sig ‘no ite indica “agua é 0 sanitd rio maxculino” Quipos, 165 fitas pelos incas pa- rw registrar informacaes sobre quantidades ¢ outros fatos da vi- a cotidiana, dar urn n6 num lengo para ndo esquecer um compromisso sio apenas exemplos de como constantemente recorre- mos 3 mediacao de varios tipos de signos para melhorar nossas possibilidades de armazenamento de informacbes ¢ de controle da acao psicolégica. Vygotsky ¢ seus colaboradores realizaram diversos ex- petimentos para estudar 0 papel dos signos na atividade psicolégica. Um dos experimentos tinha come objetivo vetificar a telacio entre a percepgdo € a ago motora em ctiangas de quatro e cinco anos, com ¢ sem a intervenso de signos mediadores. Numa primeira fase do experimen- to havia um conjunto de figuras ¢ a cada figura corres- pondia uma tecla de um teclado. Quando uma figura era mosttada a crianga, a tecla correspondente deveria ser pres- sionada. As ctiancas tinham dificuldade de decidir rapi- damente que tecla apertar, vacilando em seus movimen- 10s, indo ¢ vindo entre as varias teclas, até escolher a que deveria ser pressionada. Numa segunda fase do experimento os pesquisadores, introduziram marcas idenrificadoras nas teclas, que au- xiliavam sua correspondéncia com as figuras (por exem- plo, a figura de um trené para lembrar cavalo, a figura de uma faca para lembrar pdo). A introducio dessas mar- cas modificou radicalmente o desempenho das ctiancas. Em vez de vacilar entre as teclas, fazendo movimentos desordenados, as ctiancas passaram a focalizar sua aten- io nas marcas, € a selecionar a tecla apropriada a partir da relagio estabelecida entre a figura mostrada € o signo que a representava. A relagio, antes direta, entre a per- cepeio da figura ¢ a escolha da tecla, passou a ser media- da pelas marcas que representavam as varias figuras. 31 Atividade direta petcepcao da figura Atividade mediada petcepcio da figura marcas fas teclas escolha da tecta escolha da tecla Esse processo de mediaco possibilitou um comporramen- to mais controlado, uma agéo motora dominada por uma escolha prévia, A aco psicoldgica tornou-se mais sofisti- cada, menos impulsiva Um outro experimento, conduzido por Leontiew, vi- sava fornecer elementos para a compreensio do papel dos signos mediadores na atencio voluntaria ¢ na meméria. Leontiey utilizou um jogo infantil tradicional na Europa como base para estrururar a situacdo experimental. Nes- se jogo uma pessoa faz perguntas a outra, que deve res- ‘ponder sem usar determinadas ‘‘patavras proibidas’”. No caso do experimento de Leontiev, as ctiancas devetiam tesponder a diversas questdes sobte cores, pot exemplo: “Qual a cor de um tomate?”’, “Qual a cor da sua blu- sa?"', sem usar o nome de duas cores definidas no expe- timento como ‘‘proibidas” (verde e amarelo, por exemplo), Na primeira fase do experimento o pesquisador for- mulava as perguntas oralmente, ¢ a crianca simplesmen- te as respondia, como no jogo original. Sua resposta era considerada errada se falasse o nome das cores proibidas. Numa segunda fase, a mesma brincadeira de pergunta- resposta eta feita, mas a crianca tecebia cartes coloridos que podia utilizar, se quisesse, como auxiliares no jogo. Algumas criangas passaram, entao, a utilizar os cartes come suportes externos para sua atencdo e memoria: se- patavam os cartées com as cores proibidas ¢, antes de res- ponder as petguntas, olhavam para os cartes, como se estivessem “consultando"” uma fonte de informacio. As ctiancas que utilizaram os cartées como matcas ex- ternas pata a regulacdo de sua atividade psicolégica co- meteram muito menos etros nessa segunda fase do expe- rimento do que na primeira fase, sem os cattdes. Nova- mente, aqui, a atividade psicol6gica foi beneficiada pela utilizacdo de signos como '‘instrumentos psicolégicos””. 32 Ese jogo tambim & comrecido no Brasil tendo as“ palasras protbe es" sim, ao ¢ porque. Isto é, 0 uso de mediadores aumentou a capacidade de atengio ¢ de meméria ¢, sobretudo, permitin maior con- tole voluntirio do sujeito sobre sua atividade. Esses dois experimentos mencionados so exemplos dos estudos feitos por Vygotsky ¢ seus colaboradores no sen- tido de compreender como o proceso de mediagio, por meio de instrumentos ¢ signos, é fundamental para 0 de- senvolvimento das fungSes psicolégicas superiores, dis- tinguindo o homem dos outros animais, A mediacio € ‘um processo essencial para tornar possivel atividades psi- colégicas voluatétias, intencionais, controladas pelo pré- prio individuo. £ inceressante obsetvar que os processos de mediagio também softem transformacdes a0 longo do desenvalvi mento do individuo. Justamente por constituirem fun- goes psicolégicas mais sofisticadas, os processos mediados vio ser construidos ao longo do desenvolvimento, no es- tando ainda presentes nas criancas pequenas. No experi- mento das ‘‘cores proibidas"’, que acabamos de descre- ver, por exemplo, é s6 a partir de oito anos, aproxima- damente, que 2 crianga vai comecar a beneficiar-se dos cartes, utilizando-os como auxiliares psicoldgicos. As criangas menores ado se beneficiaram dos cartSes como signos de apoio a sua atividade psicol6gica. Ao resolver esse tipo de tarefa, sua atividade era predominantemen- te direta, nfo mediada. Sem serem capazes de, delibera- damente, fazerem uso de recursos externos, como os car- tGes, essas criangas pequenas lembravam-se ou ndo das cores proibidas mas nao conseguiam controlar sua pro- ptia atividade por meio desses signos mediadores. Atividade direta pergunta——__——» resposta Atividade mediada pergunta resposta Sy oe cattées colotidos 33 Os sistemas simbélicos e 0 processo de internalizacao ‘Vimos que Vygotsky trabaiha com a funcio mediado- ra dos insirumentos ¢ dos signos na atividade humana, fazendo uma analogia entre o papel dos instruments de trabalho na ttansformacio ¢ no controle da narureza, € ‘© papel dos signos enquanto instrumentos psicolégicas, fettamentas auxiliates no controle da atividade psicol6- gica, E € justamente em sua analogia com os instrumen- tos de trabalho que os signos aparecem como marcas ex- ternas, que fornecem um suporte concreto para a aco do homem no mundo. ‘Ao longo da evolugio da espécie humana ¢ do desea- volvimento de cada individuo, ocorrem, entretanto, duas mudancas qualitativas fundamentais no uso dos signos. Por um lado, a utilizagéo de marcas externas vai se trans- formar em pfocessos internos de mediagio; esse meca- aismo €chamado, por Vygotsky, de process de intezna- lizagdo. Por outto lado, so desenvolvidos sistemas sim- bilicos, que organizam os signos em estruturas comple- xas ¢ atticuladas. Vamos discuti-los em maior devalhe a seguir, pois tanto 0 processo de internalizagio como a uti- lizagio de sistemas simbdlicos so essenciais para o de- senvolvimento dos processos mentais superiores ¢ eviden- ciam a importincia das relagdes sociais entre os indivi- duos na construcao dos processos psicoligicos. E interessante retomar, aqui, o experimento das ‘*pa- lavtas proibidas”” desenvolvido por Leontiev. Conforme mencionamos anteriormente, foi apenas a partir dos oi- to anos, aproximadamente, que as ctiancas fizeram uso dos cartes como instrumentos psicolégicos: criangas me- ores operaram de forma direta, sem o uso de signos me- diadores. Adultos que patticiparam do mesmo experimen- to tambérn nao se beneficiaram da presenga dos cartes: seu desempenho na primeira fase sas préprias palavras: “'[...] a relaco entre o pensamento ca palavea nfo € uma coisa mas um proceso, um movi- mento continuo de vaivém do pensamento para a pala- va, ¢ vice-versa, Nesse processo, a relacdo entre 0 pensa- mento a palavra passa por transformagdes que; em si mesmas, podem ser consideradas um desenvolvimento no 53 sentido funcional. O pensumento nio € simplesmente ex- presso em palavsas; € por meio delas que ele passa a exis- tis, Cada pensamento tende a relacionar alguma coisa com coutra, a estabelecer uma relago entre as coisas. Cada pen- samento se move, amaduece e se deseavolve, desempe- nha uma funcio, soluciona um problema. Esse fluxo de pensamento corre como um movimento interior através de uma série de planos. Uma anilise da interagio do pen- samento ¢ da palavca deve comegar com uma investiga- io das fases ¢ dos planos diferentes que um pensamen- to percorte antes de ser expresso em palavras. “A primeira coisa que esse estudo revela & a necessi- dade de se fazet uma distingao enue os dois planos da fala. Tanto 0 aspecto intetior da fala — semiintico e sig- nificativo — quanto o exterior — fonético —, embora formem uma verdadeira unidade, tém as suas prOprias leis de movimento. A unidade da fala € uma unidade complexa, ¢ no homogénca.”” 34 Desenvolvimento e 4 aprendizado desenvolvimento humano, 0 aptendizado ¢ as rela- des entre desenvolvimento ¢ aprendizado sio temas centrais nos trabalhos de Vygotsky. Sua preocupag2o com co desenvolvimento do homem esta presente em toda sua obra, como ficou evidente nos capitulos anteriores. ‘Vygotsky busca compreenderaorgem eo desenvolvimen- to dos processos psicol6gicos ao longo da hiscéria da es- pécie humana e da historia individual, Esse tipo de abor- dagem, que enfatiza o processo de desenvolvimento, é chamado de abordagem genécica ¢ € comum 2 outras teo- rias psicol6gicas. As teorias de Jean Piaget ¢ de Henri Wallon sto as mais completas e articuladas teorias genéticas do desenvolvi- ‘mento psicoldgico de que dispomos. Diferentemente des- ses dois estudiosos, Vygotsky nao chegou a formulat uma concepsao estruturada do desenvolvimento humano, 2 partir da qual pudéssemos interpretar o processo de cons- trucio psicolégica do nascimento até a idade aduha. Ain- da que o desenvolvimento (da espécie, dos grupos cul- turais, dos individuos) seja objeto privilegiado de suas investigagdes, Vygotsky no nos oferece uma interpreta- cio completa do percursa psicolégico do ser humano; oferece-nos, isto sim, reflexdes ¢ dados de pesquisa so- bre vérios aspectos do desenvolvimento, os quais serio discutidés a0 longo do presente capitulo Ao lado de sua preocupagdo constante com a questo do desenvolvimento, Vygotsky enfatiza, em sua obra, a importincia dos processos de aprendizado. Para ele, desde @ nascimento da crianca, 0 aptendizado esté relacionado ao desenvolvimento ¢ é “um aspecto necessiio ¢ universal do processo de desenvolvimento das fungées psicoldgi- cas culturatmente organizadas e especificamente hurma- nas”. Existe um petcurso de desenvolvimento, em patte definido pelo processo de maturagio do organismo indi vidual, pertencente a espécie humana, mas é 0 aprendi- zado que possibilica o despertar de processos internos de desenvolvimento que, nao fosse o contato do individuo com certo ambiente cultural, nao ocorreriam Podemes pensar, por exemplo, num individuo que vive ‘num grupo cultural isolado que nao dispac de um siste~ ma de escrita. Se continuar isolado aesse meio cultural que desconhece a escrita, esse individuo jamais seri alfa- betizado, Isto €, s6 0 processo de aprendizado da leicura e da escrita (desencadeado num determinado ambiente s6cio-culeural onde isso seja possivel) & que poderia des- pettar os processos de desenvolvimento intemnos do indi- 56 Avexpressbo “genitica’, neste 40, ni i refore s genes, nao ten eo relasio nenbuma com o rao de biologie que eutuds @ trans isi dos caracteres heredisiros Refere-se, ito sim, & génese — orien proce de formato a partir dessa origens, comtitesgao, ‘geragio de um ser ow de srs fe nimeno. Essa distingao & extre mamente importante: ume abor digem genéttea em psicologia nio é wma abordegem censrada ra transmissio heredissria de ca- racteristicas psicologicas, mas no brocesso de construgao dos fend ‘menos psscologicos ao lange do deservobvinrenta humane. 