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C. JAMES GOODWIN HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA a CULTRIX ‘Titulo original: A History of Modern Psychology — Second Edition. Copyright © 2005 John Wiley & Sons, Inc. Traducio autorizada da edicdo em inglés, publicada pela John Wiley & Sons, Inc. Foto da capa de Paul Hardy/Corbis Images. Todos os direitos reservados, Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ow usada de qualquer for- ma ou por qualquer meio, eletrdnico ou mecinico, inclusive fotocépias, gravagées ou sistema de arma- zenamento em banco de dados, sem permissio por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas criticas ou artigos de revistas. Para Susan Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Goodwin, C. James Historia da psicologia moderna / C. James Goodwin ; traducio Marta Rosas. — So Paulo : Cultrix, 2005, Taulo original: A history of modern psychology Bibliografa ISBN 85.-316.0871-6 1. Psicologia - Historia -Séeulo 19 2. Psicologia - Historia Seculo 201. Titulo 04-8769 <00-150.19 indices para catalogo sistematico: 1, Psicologia moderna : Historia 150.19 © primeiro numero a esquerda indica a edigao, ou reedigao, desta obra. A primeira dezena a direita indica o ano em que esta edigao, ou reedi¢ao, foi publicada. Edigao Ano 1 (05-06-07-08-09-10-11 Direitos de tradugao para a lingua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA. Rua Dr. Mario Vicente, 368 — 04270-000 — Sao Paulo, SP Fone: 6166-9000 — Fax: 6166-9008 E-mail: pensamentofcultrix.com.br hutp://www pensamento-cultrix.com.br que se reserva a propriedade literaria desta tradugac. Impresso em nossas oficinas graficas. SUMARIO CAPITULO 1 INTRODUCAO A HISTORIA DA PSICOLOGIA_17 A Psicologia e sua Historia 18 Por Que Estudar Historia? 19 Por Que Estudar a Historia da Psicologia? 22 Questdes-Chave na Historia da Psicologia 24 Historia Velha x Historia Nova_24 CLOSE-UP: Edwin G. Boring (1886-1968) 29 Historiografia: Fazer e Escrever a Historia _33 Fontes de Dados Historicos 33 Problemas na Escritura da Historia 35 Abordando a Verdade Historica _30 Resumo_40 Questoes para Estudo 41 Leitura Suplementar 42 capitulo 2 O CONTEXTO FILOSOFICO_43 ‘Um Longo Passado 44 Descartes ¢ os Primérdios da Ciencia ¢ Filosofia Modernas_ 45 Descartes ¢ o Argumento Racionalista_46 O Sistema Cartesiano: Racionalismo, Nativismo ¢Interacionismo MecAnico 48 ‘TRECHO DE FONTE ORIGINAL: Descartes sobre 0 Interacionismo Mente-Corpo 50 © Argumento dos Empiristas Britanicos ¢ os Associacionistas 54 John Locke (1603-1704); As Origens do Empirismo Britanico 54 George Berkeley (1685-1753): O Empirismo Aplicado a Visio 59 O Associacionismo Britanico 62 CLOSE-UP: Criando um Filésofo_ 66 John Stuart Mill (1806-1873): A beira da Ciencia Psicologica 68 Reaces Racionalistas ao Empirismo 71 fric ilhelm_ riz (1 1716) 72 immanuel Kant (1724-1804) 73 Em Perspectiva_73 Resumo_74 ‘Questdes para Estudo 75 Questoes sobre o Trecho da Fonte Original 76 Leitura Suplementar 76 CAPITULO 3 O.CONTEXTO NEUROFISIOLOGICO_77 A Ciencia Heroica na Era do lluminismo 78 A Fisiologia dos Sentidos 79 O Ato Reflexo 80 A Lei de Bell-Magendie 81 As Energias Especificas dos Nervos 83 Helmholtz: 0 Fisislogo dos Fisidlogos 83 calizacho da Fui ral A Frenologia de Gall e Spurzheim 89 CLOSE-UP: O Marketing da Frenologia 92 Flourens ¢ 0 Método da Ablacto 94 © Método Clinico 95 ‘TRECHO DE FONTE ORIGINAL: Broca Descobre 0 Centro da Fala 96 Mapeando 0 Cerebro: A Estimulagao Eletrica 99 Estudos do Inicio do Século XX sobre 0 Comportamento € 0 Sistema Nervoso 101 A Teoria dos NeurOnios 101 Sir Charles Sherrington: A Sinapse 102 Karl Lashley: A Aprendizagem ¢ 0 Cortex 103 Resumo—107 Questdes para Estudo 108 ‘Questoes sobre o Trecho da Fonte Original 108 Leitura Suplementar 108 CAPITULO 4 WUNDT E A PSICOLOGIA GERMANICA_110 A Educagio na Alemanha 111 No Limiar da Psicoloy imental: ‘A Psicofisica_112 Ernst Weber (1795-1878) _113 Gustav Fechner (1801-1889) 115 Elements of Psychophysics, de Fechner_116 Wunddt Estabelece uma Nova Psicologia em Leipzig 118 10 __ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA Wilhelm Wundt (1832-1920); Criando uma Nova Ciencia 118 A Concepcio de Wundt da Nova Psicologia _120 Denuro do Laboratorio de Wund: 123 (CLOSE-UP: Um Norte-Americano em Leipzig 126 Reescrevendo a Historia: Um Wilhelm Wind Novo e Aperfeicoado_128 O Legado de Wundt_131 A Nova Psicologia se Difunde _131 Hermann Ebbinghaus (1850-1909): © Estudo Experimental da Meméria_131 TRECHO DE FONTE ORIGINAL: Ebbinghaus sobre a Memoria ¢ o Esquecimento 132 G. E. Maller (1850-1934): O Prototipo do CapiTULO 6 PIONEIROS NORTE-AMERICANOS 177. A Psicologia Norte-Americana no Século XIX_178 A Psicologia das Faculdades_178 A Universidade Moderna 180 William James (1842-1910): © Primeiro Psicologo Norte-Americano 185 Os Anos de Formacao 186 A Vida em Harvard 187 A Criagio do Livro-Texto de Psicologia mais Eamaso nos Fstados Unidos 188 TRECHO DE FONTE ORIGINAL: William James sobre a Emocdo 192 Os Ultimos Anos de James_195 Resumindo William James _196 Experimentalisia_139 G. Stanley Hall (1844-1924): Profissionalizando a Oswald Kalpe (1862-1915): A Escola de Psicologia 197 Warzburg 140 A Juventude ea Formacio de Hall 198 Resumo 142 Questoes para Estudo 143 ‘Questoes sobre o Trecho da Fonte Original 144 Leitura Suplementar 144 D SECULO DE DARWIN: QPENSAMENTO EVOLUCIONARIO 145. © Problema das Espécies_146 ‘Chailes Darwin (1809-1882) ¢ a Teoria da Evolucio_147 A For! am Naturalista_147 A Viagem do Beagle 149 A Evolucao da Teoria de Darwin 152 Darwin ¢ a Historia da Psicologia _157 As Origens da Psicologia Comparada_158 Darwin sobre a Evolucao das Expressoes Emocionais 158 CLOSE-UP: Douglas Spalding ¢ 0 Estudo Da Johns Hopkins a Clark_199 A Psicologia em Clark 200 CLOSE-UP: Criando a Aprendizagem de Labirintos 202 Mary Whiton Calkins (1863-1930): Um Desafio a0 Monopolio Masculino 206 A Vida e a Obra de Calkins 206 muna bi 7 < 2 Em Perspectiva: A Nova Psicologia no Milenio 211 Resuma 212 Questdes para Estudo 214 Questdes sobre o Trecho da Fonte Original_214 Leitura Suplementar 214 CAPITULO 7 A Psicologia de Titchener: O Estruturalismo 216 De Oxford a Comell, Passando por Experimental dos Instintos 160 Leipzig 217 George Romanes (1848-1894): O Método, Promovendo a Psicologia Experimental em ‘Anedatica 163 Comell 218 Conwy Lloyd Morgan (1852-1936): ‘© Principio da Parcimnia_164 A Psicologia Comparada nos Estados Unidos 166. © Estudo das Diferencas Individuais_166 Francis Galton (1822-1911): 0 “Homem das ‘Sete Ciencias” 166 ‘TRECHO DE FONTE ORIGINAL: Galton sobre a Medico e a Associacdo 170 © Século de Darwin em Perspectiva_173 Resumo 174 Questdes para Estudo 175 Questdes sobre o Trecho da Fonte Original 176 OSistema Estruturalista de Tichener 223 CLOSE-UP: A Atitude Introspectiva 225 Uma Avaliacao da Contribuicao de Titchener_ para. Psicologia 227 A Psicologia Norte-Americana: Q Funcionalisme 229 Os Funcionalistas de Chicago 230 Os Funcionalistas de Columbia_236 ‘TRECHO DE FONTE ORIGINAL: Tharndike sobre a Aprendizagem Animal_239 Resumo 249 tes para Estudo 250 Questies sobre o Trecho da Fonte Original 251 Leitura Suplementar 176 Leitura Suplementar_ 251 SUMARIO 11 CAPITULO 8 APLICANDO A NOVA PSICOLOGIA_252 Pressoes para a Aplicabilidade 253 © Movimento da Testagem Mental 255 James McKeen Cattell (1860-1944): Um Galion Norte-Americano 255 Alfred Binet (1857-1911); O Nascimento dos Testes de Inteligencia. 259 Henry G. Goddard (1866-1957): Teste de Binet chega aos Estados Unidos 263 Lewis M. Terman (1877-1956): A Institucionalizacio do QI_268 CLOSE-UP; Leta Hollingworth: Em Defesa das Criancas Superdotadas e pela Derrubada dos Mitos Acerca da Mulher 271 Robert M, Yerkes (1876-1956): © Programa de Testagem do Exército 274 A Controvérsia em Tomo da Inteligéncia 279 Aplicagao da Psicologia a0 Trabalho _282 Hugo Munsterberg (1863-1916): A Diversidade da Psicologia Aplicada 282 ‘TRECHO DE FONTE ORIGINAL: Hugo Mansterberg ¢ a Selecdo de Eunciondrios 284 Outros Psicologos Industriais Importantes 290 Resumo 293 Questoes para Estudo 294 Questdes sobre o Trecho da Fonte Original 295 Leitura Suplementar 295 CAPITULO 9 APSICOLOGIA DA GESTALT 296 Origens e Desenvolvimento da Psicologia da Gestalt_297 Max Wertheimer (1880-1943): O Fundador da Psicologia da Gestalt 298 Kofflka (1886-1941) ¢ Kohler (1887-1967): 0s Co-fundadores 301 CLOSE-UP: Um Caso de Espionagem? 302 A Psicologia da Gestalt e a Percepcio 304 Principios da Organizagao Percepttal 305 Ambientes Comportamentais x Geograficos 307 Q Isamorfisma Psicofisica 307 A Abordagem Gestaltista da Cognicao € da Aprendizagem 308 ‘TRECHO DE FONTE ORIGINAL: Kohler sobre a Percepcao nos Primatas 308 ‘Wertheimer sobre o Pensamento: Produtivo 313 Outras Pesquisas da Gestaltistas sobre a Cognicao 314 Kurt Lewin (1890-1947): Expandindo a Visio da Gestalt 316 Juventude e Carreira 316 Teoria de Campo _317 O Efeito Zeigarnik 319 Lewin como Psicologo do Desenvolvimento 320 Lewin como Psicdlogo Social_322 Lewin: Uma Avaliago 325 Em perspectiva: A Psicologia da Gestalt nos Estados Unidos 326 Resumo 327 ‘Questoes para Estudo 329 Questies sobre o Trecho da Fonte Original 330 Leitura Suplementar 330 CAPITULO 10 AS ORIGENS DO BEHAVIORISMO_331 Qs Antecedentes do Behaviorismo 332 ANidaea Ohrade Pavloy 334 A Griagao de um Fisiologista_334 © Trabalho no Laboratorio de Pavlov A Pesquisa Classica de Pavlov sobre 0 Condicionamento 337 Condicionamento e Extinglo 338 Pavlov € as Sovieticos 341 Pavlov e os Norte-Americanos 342 CLOSE-UP: A Distor¢do do Equipamento de Pavlov 343 John B. Watson ¢ a Fundagao do Behaviorismo 345 © Jovem Funcionalista em Chicago 345 ‘A Oportunidade Bate & Porta na Johns Hopkins 348 ‘TRECHO DE FONTE ORIGINAL: O Manifesto Behaviorista de Watson 350 ‘Uma Nova Vida na Publicidade 358 Popularizando o Behaviortsmo_359 Avaliando o Behaviorismo de Watson 360 Resumo 362 Questoes para Estudo 363 ‘Questoes sobre o Trecho da Fonte Original 363 Leitura Suplementar 364 capiTULO A.EVOLUCAO DO BEHAVIORISMO_365 © Behaviorismo Pés-Watsoniano 366 © Positivismo Logico € 0 Operacionismo_367 ONeobehaviorisme 369 Edward C, Tolman (1886-1959): Um Behaviorismo Intencionado 371 Sistema de Tolman 372 © Programa de Pesquisa de Tolman 374 Avaliando Tolman 379 336 12 __ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA Clark Hull (1884-1952): Um Sistema Hipotético-Dedutivo 381 O Sistema de Hull 384 Avaliando Hull 386 B. F Skinner (1904-1990): Um Behaviorismo Radical 389 Skinner e o Problema da Explicagio 390 Condicionamento Operante: Uma Andlise Experimental do Comportamento 390 Uma Tecnologia do Comportamento 398 CLOSE-UP: A Utopia Skinneriana 399 ‘Avaliando Skinner 401 Q Behaviorismo cm Perspectiva_ 402 Resumo 403 Questdes para Estudo 405 Questies sobre o Trecho da Fonte Original _405 Leitura Suplementar 406 CAPITULO 12 A DOENCA MENTAL E SEU TRATAMENTO 407 Os Primordios do Tratamento dos Doentes Mentais 408 A Reforma dos Manicomios: Dix e Beers 411 CLOSE-UP: O Diagndstico da Doenca Mental 413 O Mestnerismo e a Hipnose 415 © Mesmerismo ¢ 0 Magnetismo Animal 415 Do Mesmerisma a Hipnose_417 As Controvérsias sobre o Hipnotismo 418 Sigmund Freud (1856-1939): A Fundagto da Psicandlise 420 Juventude e Formagao 421 A Criagio da Psicanalise 424 TRECHO DE FONTE ORIGINAL: As Conferencias de Freud sobre a Psicandlise na Clark University 427 A Evolucao da Teoria Psicanalitica 432 Os Seguidores de Freud: Lealdade e Dissensio 434 A Psicanalise nos Estados Unidos 435 Freud em Perspectiva 436 A Psicologia Clinica nos Estados Unidos 438 Lightner Witmer (1867-1956): A Criagao da Primeira Clinica Psicologica 439 A Psicologia Clinica Antes da Segunda Guerra Mundial 441 Resumo 443 Questoes para Estudo 445 Questdes sobre o Trecho da Fonte Original 445 Leitura Suplementar 446 CAPITULO 13 OS PRATICANTES DA PSICOLOGIA_447 Pesquisadores e Praticantes 448 ‘A Emergencia da Moderna Psicologia Clinica 450 © Modelo de Boulder 450 Estudo de Eysenck: Problemas para a Psicoterapia Tradicional 451 CLOSE-UP: A Estrategia Médica: Lobotomias Transorbitais ¢ Outras 452 A Terapia do Comportamento 455 A Abordagem Humanistica da Pricoterapia 456 TRECHO DE FONTE ORIGINAL: Rogers sobre a Criacao de um Ambiente Terapeutico 459 A Conferéncia de Vail e a Tinsle de Dowor em Psicologia 464 A Psicologia eo Mundo do Comércio e da Indiistria_463 Os Estudos de Hawthorne 467 A Pratica da Psicologia em Perspectiva 469 Resumo 470 Questdes para Estudo 472 Questdes sobre o Trecho da Fonte Original 472 Leitura Suplementar 472 CAPITULO 14 A CIENCIA DA PSICOLOGIA NA ERA DO POS-GUERRA_474 A Volta da Psicologia Cognitiva 475 As Origens da Modema Psicologia Cognitiva. 475 Frederick C. Bartlett (1886-1969): A Construgio da Meméria. 476 TRECHO DE FONTE ORIGINAL: Bartlett sobre aMemoria 477 ‘Uma Convergencia de Influencias 482 CLOSE-UP: Que Revolucao? 487 Numeros Magicos, Filtros Seletivos ¢ Unidades TOTE 489 Neisser ¢ 0 “Batismo” da Psicologia Cognitiva 491 A Evolucio da Psicologia Cognitiva 493 Avaliando a Psicologia Cognitiva 497 Outras Areas de Pesquisa 497 O Cérebro eo Comportamento 498 ‘A Psicologia Social 500 A Psicologia da Personalidade 504 A Psicologia do Desenvolvimento 507 SUMARIO 13 A Psicologia da Pesquisa em Perspectiva 510 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS_527, Resumo 510 Questoes para Estudo S14 ‘Questies sobre o Trecho da Fonte Original 512 Leitura Suplementar 512 GLOSSARIO_549 CAPITULO 15 UNINDO O PASSADO E O PRESENTE DA PSICOLOGIA_514 CREDITOS DE FOTOS, TEXTOS E O Crescimento ¢ a Diversidade da ILUSTRACOES _563 Psicologia 515 As Mulheres na Histéria da Psicologia _515 As Minorias na Historia da Psicologia 519 Tendencias na Psicologia Contemporanea 522 INDICE ONOMASTICO 566 © Futuro: Uma Psicologia ou Psicologias? 523 Resumo 525 Quesides para Fstudo 525 Leitura Suplementar 526 SUMARIOS ADICIONAIS Sumario de Trechos de Fontes Originais CAPITULO 2 CAPITULO 3 CAPITULO 4 CAPITULO 5, CAPITULO 6 CAPITULO 7 CAPITULO 8 CAPITULO 9 CAPITULO 10 CAPITULO 11 CAPITULO 12 CAPITULO 13, CAPITULO 14 Descartes sobre 0 Interacionismo Mente-Corpo Broca Descobre o Centro da Fala Ebbinghaus sobre a Meméria e © Esquecimento Galton sobre a Medicao ¢ a Associagao William James sobre a Emocao Thorndike sobre a Aprendizagem Animal Hugo Miinsterberg e a Selecao de Funcionarios Kohler sobre a Percepcao nos Primatas O Manifesto Behaviorista de Watson Skinner e 0 Condicionamento Operante: Uma Andlise Experimental do Comportamento As Conferencias de Freud sobre a Psicandlise na Clark University Rogers sobre a Criacao de wm Ambiente Terapeutico Bartlett sobre a Meméria Sumario de Caixas de Datas-Chave CAPITULO 1 CAPITULO 2 CAPITULO 3 CAPITULO + CAPITULO 5 CAPITULO 6 CAPITULO 7 CAPITULO 8 CAPITULO 9 CAPITULO 10 CAPITULO 11 CAPITULO 12 CAPITULO 13 CAPITULO 14 1892 (Fundacao da APA) 1843 (Publicacao de Logic, de Mill) 1861 (O “Tan” de Broca) 1879 (O Laboratério de ‘Wundt) 1859 (Publicacdo de Origin of Species, de Darwin) 1890 (Publicacao de The Principles of Psychology, de James) 1906 (Discurso de Angell na APA) 1917 (Programa de Testagem do Exército) 1929 (Conferéncia Internacional de Yale) 1913 (Manifesto de Watson) 1953 (Publicacao de Ciencia e Comportamento Humano, de Skinner) 1900 (Publicagao de Interpretacao dos Sonhos, de Freud) 1949 (Conferencia de Boulder) 1932 (Publicacao do Livro de Bartlett sobre a Memoria) CAPITULO 1 INTRODUCAO A HISTORIA DA PSICOLOGIA Os assentos do trem do progresso séo todos voltados para trés: embora seja possivel ver o passado, 86 podemos adivinhar o futuro. No entanto, o conheci- ‘mento da historia — apesar de jamais poder ser completo e, desgracadamer te, falhar na previsio do futuro — tem uma tremenda capacidade de dar si ficado & compreensao do presente. —E.G. Boring, 1963 VISAO GERAL E OBJETIVOS DO CAPITULO Este capitulo se inicia com a descricao da evolucao do interesse da psico- logia no seu passado e das razoes pelas quais ¢ importante conhecer e sa- ber apreciar a historia. Sera feita uma comparagao entre as historias tra- dicionais da psicologia — que enfatizam a contribuigdo dos psicslogos mais importantes, 0s resultados de experimentos famosos e os debates en- tre os defensores de diferentes “escolas” psicolégicas — e a abordagem mais nova, que procura situar os fatos e as pessoas no contexto historico mais amplo. Este capitulo avalia ainda os métodos usados pelos historia- dores na pesquisa histérica e os problemas que enfrentam ao construir uma narrativa historica com base nos dados coletados. Apés a conclusio deste capitulo, vocé deve ser capaz de: ™ Apontar os eventos dos anos 60 que levaram a renovacao do interesse pela historia da psicologia ® Explicar as razdes gerais que tornam importante a compreensao da historia = Explicar as raz6es especificas pelas quais ¢ importante para os alunos de psicologia compreender a historia da psicologia & Distinguir entre a “nova” e a “antiga” historia, na acepgdo dada aos ter- mos por Furumoto ® Distinguir a visao historicista da visdo presentista da historia e identifi- car 0s riscos que Ihe sao inerentes ® Distinguir a historia interna da historia externa da psicologia ¢ as van- tagens da analise de cada uma ® Definir 0 apelo e os problemas da abordagem personalista da historia ® Descrever a abordagem naturalista da historia, o tipo de provas que uti- liza (por exemplo, muiltiplos) e suas limitacdes ® Definir a historiografia e descrever os problemas de interpretacao e se- lecao enfrentados pelos historiadores © Distinguir entre fontes primarias ¢ fontes secundarias de informagio historica ¢ descrever os tipos de informagdes de fontes primarias geral- mente encontrados pelos historiadores em arquivos ® Explicar como o processo de fazer historia pode trazer um certo grau de seguranga na obtengao da verdade 18 _ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA APSICOLOGIA E SUA HISTORIA O numero cem ¢ um bom numero redondo ¢ um centendrio ¢ motivo suficiente para comemoracao. Nos tltimos anos, os psico- logos que tém senso historico tém tido mui- to que celebrar. As festividades comegaram em 1979, com o centenario da fundacao do laboratorio de Wilhelm Wundt em Leipzig, Alemanha. Em 1992, a APA (American Psychology Association) promoveu uma sé- rie de eventos ao longo de um ano para co- memorar o centendrio de sua fundacao no estudio de G. Stanley Hall, na Clark Univer- sity, em 8 de julho de 1892. Durante esse ano, sairam varios artigos sobre historia em todas as publicagdes da APA e um numero especial da American Psychology foi dedica- do a historia; varios livros sobre a historia da APA foram encomendados (por exem- plo, Evans, Sexton e Cadwallader, 1992); varias convengdes regionais enfocaram te- mas histéricos, e a convencao anual, em Washington, D.C., contou com eventos que iam desde os habituais simposios e discur- sos sobre historia até um baile de gala na Union Station com trajes de época (ou seja, 1892) e um imenso bolo de aniversario. O interesse pela historia da psicologia nao se limitou as comemoracdes do centendrio, naturalmente. As historias da psicologia vem sendo escritas desde o surgimento da propria psicologia no cenario académico (por exem- plo, Baldwin, 1913) e pelo menos dois dos mais famosos livros de psicologia — A His- tory of Experimental Psychology, de Boring (1929; 1950), e Seven Psychologies, de Edna Heidbreder (1933) — sao historias. Mas s6 a partir da década de 60 € que se pode dizer que houve um interesse significativo pela historia da psicologia como area especializada de pes- quisa. Ao longo dessa década, varios pesq sadores com formagao em psicologia e um vo interesse pela historia reuniram-se ¢ comegaram a fazer as coisas que marcam a criacdo de uma nova disciplina especializada — fundaram organizacées, criaram uma pu- blicacdo e estabeleceram as bases