4 YYGOTSKY, p. 101, (2) viduo \itiam a aquisicao da leitura ¢ da esctita. Confisnando 0 mesmo Sebbcicas, podemos supor que ‘sc esse individuo, por alguma razio, deixasse seu grupo de origem e passasse a viver num ambiente letrado, po- deria ser submetido a um processo de alfabetizacio ¢ seu desenvolvimento seria alterado. O ser bumano cresce mum arn- biente social ¢ 4 interacao com outras pessoas & essencial a seu desenvolvimento. Pensando numa suposiclo mais extrema, uma crianga normal que crescesse num ambiente exclusivamente for- mado por surdos-mudos nao desenvolveria a linguagem oral, mesmo que tivesse todos os requisitos inatos neces- satios para isso. Fendmeno semelhante ocorre com 08 vé- rios casos das chamadas “‘criancas selvagens"", que sio criangas encontradas em isolamento, sem contato com ou- tros seres humanos. Mesmo em idade superior @ idade normal para a aquisiclo da linguagem, nao haviam apren- dido a falar. O desenvolvimento fica impedido de ocor- rer na falta de situacées propicias ao aprendizado Essa concepgao de que é 0 aprendizado que possibili- ta 0 despertar de processos internos do individuo liga o desenvolvimento da pessoa a sua relacio com 0 ambien- te socio-cultural em que vive ea sua situacao de organis- ‘mo que no se desenvolve plenamente sem o suporte de ‘outros individuos de sua espécie. F essa importincia que Vygotsky da a0 papel do outzo social no desenvolvimen- to dos individuos cristaliza-se na formulagao de umn con- ceito especifico demo de sua teoria, essencial para a com- preensio de suas idéias sobre as relacées entre desenvol- vimento ¢ aprendizado: o conceito de zona de desenvol- vimento proximal. O conceito de zona de desenvolvimento proximal Normalmente, quando nos refetimos ao desenvolvi- mento de uma ctianca, 0 que buscamos compreender “até onde a crianga ja chegou”’, em cermos de um per- curso que, supomos, ser percortido por ela. Assim, ob- servamos seu desempenho em diferentes tarelas e ativi- dads, como por exemplo: ela jé sabe andar? JA sabe amar- tar sapatos? Ja sabe construir uma torre com cubos de di- versos tamanhos? Quando dizemos que a ctianca ja sabe realizar determioada tazefa, referimo-nos 4 sua capaci- dade de realizé-la sozinha. Por exemplo, se observamos que a crianca “ja sabe amasrar sapatos””, estd implicita a idéia de que cla sabe amarrar sapatos sozinba, sem ne- cessitar da ajuda de outras pessoas Esse modo de avaliar o desenvolvimento de um indi- viduo esti presente nas situagdes da vida didria, quando observamos as ctiangas que nos rodeiam, ¢ também cor- responde 4 mancira mais comumente utilizada em pes- quisas sobre o desenvolvimento infantil. O pesquisador seleciona algumas tatefas que considera importantes p rao estudo do desempenho da crianga e observa que c sas cla ja € capaz de fazer. Geralmente nas pesquisas existe um cuidado especial para que se considere apenas 2s con- quistas que ja esto consolidadas na crianga, aquelas ca- pacidades ou fungGes que a crianca jé domina completa- mente e exetce de forma independente, sem ajuda de ou- tras pessoas. Numa pesquisa sobre a montagem de tor- 58 A expresso “zona de desenvol: vimento proximat’” aparece, as veces, mas tradupder para a lingua portuguese, como "zona de de ‘semvolvimento potencial”. res com cubos de diversos tamanhos, por exemplo, 0 pes- quisador no vai considerar que uma ctianca jé sabe cons- truit a torte se ela conseguir construt-la apenas porque uum colega de classe a ajudou. Para ser considerada como possuidora de certa capacidade, a crianga tem que de- monstrar que pode cumprir a tarefa scm nenhum tipo de ajuda. Vygotsky denomina essa capacidade de realizar tare- fas de forma independente de nivel de desenvolvimento teal, Para cle, o nivel de desenvolvimento real da ctianga caracteriza 0 desenvolvimento de forma retrospectiva, ou seja, tefere-se a etapas jé alcancadas, jf conquistadas pe- Ja ctianga. As fungGes psicolégicas que fazem parte do nivel de desenvolvimento real da crianca em determina- do momento de sua vida séo aquelas ja bem estabeleci- das naquele momento. So resultado de processos de de- senvolviments j4 completados, jé consolidados. Vygotsky chama a atengdo para o faro de que para com- pteender adequadamente o desenvolvimento devemos considerar nao apenas 0 nivel de desenvolvimento real da crianca, mas também seu nivel de desenvolvimento potencial, isto é, sua capacidade de desempenhar tarefas com 4 ajuda de adultos ou de companheiros mais capa- zcs. Hi tarefas que uma ctianca ndo € capaz de realizar sozinha, mas que s¢ tora capaz de realizat se alguém the der instragées, fizer uma demonstracio, fornecer pis- tas, ou der assisténcia durante o processo. No caso da cons- truco da torre de cubos, por exemplo, se um adulto der instrugées para a ctianca (‘“Vocé tem que it pondo pri- meiro 0 cubo maior de todos, depois os menores’” ou “Tem que fazet de um jeito que @ torte no caia"") ou se ela observar uma crianga mais velha construindo uma torre a seu lado, é possivel que consiga um resultado mais avangado do que aquele que conseguitia se realizasse a tarefa sozinha. Basa possibitidade de alteragao no desempenho de uma pessoa pela interferéncia de outra € fundamental na teo- tia de Vygotsky. Em primeito lugar porque representa, de fato, um momento do desenvolvimento: nao € qual- quer individuo que pode, a partie da ajuda de outro, rea- lizat qualquer tarefa. Isto €, a capacidade de se benefi- ciar de uma colaboragao de outta pessoa vai ocorrer num certo nivel de desenvolvimento, mas no antes. Uma crianga de cinco anos, pot exemplo, pode ser capaz de construir a torre de cubos sozinha; uma de trés anos nio consegue construf-la sozinha, mas pode conseguir com 59 a assisténcia de alguém; uma crianga de um ano nao con- Seguiria realizar essa carefa, nem mesmo com ajuda. Uma crianga que ainda nio sabe andar sozinha s6 vai conse- guir andar com a ajuda de um adulto que a segure pelas mios a partir de um determinado nivel de desenvolvie mento, Aos trés meses de idade, por exemplo, ela nto @ capaz de andar nem com ajuda. A idéia de nivel de desenvolvimento potencial capta, assim, um momento do desenvolvimento que caracteriza nao as etapas jé al- cancadas, j4 consolidadas, mas etapas posteriores, nas quais a interferéncia de outras pessoas afeta si vamente o resultado da agéo individual. Em segundo lugar essa idéia € fundamental na teoria de Vygotsky porque ele atribui importincia extrema a in- teracio social no processo de constragio das func&ecs psi- col6gicas humanas. O descavolvimento individual se di num ambiente social detetminado ¢ a relagio com 0 ou- tio, nas diversas esferas ¢ niveis da atividade humana, ¢ essencial para o proceso de construcéo do ser psicolégi- co individual. Ea pair da postulagio da existéncia desses dois ni- veis de desenvolvimento — real ¢ potencial — que Vygotsky define a zona de desenvolvimento proximal co- mo ‘a distdncia entre o nivel de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solucio indepen- dente de problemas, ¢ 0 nivel de desenvolvimento po- tencial, detetminado através da soluyio de problemas sob a otientagéo de um adulto ou em colaboraczo com com- paoheiros mais capazes”. ‘Arona de desenvolvimento proximal refere-se, assim, ao caminho que o individuo vai percorrer para desenvol- ver fungdes que esto em proceso de amadurecimento € que se tornatio fungées consolidadas, estabelecidas no seu nivel de desenvolvimento real. A zona de desenvol- vimento proximal €, pois, um dominio psicolégico em constante transformacdo: aquilo que uma crianga & ca- paz de fazer com a ajuda de alguém hoje, ela conseguiré fazer sozinha amanha. E como se o processo de desenvol- vimento progredisse mais lentamente gue 0 processo de aprendizado; o aprendizado desperca provessos de desen- volvimento que, 20s poucos, vao tornar-se parte das fun- g@es psivolégicas consolidadas do individuo. Interferin- do constanremente na zona de desenvolvimento proxi- mal das ctiancas, os adultos e as criancas mais expetien- tes contribuem para movimentar os processos de desen- volvimento dos membros imaturos da cultura, 60 4 VYGOTSKY, p. 97, (2). ‘A zona de desenvolvimento proximal define aguelas fungoes que dinds nao anvadurecersm, mas que erbier ext proves de maiuragao, fangier que arnadi- recerdo, mai que ese presente- mente ent estado embrioniio. Exeas fungies poderizm ser sha madas de" brosos" on “flores” do desenvolvimento, ao invés de frais do desenvolsimento”. VYGOTSKY, p. 97. (2) Nas sociedades letradas a escola sem papel ventral na desenvolvi- mento das pessoas. O papel da intervengao pedagégica A concepsio de Vygoisky sobre as relaces entre de- senvolvimento ¢ aprendizado, e particularmente sobre a zona de desenvolvimento proximal, estabelece forte li- gage entre o processo de desenvolvimento ¢ a telagio do individuo com seu ambiente sécio-cuttural € com sua si- tuagdo de organismo que nao se desenvolve plenamente sem o suporte de outros individuos de sua espécie, E na zona de desenvolvimento proximal que a intezferéncia de outros individuos € a mais transformadora. Processos ja consolidados, por um lado, nao necessitam da acdo ex- tetna para serem deseticadeados; processos ainda nem ini- ciados, por outro lado, ndo se beneficiam dessa agio ex- tetna, Pata uma crianca que jd sabe amarrar sapatos, por exemplo, o ensino dessa habilidade seria compleramen- te sem efeizo; para um bebé, por outro lado, a agao de um adulro que tenta ensind-lo a amatrar sapatos € tam- bém sem efeito, pelo fato de que essa habilidade esta mui- to distante do horizonte de desenvolvimento de suas fun- ges psicolégicas, S6 se beneficiaria do auxilio na tarefa de amarrar sapatos a crianca que ainda nao aprendcu bem a fazé-lo, mas j4 desencadeou o processo de desenivolvi- mento dessa habilidade. A implicacao dessa concepgio de Vygotsky para o en- sino escolar € imediata. Se 0 aprendizado impulsiona o desenvolvimento, entdo a escola tem um papel essencial na construcio do ser psicolégico adutto dos individuos que vivern em sociedades escolarizadas, Mas o desempe- 61 ho desse papel <6 se dara adequadamente quando, co- nhecendo 0 nivel de desenvolvimento dos alunos, a es- cola ditigir 0 ensino nao para etapas intelectuais ja al- cangadas, mas sim para estigios de desenvolvimento ainda nao incorporados pelos alunos, funcionando realmence como um motor de novas conquistas psicol6gicas. Para a crianga que freqiienta a escola, o aprendizado escolar € clemento central no seu desenvolvimento. O processo de ensino-aptendizado na escola deve ser constiuido, entao, tomando como ponto de partida 0 ni- vel de desenvolvimento real da crianga — nvm dado mo- mento € com relagao a um deverminado contetido a ser desenvolvido — ¢ como ponto de chegada os objetivos escabelecidos pela escola, supostamente adequados 2 faixa etatia € ao nivel de conhecimentos ¢ habilidades de cada grupo de ctiancas. O percusso a ser seguido nesse proces- so estard balizado também pelas possibilidades das crian- «as, isto €, pelo seu nivel de desenvolvimento pocencial. Sera muito diferente ensinar, por exemplo, a distinggo entre aves e mamiferos para criangas que vivem na zona tural, em contato direto ¢ constante com animais, ¢ para criancas que vivem em cidades e conhecem animais pot vias muito mais indirecas. Mas nos dois casos a escola tem © papel de fazer a crianga avangar em sua compreensio do mundo a partir de seu desenvolvimento ja consolida- do ¢ tendo como meta ctapas postetiotes, ainda no al- cancadas. Como na escola 0 aprendizado € um resultado desejf- vel, € 0 proprio objetivo do processo escolar, a interven- Glo & um processo pedagégico privilegiado. O professot tem o papel explicito de interferie na zona de desenvol- vimento proximal dos alunos, provocando avangos que do ocorretiam espontaneameate. O tinico bom ensino, afitma Vygotsky, € aquele que se adianta 20 desenvolvi- mento. Os procedimentos regulates que ocottem na es cola — demonstracdo, assisténcia, fornecimento de pis- tas, insteugées — sio fundamentais na promocio do “bom ensino’’. Isto é, a crianca ndo rem condicées de pertcorter, sozinha, 0 caminho do aprendizado. A inter- vengio de outras pessoas — que, no caso especifico da escola, s40 0 professor ¢ as demais criancas — é funda- mental para a promocao do desenvolvimento do in- dividuo. £ importante destacat, aqui, o tisco de uma interpre- tagio distorcida da posigao de Vygoisky, Se uma inter- ptetacio leviana das posigoes de Piaget levou, freqien- 62 Imitagio, para Vygotsky. > temente, a uma postura espontanefsta, que propée que a crianga deve ser deixada livre em sua interagZo com os estimulos do mundo fisico para que possa amadurecer, “desabrochar’’, em_seu desenvolvimento natural, uma. compreensao superficial de Vygotsky poderia levat exa~ tamente 20 oposta: uma postura diretiva, intervencionista, uma volta 3 “‘educacio tradicional””. Embora Vygotsky cenfatize o papel da inrervencao no desenvolvimento, seu objetivo é tabalhar com a importancia do meio cultural ¢ das relacdes entre individuos na definicao de um pet- curso de desenvolvimento da pessoa humana, e no pro- por uma pedagogia dirctiva, aucoritaria. Nem seria pos- sivel supor, a partir de Vygotsky, um papel de receptor passivo para o educando: Vygotsky trabalha explicita ¢ constantemente com a idéia de reconsteugéo, de recla- borac3o, por parte do individuo, dos significados que Lhe séo transmitidos pelo grupo cultural. A consciéncia in- dividual e os aspectos subjetivos que constituem cada pes- soa sio, pata Vygotsky, elementos essenciais no desen- yolvimento da psicologia humana, dos processos psico- logicos superiores. A constante rectiacio da cultura por parte de cada um dos seus membros é a base do processo histérico, sempre em transformago, das socicdades humanas. Ligado aos procedimentos escolares, mas nao restrito A situagio escolar, esti o mecanismo de imitagio, desta- cado explicitamente pot Vygotsky. Imitagao, pata ele, nao é mera cpia de um modelo, mas reconstrucio individual daquilo que € observado nos outros. Essa reconstrugao é balizada pelas possibilidades psicolégicas da crianca que tealiza a imitacdo ¢ constitui, para ela, ctiagdo de algo novo a partir do que observa no outro. Vygotsky io to- ma a atividade imitativa, pottanto, como um proceso mecinico, mas sim como uma oportunidade de a crian- ca realizar ages que estdo além de suas pt6prias capaci- dades, o que conttibuiria para seu desenvolvimento, Ao imitar a escrita do adulto. por exemplo, a crianga esti promovendo o amadurecimento de processos de desen- volyimento que a levario ao aprendizado da escrita. A nogiio de zona de desenvolvimento proximal é fun- damental nessa questdo: s6 € possivel a imiagio de agdes que estio dentro da zona de desenvolvimento proximal do sujeito. Um bebé de dez meses pode imitar expres- ses faciais ou gestos, por exemplo, mas seu nivel de de- senvolvimento nao Ihe petmite imitar o papel de “'mé- ico" ou de ‘*bailarina’', ou a escrita do adulto. A imi- tagio podetia set utilizada deliberadamente em situagdes 63 de ensino-aprendizado como forma de petmitir a elabo- tagio de uma funcdo psicolégica no nivel interpsiquico (isto &, em atividades coletivas, sociais) para que mais tarde essa funcao pudesse ser internalizada como atividade in- trapsicoldgica (isto é, intema ao préprio individuo). Com telacao @ atividade escolar, € interessante desta- car que a interacdo entre os alunos também provoca in- tetvencées no desenvolvimento das ctiancas. Os grupos de criangas sio sempre heterogéneos quanto ao conheci- mento ja adquirido nas diversas teas © uma ctianga mais avancada num determinado assunto pode contribuir pa- 1a 0 desenvolvimento das outras. Assim como o adulto, uma cfianca também pode funcionar como mediadora entre uma outta crianga ¢ as ages ¢ significados estabe- lecidos como relevantes no interior da cultura. Essa posigdo explicita de Vygotsky, sobre a importan- cia da intervengio do professor e das proprias criancas no desenvolvimento de cada individuo envolvido na situa- ho escolar, sugere uma recolocacao da questo de quais sao as modalidades de interagio. ave podem ser conside- radas legitimas promotoras de aprendizado na escola. Se © professor dé uma tatefa individual aos alunos em sala de aula, por exemplo, a troca de informaghes e de estra- tégias entre as ctiangas no deve set considetada como pro- cedimento ettado, pois pode tornar a tarefa um projeto coletivo extremamente produtivo para cada ctianga, Do mesmo modo, quando um aluno recorte ao professor (ou 40s pais, em casa) como fonte de informagao para ajudd- lo a resolver algum tipo de problema escolar, nfo esta burlando as regras do aptendizado mas, a0 conuério, utilizando-se de recursos legitimos para promover seu pr6- prio desenvolvimento E interessante observar que, em situacdes informais de aprendizado, as criangas costumam utilizar as interacdes sociais como forma privilegiada de acesso 3 informacao: aprendem regras dos jogos, por exemplo, através dos ou- tros € no como resultado de um empenho estritamente individual na solugio de um problema. Qualquer mo- dalidade de interacio social, quando integrada num con- texto realmente voltado para 2 promogio do aptendiza- do ¢ do desenvolvimento, podetia ser utilizada, portan- 10, de forma produtiva na situacdo escolar. A postura de Vygotsky, no que diz tespeico 4 inter- vengio de um individuo no desenvolvimento do outro, tem conseqiiéncias para seu proprio procedimento de pes- quisa. Muito freqiientemente Vygotsky ¢ seus colabora- 64 Crianga imitenda 0 gesto de ourra, Buse método de pesquisa ems prs cologia & similar a0 método cli ‘nico piagetrano: 0 inveitigader au mesma lempo deixa Pasir 0 de sempenho la sujeito, sem apre sivmé-lo mama sitnagdo exper monsal muito evirucurada, @ tn- Jesfere comm perguntare propossas de tarefus pera provocar compor sarcentos relesantes por parte do sujetto, dores interagiam com seus sujeitos de pesquisa pata pro- vyocar transformacdes em seu comportamento que fossem importantes para compreender processos de desenvolvi- mento. Ao invés de agitem apenas como observadores da atividade psicol6gica, agiam como elementos ativos numa situacto de inceracao social, utilizando a interven- do como forma de criar material de pesquisa relevante. Essa intervengdo do pesquisador é feita no sentido de de- safiat o sujeito, de questionar suas tespostas, para obser- var como a interferéncia de outta pessoa afera seu desem- penho e, sobrerudo, para observar seus processos psico- légicos cm transformagio e néo apenas os resultados de seu desempenho. Esse procedimento de pesquisa ¢ bastante diferente da- quele em que o pesquisador € apenas um observador pas- sivo do sujeito. Em termos da pesquisa educacional-con- temporinea, podemos fazer uma ligacdo desses procedi- mentos com a pesquisa-a¢io, pesquise-intervencio ou pesquisa-participance na sitwacio escolar. O pesquisador, nessas modalidades de pesquisa, coloca-se come elemento que faz parte da sittiacdo que estd sendo estudada, ndo pretendendo ter uma posicéo de observador neutro. Sua acdo no ambiente ¢ os efcitos dessa aco sao, também, material relevante para a pesquisa. Como a situacio es- colaz € um processo permanentemente em movimento, ea transformacio € justamente o resultado desejavel desse process, mécodos de pesquisa que permitam captat trans- foImagdes sio as métodos mais adequados pata a pesquisa educacional. A contribuicéo de Vygotsky nesse aspecto € extremamente relevante. Brinquedo e desenvolvimento Vimos, anteriormente, como Vygotsky trabalha com a idéia de que na situagao escolar a intervencdo na zona de desenvolvimento proxirnal das criangas se di de for- ma constante ¢ deliberada. A sicuacio