para a pro- ducio de pesquisa Muita gente estava envolvida, mas o maior impulso veio de um psicologo clini- co que tinha paixao pela historia, Robert I. Watson (1909-1980). Ele comegou com um grito de guerra, um artigo publicado no American Psychologist intitulado “The His- tory of Psychology: A Neglected Area’/A historia da psicologia: uma area negligen- ciada (Watson, 1960). Watson conseguiu mobilizar um grupo de psicdlogos com idéias afins dentro da APA para formar um grupo de historia da psicologia que culmi- nou com a criagdo de uma nova secao da APA (n* 26) em 1965 (Hilgard, 1982). Nao € de surpreender, portanto, que Watson te- nha sido o primeiro presidente dessa secao. Também em 1965, (a) John Popplestone e Marion White McPherson (outros dois cli- nicos apaixonados por historia) fundaram Este ano marcou a fundacao da American Psychology Association. Os seguintes fatos também ocorreram: + Foi langada a primeira central telefonica automatica * Diesel patenteou seu motor de combustao interna + “Gentleman Jim” Corbett derrotou John L. Sullivan na disputa pelo titulo dos pesos pesados + Tchaikovsky criou o balé Quebra-nozes * Toulouse Lautree pintou No Moulin Rouge * Grover Cleveland foi eleito presidente dos Estados Unidos + Nasceram: Francisco Franco, ditador espanhol Pearl S. Buck, romancista norte- americana vencedora do premio Nobel J. R.R. Tolkien, filologista e escritor britanico * Morreram: Walt Whitman, poeta norte-americano Alfred Lord Tennyson, poeta britanico INTRODUGAO A HISTORIA DA PSICOLOGIA 19 os arquivos da Historia da Psicologia Ame- ricana, na University of Akron, e convida- ram Watson para exercer a presidéncia do conselho da entidade, e (b) foi publicado o primeiro numero do Journal of the History of the Behavioral Sciences, editado por Watson, Alguns anos mais tarde, como parte de uma reorganizacao de seus programas de pés- graduacao, a University of New Hampshire criou o primeiro doutorado em historia da psicologia. Adivinhe quem foi o primeiro diretor desse curso? Por fim, também sob a lideranga de Watson, Joseph Brozek e Bar- bara Ross, a National Science Foundation patrocinou um curso de verdo de seis sema- nas no campus da UNH em 1968, que deu origem a ultima realizagdo de Watson, a Cheiron Society, uma “Sociedade Interna- cional para a Historia das Ciencias do Com- portamento e da Sociedade” (Brozek, Wat- son € Ross, 1970). No espaco de dez anos, entao, Watson foi o principal motor no de- senvolvimento da historia da psicologia co- mo especialidade de pesquisa. Ao longo dos tltimos 35 anos, o interes- se pela historia da psicologia tem crescido a um ritmo constante. Por exemplo, o numero de membros da segao 26 da APA em 2003 beirava oitocentos, em relagao aos 234 que se associaram como membros estatutarios em 1965. O mesmio se aplica a Cheiron Society. Os psicélogos também reconhecem a impor- tancia do curso de historia para 0 curriculo de psicologia. Na ultima conferéncia sobre 0 curriculo da graduacao, ocorrida no St. Mary’s College, Maryland, em 1991, uma das recomendacdes do grupo foi a inclusto no curriculo de um curso que promovesse a in- tegragao da experiencia adquirida pelos alu- nos em outros cursos. E 0 curso de historia e sistemas foi mencionado como 0 exemplo por exceléncia desse tipo de disciplina (Lloyd e Brewer, 1992). Em uma recente pes- quisa do “estado atual” do curso de histéria da psicologia, Fuchs e Viney (2002) levanta- ram a questio da possibilidade de o contew- do programatico e de os livros-texto nem sempre tefletirem os desdobramentos mais recentes da historia da psicologia, mas con- firmaram que praticamente todas as faculda- des de psicologia oferecem o curso e que em mais da metade delas ele ¢ obrigatorio para os alunos de psicologia. No geral, eles deram ‘o-curso de historia da psicologia por “firme e forte” (p. 12). ‘A despeito do consenso entre os psicé- logos sobre a importancia do estudo da historia da disciplina, os alunos de psico- logia muitas vezes se surpreendem ao sa- her que esse curso € oferecido e talvez exi- gido em sua faculdade. Eles vao conversar com os amigos que fazem quimica e desco- brem que 14 nao ha nada comparavel. En- to procuram o catdlogo de cursos da uni- versidade e véem que 0 curso que mais se parece € o de Historia da Ciencia, mas € ministrado pela faculdade de historia, ¢ nao por um dos departamentos de cién- cias. O que esta acontecendo? Por que existe um curso de historia da psicologia, dado por um psicdlogo, ¢ nao um de hist6- ria da quimica, dado por um quimico? A logica subjacente ao curso de historia da psicologia ¢ importante e merece ao me- nos uma breve consideracao. Primeiro, po- rém, analisemos a questao mais geral da ra- zao da importancia de se estudar a historia de qualquer coisa, seja o que for. Vejamos se, como disse Henry Ford, a “historia mais ou menos uma bobagem” ou se é mais provavel, para usarmos as palavras de Abra- ham Lincoln, que “nao podemos escapar da historia” (ambas as citagdes extraidas de Si- monton, 1994, p, 3) ¢ que “negligenciar a historia nao significa fugir a sua influén- cia”, conforme declarou Robert Watson (1960, p. 255) em seu apelo a que os psicd- logos se envolvessem mais com a historia da sua disciplina. POR QUE ESTUDAR HISTORIA? Em todo curso de historia que vocé ja fez repetiu-se que conhecer a historia ajuda- nos a evitar os erros do passado e da-nos um guia para o futuro. Ha uma dose de ver- dade nessas velhas e batidas afirmacoes, 20 _ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA mas ambas sdo um pouco simplistas, Em relacdo ao argumento dos “erros”, boa par- te da historia parece demonstrar que, em vez de aprender com o passado, os seres humanos deliberadamente o ignoram. Essa possibilidade levou o fildsofo e historiador G. W. F Hegel a recear que a tinica verda- deira ligao da historia € que as pessoas nao aprendem nada com a historia (Gilderhus, 2000). Isso naturalmente é€ um exagero. Tambem ¢ verdade que, quando tentamos convencer alguém a fazer qualquer coisa, parte do argumento passa geralmente por referencias ao passado. E se aparentemente ignoramos 0 passado mais do que Ihe da- mos atencao, também € verdade que 0 co- nhecimento do passado propicia apenas um guia muito tosco, pois a historia jamais se repete. Todo fato esta preso ao contexto histrico em que ocorre € nao ha um que seja igual ao outro. A historia também nao € um guia muito confiavel do futuro, algo admitido pelos historiadores, embora esse reconhecimento raramente os impeca de arriscar previsdes. Em seu celebrado What is history?, por exemplo, o historiador E. H. Carr diz que “os bons historiadores, sus- peito, tém o futuro nos ossos, pensem nele ou nao. Além de perguntar ‘por qué?’, 0 historiador também pergunta ‘para onde?” (1961, pp. 142-143). Talvez sim, mas vale a pena observar que tudo o que eu ja ouvi ou li que tivesse por meta a previsao do fu- turo comegava com essa mesma declaragio de isengao de responsabilidade. Quem fala- va ow escrevia, sempre comecava fazendo de tudo para garantir a seu publico que as previsdes sobre o futuro sio notoriamente imprecisas. Como disse 0 eminente histo- riador da psicologia E. G. Boring, “O pas- sado nao é uma bola de cristal. Ele tem em si mais ‘de onde’ que ‘para onde’. Os assen- tos do trem do progresso sao todos volta- dos para tras: embora seja possivel ver 0 passado, so podemos adivinhar o futuro” (1961, p. 5) Se o conhecimento da historia nao € ga- rantia de que nao haja repeticao de erros e se a historia é, na melhor das hipoteses, um meio imperfeito de prever o futuro, entao o que nos resta? O presente. Na frase que vem imediatamente apés as da citagdo que acabo de fazer, Boring disse: “No entanto, o conhe- cimento da historia — apesar de jamais po- der ser completo e, desgracadamente, falhar na previsdo do futuro — tem uma tremenda capacidade de dar significado a compreen- sao do presente” (1961, p. 5). Acredito que a mais importante razdo que possamos ter para estudar historia ¢ que o presente em que vivemos nao pode ser compreendido sem algum conhecimento do passado; de como o presente se tornou o que ¢. O histo- riador David McCullough (1992) expressou essa idéia com elogiéncia num discurso de formatura, quando tragou uma analogia en- tre conhecer a historia e conhecer alguem a quem amamos: Imaginem um homem que professa continua- mente seu amor eterno a uma mulher, mas nio sabe onde cla nasceu, quem eram seus pais, que escola freqaentou, nem como foi a vida dela até 0 dia em que ele chegou —e que, além disso, nao se importa em nao saber. O que voce pensaria dessa pessoa? No entanto, nos aparentemente temos um contingente inesgotavel de patriotas que ndo sabem nada da historia deste pais nem estao interessados em saber, (p. 222, italico no original) Pense em qualquer fato da atualidade vera que ¢ impossivel entendé-lo realmente sem conhecer um pouco da historia de que ele € fruto. Pense, por exemplo, na historia recente da psicologia. Estou certo de que voc jd ouviu falar da APA, a American Psychology Association. Talvez voce tam- bém conheca ou tenha ouvido falar da APS, American Psychological Society, Vocé pode até saber que a APS ¢ relativamente nova, pois surgiu em 1988, Talvez vocé saiba que a APS esta mais voltada para a pesquisa cientifica que a APA, embora talvez possa também nao ter tanta certeza disso e agora estar se perguntando por que existem duas organizacdes para psicologos. Conhecer um pouco de historia o ajudaria a entender is- INTRODUGAO A HISTORIA DA PSICOLOGIA 21 so. Especificamente, sua compreensio da razao da existéncia da APS e de qual a sua finalidade seria muito maior se vocé sou- besse das tensdes antigas entre os psicolo- gos dedicados a pesquisa e aqueles cujo in- teresse principal ¢ a pratica profissional da psicologia, isto é, a psicoterapia. O proble- ma remonta aos primordios da APA, no fi- nal do século XIX, e contribuiu para a for- magao de um grupo a parte em 1904: os “experimentalistas” (a historia desse grupo notavel é detalhada no Capitulo 7). Alem disso, quando a APA foi reorganizada apos a Segunda Guerra Mundial, a estrutura de secdes que existe hoje em dia foi pensada em parte para conciliar as metas conflitivas de cientistas € praticantes. A boa vontade que acompanhou o fim da guerra levou os que tinham interesses diferentes na psicolo- gia. a uma unido, mas esta nao durou muito. Sem saber algo dessa historia, vocé jamais poderia ter uma boa compreensio da APS, da razao por que ela existe hoje ou por que ha uma tensao persistente entre os lideres da APS ea estrutura que rege a APA. Outro aspecto da importancia de conhe- cer © passado para entender o presente € que conhecer a histéria ajuda-nos a ver 0 presente de uma perspectiva melhor. No mesmo discurso de formatura que cito aci- ma, David McCullough conta um encontro que teve com uma amiga muito instruida que acabava de visitar 0 Memorial do Viet- na em Washington. E, como todos os que 0 fazem, estava visivelmente emocionada. Ela perguntou a McCullough se conhecia 0 lo- cal, € este respondeu que sim, que o havia conhecido no mesmo dia em que visitara Antietam, um campo de batalha da Guerra Civil, que fica proximo. McCullough ficou espantado ao saber que a amiga nunca ha- via ouvido falar nessa batalha, na qual em um s6 dia perderam-se mais vidas que em qualquer outro dia na historia dos Estados Unidos. McCullough disse-Ihe que 0 Me- morial do Vietnd relaciona os nomes de 57 mil norte-americanos mortos ao longo de onze anos, mas que sO no dia 17 de setem- bro de 1862, em Antietam, morreram 23 mil pessoas. Conhecer o episédio de Antie- tam nao diminui de modo algum a tragédia da guerra do Vietna. Sem diivida, todo nor- te-americano deveria visitar 0 Memorial, mas uma importante perspectiva ¢ obtida quando se conhece a historia do campo de batalha, que esta no alto da mesma rua. Es- se tipo de informagao traz uma apreciacdo do sacrificio daqueles que viveram em ou- tras épocas e uma compreensio da idéia de que a guerra € a morte insensata nao esto exclusivamente relacionadas com um tinico periodo da historia recente. © conhecimento da historia propicia perspectiva para o presente de mais uma ma- neira: as vezes acreditamos que a época em que vivemos é, como disse Dickens, “a pior de todas”. Queixamo-nos dos problemas aparentemente insoltiveis que acompanham a vida no inicio do século XXI. Desejamos voltar aos “velhos tempos”, uma época mais simples em que ninguém trancava a porta e se podia comprar uma boa casa em um kit da Sears (verdade!). Achamos que realmente havia lugares comoa rua principal da Disney World. Mas 0 conhecimento da historia € um bom corretivo aqui. O conhecido historiador ex-funcionario da Biblioteca do Congresso Daniel Boorstin descreve essa falacia em um artigo de 1971, intitulado “The Prison of the Present” (A prisio do presente): Gritamos contra a poluigao ambiental, como se ela tivesse comecado com a era do auto- mével. Comparamos 0 nosso ar no com 0 cheiro de excremento de cavalo, a praga das moscas ou o fedor de lixo e fezes humanas que enchia as cidades do pasado, mas com © perfume de madressilva de alguma inexis- temte Cidade Bela. Ainda que a agua de mut: tas cidades de hoje nao seja potavel, (...) es- quecemos que a0 longo da maior parte da historia a agua das cidades (e do campo) nao podia ser bebida, Reprovamo-nos pelos ma- les das doencas ¢ da desnutriclo ¢ esquece- mos que, até pouco tempo atris, a enterite, 0 sarampo € a coquehuche, a difteria e a febre tifdide eram doencas infantis letais (..) fe] a polio, um monstro do verio. (pp. 47-48) 22 __HISTORIADAPSICOLOGIA MODERNA, Conhecer a historia n4o dara respostas faceis para os atuais problemas, mas certa- mente nos imunizara contra a crenca de que esses problemas so muitas vezes piores do que eram. Na verdade, conhecendo 0 pas- sado, poderemos estabelecer uma relacao mais confortavel com ele e, sabendo como outros lutaram com problemas semelhan- tes, poderemos ter uma orientagdo no pre- sente. Ha, pelo menos, a possibilidade de aprendermos com o passado. Além de permitir-nos compreender me- thor o presente, o estudo da historia tem ou- was vantagens, Por exemplo, obriga-nos a um ajuste de atitude, mantém-nos humildes. As vezes, a ignorancia do passado pode le- var-nos a crer que presente seja a culmi- nacao de séculos de progresso ¢ que o pen- samento € os avancos de hoje sejam mais sofisticados, superando em muito os do pas- sado, rudimentar e sem fundamentos. Con- tudo, 0 conhecimento da historia permi- te-nos compreender que cada era tem suas realizages maravilhosas ¢ proprias ¢ seus proprios génios criadores. Os neurocientis- tas da atualidade fazem descobertas fasci- nantes a cada dia, mas a importancia dessas descobertas ¢ a qualidade de seu pensamen- to cientifico nao supera a elegancia das in- vestigagdes novecentistas de Pierre Flourens sobre cérebro, que afinal desmentiram a frenologia (consulte o Capitulo 3). Finalmente, estudar a histéria significa, em ultima analise, buscar respostas para uma das mais fundamentais e desconcertan- tes perguntas da vida: O que significa ser hu- mano? Ou seja, estudar a historia da Segun- da Guerra Mundial € pesquisar a natureza essencial do preconceito, da agressividade e da violéncia. Estudar a Revolucio America- na ¢ analisar o desejo humano de liberdade e autodeterminacdo. Estudar a historia da arte no Renascimento € estudar a paixao humana pelo prazer estético. E, na medida em que a historia envolve o comportamento humano em situagoes diversas, estudar a historia sig- nifica estudar e tentar compreender 0 com- portamento humano. Bastaria esse motivo Para os psicdlogos terem interesse por ela. POR QUE ESTUDAR A HISTORIA DA PSICOLOGIA? As razbes precedentes para o estudo da his- toria so, por si s6s, suficientes para justifi- car 0 estudo da historia da psicologia, mas ainda ha outras. Primeiro, comparada a ou- tras ciéncias, a psicologia ainda esta na ten- ra infancia, ja que tem pouco mais de cem anos de idade. Boa parte dos demais cursos que voce fez remonta a pelo menos metade desses anos, ¢ muitos dos assim chamados estudos clissicos que vocé analisou (por exemplo, as de Pavlov sobre 0 condiciona- mento) formam parte importante da pri- meira metade desses anos. Assim, a psicolo- gia moderna esta estreitamente ligada a seu passado; para ser um psicdlogo informado, voce precisa necessariamente conhecer um pouco de historia. Uma segunda razdo relacionada para imteresse pela historia da psicologia entre os psiclogos é que o campo ainda esta as vol- las com muitas das mesmas questes que 0 ocupavam ha um século. Por conseguin- te, uma questao importante atualmente ¢ a possibilidade de haver heranea de tracos co- mo a inteligéncia, a timidez e a esquizofre- nia. A questao do inato X adquirido, popu- Jarizada inicialmente ha mais de 130 anos por Sir Francis Galton (Confira o Capitulo 5), reverbera ao longo da historia da psico- logia. Ao conhecer os argumentos feitos ho- je sobre a influéncia relativa da heredita- riedade e do meio e comparando-os aqueles apresentados em outras €pocas, 0 psicologo teri uma compreensdo mais informada da questao. Ao familiarizar-se com as origens ¢ o desenvolvimento inicial do conceito do QI, os psicélogos contemporaneos poderio compreender mais profundamente os pro- blemas que o cercam Antes, levantei a questao da presenca de um curso de historia da psicologia e da auséncia de um curso de historia da quimi- ca. Embora a compreensio da pesquisa atual e dos problemas conexos seja essen- cial na psicologia, a situagao é um tanto di- ferente na quimica. Embora seja fascinan- INTRODUGAO AHISTORIADAPSICOLOGIA_23 te, e tenha muito a ensinar-nos sobre o mo- do como a ciéncia funciona e evolui, a toria da alquimia nao informa os alunos de hoje sobre as propriedades quimicas do chumbo ou do ouro. Os quimicos, que ten- dem a pensar (com ingenuidade, diga-se de passagem) em sua ciéncia como progre- dindo gradualmente dos erros do passado a verdade do presente, normalmente nao se interessam em encher a cabeca de seus alunos com idéias “antigas”. Ha algo ver- dadeiro nesse modelo da ciéncia como avango através da historia (ninguém mais tenta atingir a meta dos alquimistas de transformar chumbo em ouro), mas de to- do modo € triste que tantos cientisias dei- xem de reconhecer o valor do estudo da historia de sua disciplina. No minimo, ele enriqueceria sua formacao e lhes ensinaria alguma coisa sobre a evolucio do pensa- mento cientifico. Com efeito, deveria ha- ver um curso de histéria da quimica para os alunos dessa area. Uma terceira razio para a existéncia de um curso de historia da psicologia € que ele pode propiciar uma certa coesdo num cam- po que se diversificou e se tornou altamen- te especializado. Apesar de sua juventude, a psicologia no inicio do século XX caracteri- zou-se pela falta de unidade. Para alguns observadores (por exemplo, Koch, 1992), inclusive, a psicologia ja ndo existe como campo tinico — 0 neuracientista que inves- tiga o funcionamento das endorfinas nao te- ria praticamente nada em comum com o psicologo industrial que estuda a eficacia de diferentes tipos de administragao. No en- tanto, todos os psicélogos tém algo em co- mum: sua historia. Para 0 aluno que fez di- versos cursos aparentemente desconexos, como psicologia do desenvolvimento, so- cial e do anormal, o curso de historia repre- senta uma experiéncia de sintese. Quando voce chegar ao tiltimo capitulo deste livro, onde a questao da crescente especializacao da area voltara a ser abordada, tera aprendi- do o bastante para entender as inter-rela- des existentes entre as diferentes sub-areas da psicologia. Em quarto lugar, a compreensao da his- toria da psicologia contribuira para tornd-lo um pensador mais critico. Consciente da historia dos varios tratamentos para os dis- turbios psicolégicos, 0 psicélogo rigoroso estara mais apto a avaliar supostos “avancos revolucionarios” na psicoterapia. A analise mais atenta de uma terapia que se apresenta como tnica pode revelar pontos em comum com abordagens anteriores. O psicélogo versado em historia também sabera que, em muitas ocasides, o entusiasmo inicial diante de uma nova terapia muito falada ¢ ameni- zado por uma posterior incapacidade de provar que ela funciona. Além disso, conhe- cendo 0 curso do desenvolvimento de varias abordagens pseudocientificas da psicotera- pia na historia e as caracteristicas que com- partilham, o psicdlogo podera identificar a presenca de uma realmente nova. Por ultimo, o curso de historia da psico- logia pode ser um curso de historia, mas é também de psicologia. Por isso, um de seus objetivos é continuar a informar-nos sobre © comportamento humano. O estudo de vultos da historia e sua contribuigao para o desenvolvimento da psicologia sé podera aumentar a nossa compreensao do que faz as pessoas agirem como agem. Por exem- plo, nossa compreensao da criatividade cientifica pode enriquecer-se com o estudo da vida e da obra de personagens criativos da historia (Hermann Ebbinghaus ¢ um bom exemplo; seu trabalho ¢ apresentado no Capitulo 4). Podemos ganhar alguma percepcao da psicologia da controversia € da adesao rigida e dogmatica a conviccoes proprias estudando 0 comportamento dos cientistas que entraram em debates amargos com seus pares (confira, por exemplo, a po- lemica Baldwin-Titchener no Capitulo 7). Em geral, se todo comportamento humano € 0 reflexo de uma complexa interacao do individuo com o meio em que vive, entao 0 estudo das vidas de figuras da historia sen- do influenciadas pelo ambiente e, por sua vez, influindo sobre ele sé aumentard a nos- sa compreensao das forcas que afetam o comportamento humano. 