escolat é bastante estruturada e expliciamente comprometida com a pro- mocao de processos de aprendizado ¢ desenvolvimento. Vygotsky trabalha também com um outro dominio da atividade infantil que tem clatas relagoes com o desen- volvimento: o brinquedo. Comparada com a situacdo es- colar, a situagao de brincadeira parcce pouco estrutura- 65 dae sem uma funcio explicita 0a promocio de processos de desenvolvimento. No entanto, o brinquedo também cria uma zona de desenvolvimento proximal na crianga, tendo enorme influéncia em seu desenvolvimento, con- forme vetemos a seguir Quando Vygotsky discute o papel do brinquedo, refere- se especificamente 4 brincadeira de ‘*fa2-de-conta’’, c0- ‘mo brincar de casinha, brincar de escolinha, brincar com uum cabo de vassoura como se fosse um cavalo. Faz refe- réncia a outros tipos de brinquedo, mas a brincadeira de “faz-de-conca”” € ptivilegiada em’sua discussao sobre 0 papel do brinquedo no desenvolvimento. O comportamento das criancas pequenas é fortemen- te detetminado pelas caracteristicas das situagdes conete- tas em que elas se encontram. Conforme discutido em capitulos anteriores, s6 quando adquirem a linguagem ¢ passam, portanto, a ser capazes de utilizar a represen- tagio simbélica, € que as ctiancas vio tet condigées de libercar seu funcionamento psicolégico dos elementos con- cretamente presentes no momento atual. Vygotsky exem- plifica a importancia das situagoes concretas € a fusio que a ctianga pequena faz entre os elementos petcebidos € o significado: ‘‘quando se pede a uma ctianga de dois anos gue tepita a sentenca ‘Tania est de pé’ quando Tania esti sentada a sua frente, ela mudari a frase para “Tania esti sentada’”’. Ela no é capa de operar com um signi- ficado contradis6rio & informacdo perceptual presente. ‘Numa situacio imaginéria como a da brincadeita de “faz-de-conta”, ao conttitio, a ctianca € levada a agir num mundo imaginirio (0 "'nibus"’ que ela est diti- gindo na brincadeira, por exemplo), onde a situacao é definida pelo significado estabelecido pela brincadeira (0 Snibus, o mototista, os passageizos, etc.) e no pelos ele- mentos reais concretamente presentes (as cadeiras da sa- la onde ela esta brincando de énibus, as bonecas, etc. ). ‘Ao brincar com um tijolinho de madeita como se fos- se um caftinho, por exemplo, ela se relaciona com o sig- nificado cm questao (a idéia de “‘catto") ¢ no com 0 objeto concreto que tem nas maos. O tijolinho de ma- deira serve como uma reptesentacio de uma realidade au- sente € ajuda a ctianga a separas objeto ¢ significado. Cons- titui um passo importante no percurso que a levard a set capaz de, como no pensamento adulto, desvincular-se to- talmente das situages conctetas. © brinquedo prové, as- sim, uma situacio de transiggo entre a agio da ctianca com objetos concretos © suas agdes com significados. 66 A brincadeira de ‘fax de-conia”” tstudads por Vygoishy corespom de ao jogo simbélica estudado por Piaget <4 VYGOTSKY, p. 110, (2). ituagko imaginaria, 0 brinque- lade regida por regras. Mesmo no universo do ‘*faz-de-conta”” hi regras que devem ser seguidas. Numa brincadeira de “‘escolinha”’, por exem- plo, tem que haver alunos ¢ uma professora, e as ativi- dades a serem desenvolvidas tém uma correspondéncia pté-estabelecida com aqueles que ocorrem numa escola teal. Nao qualquer comportamento, portanto, que € accitivel no ambito de ume dada brincadeira. Sao justamente as regras da brincadeisa que fazem com que a crianga se comporie de forma mais avancada do que aquela habitual para sua idade. Ao btincar de éni- bus, por exemplo, exerce o papel de motorista. Para isso tem que tomar como modelo os motoristas reais que co- nhece ¢ extrair deles um significado mais geral e abstra- to para a categotia ‘‘motorista’’, Pata brincar conforme as regras, tem que esforcat-se para exibir um comporta- mento semelhante ao do motorista, o que a impulsiona para além de seu comportamento como crianga. Vygotsky menciona um exemplo extremo, em que duas itmas, de cinco € sete anos, decidiram brincar “‘de irmas’’. Ence- nando a propria tealidade, elas tentavam exibit 0 com- portamento tipico de imi, trabalhando de forma deli- berada sobre as regras das relagdes entre itmas. O que na vida real € natural ¢ passa despercebido, na brinca- deira torna-se regia ¢ contribui para que a crianca enten- da o universo particular dos divetsos papéis que de- sempenha. Tanto pela criagio da situagao imaginatia, como pela definigao de regras especificas, o brinquedo cria uma 20- na de desenvolvimento proximal na crianca, No brinque- doa ctianga comporta-se de forma mais avangada do que nas atividades da vida real e também aprende a separar objeto e significado. Embora num exame superficial possa parecer que o brinquedo tem pouca semelhanga com ati- vidades psicol6gicas mais complexas do ser humano, uma andlise mais aptofundada revela que as agdes no brinque- do sio subordinadas aos significados dos objetos, contri- buindo claramente para o desenvolvimento da crianca. Sendo assim, a promogio de atividades que favorecam © envolvimento da ctianca em brincadeiras, principalmen- ie aquelas que promovem a criagio de situagdes imagi- nérias, tem nitida fungao pedagdgica. A escola e, parti- culatmente, a pré-escola padetiam se utilizar delibera- damente desse tipo de situagdes para atuar no proceso. de desenvolvimento das criangas. 67 A evolucdo da escrita na crianca A questdo da evolugao da escrita na crianga € bastante importante no conjunto das colocagdes de Vygotsky so- bre desenvolvimento ¢ aprendizado, por duas taz6es. Em ptimeito lugar porque suas idéias sobre esse tema so ex- temamente contemporineas, surpreendentes, mesmo quando levamos em conta que foram produzidas ha apto- ximadamente 60 anos. Em segundo lugar porque sua concepgdo sobre a es- ctita, enquanto sistema simbélico de representagio da tea- lidade, estd estreitamente associada a questdes centtais em sua teoria (linguagem, mediacao simbélica, uso de instrumentos). Assim seudo, embora nao scja uma ques- to muito explorada por Vygotsky em seus textos escri- ros, é bastante justificavel que a lingua escrita seja obje- to de nossa atencio nesta revisio sobre suas concepcdes a respeito de desenvolvimento ¢ aprendizado. Coctente com sua concepgao sobre 0 desenvolvimen- to psicolégico em geral, Vygotsky tem uma abordagem genética da escrita: preocupa-se com o processo de sua aquisicio, o qual se inicia muito antes da entrada da crian- cana escola ¢ se estende por muitos anos. Considera, cn- to, que para compreender o desenvolvimento da escrita na cttanca € necessario estudar o que ele chama de ‘a pré-histéria da linguagem escrita’”, isto é, o que se passa com a crianga antes de ser submetida a processos delibe- sados de alfabetizagao. Como a esctita € uma fungio culturalmente mediada, a ctianga que se desenvolve numa cultura letrada est ex: posta aos diferentes usos da linguagem escrita ¢ a seu fot- mato, tendo diferentes concepgdes a respeito desse obje- to cultural ao longo de scu desenvolvimento. A princi- pal condigao necesséria para que uma ctianga seja capaz de compreender adequadamente o funcionamento da lin- gua escrica € que ela descubra que a lingua escrita € um sistema de signos que nao tém significado em si. Os sig- ‘nos fepfesentam outra realidade: isto €, 0 que se escreve tem uma funcao instrumental, funciona como um suporte para a meméria ¢ a transmissio de idéias ¢ conceitos. Dentro do vasto programa de pesquisas do geupo de Vygotsky, Luria foi seu colaborador que desenvolveu 0 estudo experimensal sobre o desenvolvimento da esctica. Solicitava a ctiangas que nao sabiam ler e escrever que ‘memorizassem uma série de sentengas faladas por ele, Pro- 68 As idétas de Vygotsky sobre a ex enita tere mutes pontos ema co imum com a teoria de Emilia Fer- retta e seus cobaharadores, desen- solvida a partir dos anos 70 € con siderada uma 'revalugio conce! uel” a reipeito do assunto. O ar peclo mais importante dessa se melhanga é a consideracaa da er rita como um sistema de repre sentacao da realidade, ¢ da pro- cesso de alfabetteazto conto 6 do- minio progressive desse sisterta figue coreg muita dates do Pro ewsin escolar de alfabeiizagio} ¢ nie como a aguisiite de urna hat hides mecdnica de comespon déncia letratsom. © material mais detabhado sobre 4 questao da cserita na consepean de Vygoriky e seus colaboradores enconira-ie nam texto de Luria, denominads O desenvolvimento dda eserita na evianga, (19). Uma comparagdo entre este artigo de Lunia eas idéias de Emilia Ferei ro & feita na antiga “Aceis0 a0 mundo da esenta: os caminko: paralelos de Luria ¢ Ferreivo", de ‘Maria Thereza Fraga Rocco, (24. Este & um bom exemplo de toler sens vd experimenter ot sefs difcel para a crianga ¢ 3 su ‘est de wn procedintnta cope. ifio ror parte do pesguisadcr Prorocou modes de comporta- mento da crisnga que nto apare ceriam espontaneamente, Retirado da dissertagio de mestra- do, de Maris da Graca Azenba Bauetzor Santos: "O grafisma in- fantil — pracesiose perspectivas”” (Faculdade de Edacagéo da USP, 1991). positalmente, 9 nGmero de sentengas eta maior do que aquele de que a ctianga conseguitia lembrar-se. Depois de ficar evidente pata a crianca sua dificuldade em me- morizat todas as senrengas faladas, o expetimentador su- geria que ela passasse a “‘escrever”’ as sentengas, como ajuda paraa meméria. A partit da observagio da produ- Gao de diversas ctiangas nessa situacfo, Luria delineou um petcurso para a pré-historia da escrita. As ctiangas inicialmente imitavam 0 formato da escti- ta do adulto, produzindo apenas rabiscos mecinicos, sem nenhuma fungao instrumental, isto é, nenhuma telagio com os contetidos a serem representados, Obviamente, esse tipo de grafismo nao ajudava a ctianga em seu pro cesso de memorizacio. Ela nao era capaz de utilizar sua produgao escrita como suporte para a recuperagao da in- formacio a ser lembrada. Exemplos de produgio escrita de criangas niio alfabetizadas 1. “Rabiscos mecinicos"” — imitagao do formato da es- crita do adulto: a crianca quis esctever: 1. escorregador; 2. balanca; 3. trepa-ttepa; 4. gira-gira; 5. tanque de areia. 