24 HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA QUESTOES-CHAVE NA HISTORIA DA PSICOLOGIA Segundo uma concepcao falsa ¢ muito gene- ralizada da historia, os historiadores simples- mente “procuram saber 0 que aconteceu” depois colocam isso por escrito em ordem cronoldgica. Conforme vocé aprendera nas duas proximas segdes deste capitulo, 0 pro- cesso € infinitamente mais complicado. Quando exercem seu oficio, os historiadores precisam enfrentar diversas questoes impor- tantes e assumir uma posicao. Historia Velha x Historia Nova Em 1980, a APA criou a G. Stanley Hall Lec- ture Series. Trata-se de uma série de pales- tras proferidas por psicdlogos de destaque, destinadas a contribuir para a instrucao dos alunos da graduagao informando os profes- sores acerca dos avangos mais recentes das varias sub-areas da psicologia. Em 1988, Laurel Furumoto, psicéloga e historiadora do Wellesley College, fez a primeira da sé- rie de palestras dedicadas ao ensino de his toria da psicologia. Seu foco recaiu na dis- tincao entre 0 que ela denominou historia “velha” ¢ historia “nova”. De acordo com Furumoto (1989), a ve- Tha historia da psicologia seria aquela que da enfase as realizacdes dos “grandes” fil6- sofos e psicdlogos ¢ concentra-se em cele- brar os “estudos classicos” ¢ as “descober- tas revolucionarias”. Dentro da area, a preservacao ¢ difusao desses “grandes acon- tecimentos” ajudou a psicologia a criar uma identidade como disciplina cientifica. Os marcos, descritos acuradamente ou nao, 40 passados de um texto de hist6ria a outro, ja que seus autores costumam recorrer bastan- tea fontes secundarias (isto é, textos de his- toria anteriores). Além disso, as percepcoes € realizacdes pregressas sao valorizadas ape- nas em funcao do seu poder de “antecipar” alguma idéia ou resultado de pesquisa da modernidade. A pesquisa antiga que nao tem validade atual é considerada errada ou curiosa, sendo descartada ou mostrada co- mo exemplo “do quanto progredimos”. As- sim, do ponto de vista da historia velha, o objetivo da historia da psicologia ¢ ressaltar e mesmo glorificar a psicologia atual, mos- trando como esta surgi triunfante das obs- curas profundezas do seu passado. Ainda segundo Furumoto, a historia ve- Iha tende a ser presentista, interna e perso- nalistica. A historia nova, por outro lado, € mais historicista, externa e naturalistica. Examinemos esses conceitos um pouco mais detalhadamente. Presentismo x Historicismo Anteriormente, argumentei que uma das razdes mais importantes para o estudo da historia é a melhor compreensio do que se passa no presente. Esse é, de fato, um argu- mento valido. Mas, por outro lado, inter- pretar o passado em termos apenas de con- ceitos e valores do presente € incorrer no que George Stocking (1965) chamou de presentismo. Em editorial publicado no vo- lume de abertura do Journal of the History of the Behavioral Sciences, ele opds 0 presentis- mo a uma abordagem denominada histori- cismo. Conforme descreve Stocking, pre- sentista interpreta os eventos historicos apenas em relacdo ao conhecimento e aos valores modernos, ao passo que 0 histori- cista tenta entender 0 mesmo evento em termos do conhecimento ¢ dos valores vi- gentes a época desse evento, Como 0 histo- ricista procura situar os fatos historicos no contexto geral das épocas em que transcor- reram, essa abordagem é por vezes chama- da de abordagem contextual da historia Em termos absolutos, € impossivel evi- tar o pensamento presentista. Nosso pensa- mento hoje foi moldado pelas experiencias que tivemos, e nao podemos simplesmente ignord-las, Para exemplificar, pensemos nas ocasides nas quais tivemos de tomar a mes- ma decisio essencial em dois diferentes mo- mentos. Suponha que vocé acaba de com- ptar um computador para substituir o que havia comprado cinco anos antes. Agora voce poderia dizer para si mesmo: “Mas co- mo € que pude ter tdo pouca visio de futu- INTRODUCAO A HISTORIA DA PSICOLOGIA 25. ro naquela época? Comprar um computa- dor de apenas 100MB de disco rigido!” $6 que eu estaria esquecendo o contexto origi- nal em que esse computador foi comprado, quando um disco de 100MB era apropriado. Assim, é facil criticar 0 passado quando a base € 0 conhecimento do presente. Tam- bém é facil pensar que, por ter passado de um disco rigido de 100MB para 10GB, por exemplo, voce progrediu em termos de to- mada de decisdes. O disco de maior capaci- dade de fato pode tornar a sua vida mais fa- cil agora (ou seja, houve algum progresso), mas isso no quer dizer que voce seja capaz de tomar decisdes melhores agora que ha cinco anos. A antiga decisao pode parecer burrice, mas s6 por causa do que sabemos agora. Naquele momento, era uma decisio tdo sensata quanto a que vocé toma no pre- sente ao comprar um computador com dis- co de 10GB. Para entender essa decisao, precisamos evitar vé-la & luz do que sabe- mos agora. Para ilustrar a questao usando um fato histérico mais complexo que a compra de um computador, pensemos em alguns as- pectos da historia da testagem da inteligen- cia. Como vocé vai ver no Capitulo 8, nos anos imediatamente anteriores a Primeira Guerra Mundial, Henry Goddard, um nor- te-americano encarregado de aplicar testes de inteligéncia, foi convidado a ilha de El- lis, a fim de colaborar na triagem de imi- grantes, Os imigrantes considerados “inca- pazes” por qualquer razdo eram enviados de volta a seus paises de origem. Goddard ti- nha plena conviccao de que a inteligéncia era hereditaria e podia ser medida com uma tecnologia absolutamente nova — algo que havia sido criado na Franga e comegava a ser chamado de teste de Ql. Goddard usou uma versao desse teste, traduzida por ele do francés, para identificar os imigrantes que fossem “mentalmente deficientes”. Ele che- gou até a convencer as autoridades de que podia identificar esses imigrantes simples- mente olhando para eles. Seu trabalho con- tribuiu para a questionavel deportagao de um numero incalculavel de pessoas, e sua conclusao de que grande parte dos imigran- tes eram “imbecis”* contribuiu para criar 0 clima que levou 0 Congresso a decretar co- tas restritivas a imigrac4o em 1924. Do pon- to de vista de hoje, com base em mais ou menos 75 anos de pesquisa, conhecemos os problemas com os testes de QI a necessi- dade de cautela aos aplica-los ¢ interpreta- los, Por conseguinte, podemos achar dificil de acreditar que um homem inteligente co- mo Goddard possa ter sido t4o tendencioso. Porém, para entender realmente o seu com- portamento, é necessario estuda-lo do pon- to de vista do contexto historico em que se processou, ¢ nao do presente. Isso implica saber de fatos como (a) a forte influéncia do pensamento darwiniano sobre os responsa- veis pela aplicacao de testes psicologicos época, que os predispunha facilmente a crer que a inteligéncia era um traco selecionado pela natureza, e permitia a uma espécie fisi- camente fraca (como a humana) adaptar-se ao meio ambiente durante a “luta pela so- brevivencia’, sendo portanto herdada, (b) 0 medo da nacao de ver-se invadida por imi- grantes (a imigracao em larga escala era um fendmeno novo a época) ¢ (c) 0 pressupos- to — ainda nao colocado em questao por coisas como bombas atomicas ¢ aerossois — de que toda nova tecnologia (como os testes de QU) que tivesse 0 selo de aprova- cdo da “ciencia” tinha de ser boa. A lista po- deria ir adiante, mas 0 ponto esta claro, O trabalho de Goddard nao pode ser avaliado com justica pelos padrdes modernos; ele so pode ser compreendido no contexto de sua €poca. Por outro lado, seu trabalho tem re- levancia para nds no presente, Conhecen- do-o, podemos (a) compreender melhor a moderna inquietude diante da imigracao, (b) informar-nos sobre a sutil influéncia do racismo e outras formas de intolerancia, mesmo em pessoas inteligentes, ¢ (c) acau- telar-nos devidamente com relacdo as su- joddard inventou o termo “moron”, equivalente a *imbecil”, para definir uma subcategoria da “de- bilidade mental” (N. T). 26 HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA postas maravilhas propiciadas pelas novas tecnologias atuais. O episodio Goddard ilustra 0 quanto é dificil evitarmos a perspectiva presentista. Afinal de contas, somos produto de nossa histéria individual e talvez nos seja impos- sivel pensar como se nao conhecéssemos a MTY, os computadores, a Segunda Guerra Mundial ou os eventos de 1] de setembro de 2001. Contudo, tanto para o historiador quanto para aquele que le historia, € impor- tante estar pelo menos ciente dos riscos da visao estritamente presentista da historia ¢ buscar constantemente entender os episo- dios da historia em seus proprios termos. E preciso reconhecer, como afirma o historia- dor Bernard Baylin (Lathem, 1994) que “o passado ¢ nao apenas distante, mas diferen- te” (p. 53). Baylin observa que o maior obs- taculo A superagio do presentismo (ou “anacronismo”, como prefere chama-lo) € “a superacao do conhecimento do desfecho. Esse € um dos grandes impedimentos que enfrenta a historia verdadeiramente contex- tualizada” (p. 53). No que se refere a possi- bilidade de ir além do conhecimento dos desfechos ¢ superar o raciocinio presentis- ta, ele tem a seguinte sugestao: E preciso de algum modo recapturar a igno- rancia que os contemporaneos tinham do fu- turo ¢ inclui-la no quadro (...). Devernos fri- sar as contingencias, buscar os acidentes da epoca ¢ tentar atribuir o heroismo ou a vila- nia que entao eram vagos, mas que foram de- terminados por desfechos posteriores. E, se possivel, fazer um relato empatico dos per- dedores. Quando conseguimos, até certo ponto, ver os perdedores com empatia, po- demos — ao menos um pouco — superar 0 conhecimento do desfecho. (pp. 53-54) Fechemos esta segdo com um exemplo de escrita presentista que encontrei ao ler uma biografia de Sir Isaac Newton. Um dos maiores interesses de Newton era a alqui- mia, a busca de um meio de transformar ou- tros metais em ouro. Ao descrever o interes- se pelo tema de um dos predecessores de Newton, Paracelso (famoso, por sua vez, na historia da medicina), o autor diz que “[clomo muitos outros alquimistas, ele ti- nha uma fixagao estereotipica em encontrar 0 inatingivel e obter o impossivel, tendo via- jado por toda a Europa em busca dos segre- dos dos antigos, desperdicando muito de seu talento e todo o dinheiro que ganhava” (White, 1997, p. 120). Esse é um bom exem- plo de ponto de vista de quem conhece o desfecho (a alquimia fracassou) ¢ de igno- rancia da importancia da alquimia para a historia da ciéncia e do contexto histérico que, por algum tempo, viu na alquimia um esforco digno de respeito. Histéria Interna x Historia Externa As historias da psicologia muitas vezes sto escritas por psicdlogos que desejam tracar 0 desenvolvimento de teorias do comporta- mento defendidas por varios psicdlogos, com base em pesquisas realizadas por psi- célogos. Esse tipo de abordagem € conhe: do como historia interna: 0 que ¢ descrito se processa inteiramente dentro da discipli- na da psicologia. Essa abordagem tem o mé- rito de fornecer descrigdes detalhadas da evolucao da teoria e da pesquisa, mas deixa de lado as influencias exteriores 4 psicolo- gia que, apesar de tudo, influenciaram a dis- ciplina, A historia externa detém-se sobre essas influéncias. As historias internas muitas vezes sao chamadas de historias das idéias. Costu- mam ser escritas por pessoas com formagao na disciplina em foco, que tendem a ser também pessoas com pouca ou nenhuma experiéncia na drea da historia per se. Elas se voltam para dentro, concentrando-se no desenvolvimento das id¢ias em detrimento do mundo em que este se dew. As historias externas, por sua vez, adotam um ponto de vista mais amplo, analisando as influéncias sociais, econdmicas, institucionais ¢ extra- disciplinares. A historia que ¢ exclusiva- mente interna é acanhada porque perde a ri- queza do contexto historico, ao passo que a historia exclusivamente externa deixa de propiciar uma compreensio adequada das INTRODUGAO AHISTORIADA PSICOLOGIA 27 ideias ¢ contribuicdes das figuras-chave de uma disciplina. E necessario um equilibrio. A interacao entre a historia interna e a historia externa é bem demonstrada na his- toria da psicologia comparada, o estudo do comportamento animal com base na evolu- ao. Ela desenvolveu-se na segunda metade do século XIX, basicamente em razao do in- teresse em demonstrar a continuidade das espécies conforme implicava a teoria darwi- niana da evolucéo. Um dos interesses dos primeiros comparatistas era determinar até que ponto outras espécies demonstravam possuir consciéncia. Do ponto de vista da historia interna, os alunos aprendem que os psiclogos comparatistas que se debruca- ram sobre a questao contribufram para fa- zer a transicao entre a psicologia como es- tudo da consciéneia para a psicologia como estudo do comportamento. Por qué? Por- que © estudo do comportamento animal, mesmo que o interesse fosse a compreensio da “consciéncia animal”, requet o desenvol- vimento de procedimentos (por exemplo, a aprendizagem de labirintos) que envolvem a medicao objetiva de comportamentos ob- servaveis. John B. Watson, geralmente con- siderado o fundador do behaviorismo como escola de pensamento (veja o Capitulo 10), se familiarizou com a pesquisa no universo da psicologia comparada e viu como os mé- todos para o estudo de animais poderiam ser aplicados ao estudo de seres humanos também. Assim, aparentemente ha uma progressao logica entre (a) ter de usar me- todos behavioristas para o estudo de ani- mais e (b) ver que esses métodos poderiam ser usados também para o estudo de seres humanos. Na pesquisa de Watson, por exemplo, h4 uma mudanga gradual do estu- do do comportamento animal ao do com- portamento humano. Além disso, outros comparatistas da época, especialmente Ro- bert Yerkes, promoveram uma transforma cao semelhante, do estudo de animais ao de pessoas. ‘Ha uma certa verdade nessa historia in- terna da psicologia comparada. O proprio Watson afirmou que seu sistema de beha- viorismo foi, antes de mais nada, uma evo- lucdo desse trabalho com animais. Mas, ainda assim, a plena compreensao do im- pacto da psicologia comparada exige 0 co- nhecimento de alguns dos fatores externos que levaram os pesquisadores a deixar de estudar animais para estudar seres huma- nos. Considere, por exemplo, o contexto institucional. Nos primeiros anos do sécu- lo XX, a psicologia experimental era relati- vamente nova, ¢ os psicdlogos normalmen- te estavam lotados nos departamentos de filosofia. Na Iuta por uma fatia adequada do bolo do orcamento, os psicdlogos tive- ram necessidade de justificar os custos de seus laboratorios. Os membros mais anti- gos desses departamentos, geralmente da area de filosofia, as vezes nao se deixavam convencer facilmente. Uma das saidas foi demonstrar a utilidade do conhecimento psicolégico na solugdo de problemas prati- cos. Por exemplo, as vezes se argumentava que os frutos da pesquisa em psicologia po- deriam ser aplicados a melhoria do ensino. Essa questao da demonstracao da utilidade ja era dificil o bastante para os pesquisado- res que estudavam seres humanos em seus laboratorios; para psicdlogos comparatis- tas que estudavam outras espécies, era ain- da mais arduo. Seus argumentos em defesa de sua pesquisa eram ainda mais dificeis de sustentar. Além disso, havia um problema especifico a seus interesses de pesquisa: os laboratorios em que trabalhavam eram uma agressao ao olfato. O mau cheiro e a falta de ar-condicionado relegaram muitos laboratorios a cantos obscuros dos campi (O'Donnell, 1985). Para muitos, entéo, o desejo de melhorar © status institucional foi um dos principais moveis na mudanca da psicologia animal para a humana. A experiencia de Robert Yerkes ilustra 0 problema dos que pesquisavam animais. Psicélogo comparatista brilhante da Har- vard University, ele a princfpio viu-se in- centivado a dedicar-se a essa pesquisa, principalmente por razdes politicas. Har- vard queria manter sua posicao de prestigio no mundo académico, ¢ isso implicava sair- 28 HISTORIA DAPSICOLOGIA MODERNA se bem na disputa com jovens concorren- tes, como a Clark University, situada a 60 quilometros, em Worcester. Clark havia institufdo um programa forte em psicolo- gia comparada, Harvard nao podia ficar atras ¢ Yerkes foi o escolhido para carregar a tocha. Mas ele logo descobriu que seu tra- balho nao era muito valorizado num depar- tamento no qual trabalhavam trés dos mais famosos filésofos dos Estados Unidos: Jo- siah Royce, Charles S. Peirce e William Ja- mes. Ele nao era promovido, enfrentava di- ficuldades para garantir seu espaco no laboratorio e, a medida que os anos iam passando, percebeu que seu trabalho com animais era irrelevante. Para ser promovi- do, teria de dedicar-se mais “ao lado huma- no”. E foi o que acabou fazendo, primeiro escrevendo um livro-texto para a gradua- ao onde enfatizava a psicologia experi- mental humana e¢ os métodos introspecti- vos e, depois, embarcando no caso de amor da psicologia com a testagem da inteligen- cia (O'Donnell, 1985), Assim, para enten- der o abandono de alguns psiclogos do es- tudo de animais em favor do estudo de seres humanos, ¢ preciso conhecer mais que apenas as idéias que estavam sendo de- batidas dentro da disciplina. Historia Personalistica x Historia Naturalistica Alem das distingoes presentista/historicista € internwexterna, precisamos estabelecer mais uma antes de retornar a historia ve- tha/nova de Furumoto. Essa distingao ¢ a que existe entre a historia personalistica — aquela que vé nos atos dos personagens his- toricos 0 mais importante motor da historia —ca historia naturalistica — a que enfati- za 0 clima intelectual e cultural de uma de- terminada época historia, que Hegel cha- mou de Zeitgeist. Conforme a hist6ria personalistica, an- igamente chamada de teoria do “Grande homem” 0s fatos histéricos importantes re~ sultam dos atos herdicos (ou pérfidos) de individuos — e, sem esses individuos, a his- toria seria muito diferente. Essa abordagem muitas vezes ¢ associada ao historiador e ensaista do século XIX Thomas Carlyle, cujo “On Heroes, Hero Worship and the Heroic in History” (Do heroismo, da vene- racao aos herdis e do herdico na historia), escrito em 1840, é quase sempre lembrado por esta afirmacao: “A historia do que o ho- mem atingiu neste mundo € no fundo a his- toria dos grandes homens que trabalharam aqui” (citado por Boring, 1963a, p. 6). De acordo com essa visdo, pessoas como New- ton, Darwin ¢ Freud mudaram o curso da historia da ciéncia. Sem eles, a historia teria sido completamente diferente. Desse ponto de vista, o método preferencial de escrita da historia é a biografia e, gracas a essa aborda- gem, criam-se os assim chamados eponi mos (Boring, 1963a). Ou seja, os periodos historicos sao associados aos individuos cujos atos sao considerados criticos a for- macao dos fatos. Assim, lemos sobre a fisi- ca newtoniana, a biologia darwiniana ea psi cologia freudiana, A abordagem personalistica tem apelo intuitivo, Embora o mais famoso historia- dor da psicologia, Edwin G. Boring (apre- sentado no Close-up), preferisse 0 modelo naturalistico da historia, argumentando que a “[hlistoria € regular e continua”, ele reconheceu que os grandes vultos “sao os nossos pontos de apoio nas regularidades” (Boring, 1963b, p. 130). Para Boring, a per- isténcia da abordagem personalistica da storia resulta de diversos fatores, entre os quais a necessidade humana de herdis e a de reconhecimento de cientistas que tanto se esforcaram (quem quer eliminar 0 pré- mio Nobel?), © mais importante € que, se € regular e continua, a historia € também imensamente complexa. Na tentativa de entendé-la, tentamos reduzir a complexi- dade a dimensdes compreensiveis. De uma forma mais geral, um processo cognitivo universal, essencial & obtengao da com- preensao, ¢ organizar a informacao em cz tegorias, Nossa capacidade de recuperar da memoria conceitos como inconsciente freudiano e condicionamento pavloviano é facilitada pelo uso de eponimos. INTRODUGAG AHISTORIADAPSICOLOGIA 29. CLOSE-UP: Edwin G. Boring (1886-1968) E uma pena que o sobrenome do mais famoso historiador da psicologia permita aos alunos uma infeliz associagao com o topico geral da historia. Na verdade, a escrita de E. G. Boring ¢ viva e elegante. Nos ultimos anos, encontraram-se algumas falhas em sua versio da hist6ria da psicologia, mas também é verdade que os historiadores da psicologia devem muito ao trabalho pioneiro de Boring. Quando ainda estudava engenharia na Cornell University, Boring teve © primeiro contato com a psicologia no outono de 1905, ao fazer um cur- so facultativo de fundamentos da psicologia, dado pelo grande E. B. Tit- chener (consulte o Capitulo 7), Ele descreveu as palestras como “magi- cas — tio grande era seu impacto que até os meus colegas de quarto exigiam, cada dia em que havia aula, que eu Ihes contasse o que havia si- do dito” (Boring, 1961, p. 18). No entanto, aquela altura Boring ainda nado havia se convertido ¢ continuou seu curso de engenharia, alcancando 0 grau de mestre em 1908. Apés dois anos de sucesso marginal como enge- nheiro de uma siderurgica ¢ professor secundario, ele voltou a Cornell € obteve um Ph.D. de Titchener em 1914, Durante a permanencia em Cor- nell, suas pesquisas abarcavam: (a) a aprendizagem humana de labirintos (pesquisa ao longo da qual conheceu e apaixonou-se por um dos sujeitos observados, Lucy May, colega de doutorado com quem depois viria a se casar, falecida em 1996 aos 109 anos); regeneracdo nervosa (estudada de maneira direta e um tanto drastica: cortou um nervo do proprio braco € rastreou sua recuperacio); (c) os processos de aprendizagem nos esqui- zofrénicos e (d), 0 topico de sua tese, a sensibilidade visceral. Boring a es- tudou aprendendo a engolir um tubo estomacal até atingir diferentes pro- fundidades e, em seguida, administrando-se diferentes substancias por meio desse tubo e anotando os (geralmente desagradaveis) efeitos senso- rios (Jaynes, 1969). Ninguém jamais podera acusar Boring de nao se ha- ver envolvido com 0 préprio trabalho! Depois de obter o titulo em Cornell e ali permanecer durante um ra- pido periodo como monitor, Boring serviu na Primeira Guerra Mundial como membro do programa de testagem de QI no exército (veja o Capi- tulo 8) ¢ ensinou durante outro breve periodo na Clark University até decidir-se, em 1922, por Harvard, preterindo Stanford. Em Harvard, on- de permaneceu até o fim da sua vida académica, Boring dedicou-se, na primeira década, a construir o laboratorio a tentar convencer as auto- ridades de que a psicologia deveria ser um departamento separado do de filosofia, o que s6 viria a acontecer em 1934. Foi durante os anos 20 que ele escreveu a famosa History of Experimental Psychology/Historia da psi- cologia experimental (1929), em parte para levar adiante a briga politica com os administradores € filésofos de Harvard e, em parte, para incre- mentar a pesquisa basica na psicologia experimental, num momento em que a maioria dos psicologos norte-americanos estava interessada na psi- cologia aplicada. Nos anos em que esteve em Clark ¢ Harvard, os habitos de trabalho de Boring, como os de Titchener, foram lendarios. Em suas proprias palavras, 30 HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA (.... meus amigos, meus filhos @ meus alunos sabem o quanto defendi a se- mana de oitenta e quatro horas do ano de cinqiienta semanas (0 ano de qua- tro mil horas de trabalho) e 0 quanto censurei os académicos de quarenta horas, que tiram longas férias do trabalho no verao. Nao tenho hobbies, a nao ser por uma oficina no meu pordo. Minhas férias nunca deram certo, até que consegui um estiidio com uma maquina de escrever e pude respon- der a oito cartas por dia e escrever os papers que me aguardavam. (Boring, 1961, p. 14) Também na tradi¢ao de Titchener, Boring deu o curso de introdugao a psicologia, na conviccao de que o primeiro contato de um aluno com a psi- cologia deveria ser por meio do mestre. Ele tornou-se inclusive um pionei- ro do video-curso: 38 programas de meia hora na TV educativa WGBH, de Boston, mostraram Boring demonstrando diversos fendmenos, mas basi- camente sentando-se “no canto da mesa e falando de modo amigavel, en- tusiasta e paternal as luzes vermelhas da camara que estivesse no ar” (Bo- ring, 1961, p. 77; vejaa figura 1.1). Vimos que a Seco 26 da APA, estabelecida em 1965, elegeu Robert Watson como primeiro presidente. Conforme Hilgard, isso ocorreu de- pois de Boring ter recusado o cargo, concordando apenas em ser nome: do “presidente honordrio”. A surdez crescente de Boring 0 manteve afas- tado do encontro inaugural da segao na convencao de 1966 da APA, mas ele enviou uma introdugao ao discurso de posse de Watson, em que se descrevia como “o fantasma do Passado da Historia, quando o interesse pela historia da psicologia ainda nao havia atingido o vigor de hoje” (Hil- gard, 1982, p. 310). Sem duvida, o vigor do atual interesse pela histéria da psicologia deve muito ao exemplo de Boring FIGURA 1.10 ensino para as massas: E. G. Boring no canal educativo (foto extra da de Boring, 1961), INTRODUGAO AHISTORIA DAPSICOLOGIA 31 Aalternativa a historia personalistica ¢ a historia naturalistica, abordagem que enfa- tiza as forgas histéricas que atuam sobre o individuo. O escritor russo Tolstoi foi um dos famosos defensores dessa abordagem determinista. Um de seus objetivos ao es- crever © épico Guerra e paz foi demonstrar que a historia € movida por forcas que estao além do controle das pessoas. Para ele, os assim chamados “grande homens”, como Napoleao, eram na verdade meros agentes de causas histéricas maiores que cles mes mos. No Livro IX de Guerra ¢ paz, Tolstoi se refere a reis € generais como escravos da historia: “Cada um de seus atos, que a eles parece um ato de sua propria vontade ¢, no sentido histérico, involuntario, e esta re- lacionado com todo o curso da historia ¢ predestinado desde a eternidade” (Toistoi, 1942, p. 671). Entre 0s psicélogos, Boring foi quem mais promoveu a visdo naturalistica da his- toria, Especialmente em seus tltimos anos, ele defendeu o conceito do Zeitgeist, tanto na segunda edigao de sua famosa History of Experimental Psychology/Historia da psicolo- gia experimental (1950) quanto em diversos ensaios. Para Boring, a compreensao da his- toria significava a compreensao das forcas historicas que influenciaram os homens ¢ mulheres que viveram numa determinada epoca. Embora nao negasse o genio de Dar- win, por exemplo, Boring argumentava que 0 conceito da evolucao era comum no sécu- lo XIX e transcendia a biologia (aplicava-se também a geologia, por exemplo). Se néo fosse Darwin, outra pessoa teria criado uma teoria da evolucao biolégica. E, com efeito, a tcoria de Darwin foi por algum tempo cha- mada de teoria de Darwin-Wallace, em reco- nhecimento a Alfred Russell Wallace, con- temporineo de Darwin, que desenvolveu independentemente uma teoria praticamen- te igual (consulte o Capitulo 5 para conhe- cer melhor essa interessante historia). Um grande cientista pode influir e influi sobre os fatos, mas 0 foco exclusivo sobre o indivi- duo deixa sem resposta a questao de como este foi afetado pelo ambiente em que viveu. Em respaldo ao conceito de Zeitgeist, Boring sustentava que existem dois tipos de fatos historicos. No primeiro, chamado de miultiplo pelo historiador Robert Merton (1961), duas ou mais pessoas fazem inde- pendentemente a mesma descoberta mais ou menos ao mesmo tempo. A codescober- ta da selecao natural por Darwin e Wallace num momento em que o pensamento evo- luciondrio estava “no ar” é um exemplo. O avo de Darwin, Erasmus Darwin, € um exemplo do segundo tipo: a descoberta ou teoria que € considerada “a frente de seu tempo”, Como o neto mais famoso, Eras- mus desenvolveu uma teoria da evolucio, mas 0 fez no século XVIII, quando a crenga na imutabilidade das espécies (ou seja, ca- da especie seria criada por Deus em sua for- ma final e nao mudaria com o tempo) era ainda mais forte que no século XIX. Mas © recurso ao Zeitgeist como modo de explicar a historia pode ser problemati- co. Por exemplo, 0 observador acritico po- de ver-se tentado a reificar (isto 6, dar uma existéncia concreta e¢ separada a uma abs- tragao) o conceito e considera-lo uma forca controladora independente das pessoas que The dao sentido. Ou seja, em resposta & per- gunta “Por que ocorreu 0 fato X, em vez do fato Y, no momento Z?”, ele poderia dizer: “Por causa do espirito da época”. $6 que es- sa resposta dificilmente explica os fatos em questao. O conceito de Zeitgeist convida- nos a examinar as atitudes, os valores ¢ as teorias existentes na época em que trans- corre o fato a ser explicado, mas nao existe por si so como um agente direcionador mis- terioso. Como observa a historiadora Do- rothy Ross (1969) com relacao a historia da psicologia da educacao: Ja se disse, por exemplo, que James, Dewey, Hall, Thorndike, Cattell, Galton ou Darwin nao foram necessarios ao rapido desenvolvi- mento da psicologia da educagio nos Esta- dos Unidas, pois essa era a tendéncia do Zeit- geist. Mas 0 certo € que s6 sabemos como de fato era esse espirito pelo modo como James, Hall, Cattell, Darwin e outros se comporta- 32__HISTORIA DAPSICOLOGIA MODERNA ram. Se eles nao tivessem pensado ¢ agido do modo como agiram, tampouco seria 0 mes- mo 0 Zeitgeist que eles personificam. (p. 257, enfase no original) Assim, a visio equilibrada da historia reconhece as complexas inter-relagdes en- tre as pessoas e o ambiente em que atuam. Os personagens historicos que vocé esta para conhecer foram todos produtos do mundo em que viveram, mas tambem to- maram decisées que contribuiram para for- mar ¢ transformar o contexto historico em que estavam inseridos, Wallace pode ter-se inspirado a escrever um estudo propondo uma teoria da evolucao equivalente em es- séncia a de Darwin, mas nao ¢ coincidéncia que nos ultimos anos tenham sido publica- das trés importantes biografias de Darwin e nenhuma de Wallace. Foi Darwin quem in- vestiu anos de pesquisa examinando as complexidades de diversas especies, assim como também foi ele quem deu prossegui- mento aos escritos iniciais com os textos monumentais que levaram a evolugao a seu pleno desenvolvimento. O Ponto de Vista Deste Livro Esta seco do capitulo comecou com uma referéncia a distingao proposta por Furumo- to entre a velha e a nova historia. As aborda- gens presentistas, internas ¢ personalisticas geralmente andam juntas e constituem o que ela chama de “velha historia da psicolo- gia”. Trata-se de uma historia que interpreta ‘0s eventos apenas do ponto de vista do pre- sente, concentrando-se no desenvolvimento das idéias no interior de uma determinada disciplina, e ve o progresso como reflexo das realizaces sequtenciais de pessoas impor- tantes. A nova historia da psicologia, por sua vez, combina as abordagens historicista, ex- terna e naturalistica, na tentativa de analisar 0 fatos historicos em seus proprios termos, em relagdo as épocas em que transcorreram. Ela procura identificar a influencia de forcas contextuais extradisciplinares ¢ ver além dos grandes homens e mulheres, no intuito de analisar os fatores contextuais que deram origem as suas idéias. Furumoto observa ainda que a nova historia recorre mais a da- dos encontrados em arquivos e em fontes primarias que a fontes secundarias, sendo analiticamente mais critica que cerimonial e celebradora. ‘A descrigio da nova historia da psicolo- gia fornecida por Furumoto propicia aos historiadores da psicologia que estiverem conduzindo pesquisas um conjunto muito claro de diretrizes relativas a como ir adian- te. A melhor pesquisa histérica publicada hoje em dia é aquela que é historicista, ex- terna e naturalistica, Para o autor de um li- vto-texto € 0 professor de um curso de his- toria da psicologia, contudo, as prescriges ja nao sto tao definidas. Como observa Dewsbury (1990) em uma resenha de diver- sos textos de historia da psicologia, ¢ impor- tante distinguir entre “a pesquisa académica destinada a colegas ¢ (...) livros-textos des- tinados a alunos principiantes” (p. 372). No segundo caso, os ideais da nova histéria pre- cisam ser incorporados ao curso, mas devem ser pesados em relacao a necessidade de in- formar os alunos acerca de conteudos rele- vantes ao curriculo de psicologia. Este livro apresenta a historia da psicologia que se de- bruca em direcao aos valores esposados por Furumoto, mas ¢ importante lembrar que 0 curso ao qual ele se destina nao ¢ apenas um curso de historia, mas também um curso de psicologia. Portanto, enquanto ¢ importante compreender o trabalho de Pavlov dentro do clima historico da Riissia do infcio do sécu- lo XX, € importante compreender também os varios fendmenos de condicionamento classico que ele investigou ¢ como esse tra- balho se relaciona com o behaviorismo nor- te-americano e com a pesquisa mais recente do condicionamento. Enquanto ¢ importan- te compreender a influéncia do contexto institucional sobre o destino dos que, como Yerkes, dedicavam-se & psicologia compara- da, também € importante para 0 aluno de psicologia conhecer a pesquisa com animais que Yerkes teve condicdes de concluir. E, embora a historia puramente personalistica possa degenerar em meras anedotas curiosas INTRODUGAO A HISTORIA DAPSICOLOGIA 33. e subestimar as complexidades dos fatos his- tOricos, também é verdade que ¢ interessan- te estudar as pessoas € que as informagoes biograficas podem aumentar a compreensao do comportamento humano no aluno de psicologia. Em resumo, este livro abraga um ponto de vista que une (a) visdes presentistas historicistas, (b) historias internas e exter- nas e (c) modelos personalisticos e natura- listicos. Se cada uma das dicotomias puder ser concebida como existente em um conti- muum, este livro adotara entao o seguinte posicionamento: historicista externo naturalistico presentista interno personalistico ... A nica tendéncia forte sera a de evitar as interpretagdes presentistas. Nas outras di- menséoes, este livro mescla (a) as varias ideias, pesquisas e teorias que constituem a historia interna da psicologia ¢ 0 contexto histérico externo em que estas se desenvolveram a (b) relatos acerca das pessoas que fizeram a his- toria da psicologia e as caracteristicas mais importantes das épocas em que viveram. HISTORIOGRAFIA: FAZER E ESCREVER A HISTORIA A definigao mais simples de historiografia provém das origens da propria palavra: sig- nifica escrever a historia, Mas 0 termo vai muito além da escrita de narrativas histori- cas. A historiografia refere-se também a questoes teoricas como as que acabam de ser descritas € aos métodos que os historiadores utilizam ao realizar a pesquisa historica. Em- bora o principal objetivo deste livro seja in- forma-lo acerca da historia da psicologia, um dos objetivos secundarios ¢ permitir-Ihe uma maior percepcio do comportamento profissional dos historiadores. Ou seja, ana- lisaremos os tipos de dados que tem interes- se para os historiadores ¢ os problemas que enfrentam ao realizar o seu trabalho. Fontes de Dados Histéricos Tradicionalmente, os historiadores da psi- cologia muitas vezes recorreram a fontes se- cundirias para escrever seus textos. A fonte secundaria ¢ 0 documento que foi publica- do, em geral, uma andlise ou resumo de al- gum fato ou periodo historico. Entre essas fontes estao livros, artigos publicados em jornais e revistas ¢ verbetes de enciclopé- dias, por exemplo, Todavia, a medida que a nova histria da psicologia de Furumoto vem substituindo a velha historia, os pes- quisadores cada vez mais recorrem a fontes primarias de informacao, encontradas ge- ralmente em arquivos. O arquivo normal- mente é uma area dentro da biblioteca de uma universidade onde se guardam infor- magdes nao publicadas. Essa fonte primdria abarca registros da universidade, corres- pondencia, didrios, discursos, atas de orga- nizagdes profissionais e artigos doados por pessoas ligadas de alguma forma a universi- dade. Além desses arquivos universitarios, os historiadores muitas vezes encontram material de fontes primarias nos arquivos da Biblioteca do Congreso, em Washington, D.C., na Biblioteca do British Museum, em Londres, e nos Archives of the History of American Psychology (AHAP), na Univer- sity of Akron, em Akron, Ohio. Em geral, esse material é constituide por itens escri- tos ou criados mais ou menos no momento do fato historico, ao passo que o provenien- te de fontes secundarias é escrito algum tempo depois do fato e destinado a analisa- Jo ou relata-lo. Como mencionamos anteriormente, a fundagao do AHAP em 1965 por John Pop- plestone e Marion McPherson (Figura 1.2) fez parte de uma série de eventos promovi- dos por Robert I. Watson com o intuito de gerar interesse pela historia da psicologia. O AHAP abriga escritos de mais de 550 psics- logos (por exemplo, Abraham Maslow) ¢ corganizacoes (por exemplo, a secao 26, de- dicada a historia, da APA), mais de setecen- tos itens originais provenientes da para- fernalia de laboratorios, milhares de testes 34 _ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA FIGURA 1.2 Marion White McPherson e John Pop- plestone, dos Archives of the History of American Psychology, University of Akron (Cohen, 1891). psicoldgicos e cerca de trés mil fotografias. De acordo com uma estimativa, se fosse em- pilhado verticalmente, o material existente no arquivo equivaleria a dois Monumentos de (Cohen, 1991) Washington! que vocé imaginaria encontrar num lugar como 0 AHAP? La se encontra de tu- do. Pesquisando os registros de uma orga- nizacao profissional, por exemplo, vocé provavelmente encontraria listas de mem- bros e correspondencia entre eles, atas de reunides, rascunhos de comunicados e coi- sas semelhantes. Ao examinar os escritos de um psicélogo, por exemplo, vocé pode- ria encontrar (a) a correspondéncia dele com colegas, (b) diarios e/ou agendas pes- soais, (c) apontamentos de aulas, palestras e programas de cursos, (d) protocolos de laboratorios, desenhos de aparelhos, resu- mos de dados e outras informagoes relati- vas a laboratorios, (e) primeiras versoes de escritos que posteriormente se tornariam fontes secundarias, (f) fotos de pessoas, lu- gares e equipamentos de pesquisa e (g) atas de reunides de que esse psicdlogo partici- pou. E também ha surpresas. Por exemplo, o AHAP abriga os escritos do psicélogo Walter Miles. $6 que, ao chegarem ali, além do usual, havia também um tijolo que Mi- les guardou da construgao de um novo la- boratério. Um caso ainda mais espantoso foi relatado em Civilization, uma revista publicada pela Biblioteca do Congresso. Um pesquisador estava estudando o médi- co vienense novecentista Carl Koller, que havia feito experimentos com 0 uso da co- caina como anestésico na cirurgia ocular. Uma das pastas continha um pequeno pa- cote em que havia — adivinhe — uma amostra de po branco. As autoridades fe- derais foram chamadas para remover a droga, mas o envelope continua na cole- cao do arquivo. O rotulo diz o seguinte: “Resto da I* dose de cocaina, que usei nos primeiros experimentos com cocaina em agosto de 1884. Dr. Koller” (*A Stash in the Stacks"/Um segredo nas estantes, 1996, p. 15). Como o pesquisador interessado na his- t6ria da psicologia descobre os arquivos que deve contatar ou visitar ao iniciar um pro- jeto? Como tem um acervo tao grande, 0 AHAP € um bom comego. Mesmo que nao seja o principal repositorio em termos dos escritos da pessoa enfocada, o AHAP pode ter alguma correspondéncia dela. Outro bom ponto de partida ¢ a universidade em que essa pessoa trabalhou. Em terceiro lu- gar, ha fontes bibliograficas. A mais conhe- cida é A Guide to Manuscript Collections in the History of Psychology and Related Areas (Sokal e Rafail, 1982). Suponhamos que vo- cé se interesse pelo trabalho do pesquisador de QI Henry Goddard, por exemplo. Esse guia fornece uma breve descricao do con- teudo dos escritos de Goddard, que estao guardados no AHAP. Ele menciona ainda outros materiais acerca de Goddard nos es- critos de Edgar Doll e Emily Stogdill, tam- bém mantidos no AHAP, e nos escritos do psicélogo desenvolvimentista Arnold Ge- sell, na Biblioteca do Congreso. Os historiadores recorrem também ao proprio conhecimento geral para sua pes- INTROOUCAO AHISTORIADA PSICOLOGIA 35 quisa, Porexemplo, ha alguns anos, interes- sei-me por Edmund Clark Sanford (1859- 1924), primeiro diretor do laboratorio de psicologia da Clark University (Goodwin, 1987). Naturalmente, Clark seria entao o ponto de partida para a pesquisa. Depois de entrar em contato com 0 arquivista de la e duas visitas, coletei algumas informacoes, mas nao muitas. Sanford talvez nao tivesse guardado muito material ou, se tivesse, as informagées nao estavam em Clark. Alguns dos registros da universidade foram uteis, porém, na determinacéo de coisas como compras de laboratério, € 0s escritos do psi- célogo e presidente da universidade, G. Stanley Hall, acrescentaram alguns dados adicionais, entre os quais uma descoberta emocionante: uma série de fotos tiradas no laboratorio em 1892, varias das quais sto reproduzidas em capitulos posteriores des- te livro. Muitas delas mostram (ou, mais provavelmente, simulam) experimentos em andamento, permitindo assim um vislum- bre de como era a pesquisa em psicologia naquela época, Pesquisando fontes secun- darias, eu soube de outros psicslogos con- temporaneos de Sanford e descobri em seus obitudrios que ele era muito amigo de E. B Titchener, de Cornell, e Mary Calkins, de Wellesley (Sanford faleceu em 1924 quando ia justamente para Wellesley dar uma pales- tra). Uma visita a Wellesley e duas a Cornell resultaram em mais informagdes. Os escri- tos de Titchener foram especialmente uteis —ele aparentemente guardava tudo. Escre- vi também para aproximadamente vinte ou- tros arquivos que julguei poderem ter escri- tos de outros colegas de Sanford e, portanto, a correspondencia deste. Recebi copias de uma ou outra carta. Ao mesmo tempo, lia tudo que Sanford havia publicado (nao muito, na verdade) e qualquer outra coisa que pudesse lancar luz sobre ele ¢ o mundo em que vivera. Problemas na Escritura da Histéria A jornada desde a visita a um arquivo até a publicacao de um ensaio ou livro ¢ longa muitas vezes tediosa, algumas vezes emo- cionante, mas nunca ficil. Ao longo do per- curso, o historiador enfrenta duas grandes dificuldades, Em primeiro lugar, os proble- mas relativos a coleta dos dados. Ele prec sa avaliar a validade desses dados e selecio- nar um subconjunto, que € o que sera incluido na narrativa historica. O segundo problema diz respeito a escritura da histé- ria, Os historiadores so humanos e, por is- so, sua interpretagao dos dados ¢ um refle- xo de suas crencas, de suas teorias sobre a natureza da historia e, potencialmente, de tendenciosidades nao analisadas Problemas na Selecao de Dados Os historiadores em geral coletam muito mais informagdes do que as que utilizam para construir sua narrativa hist6rica. Por conseguinte, eles precisam julgar a adequa- cao € a relevancia dos dados que tem em maos e selecionar uma amostra, descartan- doo restante. As vezes, embora eles possam. encontrar muitos dados na visita a um ar- quivo, faltam informagées importantes, 0 que lhes complica ainda mais a vida. Por exemplo, Titchener ¢ Sanford escreviam-se com freqaéncia, mas sé o primeiro guardou acorrespondéncia. Os escritos de Titchener contém centenas de cartas de Sanford, mas nos de Sanford nao ha nenhuma de Titche- ner. Ao tentar montar a relagdo entre os dois, o historiador obtém apenas metade da historia.' Outro exemplo diz respeito a Wal- ter Miles, psicélogo experimentalista de Stanford, que certa vez escreveu um artigo sobre a criacao de labirintos quando esta ainda estava nos primérdios (Miles, 1930) Nesse artigo, ele incluiu excertos de cartas que recebeu de alguns dos pioneiros na area (por exemplo, Willard Small, que fez 0 pri- meiro estudo sobre a aprendizagem de labi- rintos em ratos na Clark University). Po- rém, os escritos de Miles, guardados no 1. Na verdade, mais da metade: a partir de 1910, aproximadamente, Titchener comecou a fazer € guardar copias das cartas que enviava 36 _HISTORIADA PSICOLOGIA MODERNA AHAP, nao contém nenhuma correspon- déncia relacionada com o artigo sobre a his- toria dos labirintos. Esse fato causa surpre- sa, tendo em vista o tamanho da colecao de Miles, mantida em 128 caixas— so 0 inven- tario tem 746 paginas (Goodwin, 1993). As vezes, informagdes que ajudariam 0 historiador se perdem no que no jargao de seguros ¢ chamado de catastrofe natural Por exemplo, apos um minucioso rastrea- mento dos descendentes de Mary Whiton Calkins, a primeira presidente da APA, Lau- rel Furumoto descobriu que muitos de seus escritos haviam sido confiados a seu irmao mais novo. Infelizmente, ele os colocou no porao de sua casa, onde foram destruidos pela inundacao que sucedeu ao furacao que devastou a Nova Inglaterra em 1938 (Furu- moto, 1991). Também € possivel que dados impor- tantes se percam intencionalmente. Em seu ultimo ano de vida, John Watson, o funda- dor do behaviorismo, queimou todos os rascunhos, apontamentos e cartas que guardava. Conforme seu biografo, quando “sua secretaria protestou contra o que seria uma perda para a posteridade ¢ a historia, Watson respondeu apenas: ‘Quando se morre, deve-se morrer por inteiro” (Buck- ley, 1989, p. 182). Sigmund Freud fez o mes- mo em duas ocasides distintas, em parte para dificultar a descoberta das fontes de suas ideias (o Capitulo 12 descreve um des- ses episddios). Alem de dados que faltam, algumas in- formacoes podem ser mantidas em sigilo pelo responsavel e, assim, tornar-se inaces- siveis ao historiador, Isso poderia aconte- cer até mesmo a alguém da estatura de E. G. Boring. Em carta a John Popplestone, do AHAP. ele afirma que, mesmo sendo um historiador famoso e professor de Harvard, haviam-lhe impedido acesso a certos escti tos dos arquivos de Harvard. Em suas pa- lavras, Em geral, confio nos arquivistas de Harvard. Isso porque me negaram acesso a certas coi- sas que ndo sao da minha conta — com gen- lileza, pois sou professor de la. Seja como for, nao posso chegar perto de certos arquivos de William James. (Popplestone, 1975, p. 21) Além de lidar com informagoes perdidas ou incompletas, o historiador deve analisar a adequacao dos dados disponiveis. Sabe- mos que a descricao de fatos cotidianos por testemunhas oculares as vezes é bastante errada e que o relato de duas testemunhas pode diferir drasticamente. Se essa falta de fidedignidade pode ser facilmente demons- trada nos laboratorios da moderna psicolo- gia, podemos dizer com seguranca que a mesma falta de fidedignidade se verifica nos relatos de testemunhas oculares de eventos historicos da psicologia. Um bom exemplo disso ocorreu com E. G. Boring. Enquanto preparava uma historia dos experimentalis- tas de Titchener, um grupo de pesquisa- dores que se encontravam anualmente para discutir seu trabalho (veja o Capitulo 7), Boring lancou um apelo, escrevendo aos colegas que haviam participado dessas reu- nides para que Ihe dessem seus depoimen tos. Houve inimeras discrepancias, inclu: ve uma engragada, de um colega que relatou a Boring em detalhes uma conversa que ti- vera num jantar com Hugo Mansterberg no encontro de 1917 em Harvard. Boring Tespondeu ao amigo lembrando-lhe gentil- mente que Mansterberg havia falecido em 1916 (Goodwin, 2001). Em geral, toda des- crigdo autobiografica esta sujeita a lapsos de memoria. As informagoes encontradas no diario ou na correspondeéncia de uma pessoa tam- bém podem ter valor questionavel. O reme- tente da carta estaria apresentando uma percepcao fundamentada sobre a personali- dade de um colega ou simplesmente repe- tindo fofocas cruéis e caluniosas? Quando o autor do diario descreve uma reuniao como uma perda de tempo, seria essa a mesma opiniao dos outros participantes? Poderiam as cartas ¢ os didrios ter sido escritos com parcialidade pelo fato de seu autor antever a possibilidade de serem lidos algum dia por historiadores? Até que ponto o contewtdo de INTRODUCAO A HISTORIA DA PSICOLOGIA 37 cartas e didrios reflete os preconceitos pes- soais do autor? Acredito que voce agora percebera melhor a dificuldade. Aqueles que criam os registros que por fim sao guardados em arquivos sao seres humanos e, portanto, suscetiveis as sutile- zas das crencas, preconceitos e parcialida- des humanos. Os que pesquisam os arqui- vos e escrevem a historia também sao humanos e sujeitos as mesmas fraquezas. Em virtude de sua formacao, os historiado- res certamente sao mais disciplinados que 08 leigos. Ainda assim, ao decidir sobre as informacdes a selecionar para incluir em narrativas e andlises hist6ricas, o historia- dor nao é uma maquina, E. G. Boring ex- pressou o problema com muita elogaéncia no prefacio ao texto que escreveu em 1942 sobre a historia da pesquisa da sensacao ¢ da percepeao: De fato, a preparacdo de um texto histérico €4 tal ponto uma questao de selecao que a responsabilidade funciona para mim como uma ligto. O texto [sobre a historia da psi- cologia] de 1929 ja existe ha tempo suli- ciente para que eu veja como 0 espirito que determinou a escolha da exposicao de uma tar- de pode fixar a “verdade” de uma determinada questo entre os alunos por varios dos anos que se seguirdo. Com industria ¢ paciéncia, pode-se evitar a falsificacao dos fatos, mas essas virtudes nao sto o bastante para o acerto na escolha do que deixar de lado. Pa- 19 isso, ¢ preciso a sabedoria e a integridade da objetividade, ¢ quem saber ao certo se de fato as possui? (Boring, 1942, p. vii, ita- licos nossos) ‘Como voce vera dentro de alguns para- grafos, esse trecho de Boring ¢ ironico. Um dos temas dentro da moderna historiografia da psicologia ¢ que Boring teria distorcido a historia da psicologia ¢ que seus textos refle- tiriam uma grande parcialidade por um de- terminado tipo de psicologia. Aparentemen- te, ele teria sido motivado tambem, ao menos em parte, pelo contexto politico € institucional em que se inseria. Problemas de Interpretacao Winston Churchill, que fez e também escre- veu a historia, teria afirmado que a historia Ihe seria simpatica porque ele seria quem a ima escrever. Os historiadores normalmen- te tentam ser mais objetivos que isso, ape- sar de saberem que toda narrativa hist6rica necessariamente reflete alguma coisa de quem a produz. As decisdes, tanto na sele- co quanto na escritura da histéria, envol- vem a interpretacao das informagoes coleta- das, ¢ essa interpretacdo sofre a influéncia das caracteristicas pessoais do historiador e do contexto historico em que este escreve. Ou seja, os historiadores serao influencia- dos por seus preconceitos, pelo conheci- mento que ja acumularam e também por suas proprias teorias acerca da natureza da historia (que podem ser, por exemplo, per- sonalisticas ou naturalfsticas). Além disso, mesmo sem perceber, eles podem ser in- fluenciados de diversos modos por elemen- tos do ambiente em que suas histérias estao sendo escritas. Por exemplo, vocé vera no Capitulo 4 que a obra de Wilhelm Wundt foi recentemente reavaliada (por exemplo, Blumenthal, 1975) e que assim se descobriu que muitas de suas idéias sdo semelhantes as dos atuais psicdlogos cognitivos. Natu- ralmente, essa semelhanca nao teria sido percebida antes do advento da moderna psi- cologia cognitiva — Blumenthal escreveu no auge da assim chamada revolugdo cogni- tiva na psicologia. Desse modo, nao sio apenas os personagens hist6ricos que sdo influenciados pelo contexto historico em que vivem: 05 historiadores também sio afetados assim. A historia escrita por E. G. Boring ¢ exem- plar. Voce viu no Close-Up deste capitulo que ele era um aluno dedicado de E. B. Titchener € que, na década de 20, foi defensor ardoroso da criagao de um departamento a parte para a psicologia em Harvard, voltado para a pes- quisa de laboratorio “pura”,em vez de aplica- da, Ambos os fatos influtram sobre a forma como Boring escreveu a sua historia. Em pri- meiro lugar, a formagao em psicologia expe- rimental que tivera no laboratorio de Titche- 38 __HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA ner, em Cornell, sem duvida afetou a sua con- cepcao geral da psicologia, Essa formagao in- lui, mais especificamente, sobre 0 que Bo- ring pensava a respeito de Wilhelm Wundt, em cujo laboratorio Titchener obteve um Ph.D. em 1892, Em geral, Boring acreditava que a corrente da psicologia experimental de Titchener, chamada de estruturalismo, era praticamente a mesma da psicologia de Wundt, e que Titchener simplesmente a ha- via importado para os Estados Unidos. Na verdade, o sistema de Wundlt era bem dife te do de Titchener (vocé conhecera os deta- Thes de cada um desses sistemas nos Capitu- los 4 € 7, respectivamente). Mas, devido a influéncia de Titchener sobre Boring, aliada ao fato de Titchener haver traduzido muitos dos trabalhos de Wundt e de Boring nao estar familiarizado com alguns dos escritos nao ex- perimentais de Wundt, as diferencas se per- deram. Assim, ao escrever sua historia, Bo- ring descreve Wundt com o filtro da versio de Titchener e, por isso, sua descricao € falha Como 0 conhecimento de historia da maioria dos psicdlogos norte-americanos formados entre 1950 ¢ 1980 se dew por meio da leitura de A History of Experimental Psychology (1929; 1950), de Boring, a mitologica identi- ficagao entre os sistemas de Wundt e Titche- ner passou a ser de dominio puiblico. Uma segunda distor¢ao na historia de Bo- ring diz respeito a sua énfase na psicologia experimental basica, em detrimento da psi- cologia aplicada. Como mostrou O'Donnell (1979), Boring sentia-se incomodado pelo crescente status da psicologia aplicada, em especial da testagem mental. Acreditando que a pesquisa de laboratorio basica estives- se em risco, ele adotou diversas medidas pa- ra restaurar seu estatuto. Uma delas foi igno- rar a maior parte do trabalho de um niimero considerivel de psicdlogos que, em 1929, ano da primeira edigao de sua historia, esta- vam aplicando principios psicolgicosa edu- cacao, a satide mental e ao trabalho. O leitor dessa edicao estaria desculpado se pensasse que a psicologia aplicada mal existia Uma das interpretacdes erroneas e di- fundidas da historia é mais ou menos assim: 9s fatos ocorreram no passado; agora eles fazem parte de uma narrativa historica e ponto final. Como mostra o caso de Boring, porém, as andlises histéricas exigem conu- nua revisto a luz de novas informagdes e de novos meios de analisar antigas informa- goes, Nos ultimos anos, por exemplo, va- rios académicos (como é 0 caso de Leahey, 1981) langaram um novo olhar sobre (a) a relacao entre as idéias de Wundt ¢ as de Tit- chener e (b) sobre o papel da aplicacao no desenvolvimento da psicologia nos Estados Unidos. Em decorréncia disso, as historias mais novas descrevem as diferencas entre Wundt e Titchener com maior precisao, além de documentar a influéncia onipre- sente da psicologia aplicada. A comparacao de diferentes edicdes do mesmo texto de historia pode ilustrar esse processo de reanilise. Por exemplo, um dos textos de historia para alunos da graduagio mais populares nos Estados Unidos, que ti- nha clara influéncia de Boring em suas pri- meiras edigdes, mostra nas ultimas o im- pacto das pesquisas académicas mais recentes sobre Wundt. Na terceira edicae do livro (Schultz, 1981), Wundt € descrito num capitulo cujo titulo € “Estruturalis- mo”. O capitulo seguinte, sobre Titchener, tefere-se ao “transplante” para os Estados Unidos da psicologia wundtiana realizado por este com afirmativas como: “O conhe- cimento da psicologia de Wundt propici um quadro razoavelmente preciso do siste- ma de Titchener” (p. 87). Seis anos mais tarde, na quarta edicao, a palavra “estrutu- ralismo” ja nao consta do titulo do capitulo sobre Wundt, ha uma descri¢ao explicita dos problemas do relato hist6rico de Boring €, na abertura do capitulo sobre Titchener, diz-se que os sistemas de Wundt e Titche- ner eram “radicalmente diferentes” e que este “alterou drasticamente o sistema de Wandt enquanto alegava ser seu discipulo fiel” (Schultz e Schultz, 1987, p. 85). A lico importante para o leitor de his- toria é ficar de sobreaviso contra os riscos de presumir que, se uma coisa tiver sido im- pressa, deve ser verdade de qualquer modo. INTRODUGAO A HISTORIA DA PSICOLOGIA 39 Em vez disso, ele deve procurar ler as histo- rias, inclusive esta, com uma dose saudavel de ceticismo e conscientizacio de que ou- tras informagées poderiam haver sido sel cionadas para incluso na narrativa ¢ de que existem outras maneiras de interpretar os 170s histricos. Isso nos leva a uma per- gunta muito interessante: podera a historia descobrir a verdade? Abordando a Verdade Histérica Com base na discussao anterior, voce pode ver-se tentado a aceitar a verso do relativis- mo historico, que permite que cinco dife- rentes historiadores aleguem cinco diferen- tes verdades e que nao haja nenhum meio aceitavel de optar por uma delas. O relati- vismo entre os historiadores ¢ uma reagao pés-moderna contra a histéria tradicional, que sustentava que a tarefa do historiador ¢ buscar os fatos daquilo que “realmente aconteceu" e colocd-los numa narrativa cronoldgica de estilo bom o bastante para atrair leitores. O resultado era a tendéncia a narrar a historia do ponto de vista do que “realmente aconteceu” para os que deti- nham poder ¢ influéncia, ignorando a rica variedade de perspectivas alternativas. As- sim, a historia tradicional do oeste