69 2. “Marcas topogrificas”’ — discribuigao dos registros no espago do papel: a ctianga quis escrever: 1. balanco; 2. Eu gosto de brin- cat no balanco; 3. leive; 4. banana; 5. Eu comi bana- na no café. 3. “Representacoes pictogrificas’” — desenhos estiliza- dos usados como forma de escrita: a crianca quis esctever: 1. énibus; 2. éculos; 3. meni- no; 4. arvore; 5. ewola; 6. rua; 7, classe. Num nivel mais avancado, as etiangas continuam a fa- zet sitais sem telagdo com o contetido das sentenigas fa- 70 ladas, produzindo, porém, o que Lutia chama de ‘‘mat- cas topogrificas’’: distribuem seus rabiscos pelo papel. possibilitando uma espécie de mapeamento do material a ser lembrado, depois, pela sua posicao no espaco. Es- sas marcas ainda nao so signos, mas fornecem pistas ru- dimentares que podetio auxiliar na recupetacao da in- formagao. Das marcas topogrificas indiferenciadas a ctianca pas- saa preocupar-se em produzir em sua esctita algo que teflita as diferengas presentes nas sentengas faladas. Pri meiramente as diferengas tegistradas sao formais, refle- indo o que Luria chama de “ritmo da fala’’, isto é, frases cuttas sio registradas com marcas pequenas € frases lon- gas com marcas grandes. A seguir a ctianea passa a dife- tenciar pelo contetido do que € dito, preocupando-se em dlistinguir quantidade, tamanho, forma e outras caracte- tisticas concretas das coisas diras. ‘‘Uma fumaga muito preta esta saindo da chaminé’’, por exemplo, é uma sen- tenga registrada com matcas bem pretas com o lapis; ‘No céu hd muitas estrelas’’ € registrada com muitas linhas ¢ “Eis um homem ¢ ele tem duas pernas’’ com apenas duas linhas. Neste ponto de seu desenvolvimento a crianga ja des- cobriu a necessidade de trabalhar com marcas diferentes em sua escrita, que possum ser relacionadas com o con- tefido do material a ser memorizado. A ctianga desco- briu, portanto, a natureza instrumental da escrita. De- pois disso, comeca a utilizar representagdes pictogrificas, isto €, desenhos. Mas neste caso os desenhos nao so uti- lizados como forma de expresso individual, como ativi- dade que se encetta em si mesma, mas como instrumen- tos, como signs mediadores que teptesentam contetidos deretminados. Da representacio picrografica a crianca pas- sa 3 escrita simbélica, inventando formas de representar informacées dificeis de setem desenhadas (por exemplo, um citculo escuro para representar a noite). Para a crianga que vive numa cultura lettada, ¢ seré submetida a processos de alfabetizacdo, 0 proximo passo envolve a assimilagdo dos mecanismos de escrita simbé- lica culruralmente disponiveis, isto é, 0 aptendizado da lingua escrita propriamente dita. Luria chama atengao pata o fato de que esse percurso da ctianca nao € um proceso individual, independente do contexto. Ao contrario, interage com os usos da lin- gua escrica que ela observa na vida cotidiana, com o for- mato daquilo que os adultos chamam de escrita, ¢ com 71 as sitaagdes de aprendizado sistemético pelas quais ela passa, Assim, por cxemplo, a ctianga pode assimilar bem cedo a diferenga entre desenhar € escrever ¢ ndo chegar a utilizar a representacdo pictografica por nao aceita-ta como “‘esetita’”, Pode, também, se souber grafat letcas nas ainda ndo tiver compreendido a funcao instramen- tal da escrita, utilizar a mesma letra como marca nao di- fevenciada para registrar informagées diferentes (por exer- plo, “A” para cachorro, “'A'” para mesa, '“A"” para chi- nelo}. Enfim, o percurso proposto sofrerd vatiagdes con- forme a experiéncia conereta das criangas. Podemos supor que, atualmente, esse percurso € mais dificil de ser observado em criancas urbanas de grupos culturais escolarizados. Em compatagao com sujeitos ¢s- tudados por Luria nos anos 20, essas criancas ingressam mais cedo na escola, sdo alfabetizadas mais cedo € vivem em um meio onde a presenga da lingua escrita € muito matcante. Assim sendo, 0 sistema simbélico da escrita interfere antes ¢ mais fortemente no proceso de desen- volvimento da crianga. E importante mencionar, ainda, que como a aquisi- do da lingua escrita €, para Vygotsky, a aquisicao de um tema simbélico de representacio da realidade, também conttibuem para esse proceso 0 desenvolvimento dos ges- tos, dos desenhos e do brinquedo simbiico, pois essas sdo também atividades de cardter representativo, isto é, utilizam-se de signos para representar significados. “[...] desenhar e brincar deveriam sct estégios prepara- < VYGOTSRY, p. 134, (2). trios ao desenvolvimento da linguagem escrita das ctian- gas. Os educadores devem organizar todas essas aces ¢ todo o complexo proceso de transigao de um tipo de lin- guagem escrita para outro. Devem acompanhat esse pro- cesso através de seus momentos criticos, até o ponto da descoberta de que se pode desenhar nao somente obje- tos, mas também a fala, Se quiséssemos resumit todas essas demandas priticas e expressi-las de uma forma uni- ficada, poderiamos dizer que 0 que se deve fazer € ensi- nar ds ctiangas a linguagem escrita ¢ nao apenas a escrita de letras”. Percepgao, atengio ¢ memoria As idéias basicas de Vygotsky geraram um programa de pesquisas, desenvolvidas por ele prdprio ¢ pot seus co- 72 A percepgio > laboradores, que se ramificaram em varios temas inter- relacionados. Seu particular interesse pela génese, fun- cao e escrutura dos processos psicolégicas superiores le- you a uma preocupacio com temas classicos da psicolo- gia, como percepsao, atengdo ¢ meméria, numa aborda- gem que relaciona desenvolvimento ¢ aprendizado, dis- tinguindo os mecanismos mais elementares daqueles mais sofisticados, tipicamente humanos, Neste item, delinea- remos brevemente as idéias de Vygorsky sobre esses te- mas especificos, buscando articuld-los com os pressupos- tos basicos da abordagem vygotskiana, discutida nos ca- pitulos anteriores. No que sc refere a percepgio, a abordagem de Vygotsky & cemtada no fato de que, ao longo do desenvolvimento humano, a percepeao toma-se cada vez mais um proces- so complex, que se distancia das detetminages fisiols- gicas dos étgaos sensoriais embora, obviamente, conti- nue a baseat-se nas possibilidades desses érgios fisicos. ‘A mediacio simbélica c a origem sécio-cultutal dos pro- cessos psicolégicos superiores sio pressupostos fundamen- tais para explicar o funcionamento da percepeao. A vi- séo humana, por exemplo, estd organizada pata potce- ber luz, que revelara pontos, linhas, cores, movimentos, profundidade; a audicio permite a percepgio de sons em diferentes timbres, alturas ¢ intensidades; o tato permi- te perceber pressio, temperatura, textura. Os limites des- sas e das demais sensagdes sto definidos pelas caracteris- ticas do aparato perceptivo da espécie humana: no es- cutamos ultra-sons, como o morcego ¢ o golfinho; nic petcebemos movimento na gua com a sutileza dos pei- xes; nao somos capazes de nos orienta no espayo a partie de infotmagées sobre temperatura, como as cobras. O bebé humano nasce, entdo, com suas possibilida- des de percepedo definidas pelas caracteristicas do siste- ma sensorial humano. Ao longo do desenvolvimento, en- tretanto, principalmente através da internalizacao da lin- guagem e dos conceitos e significados culturalmente de- senvolvidos, a percepcio deixa de ser uma telacio diteta entre 0 individuo € 0 meio, passando a ser mediada por contetidos culrurais. ‘Assim, pot exemplo, quando olhamos para um par de culos, no vemos ‘‘duas coisas redondas, ligadas entre si por uma tira horizontal e com duas tiras mais longas presas na parte larcral””, mas vemos, imediatamente , um par de éculos. Isto é, nossa relacio perceptual com o mun- do nfo se di em termos de attibutos fisicos isolados, mas ‘em termos de objétos, eventos e situagées rovulados pela 73 linguagem ¢ categorizados pela cultura. A funcdo dos dcu- Jos, as situacdes concretas em que nos acostumamos a in- teragir com esse objeto, o lugar que ele ocupa nas ativi- dades que descnvolvemos habitualmente, sao caracteris- ticas que vao interagir com os dados sensoriais que obte- mos quando nosso sistema visual capta esse objeto que aptendemos a reconhecer como éculos. © mesmo estimulo é percebide como ntimero ou letra, dependende do con- texto em que se encontra, 1 ff 8 4 A ff C Se nfo conheco a esctita 4rabe, uma sujeira no papel pode ser tomada co- mo um sina} televante. Um érabe, por sua vez, distingue sinais validos de marcas irrelevantes no papel. (esctita arabe) A percepgio age, portanto, num sistema que envolve outras fungdes. Ao percebermos elementos do mundo real, fazemos inferéncias baseadas em conhecimenzos ad- quitidos previamente ¢ em informagoes sobre a situago presente, interpretando os dados perceptuais 4 luz de ou- ttos contetides psicolégicos. Embora uma mosca pousa- da no vidro da jancla e um aviéo ao longe no céu possam 74 A atengio produzir uma imagem do mesmo tamanho na minha te- tina, sou capaz de avaliat adequadamente o tamanho teal desses dois estimulos por saber, previamente, o que € uma mosca e o que é um avi. Percebo o objeto como um todo, como uma realidade completa, articulada. ¢ ndo como um amontoado de informacées sensoriais. Isso es- 1d relacionado ao percurso de desenvolvimento do indi- viduo, ao seu conhecimento sobre o mundo. & sua vivéncia em situagées especificas. A crianga pequena que chama um cavalo de “‘au-2u"” nao esté sendo iludida pela in- formagao sensotial: embora veja que o cavalo € maior que co cachorto, que seu rabo é diferente, que seu focinho tem outro formato, etc., classifica cachorros ¢ cavalos dentro de uma mesma categoria conceitual. Nao tendo infor- macio suficiente para fazet uma distingao precisa entte esses dois tipos de animais, percebe ambos como seme- Ihantes, equivalences O funcionamento da atengio se dé de forma semelhan- te a0 que foi desctito pata a petcepeio. Inicialmente ba- seada em mecanismos neurol6gicos inatos, a arencio vai gradualmente sendo submerida a processos de controle volunisio, em grande pare fundamencados na media- gio simbélica. Os organismos estdo submetides a imen- sa quantidade de informacées do ambiente. Em todas as atividades do organismo no meio, entretanto, ocorre um ptocesso de selecao das informacées com as quais vai in- teragir: se niio houvesse essa seletividade a quantidade de informacio sctia tio grande e desordenada que seria impossivel uma acio organizada do organismo no mun- do, Cada espécie € dotada da capacidade de selecio de estimulos do ambiente que € apropriada para sua sobre- vivéncia. O bebé humano também nasce com mecanis- mos de atencdo involuntéria: estimulos muito incensos (como ruidos fortes}, mudangas bruscas no ambiente, ob- jetos em movimento, so elementos que, invariavelmente, chamam a aten¢o de uma crianga. ‘Ao longo do desenvolvimento, o individuo passa a ser capaz de dirigir, voluntariamente, sua arencéo pasa ele- mentos