nort americano ensinada as criancas nas escolas baseava-se na crenca numa idéia de predes- tinagao e glorificava a resisténcia inqu brantivel dos pioneiros diante dos obstacu- los mais colossais, entre os quais seres barbaros que gostavam de disparar flechas. Esta claro, porém, que a mesma historia po- deria ter sido escrita do ponto de vista dos indigenas, que corajosamente defenderam sua terra natal contra a invasio de seres bar- baros que gostavam de disparar balas. A critica pos-modernista da estreiteza e da arbitrariedade da histéria tradicional te- ve 0 mérito de enriquecer 0 nosso conheci- mento a respeito dela. Assim, passamos a reconhecer que a historia transcende as vi- das, facanhas e crimes dos mortos estereo- tipicos: machos, brancos, europeus. Que ela deve ser mais inclusiva. Por outro lado, uma consequéncia infeliz dessa critica foi um re- lativismo que, se levado a extremos (um re- lativismo absoluto?), pode levar a alegacoes absurdas, como a de que o holocauste ju- deu na Segunda Guerra Mundial jamais aconteceu, mas foi simplesmente “construt- do” a partir de alguns fatos isolados (que supostamente teriam outras explicacées que nao o genocidio) por historiadores sim- patizantes do movimento judeu que que- riam incentivar a criacao da nagao de Israel aps a guerra, Os que defendem a idéia de que 0 holocausto ¢ um “mito” alegam que sua versao ¢ to valida quanto qualquer ou- tra, No entanto, o exemplo deixa claro que algumas versées da historia sto, de fato, melhores (isto é, mais proximas da verda- de) que outras, Como se pode decidir? Para chegar a verdade mediante a anali- se historica, é preciso uma objetividade que reconhega os limites da visdo de um histo- riador, mas que também tenha fé na possi- bilidade de, por meio do esforco conjunto de muitos historiadores, atingir-se a analise € a narrativa historica significativas, segun- do a visao das historiadoras Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margaret Jacob. Em Telling the Truth About History/Contando a verdade so- bre a historia (1994), elas defendem uma historiografia na qual a verdade da historia emerge de uma luta darwiniana entre ideias que competem entre si, defendidas pelos historiadores, afirmando que “a busca do conhecimento requer uma luta polémica e viva entre os diversos grupos de pessoas que buscam a verdade” (p. 254). Uma certa verdade, entao, adviria dessa luta. Assim, da mesma mancira que a variacao individual no seio de uma espécie propicia a base para a operacao da selecao natural, existem dife- rentes versdes de episddios historicos, su- jeitas a andlises criticas que competem en- tre si e determinam qual das verses melhor se adapta ao ambiente académico. Isso nio significa que a meta seja uma tinica versio da verdade, que entao se “cristalize” e se torne imune 4 mudanca. Em vez disso, a verdade historica continua a evoluir, a me- dida que novas informagdes sdo descober- 40 __HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA tas ¢ antigas informagdes so submetidas a novas interpretacdes, Além disso, a verdade historica em evolugio inclui uma variedade de perspectivas. E possivel que varias teste- munhas oculares déem diferentes versdes de um fato, mas todas concordam em que ele de fato ocorreu. Combinando as infor- macées por elas propiciadas, poderia emer- gir uma verdade complexa que teria o poder de aperfeigoar a descricdo fornecida por qualquer perspectiva isoladamente. Se um dos historiadores do pertodo da Guerra Ci- vil norte-americana “vir um fato do ponto de vista dos escravos, seu relato nao oblite- ra.a perspectiva do senhor de escravos; ele apenas complica a tarefa da interpretagao” (p. 256). Assim como as teorias da ciéncia sto verdades tempordrias de trabalho que orientam as pesquisas subsequentes, de- pendendo seu futuro da investigacao ho- nesta ¢ aberta dos cientistas, as verdades da historia podem ser consideradas guias pro- visérios que, no entanto, tém seu valor pa- raa pesquisa ulterior de historiadores inte- lectualmente honestos que disponham de acesso a materiais historicos. E assim como algumas teorias cientificas sto mais dura- RESUMO APSICOLOGIA E SUA HISTORIA + Recentemente, os psiclogos comemoram varios centendrios, entre os quais o de aniversario da fun- dacdo do laboratorio de Wilhelm Wundt em Leip- zig, Alemanha, em 1879, ¢ 0 da criagao da Ameri can Psychological Association (APA), em 1892. + 0 interesse pela historia da psicologia tem cres- cido num ritmo constante desde meados da déca- da de 60, muito em decorréncia das iniciativas de Robert Watson, Ele ajudou a instituir organiza- es profissionais para historiadores da psicolo- gia (segao 26 da APA, Cheiron), uma publicacao especializada (Journal of the History of the Beha- vioral Sciences), um arquivo na University of Akron (Archives of the History of American Psychology, AHAP) ¢ um programa de pos-gra- duacdo em historia da psicologia na University of New Hampshire. veis que outras, algumas verdades histori- cas so menos transitérias que outras: “to- do conhecimento pode ser provisional, em teoria, sem eliminar a possibilidade de algu- mas verdades prevalecerem por séculos e, talvez, para sempre” (Appleby, Hunt ¢ Ja- cob, 1994, p. 284). Presumivelmente, com base no arduo trabalho de muitos historiadores de psico- logia, um certo grau de verdade sobre a his- toria da disciplina emergiu nos ultimos cem anos. Eu farei todo o posstvel para descre- vé-la para vocé nos capitulos que virdo a se- guir. Existem muitas divergéncias entre os historiadores da psicologia, mas Appleby, Hunt e Jacob considerariam isso bom — a base para o desenvolvimento de verdades historicas ao longo dos proximos cem anos da psicologia. Reconheco o fata de que ago- ra existem outras historias, ¢ mais existirao no futuro. Contudo, acredito que 0 que vo- cé vai ler contém alguma verdade sobre a disciplina que decidiu estudar. Na medida em que parte da verdade pode ser provisd- ria, espero que voce se sinta motivado a continuar a aprender sobre a historia da psi- cologia muito depois de ter terminado de ler esta que ¢ uma de suas versdes. POR QUE ESTUDAR HISTORIA? * Conhecer a historia ajuda-nos a evitar os erros do passado ¢ a prever o futuro, mas seu maior valor esta em permitir-nos compreender o presente. O conhecimento da histéria coloca os fatos da atua- lidade numa perspectiva melhor. * Conhecer a historia contribui para que nos imu- nizemos contra a crenga de que o presente tem problemas insuperiveis, em relacito aos “velhos tempos”, Cada era tem seus problemas. O conhe- cimento da historia também contribui para redu- zir a tendéncia a pensar que as realizacoes da atualidade representam uma culminancia do ‘progresso” que conseguimos em relagao as rea- lizagdes inferiores do passado. INTRODUGAO AHISTORIA DA PSICOLOGIA 41 POR QUE ESTUDAR A HISTORIA DA PSICOLOGIA? + Por sera psicologia uma ciéncia relativamente jo- vem, boa parte de sua historia ¢ recente e relevan- te para a compreensao de conceitos ¢ teorias psi- cologicos. Além disso, muitas das questées que interessavam os primeiros psicdlogos (por exem- plo, a questio nature-nurture) continuam sendo importantes hoje. +0 curso de historia da psicologia propicia uma experiencia de sintese, amarrando 0s fios soltos que constituem a atual diversidade da psicologia + Ao conhecer exemplos historicos de (a) supostos avangos revolucionérios na pesquisa ou na priti- ca da psicologia e (b) novas teorias que se revela- ram pseudocientificas, 0 aluno de historia esta mais equipado para avaliar criticamente as pro- postas e alegacdes atuais. * Por informar o aluno acerca do comportamento de pessoas historicamente importantes em seu contexto historico, o curso de historia da psico- logia permite uma compreensio mais profunda do comportamento humano. QUESTOES-CHAVE NA HISTORIA + A abordagem tradicional da historia da psicologia tem sido presentista, interna e personalistica. Re- centemente, 0s historiadores adotaram uma ten- dencia mais historicista, externa e naturalistica + 0 presentista avalia © passado em termos dos va- lores e do conhecimento do presente, muitas ve- 2es emitindo juizos injustos. O historicista tenta evitar impor valores modernos ao passado, pro- curando compreendeé-lo do ponto de vista dos wa- lores ¢ do conhecimento vigentes no passado * A historia interna da psicologia ¢ uma historia das idéias, pesquisas ¢ teorias existentes dentro da dis- ciplina da psicologia. A historia externa enfatiza 0 contexto historico — institucional, economico, QUESTOES PARA ESTUDO 1, Descreva as contribuigdes de Robert Watson ao longo dos anos 60 para a disciplina da historia da psicologia. 2. Explique por que "compreender 0 presente” € uma razto mais forte pars o estudo da historia que 0 tradictonal argumento de evitar os erros do passado e prever o futuro. 3. Explique por que ¢ importante, para qualquer pessoa que tenha formacao académica, com- preender ¢ apreciar a historia e, para qualquer estudante de psicologia, compreender a histo- ria da disciplina. social e politico — e como ele influtu sobre a his- toria da psicologia. * A abordagem personalistica da historia glorifica as figuras historicas mais importantes e defende a tese de que a historia se move em decorréncia dos atos de individuos heroicos. A abordagem naturalistica enfatiza o papel do Zeitgeist, ou es- pirito da época, como principal forga motora da historia. A existéncia de multiplos coaduna-se com a visto naturalistica HISTORIOGRAFIA: FAZER E ESCREVER A HISTORIA * Ahhistoriografia consiste no processo de fazer pes- quia historica ¢ escrever narrativas histéricas, + A pesquisa historica muitas vezes transcorre em arquivos, os quais guardam informagoes de fon- tes primarias, como didrios, notas, manuscritos originais e correspondencia. O principal arquivo dos historiadores de psicologia ¢ 0 Archives of the History of American Psychology, localizado na University of Akron, * Os acervos dos arquivos podem ser grandes, mas também podem ser incompletos, nao possuindo informaces importantes por diversas razdes. As informacoes disponiveis estdo sujeitas a numero- sas fontes de ertos (por exemplo, a parcialidade de quem escreve o dirio). * Os historiadores enfrentam dois problemas prin- cipais: a selegao das informagoes para suas nar- rativas historicas e a interpretagao das informa- gdes de que dispdem. Essas decisdes podem refletir as tendencias do historiador e também o contexto histdrico em que este escreve. Contu- do, a maior parte dos historiadores acredita que se possa chegar a um certo grau de verdade por meio da troca de informacdes e do exame dos fa- tos historicos mediante diversas perspectivas. 4. Qual 0 argumento defendido por Boorstin no ensaio sobre a prisio do presente (“The Prison of the Present”)? . Explique por que ¢ mais provavel que 0s alunos que fazem psicologia precisem estudar a histo- ria da psicologia que os alunos que fazem qu mica, a historia de sua disciplina. 6. De um exemplo de presentismo € explique quais 0s riscos do raciocinio presentista. 7. Explique por que a abordagem historicista da historia é as vezes chamada de historia contex: twalizada. 42 _ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA 8. Estabeleca distingdes entre as historias interna ¢ externa, Use 0 exemplo da psicologia compa- rada para ilustrar a questao. 9. Oque ¢ uma historia personalistica, de que mo- do ela se relaciona com o conceito de eponimo € quais so as suas limitacoes? 10, O que ¢ uma abordagem naturalistica da histo- ria e que tipos de provas sto usadas para defen dela? 11. Distinga entre as fontes primarias e as fontes se- cundirias de informagoes ¢ cite algumas das fontes primarias que provavelmente se encon- tram em arquivos LEITURA SUPLEMENTAR 12. Dé trés exemplos da historia da psicologia que idustrem o problema da sclecao de dados que todos os historiadores enfrentam. 13. Use 0 exemplo do famoso texto de Boring para ilustrar os problemas de interpretagdo encon- trados pelos historiadores. 14. Em Telling the Truth About History, Appleby, Hunt ¢ Jacob (1994) descrevem 0 processo de atingir a verdade na historia em termos darwi- nianos. Explique o que elas querem dizer e por que afirmam que, embora a verdade absoluta possa ndo ser encontrada, alguns relatos histo- ricos sto “mais verdadeiros” que outros. Appleby, J., Hunt, L.,.¢ Jacob, M. (1994), Telling the Truth Ahout History. Nova York: W. W. Norton. Pesquisa as origens de “absolutismos intelectuais”, co- ‘mo. ideatiluminista da cienciae da historia como uma Cronica puramente objetiva dos faios, ¢ sua substitui- ao por um relativismo pos-moderno que questiana a possibilidade de a historia chegar a atingir a verlade; propoe uma abordagem darwiniana “pragmatica” da historia que opta por wn rumo intermedidrio. Boring, E.G. (1963), Eponym as a placebo. In Ro- bert L, Watson ¢ Donald T. Campbell (orgs.), History. psychology and science: Selected papers by Edwin G. Boring, Harvard University (pp. 5- 25), Nova York: John Wiley & Sons. Um bom exemplo da erudicao de Boring e de sua defe- sa do conceito de Zeitgeist; ele argumenta que o efcito da teoria do “grande homem’” ¢ a criacdo de “eponimos” que nos dito uma visio supersimplificada e distorcida da historia; dada a complexidade da historia, os eponimos {funciona como meios de classificar as informacoes. Furumoto, L. (1989). The new history of psycho- logy. In 1. S. Cohen (org.), The G. Stanley Hall lecture series. Vol. 9 (pp. 9-34). Washington, D.C.; American Psychological Association. Uma excelente introducdo as questoes historiografi- cas, escrita para professores, mas de interesse tambem para os alunos; inclui um exemplo de historia vetha e nova pela comparacdo de artigos mais antigos ¢ mais recentes escritos por Furumoto sobre Mary Whiton Calkins, a primeira presidente da APA Lathem, E, C. (1994). Bernard Bailyn on the tea- ching and writing of history: Responses to a series of questions. Hanover, NH: University Press of New England Ampla sessao de perguntas ¢ respostas com um emi- nente historiador, cobrindo topicos que vao desde a historiografia as razoes para estudar a historia, 0 presemiismo ¢ 0 ensino da historia. ODonnell, J. M. (1979), The crisis of experimen- talism in the 1920s: E. G. Boring and his uses of history. American Psychologist, 34, 289-295, Amelhor descricdo breve de como a preocupacao de Boring com a psicologia aplicada contributram para seus esforcos no sentido de restabelecer a primazia da pesquisa basica, mediante sua atuacdo nos bastidores dda APA ¢ da construcao de wma historia que enfatiza- va a psicologia experimental CAPITULO 2 O CONTEXTO FILOSOFICO A psicologia tem um longo passado — nao obstante, sua verdadeir curta. —Hermann Ebbinghaus, 1908 VISAO GERAL E OBJETIVOS DO CAPITULO Este capitulo lhe apresentara conceitos ¢ questoes filosdficas que foram e continuam sendo importantes para os psicdlogos. O conhecimento des- sas idéias, junto com a compreensdo do modo como foram tratadas por filosofos-chave, propicia uma base necessaria a compreensao da moderna psicologia. Embora 0s filosofos se vejam a bragos com uma grande varie- dade de problemas, os que sao especialmente relevantes para a psicologia dizem respeito (a) a questo da semelhanca ou diferenca essencial entre 05 eventos mentais € os fisicos e, no caso de haver diferenca, como os dois tipos de eventos se relacionam um ao outro; (b) a questao da possibilida- de do nosso conhecimento de mundo ser derivado primariamente de nos- sa singular capacidade de raciocinio ou resultar dos efeitos cumulativos de nossas experiencias sensoriais; (c) ao grau em que a nossa heranca ¢ 0 nosso ambiente nos moldam; (d) a questdo da possibilidade de nossos pensamentos, sentimentos ¢ atos resultarem de nosso livre-arbitrio ou de leis naturais deterministicas ¢ (e) a questao da possibilidade de fenome- nos complexos serem mais bem compreendidos pela divisao em suas par- tes componentes. Esses problemas sero explorados por meio do exame das idéias de varios filosofos famosos, especialmente René Descartes, 0 mais conhecido dos racionalistas e pai da moderna filosofia, John Locke, fundador do empirismo britanico, e John Stuart Mill, empirista/asso: cionista do século XIX. O trecho de fonte original foi extraido dos escri- tos de Descartes acerca do problema da mente-corpo. Depois da conclu- sao deste capitulo, vocé devera ser capaz de: = Explicar o sentido da citagao de Ebbinghaus colocada na abertura des- te capitulo ™ Explicar de que modo o contexto historico influiu sobre as idéias de Descartes (por exemplo, 0 mecanicismo) = Explicar por que Descartes ¢ conhecido como racionalista ¢ descrever seus argumentos em relacdo a questao mente-corpo = Explicar por que Descartes ¢ considerado 0 “pai” da moderna fisiologia (modelo dos reflexos) ™ Descrever as caracteristicas basicas das idéias de Locke acerca do modo como desenvolvemos 0 nosso conhecimento de mundo ¢ a maneira co- mo ele aplicou essas idéias a educagao_ 44 HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA tinguir entre Locke e Berkeley na questo relativa as qualidades pri- marias e secundarias da matéria ® Descrever como o sistema de Berkeley foi uma tentativa de refutar 0 ma- terialismo ® Distinguir entre Hume ¢ Hartley na questao relativa as leis basicas da associagao ™ Distinguir entre J. S. Mill e seu pai na questao relativa ao atomismo e ao holismo © Descrever como as regras de Mill para a logica indutiva forneceram um lastro para os modernos conceitos de pesquisa na psicologia © Descrever a alternativa a metdfora do papel em branco de Locke pro- posta por Leibniz ™ Descrever a solucao mente-corpo proposta por Leibniz e como suas ideias se relacionam com os conceitos psicoldgicos do inconsciente € dos limiares ® Descrever os argumentos de Kant acerca das origens do conhecimento UM LONGO PASSADO A maioria dos estudantes de psicologia co- nhece Hermann Ebbinghaus como o inven- tor da “silaba sem sentido” ¢ a primeira pessoa a estudar experimentalmente a me- moria humana (ele é 0 autor do trecho ci- tado no Capitulo 4). Mesmo hoje em dia, ¢ impossivel chegar ao fim de um texto de in- trodugao a psicologia sem encontrar a fa- mosa curva do esquecimento de Ebbing- haus, que aparentemente explica por que os alunos nunca lembram muita coisa no dia seguinte a um exame. Entre os historia- dores da psicologia, Ebbinghaus € conheci- do também pela frase de abertura de um breve livro-texto introdutorio que escreveu em 1908: trata-se do “longo passado — his- tria curta” que constitui a epigrafe deste capitulo Com a referencia ao “longo passado” da psicologia, Ebbinghaus lembrava aos leito- Tes que as questdes basicas acerca da natu- reza humana e das causas do comportamen- to humano nao sao novas. Pelo contrario, elas foram formuladas de uma forma ou de outra desde que o ser humano comecou a fazer perguntas. Mais especificamente, Ebbinghaus estava mostrando que os psicd- logos devem reconhecer as raizes profundas que sua disciplina possui na filosofia; a his- t6ria da psicologia nao pode ser plenamen- te compreendida sem algum conhecimento da historia da filosofia. Todas as importan- tes questdes que hoje interessam aos psi- cologos foram tratadas pelos filésofos. Na verdade, vocé podera observar a estreita as- sociagdo entre as duas disciplinas na proxi- mia vez em que for a biblioteca: os livros de psicologia estao espremidos entre os de lo- gica, conhecimento e filosofia geral, e os de ética e estética. Essa conexdo tao intima implica que a psicologia seja apenas outro nome da filoso- fia? Nao. Na ultima metade do século XIX, intimeras forcas convergiram na tentativa de estudar 0 comportamento humano e os processos mentais pela aplicacao de méto- dos cientificos, e nao da anilise filoséfica, do raciocinio légico ou da especulacao — ou seja, a investigacao saiu da poltrona e foi para o laboratorio. Assim, aquilo que viria a chamar-se “nova psicologia” come- cou a surgi como uma disciplina separada ha mais ou menos 120 anos, o que levou Ebbinghaus, ha menos de cem anos, a dizer que a histéria da psicologia como nova ciéncia fora muito curta A analise minuciosa do longo passado a que se referiu Ebbinghaus exige um espaco muito maior que o possivel neste capitulo. Ela nos levaria a Grécia antiga, aos escritos OCONTEXTOFILOSOFICO 45 de Platao e Aristoteles, entre outros; aos grandes filsofos religiosos medievais, co- mo Tomas de Aquino, que uniu a fé crista com a légica aristotélica; a renascenga. Em vez disso, apesar de atingirmos a renascen- ca para obter um pouco de contexto histo- rico, comecaremos pelo século XVII e pelo multitalentoso Descartes, por vezes consi- derado o pai da moderna filosofia, matema- tica, fisiologia e psicologia DESCARTES E OS PRIMORDIOS DA CIENCIA E FILOSOFIA MODERNAS Descartes entrou em cena no final da renas- cenga, beneficiando-se assim das mudangas trazidas por essa importante era historica. A renascenga durou aproximadamente duzen- tos anos, estendendo-se ao longo dos sécu- los XV e XVI, € deve esse nome a redes- coberta dos textos dos antigos gregos ¢ romanos, especialmente os de Platio e Aris- toteles, que haviam estado perdidos para o mundo ocidental por centenas de anos. O periodo foi marcado por tremendos avangos nas artes, comecando pelo norte da Italia ¢ logo espalhando-se por toda a Europa. Essa foi a época de Leonardo Da Vinci (1452- 1519), prototipo do “homem da renascen- ca”, cujo genio abarcava tanto a arte quanto a ciéncia. Sua Ultima ceia e Mona Lisa estao entre as pinturas mais conhecidas do mun do, e seus interesses cientificos abrangiam a geologia, a astronomia, a botanica, a anato- mia e as ciéncias aplicadas da aeronautica da engenharia e dos armamentos. Outro gi- gante da renascenca foi Michelangelo Buo- narotti (1475-1564), que criou tesouros ar- tisticos que vao desde uma representacao do livro do Génese no teto da Capela Sistina do Vaticano a colossal escultura de David, que mede mais de cinco metros ¢ hoje esta em Florenga, cidade natal do anista. Alem da redescoberta de antigos textos da revolucao nas artes, a renascenga produ- ziu alguns avancos notaveis no terreno da ciéncia e da tecnologia. Na década de 1450, por exemplo, Johannes Gutenberg (c. 1394- 1468) criou uma nova forma de prensa ti- pografica, a qual permitia a criacao de um numero maior de livros do que jamais se pudera imaginar ea precos que levaram a li- teratura, a filosofia e a Biblia a um publico nunca atingido. Também nessa época, os re- lojoeiros aperfeicoaram os simples instru- mentos medievais para criar elaborados pai- néis mecanicos montados nas catedrais ¢ nos edificios publicos da Europa. Ao come- car cada nova hora, os visitantes da Cate- dral de Wells, na Inglaterra, por exemplo, podiam assistir a uma exibicdo com figuras em tamanho real de cavaleiros armados em combate, um dos quais derrubava outro do cavalo enquanto um terceiro personagem uniformizado sinalizava as horas batendo 0 numero correspondente com um martelo (Boorstin, 1983). O conhecimento acerca do funcionamento interno do corpo huma- no avancou significativamente em 1543, quando o médico belga Andreas Vesalius es- tabeleceu sua reputacao como fundador dos modernos estudos de anatomia com o Fa- bric of the Human Body/Estrutura do corpo humano, que contava com ilustragdes incri- velmente detalhadas (Klein, 1970). No campo da astronomia, em meados do sécu- lo XVI, 0 astronomo amador polones Nico- las Copémico desafiou a visdo tradicional geocéntrica do universo, segundo a qual a terra (“geo”) ocupava o centro do universo, substituindo-a por uma teoria heliocéntri- ca, conforme a qual o sol (“hélio”) ¢ que es- tava no centro ¢ a terra movia-se em torno dele como os outros planetas. Ciente da controvérsia religiosa que seria provocada pela ideia de que o “planeta de Deus” afinal nao estava no centro do cosmo, Copérnico atrasou a publicacao até pouco antes de sua morte, em 1543. O surgimento das obras cientificas classicas de Copérnico e Vesalius no mesmo ano levou um historiador da ciéncia a declarar 1543 0 ano de nascimen- to da ciéncia moderna (Singer, 1957). © modelo do universo apresentado por Copémico no fim da renascenca ¢ 0 exem- plo mais representativo de um dos temas cu- ja gradual evolucao caracterizam essa época 46 HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA © questionamento da autoridade, em espe- cial a autoridade da Igreja e seu fildsofo ofi- cial, Aristoteles. O antigo modelo geocéntri- co colocava a maior criagdo de Deus — 0 homem — no centro do universo, e Coper- nico questionou essa nogao. Um desafio ain- da maior surgiu em seguida, na pessoa do re- nomado cientista italiano Galileo Galilei (1564-1642), que deu suporte a teoria de Copérnico por meio de observacées empiri- cas auxiliadas por um telescopio com poder de ampliacao de vinte vezes, que construira ‘em 1609." As observacées de Galileo de coi- sas jamais vistas antes, como as luas de Ju- piter, corroeram ainda mais a autoridade tra- dicional. Como a visao aristotélica do universo poderia estar correta quando Aris- toteles nao podia ver o que agora se via? Ga- lileo, que era catolico devoto (sua filha era freira), viria afinal a ser acusado de heresia pela Inquisicao da Igreja e forcado a abjurar a alegacao do heliocentrismo do universo, mas 0 fez com os dedos cruzados. Embora seus escritos tenham sido incluidos na lista de obras proibidas da Igreja Catélica — e ai permanecido por quase duzentos anos —, seu trabalho continuou a ser amplamente publicado ¢ lido (Sobel, 2000). Antes do fim do século XVII, o modelo geocéntrico virou, como se diz, historia. Outra ameaga a ordem estabelecida pro- veio da Inglaterra, durante a época de Gali- leo, na pessoa de Sir Francis Bacon (1561- 1626). Bacon cra defensor ferrenho da abordagem indutiva na ciéncia. Ou seja, ele argumentava que o cientista deveria obser- var a natureza de modo atento ¢ sistematico conforme esta se apresentava, ¢ ndo seguir as conclusoes derivadas da analise dedutiva de Aristoteles e outras autoridades. A partir de observagdes minuciosas de casos, seria 1. Ha uma certa controvérsia quanto ao inventor do telesc6pio, mas nao foi Galileo — ele apenas aper- feicoou a tecnologia existente. A invencao do teles copio geralmente € atribuida a Hans Lipperhey (4.1619), um fabricante de lentes da Holanda, com base muma carta que serve de solicitacao de paten: te arquivada em setembro de 1608 (King, 1955) possivel chegar a afirmacdes gerais acerca da natureza. Bacon acreditava ainda que a ciéncia deveria ter um papel ativo no con- trole direto da natureza; com efeito, para ele, a verdadeira compreensdo da natureza 86 podia decorrer da capacidade de o cien- tista criar e recriar seus efeitos livremente (Smith, 1992), Isso, naturalmente, é um apelo a experimentacao direta da natureza para suplementar a observagao cuidadosa. A insisténcia de Bacon na aquisigao de co- nhecimento por meio da experiéncia torna- © um precursor do empirismo britanico; sua énfase na inducao € no controle da nawureza © transformaram num her6i para o behavio- rista B. F Skinner (Capitulo 11), que adotou um sistema baconiano de valores. Descartes e o Argumento Racionalista No ano em que Galileo estava observando 0 céu com seu telescopio, René Descartes (1596-1650), filho de um prospero advoga- do francés, j4 cursava 0 terceiro ano do Col- lege de la Fléche, instituic¢ao aberta havia pouco pelos jesuitas, conhecidos pela fama de bons educadores.’ Descartes tinha apenas 13 anos nessa ¢poca, ¢ sua educacto basea- va-se na tradicao escolastica, a qual aliava a sabedoria recebida da autoridade da Igreja a0 uso rigoroso da razo. Essa educacio re- corria particularmente a angumentos racio- nais derivados da obra de Aristoteles para defesa dos preceitos religiosos. Descartes lo- go se revelou um aluno brilhante; tao bom que tinha privilégios especiais: possuia um quarto individual e nao era obrigado a fre- quentar as aulas e a fazer as tarefas de roti- na. Os jesuitas permitiam-lhe ainda ficar na cama de manha pelo tempo que quisesse, a 2. A data dle nascimento de Descartes € 31 de mar- code 1596, conhecida apenas pelo fato de estar ins- crita num retrato publicado apés sua morte. En- quanto viveu, Descartes manteve a vida pessoal em segredo, recusando-se a divulgar a propria data de nascimento por medo de dar margem a especula- Ges por parte de astrdlogos (Vrooman, 1970) OCONTEXTOFILOSOFICO 47 fim de proteger-Ihe a saude, que era fragil Por causa disso, Descartes criou um habito que o acompanharia por toda a vida: suas melhores idéias vinham-lhe quando estava deitado na cama, refletindo sobre o proble- ma em que por acaso estivesse interessado, Descartes concluiu sua formacio em 1614, aos 18 anos, nao inteiramente sati feito com a educagao jesuitica. Como mui- tos estudantes de hoje, surpreso ao perceber que a educagio formal nao thes propicia Tespostas para as perguntas importantes da vida, Descartes descobriu, consternado, que a filosofia “havia sido estudada duran- te muitos séculos pelas mentes mais ex- traordinarias sem haver produzido nada que nao fosse objeto de controvérsia” (Des- cartes, 1637/1970, p. 8). Por conseguinte, resolveu descobrir as coisas por conta pro- pria, em vez de recorrer a autoridade do co- nhecimento estabelecido. Com uma sensa- cdo familiar a todos os alunos de ultimo ano de faculdade, ele estava pronto a abandonar a sala de aula ¢ langar-se ao mundo la fora, “disposto a nao buscar nenhum outro co- nhecimento que nao o que pudesse encon- trar dentro de mim mesmo ou, talvez, no grande livro da natureza” (p. 8) Ja que Descartes procurava manter a vi- da particular em sigilo, os anos seguintes nao estao muito bem documentados, mas aparentemente ele passou algum tempo ex- perimentando tudo aquilo que Paris tinha a oferecer (Vrooman, 1970), Em 1619, ele vi- veu algo que so se pode descrever como uma experiéncia de conversao, na qual uma série de sonhos o instou a tomar providén- cias no sentido de fazer uma contribuicao significativa ao conhecimento. Descartes passou os dez anos seguintes vivendo em Paris ou nas cercanias, aprendendo tudo o que podia sobre © maximo de topicos dife- rentes, especialmente as ciéncias, na con- vicgao de que conseguiria promover uma “unido do conhecimento” com base nas ma- tematicas, Embora nesta era de sobrecarga de informacées possa parecer absurdo que alguem almeje unificar todo o conhecimen- to num tinico sistema, esse nado era 0 caso no século XVII, O enfraquecimento da au- toridade, aliado a uma crescente fé na cién- cia, criou a visio otimista de que tudo no mundo poderia ser conhecido, talvez ao longo de uma vida ‘A época de Descartes, no inicio do sécu- lo XVII, é conhecida como uma era de avan- cos revoluciondrios na ciéncia. Era a época de Bacon, de Galileo e, no fim da segunda metade do século, de Sir Isaac Newton. Ela contou com 0 telescépio ¢ 0 microscépio do belga fabricante de lentes Antonie van Lee- wenhoek, ferramentas que possibilitaram a observacdo de coisas nunca antes vistas nos céus ¢ numa gota d’gua (Boorstin, 1983). Na medicina, por exemplo, a observagao sistematica empreendida pelo médico brita- nico William Harvey refutou a crenca am- plamente difundida de que 0 coragao criava © sangue que seria consumido por outras partes do corpo, demonstrando (em 1628) que, em vez disso, ele funciona como uma bomba mecanica que faz o sangue recitcu- lar pelo corpo. No inicio da década de 1620, Descartes era mais um cientista que um fildsofo, estu- dando fisica, dtica, geometria e fisiologia Por exemplo, ele combinava o interesse que tinha pela otica e pela fisiologia extraindo 0 olho de um boi e analisando as proprieda- des das lentes, descobrindo assim que as imagens da retina sao invertidas (Vrooman, 1970). Em 1633, Descartes ja havia escrito The World/O mundo, destinado a resumir 0 trabalho de sua vida até aquele ponto e de- monstrar como as varias disciplinas pode- riam unir-se mediante 0 uso rigoroso da razao e com base em fundamentos da mate- matica. O livro era uma tentativa de descre- ver as origens e a estrutura do universo co- nhecido, possuindo tépicos como geologia, astronomia e fisiologia humana. Porém, a parte dedicada a astronomia, centrada em uma defesa muito forte do modelo helio- céntrico de Copémico e Galileo, foi um problema. Descartes estava pronto para pu- blicar The World quando soube que a Igreja havia condenado o trabalho de Galileo. Te- mendo destino semelhante e desejando evi- 48 _ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA lar a notoriedade € manter as boas gragas da Igreja Catolica, Descartes evitou a publica- cao, ¢ 0 livro s6 foi conhecido depois de sua morte. Partes dele, contudo, foram inseri- das em diversos tratados publicados ao lon- go de sua vida, inclusive o Discourse on Me- thod/Discurso sobre 0 método, para o qual nos voltaremos agora. O Sistema Cartesian Racionalismo, Nativismo e Interacionismo Mecanico Embora cético quanto aos méritos da esco- lastica que encontrou quando estudante, Descartes sempre foi grato aos jesuitas por haverem-no ensinado a pensar com logica e preciso. Sua conviccao de que a verdade poderia advir do uso cuidadoso da razdo tornou-se o seu modus operandi e 0 caracte- riza como um racionalista. Em seu Discour- se on Method (1637/1960), ele explica como $0 aceitava como verdadeiro aquilo de que nio se podia duvidar. Assim, rejeitou a pro- posicdo de que os sentidos fossem ahsoluta- mente verazes, pois podem iludir, além de questionar os argumentos plausiveis de ou- tros filosofos pelo fato de existirem contra- argumentos igualmente plausiveis. No en- tanto, descobriu que a unica coisa de que nao podia duvidar era do fato de que ele era quem duvidava. Conforme disse num dos trechos mais famosos da filosofia, Percebi que, enquanto eu desejava pensar que tudo era falso, era necessariamente ver- dadeiro que eu, que assim pensava, era algo. Desde que esta verdade, “Penso, logo exis era tao firme e certa que nem as mais extra- vagantes suposigoes dos céticos poderiam abali-la, julguei ter seguranga em poder aceiti-ta como o primeiro principio da filo sofia que buscava, (Descartes, 1637/1960, p. 24, itélico nosso) Assim, para Descartes, 0 caminho para a verdade estava na capacidade humana do ra- ciocinio. Em Discourse on Method, ele descre- ve as quatro regras basicas que usava para atingir a verdade de algum tema. Primeiro, nao aceitava nada como verdadeiro, a menos que “se apresentasse de modo tao distinto e claro A mente que nao houvesse razéo para duvida” (Descartes, 1637/1960, p. 15). Se- gundo, tomava os problemas ¢ analisava-os, reduzindo-os a seus elementos fundamen- tais. Terceiro, trabalhava sistematicamente do mais simples para 0 mais complexo des- ses elementos. E, finalmente, revisava cuida- dosamente suas conclusdes para ter certeza de nao haver omitido nada. Agora, para nos- so modo de pensar do século XX, essas regras de método podem nao parecer extraordina- rias, Descartes parece simplesmente estar di- zendo que se deve pensar com clareza, logi- cae imparcialidade, que se devem reduzir os problemas em subproblemas, que se deve trabalhar sistematicamente do mais simples para o mais complexo e que se deve revisar 0 trabalho, No entanto, concluir que essas re- gras so ordinarias ¢ ser vitima do raciocinio Presentista que discutimos no Capitulo 1 No contexto da época de Descartes, quando © poder da autoridade ainda era consider- vel, apesar de estar se debilitando, suas re- gras de método eram realmente revoluciona- rias. Na verdade, ele estava abandonando inteiramente a autoridade. O unico modo de chegar a certeza da verdade € por meio de si mesmo, recorrendo a lucidez do proprio po- der de raciocinio. Uma indicagao do quanto essa idéia perturbou as autoridades esta no fato de a obra de Descartes haver sido colo- cada, apés sua morte, na lista de escritos proibidos pela Igreja aos catdlicos de bem, ao lado da de Galileo (Vrooman, 1970) Um dos pressupostos do racionalismo cartesiano era o de que a capacidade de ra- ciocinio era inata e certos tipos de conheci- mento nao se baseavam diretamente na ex- periéncia dos sentidos, mas decorriam da nossa capacidade inata de raciocinar. Por exemplo, embora nosso conhecimento das propriedades da cera (o fato de que ela der- Tete com 0 calor, por exemplo) se baseie na experiencia, existem certas coisas a respei- to da cera que compreendemos em decor- rencia simplesmente de uma analise logica, OCONTEXTOFILOSOFICO 49 usando a faculdade inata do raciocinio. As- sim, Descartes diria que podemos concluir, sem nenhuma diwvida, que a cera tema pro- priedade intrinseca da “extensdo”: ela exis- te no espaco e, apesar de poder mudar de forma (derretendo-se, por exemplo), jamais pode desaparecer. Como podemos usar a nossa faculdade inata do raciocinio para chegar ao conhecimento do conceito de ex- tensao, Descartes considerava esse atributo um exemplo de idéia inata. Do mesmo mo- do, ele acteditava que temos outras idéias inatas, as quais podemos chegar pelo uso da capacidade de raciocinio, entre elas, as idéias de Deus, do eu e certas verdades ma- tematicas basicas. Por outro lado, muitos de nossos conceitos resultam de nossas expe- riéncias no mundo. A essas, Descartes cha- mou idéias derivadas. Saber que uma vela de cera de um determinado tamanho leva dez horas para acabar seria um exemplo desse tipo de idéia. A posicao de Descartes no que se refere as idéias inatas permite que ele seja considerado tanto um racionalista quanto um nativista, pois sua distingao en- tre idéias inatas e idéias derivadas antecipa um dos temas recorrentes da psicologia: a relacao entre o que € inato e o que ¢ adqui- rido (nature/nurture). Descartes foi também 0 mais famoso dualista da historia, defendendo uma sepa- racdo nitida entre mente (ou “esptrito”) e corpo. Para ele, estes poderiam ser distin- guidos pela propriedade acima mencionada da extensao, junto com a do movimento: os corpos ocupam espaco € movem-se através dele. A mente, por sua vez, ndo posstti ne- nhuma das duas propriedades. A principal caracteristica da mente ndo-extensivel € a capacidade humana do raciocinio, ao passo que 0 corpo é em esséncia uma maquina. Uma das implicagdes desse dualismo viria a ser conhecida como dicotomia cartesiana, que separa os seres humanos dos animais. Descartes argumentava que os animais s40 simples maquinas, incapazes de raciocinar ou falar e, portanto, desprovidos de mente. Os seres humanos, por sua vez, aliam o cor- po mecanico a mente capaz de raciocinio. Assim, os animais consistem apenas de cor- po, a0 passo que os seres humanos posstem corpo ¢ mente. Além de racionalista ¢ nati- vista, Descartes também pode ser conside- rado um mecanicista, por acreditar que 0 corpo funciona como uma maquina com- plexa. Ele ¢ também um interacionista, pois julgava que a mente podia ter influén- cia direta sobre 0 corpo (a decistio de me- thorar a sauide leva-nos a fazer exercicios) & vice-versa (uma lesdo nos ligamentos do joelho leva-nos a repensar o nosso plano de exercicios). © uso que Descartes fez da metafora da maquina ao descrever as propriedades dos corpos nao foi fortuito. Vimos que na Re- nascenga a tecnologia do fabrico de relogios avangara a ponto de permitir a exibi figuras mecanicas verossimeis a cada hora nas catedrais ¢ edificios publicos da Europa. Além disso, a riqueza desse continente cria- ra jardins que possuiam elaboradas estatuas e fontes mecanicas, dotadas de movimento pela acao de sistemas hidraulicos. O incau- to que visitasse um desses Disney Worlds do século XVII e pisasse numa placa escon- dida podia acionar um sistema