do ambiente que ele tenha definido como rele- vantes. A televincia dos objetos da atencdo voluntétia es- tard relacionada & atividade deseavolvida pelo individuo 20 scu significado, sendo, portanto, construida 20 lon- go do desenvolvimento do individuo em interacio com © meio em que vive. Assim, por exemplo, uma crianca € capaz de concencrar sua aten¢fo na construgae de um. carrinho em miniatura, ‘‘desligando-se’”” de outros esti- mulos do ambiente, como 0 ruido da televisao ou dos 75 itmaos conversando; um adulto ditige sua atengio para 0 trabalho que realiza, sem se distrair com cada toque ‘na maquina de escrever da pessoa que trabalha a seu lado. Podemos retomar, aqui, um exemplo utilizado no ca- pitulo 2, referente a0 experimento das palavras proibi- das’, em que as criancas devetiam responder 2 questies sobre cores, Os cartdes coloridos, fornecidos pelo experi- mentador como auxilio # tarcfa, serviram como instru- mento para ajudar a ctianca a, voluatariamente, focali- zat sua atencdo nos elementos relevantes da tarefa (isto €, os nomes das cores proibidas). Como vimos na descri- cdo desse experimento, a ajuda externa para a organiza- do da atencao voluntatia € substituida, com a passagem para niveis mais avangados do desenvolvimento indivi- dual, por instrumentos internos: os adultos podiam dis- pensar os cartées coloridos porque jé hayiam incernaliza- do formas de controle de sua atenczo. Apesat da aquisicéo de processos de atencio volunta- ria, os mecanismos de atengio involuncaria continua presentes no ser hurmano: ruidos fortes repentinos ou mo- vimentos bruscos, por exemplo, continuam a despertar a atencio do individuo. E interessante observar, entre- tanto, que até nesmo a atencio involuntiia pode set me- diada por significados aprendidos ao longo do desenvol- vimento. Quando escutamos nosso préprio nome, por exemplo, feagimos imediatamente, focalizando nossa atencio de forma no deliberada, Isto €, 0 nome proprio. por ser carregado de significado que indica a referencia a.um individuo particular, provoca uma reacio semelhante Aquela despertada por estimulos repentinos, como uma porta batendo, por exemplo. Do mesmo modo, é comum vermos criangas que desviam sua atengio de outra ativi- dade para, quase automaticamente, olhatem pata a te- io quando apareccm determinados comerciais de sua preferéncia. Neste exemplo, a atencio involuntaria, isto é, no controlada de forma intencional pelo préprio su- jeito, também esta sendo mediada por significados apsen- didos. Com relacio a meméria, Vygotsky também trabalha com a imporcincia da transformacao dessa funcio psico- [6gica a0 longo do desenvolvimento ¢ com a poderosa in- fluéncia dos significados e da linguagem. O foco princi- pal de suas discussées € a distincio entre a memétia “*na- tural”, no mediada, ¢ a meméria mediada por signos. ‘A meméria nao mediada, assim como a petcepsao sen- sorial ¢ a atengio involuntétia, € mais elemencar, mais 76 mentas, ¢ “tora de madeira’’, 0 nico objeto que ndo pertencia & categoria das ferramentas), Perguntava-se a0 entrevistado quais etam os ttés objetos semelhantes, que poderiam ser colocados mum mesmo grupo, € qual 0 que nao pertencia a esse grupo. Os mais escolarizados ¢ inse- ridos em situacées de trabalho mais modetnizadas ten- diam a colocar as wrés ferramentas juntas ¢ indicar a tora de madeira como 0 tinico objeto diferente. J4 os analfa- betos e que trabalhavam como camponeses isolados nfo faziam esse tipo de classificacdo dos objetos. Diziam que 0s quatro objetos deviam ser colocades juntos, porque fo setrote setta a tota, a machadinha corta a tora e preci- samos da madeira para pregar alguma coisa com 0 mat- telo: todos os abjetos sto usados juntos ¢ nenhum deles pode set separido ‘Em uma variacio da mesma tarefa, apresentava-se um conjunto de desenhos de trés objetos que pertenciam a uma mesma categoria (por exemplo, ““arvore"’, “flor’” ¢ “‘espiga’”’, todos vegetais) ¢ pedia-se aos sujeitos que selecionassem um quarto objeto adequado, de um gru- po de dois ou trés outtos desenhos (“‘toseira’” ¢ ““passa- ro'", por exemplo). Novamente os mais escolarizados modemizados tendiam a selecionar o objeto pertencen- te d mesma categoria que os outros trés (“‘roseita’””, no exemplo citado). Os analfabetos ¢ camponeses isolados tendiam a fazer outro tipo de relacdo entre os objetos, selecionando, por exemplo, 0 passaro para compor 0 con- junto: “... aandorinha. Ha uma drvore aqui ¢ uma flor — € um lugar bonito, A andorinha vai sentar aqui ¢ cantar”. Em outro tipo de tarefa, pedia-se aos sujeitos que che- gassem a uma conclusao com base em informacées da- das pelo experimentador. O expetimentador informava, por exemplo, que “No norte, onde hd neve, todos os ursos so brancos"” e que ‘Novaya Zemlya fica no norte ¢ Ii sempre neva’’. A seguir perguntava: ‘‘De que cor sao os tutsos em Novaya Zemlya?"”. A conclusdo logica a partir das duas informagdes basicas € a de que os ursos em No- vaya Zemlya sio brancos. Essa era a conclusio apresenta- da pelos sujeitos mais escolarizados e que trabalhavam em fazendas coletivas. Ja os menos escolatizados ¢ que trabalhavam como camponeses isolados tinham dificul- dade com esse raciocinio abstrato, baseando suas respos- tas em expetiéncias pessoais ¢ negando-se a fazer infe- réncias sobre fatos nao vivenciados: “Eu nao sei. de que cor so os ursos 14. Eu nunca os vi"" 91 Tarefa de petcepgio utilizada por Luria Figuras apresentadas aos sujeitos para setem agrupadas ¢ nomeadas: Exemplos de agrupamentos de figutas realizados por camponeses pouco escolatiza- dos €-4 justificativa que eles deram para agmparem desse modo: “Relégios.”” "Fates sio parecidos — isto € uma gaiols ¢ esta € 4 gaveta de alimentasao através da gaiola.”” “Este & um pequeno balde pats ieive coalhado, © esta € uma pansla pats o «ceme,”* Nas demais tarefas utilizadas nesse cstudo as difeten- cas observadas entte os grupos de sujcitos apontavam semn- Pre na mesma direcdo: ““mudangas nas formas préticas <2 LURIA, p98, (28) de atividade, ¢ especialmente a teorganizacio da ativi- dade baseada na escolaridade formal, produziram alte- tages qualitativas nos processos de pensamento dos in- dividuos estudados”. Baseado nas proposigies tedticas de Vygotsky, Luria idencificou dois modos basicos de pen- samento que catacterizam essas alteracbes qualitativas as- 92 Noways Zemlya é também cha mada Nowa Zembla, ens jar sugubs. sociadas as transformagées sociais ocortidas na regido es- tudada: o modo grifico-funcional eo modo categorial Esses dois modos de pensamento estavam presenites, co- ‘mo um contraste entte os diferentes grupos de sujeitos, em todas as tarefas incluidas nesse estudo intercultural. O modo chamado grifico-funcional tefere-se ao pen samento baseado na experiéncia individual, em contex- tos concretos, em situagdes reais vivenciadas pelo sujei- to. Echamado "'grafico"’ no sentido de que se bascia em configuragdes perceptuais, presentes no campo da expe- rigncia do sujeito — como no caso das figuras que ‘"se parecem porque ambas tém pontinhos’’, scm que sejam feitas relacées entre as figuras ¢ as caregorias mais abstratas de quadrados e «rifgulos. E chamado “funcional’' porque refere-se as relacdes concretas entre 8 objetos, inseridos em situacdes priticas de uso — co- mo no caso da tora de madeira classificada com o sertote porque o serrote serta a tora. O modo de pensamento chamado categorial refete-se a0 pensamento bascado em categorias abstratas, 4 capa- cidade de lidar com atributos genéticos dos objetos. sem referencia aos contextos priticos em que o sujeito Se te- laciona concretamente com os objetos. O individue que fanciona psicologicamente de forma categorial é capa de desvincular-se das sitwagées concretas ¢ trabalhar com objetos de forma descontextualizada. Assim, por exern~ plo, independentemente do uso conjunto que o sujeito faca do serrote e da tora de madeia, ele ¢ capaz de clas- sificar esses abjetos em dois grupos diferentes: ferramentas e nao ferramentas. Do mesmo modo, é capaz de concluir, a partir de informagées verbais, que em Novaya Zemlya 9s ursos so brancos, mesmo que nunca tena estado la, ow nunca tenha visto 0s tais Ursos. Conforme mencionado anveriormente, 0s individues mais escolarizados ¢ com um tipo de trabalho mais mo- dernizado € que tendiam a comportat-se de modo cate- gorial. I interessante observar que alguns sujeicas, prin- cipalmente aqueles com pequeno grau de escolaridade ¢ uma atividade profissional intermediftia entre formas mais tradicionais ¢ formas modernas, apresentavam um desempenho “‘em rransigao’’ nas tarefas psicoldgicas uti- lizadas nesse estudo. Isto €, ora comportavam-se de mo- do categorial, ora apresentavam um raciocinio mais pre- 80 a sitagées conctetas e 4 expetiéncia pessoal. 93 Com esses individuos, Luria péde observar claramen- te 0 papel da intervencio do pesquisador na zona de de- senvolvimento proximal. Luria freqiientemente provocava a teflexio dos entrevistados contrapondo a resposta de- les uma resposta dada por uma pessoa hipotética ("*Mas uma pessoa me disse que uma dessas coisas ndo pertence a esse grupo’’, pot exemplo) ou fazendo um questiona- mento explicito da resposta do sujeito (“Esta certo, mas um martelo, uma serra e uma machadinha sto todos fer- ramentas""). Para aqueles sujeitos '‘em transi¢ao'” essa intervengio ativa do pesquisador muitas vezes resultava ‘uma transfotmacao do seu modo de pensamento: ao lon- 20 da tealizacio da tarefa 0 individuo passava do modo gtéfico-funcional ao categorial, Essa transformagio no acontecia com os que raciocinavam, consistentemente, de modo gréfico-funcional. Parece, justamente, que a in- terferéncia externa provoca transformagéo visivel apenas quando 0 novo modo de pensamento ji esta presente, “em semente'’, no. préprio sujeito. Esta é exatamente a idéia da imervencio na zona de desenvolvimento pro- ximal e da promogio de pracessos de desenvolvimento 4 partir de situagdes de interacéo social. As relagdes entre as diferencas no modo de funciona- mento intelectual e as transformacées no modo de vida so bastante evidentes no que se refere ao processo de escolarizagio formal. A escola é uma instituigéo social on- de 0 conhecimento é objeto privilegiado da atencao dos individuos, sem conexiio imediata com situacSes de vida real. Os sujeitos que passam pela escola acosrumam-se a ttabalhar com idéias c conceiros de forma descontex- tualizada, sem referéncia 20 dominio do concreto. As ciéa- cias, cujo conhecimento acumulado é transmitido na es- cola, constroem, ao longo de sua hist6ria, modos de or- ganizat o real justamente de forma categorial. No que se refere ans processos de modernizacio no tra- balho, particularmente de implantagdo das fazendas co- letivas no caso da regiao estudada por Luria, esses envol- vem o planejamento de agbes coletivas, a tomada de de- cisdes com base em critétios que ultrapassam as necessi- dades ¢ motivagdes individuais, a substituigio daquilo que & circunscancial ¢ patticular pelo que é previsivel, geral € compartilhado. Fssas eatactetisticas do modo de traba- lho parecem propiciar 2 emergéncia de novas formas de funcionamento intelectual £ importante mencionar que as relagdes entre contex- tos culturais e processos psicolégicos superiores, estuda- 94 COLE, p. 15.16, 7) & das pot Luria neste amplo projeto de investigacio, sto, ainda hoje, objeto de grande controvérsia ma area da psi- cologia. Por um lado a psicologia tradicional no leva em conta as relagées entre cultura e pensamento, buscando 2 compreensio do funcionamento psicolégico como um fenémeno universal. Estudos como 0 de Luria, pot outro Jado, constroem uma diferenciagao entte modos de fun- cionamento intelectual que, 20 romper com a universa- lidade dos processos psicol6gicos, podem levar a uma va- lotizagao de um dos modos de funcionamento como sendo ‘0 mais sofisticado, mais complexo, mais adequado. Co- mo o referencial privilegiado da psicologia € a sociedade urbana, moderna, escolarizada, com desenvolvimento cientifico ¢ tecnoligico, o modo de funcionamento psi- col6gico associado a esse tipo de insergio do homem no mundo tende a ser tomado como o modo mais avancado. Michael Cole, um dos principais estudiosos contem- pordncos das relag6es entre cultura ¢ pensamento, mani- festa sua preocupacdo com essa questo no prélogo 4 obra de Luria: “'Seu objetivo geral eta mosttar as taizes s6cio- historicas de todos os processos cognitivos basicos; a ¢s- trutura de pensamento depende da estrutura dos tipos de atividades dominantes em diferentes culturas. Desse conjunto de premissas, segue-se que o pensamento pra- tico vai predorninar em sociedades caracterizadas pela ma- nipulagio pritica de objetos € que formas mais “abstra- tas" de atividade ‘teérica’ em sociedades tecnolégicas v40 induzir a pensamentos mais abstratos, teéricos. O pata- Ielo entre o desenvolvimento social e individual produz uma forte tendéncia a interpretacio de todas as diferen- cas comportamentais em termos de desenvolvimento. [...] Minha incerpretacao pessoal desse tipo de dados é um pouco distinta, uma vez que sou um tanto cético quanto 2 utilidade da aplicacao de teorias do desenvolvimento em estudos comparativos de culturas, Assim, aquilo que Luria interpreta como aquisigao de novos modos de pen- samento, tenho tendéncia a interpretar como mudangas na aplicagao de modos previamente disponiveis aos pro- blemas particulares ¢ contextos do discutso representa~ dos pela situacéo experimental. Entretanto, 0 valor des- se livto niio depende da nossa interpretagio dos resulta- dos de Luria. Como ele enfatiza em diversas passagens, © texto representa um projeto-piloto ampliado que ja- mais poderd ser repetido. Serd tarefa de outros pesquisa- dores, trabalhando naquelas partes do mundo em que ainda existem sociedades tradicionais, aperfeigoar 2 in- terpretacio desses achados”” 95 A teoria da atividade de Leontiev Juntamente com Luria, A. N. Leontiev foi um dos co- laboradores mais prximos de Vygotsky, tendo trabalha- do diretamente com ele no projeto de construgao da “‘no- va psicologia"’ na RGssia pés-tevolucionaria. Sua teoria da atividade pode ser considerada um desdobramento dos postulados basicos de Vygotsky, especialmente no que diz respeito a relaczo homem-mundo enquanto construida historicamente € mediada por instrumentos As atividades humanas so consideradas por Leontiev, como formas de relacio do homem com 0 mundo, diti- gidas por motivos, por fins a serem alcancados. A idéia de atividade envolve 2 nocao de que 0 homem orienta- se pot objetivos, agindo de forma intencional, por meio de ages planejadas. A capacidade de conscientemente formular ¢ perseguir objetivos € um traco que distingue 0 homem dos outros animais. 96 Alexei Nikolaievich Leonties (1904-1979) Hi apenas dois artigos de Leow: tien publicados no Brasil: Uma coniriburgao & teoria do derenvol: simento da psique infantil” ¢ Os principios psicoligicos da brincadeira pré-excolar", ambos na coletinea Linguagem, desen- volvimento ¢ aprendizagem ambos originalmente publicados um de seus principais livros Problems of the development of the mind (1981). Eve lisro fot sraduxido por uma editora party. gxesa como titulo O desenwolvi- mento do psiquismo, Ha tam- bem um livro seu tradazido para o expanhol: Actividad, conscien: cia y personalidad. IBONTIEV. p. 56, (8). LEONTIRY, p. 210. (8), Atividade e acao para Leontive > > A atividade de cada individuo ocorre num sistema de relagdes sociais ¢ de vida social, onde o trabalho ocupa lugar central. A atividade psicolégica interna do indivi- duo tem sua origem na atividade externa: “[...] 08 pro- cessos mentais humanos (as ‘funcdes psicalogicas supe- riores’) adquirem uma estructura necessariamente ligada aos meios € métodos sécio-historicamente formados € transmitidos no processo de trabalho cooperative ¢ de inveragdo social. [...] As atividades mentais internas emet- gem da atividade pratica desenvolvida na sociedade hu- ‘mana com base n0 trabalho, sao formadas no curso da ontogénese de cada pessoa em cada nova geracio”. Os pfocessos psicolégicos do individuo, internalizados a partir de processos interpsicolégicos, passam a mediar a ativi- dade do sujeito no mundo, numa interagio constante en- tre 0 psiquismo ¢ as condigdes concretas da existéncia do homem. Leontiev analisa a esteutura da atividade humana, dis- tinguindo trés niveis de funcionamento: a atividade pro- Priamence dita, as agbes ¢ as operacées. Um cxemplo dado por Leontiev explicita esses niveis de funcionamento: “Quando um membro de um grupo tealiza sua ativida- de de trabalho ele o faz para satisfazer a uma de suas ne- cessidades. Um batedor, por exemplo, gue toma parte de uma cagada coletiva primitiva, foi estimulado pela ne- cessidade de alimento ou, ralvez, pela necessidade de ves- timenta, que a pele do animal morto satisfaria pata ele. Mas a que sua atividade estava dirctamente orientada? Poderia estar orientada, por exemplo, para afugentar um bando de animais ¢ encaminhi-los na direcdo de outros cagadores tocaiados. [ss0, na verdade, € 0 resultado da atividade desse homem. E a atividade desse membeo in- dividual da cagada termina ai. O restante € completado pelos outros membros. Por sis6, esse resultado — a fuga da caca, etc. — nao leva, € no pode levar, a satisfacio da necessidade de comida ou de vestimenta. Conseqiten- temente, os processos da atividade do batedor estavam ditecionados a algo que nao coincidia com 0 que os esti- mulou, isto é, no coincidia com o motivo de sua ativi- dade: os dois estavam separados nesse exemplo. Aos pro- cessos cujo objeto ¢ motivo nfo coincidem chamaremos “agies’ . Podemos dizer, pot exemplo, que aatividade do batedor € a cagada e o afugentar do animal, sua a¢ao"” ‘Vemos nesse exemplo como a atividade é uma forma complexa de relagao homem-mundo, que cavolve fina lidades conscientes ¢ atuacao coletiva ¢ cooperativa. A ati 97 vidade € realizada por meio de ages dirigidas por me- tas, desempenhadas pelos diversos individuos envolvidos na atividade. O resultado da atividade como um todo, que satisfaz A necessidade do grupo, também leva 5 sa- Uisfagdo das necessidades de cada individuo, mesmo que cada um tenha se dedicado apenas a uma parte especifi- ca da tarefa em questio. © terceito nivel da atividade humana postulado por Leontiev, o nivel das operagées, refere-se ao aspecto pri- tico da realizacéo das agées, as condicées em que sio efe- tivadas, aos procedimentos para realizd-las: “além de seu aspecto intencional (o que deve ser realizado) a agio tam- bém inclui seu aspecto operacional (como, de que modo pode ser realizada), o qual é determinado nio pela meta em si, mas pelas condicées objetivas (ambientais) para sua realizacao. [...] A esses modos de desempenhar uma acio chamo de operagies’”. Uma mesma atividade humana pode ser desempenha- da por meio de diferentes cadeias de acées: a atividade de caca pode envolver as acées de afugentar os animais ¢ emboscé-los, como no exemplo mencionado anterior- mente, ou as acoes de construcio de armadilhas e poste- rior matanga dos animais que nelas caem, ou ainda as aces de colocagio de alimentos em determinado local para atrair o animal e posterior espera do animal cevado Da mesma forma, uma agdo pode scr desempenhada por meio de diferentes operagées: o abate de um animal po- de ser realizado por golpes de bastio, flechadas, tiros de arma de fogo, etc. E interessante fazer um paralclo entre essa abordagem, de Leontiey ¢ a noco de "sistemas funcionais” na neu- ropsicologia de Luria: em ambos os casos, estd presente a idéia de que uma determinada fungio ou finalidade pode ser realizada de muitas manciras diferentes, depen- dendo das condigdes objetivas ¢ das priticas culeurais ¢s- tabelecidas. © funcionamento do ser humano nao po- de, pois, set compreendido sem referéncia ao contexto em que ocorre. A atividade humana é tomada como 2 unidade de ané- lise mais adequada para a compreensho de processos psi- col6gicos porque inclui tanto o individuo como seu am- biente, culturalmente definido. A aco individual em si é€ insuficiente come unidade de anaiise: sem incluso num sistema coletivo de atividade, a aco individual fica des- tivuida de significado. O batedor que afugenta a casa, othado isoladamente, parece estar realizando uma acio 98 “4 Operagies, para Leonticy << LEONTIEV, (27). Esse paralelo é divcusido por Werscht, importante intérprete do pensamento dos soviéticos nos Estados Unidos, em sen livro O conceito de atividade na psicolo- Bia sovittica, (29), seme tradupao para o portugués sem sentido, absurda até, considerando que seu objeti- vo é obter alimento. Mas sua acio passa a ter significado goeale analisada como parte integrante de uma ativi- lade coletiva, com funco definida num sistema de coo- peragao social que conduz a obtengao daquele resultado. Como a atividade humana, resultado do desenvolvi- mento sécio-histérico, é internalizada pelo individuo e vai constituir sua consciéncia, seus modos de agit ¢ sua forma de petceber o mundo teal, a compreensio do con- texto cultural no qual ela ocorre é essencial para a com- pteensto dos processos psicolégicos. Conforme se trans- forma a estrutura da interacao social 20 longo da histé- tia, a estrutura do pensamento humano também se trans- formara. Podemos reconhecer, na teoria da atividade de Leon- tiev, vérios conceitos presentes nas principais formulagdes de Vygotsky. A propria idéia da atividade baseia-se na concepcao do ser humano como sendo capaz de agit de forma voluntaria sobre 0 mundo, intencionalmente bus- cando atingir determinados fins. Esse modo de funcio- namento psicolégico € a base dos processos psicolégicos supetiores tipicamente humanos. Os processos superio- tes cnvolvem, necessariamente, relagdes entre o indivi- duo e o mundo, que nfo sao ditetas, mas mediadas pela cultura, A interacdo social é fundamental para o desen- volvimento das formas de atividade de cada grupo cul- tural: o individuo internatiza os elementos de sua cultu- ra, construindo seu universo intrapsicolégico a partir do mundo externo. Uma abordagem genética e contextua- lizada dos processos psicolégicos do set humano é fun- damental para a compreensdo de seu funcionamento en- quanto set sécio-histético. 99 Conclusao LOL 6c“ A intemnalizagio de formas culturais de compor- tamento envolye a reconstrugio da arividade Psicolégica tendo como base as operagdes com signos. Os rocessos psicol6gicos, tal como apatecem nos animais, realmente deixam de existir; sdo incorporados nese sis- tema de comportamento ¢ so culturalmente reconstrui- dos ¢ desenvolvidos para formar uma nova entidade psi- col6gica. O uso de signos extemnos também € reconstrui- do radicalmente. As mudancas nas operagées com sig- nos durante o desenvolvimento so semelhantes aquclas que ocorrem na linguagem. Aspectos tanto da fala ex- tera ou comunicativa como da fala egocéntrica ‘interi rizam-se’, tornando-se a base da fala interior. “A intermalizacio das atividades socialmente enraiza- das ¢ historicamente desenvolvidas constitui 0 aspecto ca racteristico da psicologia humana; é a base da salto qua- litativo da psicologia animal para a psicologia humana. At€ agora conhece-se apenas um esboco dese processo."” Esse pequeno trecho é parte de um texto escrito por Vygotsky em 1930 ¢ nos fornece uma visto condensada de sua abordagem: o homem biolégico rransforma-se em social por meio de um processo de internalizacio de ati- vidades, comportamentos e signos culturalmente desen- volvidos. Vygotsky também explicita que “até agora conhece-se apenas um esboco dese processo””: sua obra nao nos fornece, de fato, uma teoria bem estruturada a tespeito da diversidade de temas aos quais dedicou tao pouco tempo de vida. Por isso mesmo, scu trabalho, mui- to mais do que organiza, inspira a teflexaio sobre o fun- Gionamento do ser humano, a tealizacdo da pesquisa em educacio ¢ em areas relacionadas e a pritica pedagogica. Seria inadequado buscar em Vygotsky um sistema teéri- co completo, que articulasse as varias dimensties contem- pladas em sua obra. Seria ainda mais inadequado buscar em sua produgio escrita material que desse suporte ex- plicito a qualquer tipo de pritica pedagégica. Essa questo nos remete a um problema central na drea da educacao: a relacio entte propostas tedticas e pritica pedagégica, A educacio é uma rea interdisciplinar ¢ apli- cada, que se alimenta de formulagées tedricas origind- tias de varias disciplinas ¢ que se constréi no plano da pratica, Entretanto, a tentativa de escolher uma sé teo- tia como dnica referéncia para a compreensao do fend- meno educativo (e como Gnica proposta que levaria 4 so- lucdo dos problemas concretos) € uma conduta bastante comum na area da educagio no Brasil. 102 <1 PYGOTSKY, p. 65. (2). E importante descacar que essa idéia da escolha entre teorias coloca o educador numa situagio bastante arris- cada, pasticularmente dada a natureza aplicada de sua sea de atuasao, ‘Pode levat a um consumo superficial da teoria tida como “'a melhor” num determinado momento € 4 desconsideracio de outras abordagens que podetiam set igualmente enriquecedoras. Pode levar, também, a uma utilizagéo simplificadora de principios mal com- preendidos e, ainda, 20 abandono total da teoria em ques- io quando uma outea passar a set considerada a melhor referencia. Provavelmente a conduta mais fecunda seria © estudo de muitas perspectivas diferentes, no sentido do aprimoramento te6rico do profissional e, portanto, de uma elaboracéo mais refinada de sua pritica @ luz das diversas abordagens estudadas. Diferentes teorias podem, certamente, trazer conttibuigdes relevantes a compreen- sto do fendmeno educative. Vivernos, no presente momento, justamente uma es- pécie de “crise teética’”, particularmente no que diz tes- peita a questées relativas & psicologia da educacio: Pia- get cem sido a referencia predominante nessa Srea ¢ a cres- cente penetragio do pensamento de Vygotsky no idedrio pedagogico brasileiro parece trazer consigo a necessida- de de uma escolha entre ele e Piaget. Isto é, parece ha- ver uma tendéncia ao confronto desses dois tedricos, no sentido de definir qual deles deve ser adotado como te~ feréncia bésica em educacao. A idéia da escolha da “melhor teoria’’ € particular mente questionavel no caso do confronto entre Piaget ¢ Vygotsky. Em primeiro lugar porque ambos nos legazam uma producto vasta ¢ densa, com inegiveis contribut- ges 4 drea da educacdo; ambos merece, portanto, um estudo aprofundado ¢ de longo prazo, que leve a uma real compreensio de suas propostas te6ricas ¢ nao 4 ado- gio de alguns principios simplificados. Em segundo la- gar porque hi algumas afinidades essenciais entre as abor- dagens desses dois pensadotes, que tornariam leviana uma oposigao radical entre eles. Embora haja uma diferenga muito marcante no pon- to de partida que definiu o empreendimento intelectual de Piaget e Vygotsky — o primeiro tentando desvendar as estrucuras € mecanismos universais do funcionamento psicol6gico do homem e o tltimo tomando o set huma- no como cssencialmente histérico e portanto sujeito as especificidades de seu contexto cultural — ha diversos as- pectos 4 respeito dos quais o pensamento desses dois au- 103 totes € bastante semelhante. Ambos enfatizam a neces- sidade de compreensio da génese dos processos que es tao sendo estudados, tevando em consideragao mecanis- mos tanto filogenéticos como ontogenéticos. Ambos uti- lizam uma metodologia qualitativa em seus estudos, bus- cando captar mecanismos psicolégicos em processo ¢ no resultados estdticos expressos em medidas quantitativas. ‘Tanto Piaget como Vygotsky sio interacionistas, postu- Jando a importéncia da relacéo entre individuo e ambiente nna consttucdo dos processos psicolégicos: nas duas abor- dagens, portant, o individuo € ativo em seu proprio pro- cesso de desenvolvimento: nem estd sujeito apenas a me- canismos de maturacio, nem submetido passivamente a imposicées do ambiente. Ambos, ainda, consideram que aparecimento da capacidade de representagio simbdli- a, evidenciado particularmente pela aquisicao da lingua- gem, marca um salto qualitativo no processo de desen- volvimento do ser humano. Vemos, assim, que nao estamos diante da tarefa de descartar uma entre duas teorias opostas. Nao se trata, tampouco, de ageupa-las como se fossem completamen- te equivalenres: quando penerramos nas especificidades de cada abordagem, revelam-se contribuigoes de nature- za bastante distinta em cada uma delas, A questdo €, co- mo em qualquer caso de aprofundamento te6rico, com- preender o melhor possivel cada abordagem, para que haja um real aprimoramento da teflexio sobre 0 objeto que esta sendo estudado. Nesse sentido € interessante retomar, aqui, as idéias de Vygotsky que tém particular relevancia para a rca da educagio. Em ptimeito lugar sua postulagio de que 0 de- senvolvimento do individu deve ser olhado de maneira prospectiva, isto é, para além do momento atual, com referéncia ao que esta por acontecer em sua trajettia. Li- gado a esta postulagao esta. o conceito de zona de desen- yolvimento proximal, que marca, como mais importan- tes no percurso de desenvolvimento, exatamente aque- les processos que j4 esto presentes '‘em semente"” no in- dividuo, mas ainda nao se consolidaram. Essa concepcfo € central para a educacdo, na medida em que imprime claramente uma abordagem genética 20 estudlo do fun- cionamento psicoldgico, focalizando a atencdo nos pro- cessos de desenvolvimento ¢ na emergéncia daquilo que € novo na trajetéria do individuo; a idéia de transforma. do, 140 essencial ao proprio conceito de educagao, ocu- pa lugar de destaque nas colocacdes de Vygotsky. 104 Em segundo lugar € fundamental para a educagio a id€ia de que os ptocessos de aprendizado movimentam os provessos de desenvolvimento, O percurso do desen- volvimento humano se da ‘‘de fora para dentro"’, por meio da internalizacio de processos interpsicolégicos. A escola, enquanto agéncia social explicitamente encatre- gada de promover 0 aprendizado das criancas e jovens das sociedades letradas, tem um papel essencial na pro- mocio do desenvolvimento psicol6gico dos individuos. Finalmente, destaca-se nas postulagdes de Vygotsky a importancia da atuagdo dos outros membros do grupo social na mediacdo entre a cultura eo individuo ¢ na pro- mocio dos processos interpsicol6gicos que sero pasterior- mente inteinalizados. A invervengio deliberada dos mem. bros mais maduros da cultura no aprendizado das crian- ‘as € essencial ao seu processo de desenvolvimento, A in- tervencao pedagégica do professor tem, pois, um papel ‘entra a tajetéin dos individuos que pasam pela col, Devido a penetracio recente ¢ rapida das idéias de Vygotsky em nosso meio educacional a pequena dispo- nibilidade de textos seus em publicagées brasileiras, tomna- se particularmente importante 0 cuidado pata que nZo haja um consumo superficial de sua teoria. Os trabalhos de Vygotsky que chegaram a nds até o presente momen to, sempre mediados por tradugoes norte-americanas dos textos originais, devem ser tomados como ponto de par- tida para um acesso mais aprofundado @ sua obra, a ser realizado por meio de, textos de seus colaboradores ¢ de estudiosos de seu pensamento, Do mesme modo, suas idéias, inspiradoras, devern set tomadas como ponto de partida para reflexées e elaboragées resricas que possam ir além de suas fecundas proposicées. 105

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