que fazia uma estdtua de Netuno emergir da agua de um lago proximo. Um exemplo menos ex- travagante do Zeitgeist mecanicista que per- meava a época de Descartes foi a demons- tracio de Harvey de que 0 coragao era como. uma bomba mecanica. HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA TRECHO DE FONTE ORIGINAL Descartes sobre o Interacionismo Mente-Corpo No ano que antecedeu sua morte, Descartes publicou The Passions of the Soul/As paixdes da alma (1649/1969), que estabeleceu a sua posigao co- mo pioneiro da psicologia e da fisiologia. Abaixo, vocé encontrara um excerto dessa obra, essencialmente um tratado sobre as emogdes huma- nas, em que ele tentava explicar o que hoje chamamos de “reflexo”. Alem disso, ela constitui um modelo fisioldgico para o posicionamento de Des- cartes acerca da questa mente-corpo. Ele inicia 0 livro com um caracte- ristico ataque a abordagem tradicional, baseada na autoridade, do estudo das emocoes, argumentando logo na primeira frase que “nao ha nada que mostre com mais nitidez a natureza falha das ciéncias que herdamos dos antigos do que 0 que eles escreveram sobre as paixdes” (Descartes, 1649/1969, p. 331). Em seguida, ele apresenta sua distincao mente-cor- po e inicia uma discussao da “maquina do corpo”, na qual ha uma refe- réncia direta a Harvey, uma descricdo da acao antagonistica dos musculos € uma discussao introdutoria do sistema nervoso: Para tornar isso mais inteligivel, explicarei em poucas palavras todo 0 mé- todo que compée a maquina do corpo. Como todos ja sabem, temnos em nds um coragao, um cérebro, um estémago, musculos, nervos, artérias, veias coisas que tais. [...] Os que tiverem um conhecimento médico minimo s bem ainda de que ¢ composto 0 coragao. [...] Do mesmo modo, todos aque- les que nao se deixaram cegar inteiramente pela autoridade dos antigos e que decidiram abrir os olhos 4 investigacao da opiniao de Harvey no que se refere & circulagao do sangue, ndo duvidam que todas as veias ¢ artérias do corpo sao como rios pelos quais o sangue flui incessantemente com gran- de rapidez. [...] Sabemos também que todos os movimentos dos membros {isto é, bragos e pernas) dependem dos musculos, e que esses musculos es- to tao estreitamente relacionados uns com os outros que, quando um se contrai, atrai para si a parte do corpo a qual esta conectado e isso faz o mi: culo oposto se alongar. |...) Sabemos, finalmente, que todos esses mo} mantos dos muisculos — como também todos os sentidos — dependem dos nervos, 0s quais se parecem |...) com pequenos tubos, todos procedentes do cérebro, e contém, como este, um ar ou sopro muito sutil chamado de espiritos animais. (pp. 333-334) Pensava-se que os espiritos animais a que Descartes se refere — uma nogao que remonta aos antigos gregos — provinham do “calor” do san- gue e eram a forca responsavel por todos os movimentos, Descartes acha- va que eles se compunham de mintisculas particulas em constante movi- mento, encontradas no cérebro, nos nervos ¢ nos muisculos. Pois o que aqui denomino espiritos animais outra coisa ndo so que corpos materiais, e sua Unice peculiaridade esté no fato de serem corpos de dimen- s6es extremamente reduzidas € moverem-se com muita rapidez, como as particulas da chama que arde numa tocha. Assim ¢ que eles nunca perma- necem em repouso em nenhuma parte e, do mesmo modo que alguns de- les penetram as cavidades do cérebro, outros emergem pelos poros [do cé- rebrol, os quais os conduzem aos nervos e dai aos miisculos, mediante os quais eles fazem o corpo mover-se de todas as formas possiveis. I... OCONTEXTOFILOSOFICO 51 Pois a azo de todos os movimentos do corpo é a contragao de de- terminados misculos e 0 correspondente alongamento dos musculos que Ihes s80 opostos |...1, € a Unica razéo da contra¢o de um misculo, em vez . 6 0 fato de 0 cérebro enviar a esse misculo, ¢ no ao outro, uma quantidade extra (por menor que seja) de es- piritos animais. Nao é que os espiritos que provém imediatamente do cére- bro sejam suficientes por si mesmos para mover os muisculos, mas sim que eles determinam que outros espiritos, ja presentes nesses dois musculos, se transfiram de um para 0 outro. (p. 336) O movimento muscular resulta da agao dos espiritos animais, mas 0 que determina quais os musculos que se moverao? Duas coisas, segundo Descartes. Em primeito lugar, a mente pode dar inicio ao movimento de espiritos animais no cérebro pela ativacdo dos nervos que controlam de- terminados musculos, em vez de outros. Ou seja, a mente pode influen- ciar 0 corpo (em breve, veremos mais acerca disso). Em segundo lugar, certos musculos podem mover-se automaticamente em reagao aos resul- tados de certos eventos sensoriais. Ou seja, existem reflexos.’ Descartes explicou a relacdo entre a sensacao e a reacdo motora auto- miatica propondo a existéncia de “filamentos” estreitissimos existentes nos nervos, que se estenderiam ao cérebro. Com base na dissecacao de animais € sem contar com o microscépio (que Leeuwenhoek ainda iria inventar), Descartes pensava que os nervos fossem tu- bos ocos (permitindo assim que os espiritos animais os percorressem) que contivessem esses finos filamentos. Para ele, sempre que houvesse estimulo dos sentidos, esses fila- mentos se moveriam, promovendo a abertu- ra de certos “poros” do cérebro. Isso, por sua vez, acarretaria 0 fluxo de espiritos animais, © qual produziria o movimento reflexo, como ocorre quando nos queimamos acidental- mente. A figura 2.1 mostra um famoso esbo- co de Descartes dessa retracao involuntaria (isto é, reflexa) do pe diante do fogo, retirada FigyRa 2.1 ustracso de Des- de uma obra anterior, intitulada Treatise on cartes do ato reflexo, extraida Man/Tratado sobre o homem, e publicadaem de Fearing (1930). 1637. O fogo toca o pé, causando um puxdo nos filamentos do nervo ali existente. Esses filamentos se estendem até 0 cerebro, onde os espiritos animais sao liberados no “tubo” do nervo. Os es- pfritos, por sua vez, sao transportados, “em parte, para os musculos que retiram 0 pé do fogo; em parte, para os que fazem os olhos e a cabeca vol- tarem-se para contempla-lo e, em parte, para aqueles que servem para le- var as mios a frente € dobrar 0 corpo para proteger-se” (Descartes, 1637, citado por Fearing, 1930, p. 24). 3. Embora estivesse sem diivida descrevendo o ato reflexo, Descartes nao inventou nem usou o termo “reflexo”. Essa distincdo pertence a Thomas Willis (1621-1675), fisidlogo britanico que chamou 0 fendmeno de “reflexdo”. Willis cunhou também 0 termo “neurologia” (Finger, 2000) 52 _HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA Em The Passions of the Soul, Descartes amplia 0 conceito de reflexo, fa- zendo-o abranger todas as nossas fungdes automaticas (respiracao e diges- 10, por exemplo), e traca a analogia do mecanismo de um relégio: Desse modo, todos os movimentos que fazemos sem a contribuigéo da von- tade (como freqiientemente acontece quando respiramos, caminhamos, co- memos e, de fato, realizamos todos os atos que s40 comuns a nds e as bes- tas) dependem apenas da conformagao de nossos membros e do curso que 08 espiritos, excitados pelo calor do coracdo, seguem naturalmente no cére- bro, nervos e musculos, assim como os movimentos de um reldgio se pro- duzem simplesmente pela forca das molas ea forma das rodas. (pp. 339-340) ‘Alem de promoverem atos reflexos, as sensacdes também podem dar lugar no cérebro ao movimento de espiritos animais que levem a decisoes deliberadas de agir, ¢ a mente, por si s6, pode dar inicio a acao. Ou seja, a mente pode intervir entre o estimulo sensorial ¢ a reacao motora. Como explicar a natureza dessa interagao entre a mente e 0 corpo era todavia um problema. Uma coisa € dizer que a mente pode afetar diretamente 0 movi- mento do corpo e vice-versa. Mas outra é demonstrar como isso acontece. Apés uma cuidadosa analise, Descartes |... estabeleceu claramente que a parte do corpo em que a alma exerce suas fungées de forma imediata nao 6, de maneira alguma, o coragéo nem o cé- rebro como um todo, mas apenas a sua parte mais rec6ndita, a saber, uma determinada glandula muito pequena, situada no meio da massa enceféli- ae suspensa de tal modo sobre o duto pelo qual os espiritos animais em suas cavidades anteriores se comunicam com os das posteriores que os mais minimos movimentos que ali ocorrem podem alterar em muito o cur- ‘so desses espiritos. De modo reciproco, as mais minimas alteragées que ocorram no curso dos espiritos pode contribuir para alterar em muito os movimentos dessa glandula. (pp. 345-346) A estrutura em questao é a glandula pineal, ¢ Descartes a situou como local da interagéo mente-corpo porque acreditava que ela estava estrategicamente localizada num ponto em que o fluxo de espiritos animais po- dia ser controlado. Na Figura 2.2, Descartes mostrou como 0 FIGURA 2.2 Ilustragéo de Descartes da ago movimento da glindula pineal 44 9!4ndula pineal, extraida de Finger (2000). podia provocar a emissao de es- piritos animais em diferentes direcdes (representadas pelas linhas retas). A glandula pineal era, além disso, uma estrutura que nao existia em am- bos os lados do cérebro. Como a mente (ou alma) era considerada unita- ria, Descartes ponderou que ela deveria exercer seu efeito por meio de uma estrutura que também fosse unitaria: ‘A razéo que me persuade a pensar que a alma nao pode ter nenhuma outra sede em todo 0 corpo para exercer suas fungdes de modo imediato que ndo essa glandula é a seguinte: outras partes do nosso cérebro sdo todas elas dui- OCONTEXTOFILOSOFICO 55 Alem disso, tinha formagao medica, mas es- tava interessado principalmente nos aspec- tos cientificos da medicina e pouco a prati- cou. Ao longo de sua vida, testemunhou: (a) a Guerra Civil Inglesa, que promoveu a der- rocada da monarquia em favor do parlamen- to civil; (b) a execucao de um rei e a deposi- do de outro (talvez tenha presenciado o primeiro fato e participou do segundo); (c) diversas mudancas na religido oficial da In- glaterra, cada qual acompanhada de varios graus de perseguicdo dos que professavam a fé “errada”; (d) um incéndio que destruiu dois tergos de Londres (ele via a fumaca em Oxford); ¢ (e) uma alianca politica que 0 obrigow a fugir da Inglaterra ¢ exilar-se por algum tempo na seguranca da Holanda (Jef- freys, 1967). A partir dessas experiéncias, ele desenvolveu uma filosofia politica liberal baseada na tolerancia das dissensdes e do di- reito das pessoas de decidir como viver sua vida publica ¢ espiritual e, em particular, de escolher sua forma de governo. Em sua mais famosa obra politica, Two Treatises on Go- vernment/Dois tratados sobre 0 governo (1690/1960), ele explica a id¢ia hobbesiana de contrato social entre o governo e 0 povo: © governo deveria concordar em governar com sabedoria e proteger 0s direitos, o bem- estar eo bem comum de seus cidadaos; es- tes, por sua vez, deveriam concordar em apoiar 0 governo e dele participar. Aqueles que nao o fizessem deveriam esperar do go- verno uma acao contraria (por exemplo, po- los na cadeia por nao pagar os devidos im- Postos). Por outro lado, o governo que nao cumprisse com a sua parte deveria esperar ser interditado pelo povo e substituido por outro mais justo. Esse conceito deve parecer familiar aos norte-americanos, pois Thomas Jefferson baseou-se nas idéias de Locke ao criar a Declaragao de Independencia dos Es- tados Unidos. Locke ¢ importante para a psicologia por causa dos conceitos que exprimiu em duas de suas obras, An Essay Concerning Human Understanding/Ensaio sobre a compreen- so humana (1690/1963) ¢ Some Thoughts Concerning Education/Alguns pensamentos acerca da educagao (1693/1963). A primei- ra explica a visio de Locke acerca da aqui sicdo do conhecimento; de que modo n6s, enquanto seres humanos, chegamos a com- preender o mundo em que vivemos. A se- gunda baseia-se numa série de cartas a um amigo ¢ mostra como o pensamento empi- rista pode ser aplicado a todos os aspectos da educagao infantil. Locke Fala sobre a Compreenséo Humana Como Descartes, Locke tinha paixao pela ciéncia que tanto caracterizava 0 século XVIL Enquanto estudava em Oxford, ele se interessou pelas idéias de Sir Francis Bacon ¢ rejeitou firmemente o mesmo escolasticis- mo que Descartes questionava. Quando es- tudava medicina, Locke tornou-se amigo de outros cientistas, entre os quais Robert Boy- le (1627-1692), um dos pioneiros da quimi- ca moderna € um dos fundadores da British Royal Society, estabelecida em 1662 para o progresso da ciencia (Boorstin, 1983). Ele também foi contemporaneo de Sir Isaac Newton, cujo Principia Mathematica/Princi- pios matematicos foi publicado apenas trés anos antes do Essay de Locke. O que Bacon, Boyle, Newton e outros estavam fazendo pelas ciéncias fisicas, ao transforma-las da “filosofia natural” de base aristoteliana que era em um grupo de disciplinas experimen- tais de base empirica, Locke estava determi- nado a fazer pela epistemologia, o estudo do conhecimento humano ¢ sua aquisicao. Como observa Locke na “epistola ao lei- tor” que abre 0 seu livro, as idéias do Essay provém de discussdes com amigos em Ox- ford que evoluiram para uma série de notas, “escritas de forma aleatéria e, apés longos intervalos de abandono, retomadas confor- me permitissem o meu humor ou a ocasiao” (Locke, 1690/1963, p. xlvii). Vinte anos de- pois das discussdes origindrias, 0 Essay Concerning Human Understanding final- mente surgiu em 1690. Antes de descrever como surgem nossas idéias, Locke considerou € rejeitou a exis- téncia de idéias inatas, Porém, ele nao era in- 56 _ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA teiramente a favor da aquisicao na questao do inato X adquirido. Ele concordava em que tinhamos “faculdades” inatas, como a capa- cidade de raciocinio, mas nao aceitava a opi- nido de Descartes de que as idéias que pro- vinham do raciocinio logico (por exemplo, a extensdo) poderiam ser consideradas ina- tas, Locke comecou por argumentar que nao ha nenhuma necessidade de propor idéias inatas porque € possivel demonstrar que as idéias provém de outras fontes, exigindo apenas 0 uso de nossas capacidades (“facul- dades”) mentais basicas. Por exemplo, se a nossa capacidade de raciocinio nos permite concluir que todos os objetos fisicos tem a propriedade da extensio, a conclusdo ba- seia-se no fato de havermos conhecido inu- meros objetos extensiveis ao longo da vida Para Locke, na auséncia dessa experiéncia, nao chegariamos a conclusio de que a ex- tensdo ¢ uma propriedade da matéria; inclu- sive, nem sequer nos ocorreria pensar nela. Outro argumento em favor das idéias inatas era a crenca de que certas idéias sdo universais, encontradas em todas as pes- soas, Se todas as culturas possuem o con- ceito de Divindade, por exemplo, pode-se afirmar que o conceito de Deus nao requer nenhuma experiéncia especifica, mas ¢ inato. Locke nao concordava com isso. Embora nao tenha usado este exemplo, ele poderia ter afirmado que a crenga univer- sal em Deus nao implica necessariamente que a idéia de Deus seja inata. Ela poderia decorrer do fato de que, se todas as pessoas morrem (ou seja, uma experiéncia co- mum), todas se preocupam com a morte e a existéncia de uma vida subseqitente. Pro- por a existéncia de um ser supremo seria uma conseqtiéncia natural e inevitavel des- sa linha de raciocinio. Um argumento final em favor das idéias inatas € que certas idéias aparentemente sur- gem tao cedo na vida que devem ser inatas. Locke rejeitou também esse argumento, res- saltando que, antes mesmo de poderem usar a linguagem, as criancas se beneficiam da experiencia, aprendendo a reconhecer a diferenca entre o doce e 0 amargo, por exemplo. Além disso, adotando uma linha semelhante a que viria a ser adotada pelos behavioristas norte-americanos no século Locke observou que a crianca pode ter algumas experiéncias bem cedo na vida. As- sim, o fato de um bebé de 2 anos falar em Deus nao nos permite concluir que Deus se- ja uma idéia inata. Essa crianga provavel- mente foi exposta a um ambiente muito re- ligioso nesses dois anos. Tendo rejeitado o conceito de idéia ina- ta, Locke voltou-se para a questdo de como a nossa mente desenvolve idéias. Num dos trechos mais citados da filosofia, ele decla- ra que todo o nosso conhecimento do mun- do decorre de nossas experiéncias nele: [...] Suponhamos entdo que a mente seja, co- mo se diz, uma folha de papel em branco, sem nada escrito, nenhuma idéia. Como & que ela ¢ preenchida? Como ¢ que ela se tor- ra esse vasto repositoria que a incansavel e ilimitada imaginagio do ser humano pinta com uma variedade quase infinita? Como € que ela possui todos os materiais da razio € do conhecimento? A essas perguntas, eu res- pondo com uma sé palavra: experiéncia. Na experiéncia jaz 0 fundamento de todo 0 nos- so conhecimento, o qual, em wltima andlise, dela provém. (Locke, 1690/1963, pp. 82-83, énfase acrescentada) Ao nascer, portanto, a mente é uma fo- tha vazia de papel em branco (Locke estava dando novo nome a antiga metafora aristo- teliana da mente como tabua de cera ou quadro em branco), pronta para ser escrita pelas experigncias de vida do individuo Alem disso, as ideias que resultam da expe- riéncia e compoem a mente tém duas e ape- nas duas fontes, de acordo com Locke. Para ele, toda idéia que temos, sem excecao, de- riva dos processos de sensacio ¢ reflexio. Conforme o descreve, Primeiro, nossos sentidos |...] transmitem & mente diversas percepgdes distintas das coi- sas |...] ¢ assim chegamos as idéias que te- mos do amarelo, do branco, do calor, do frio, OCONTEXTO FILOSOFICO 57 do mole, do duro, do amargo, de doce e de tudo aquilo que chamamos qualidades sen- siveis. [...] A essa grande fonte da maior par- te das ideias que temos, inteiramente depen- dente dos sentidos ¢ por eles proporcionadas A compreensio, chamo SENSACAO. [...] Segundo, a outra fonte, com a qual a experiencia fornece idéias & compreensao, € a percepcio das operacées da mente dentro de nds, do modo como ¢ usada pelas idéias que temos; [esas] operagdes [...] sito a per- cepcio, o raciocinio, a diivida, a crenca, a l6- gica, o saber, a vontade ¢ todas as diferentes agoes da nossa mente; (...] a isso eu chamo REFLEXAO, cujas idéias s6 0 sto a medida que a mente as obtém refletindo sobre suas proprias operacdes dentro de si mesma (Locke, 1690/1963, pp. 83-84) Portanto, a sensacao refere-se a todas as informacoes apreendidas do ambiente pelos nossos sentidos, ¢ a reflexao refere-se as ati- vidades mentais exigidas ao processamento das informagdes provenientes tanto dos sen- tidos quanto da memoria. Assim, nosso con- ceito de verde deriva da nossa experiencia com objetos verdes e nossas posteriores re- flexdes sobre a “verdura”. O processo de re- flexao também pode produzir novas idéias no conhecidas inicialmente pelos sentidos. Por exemplo, mesmo que nao conhecamos a historia do Dr. Seuss diretamente pela sen- sagdo, podemos conceber “ovos verdes presunto” combinando, por meio dos pro- cessos reflexivos da meméria e da imagina- 40, nossas idéias de verde, ovos e presunto. Em outra parte do Essay, Locke faz uma distingao entre idéias simples e complexas. As idéias simples resultam da experigncia de qualidades sensérias basicas, como amarelo, branco, calor etc., € da realizacao de refle- xdes simples, como “agradavel”. As idéias complexas abrangem varias outras, que po- dem ser combinagoes de idéias simples e ou- tras idéias complexas. A idéia complexa de uma bebida fria num dia muito quent, por exemplo, compée-se de diversas idéias sim- ples relativas a cor, temperatura, forma, satis- facao, sabor e da idéia complexa adicional de uma vida boa. As idéias complexas so com- postos que podem ser reduzidos a idéias sim- ples, do mesmo modo que os compostos qui- micos podem ser reduzidos a elementos simples. Essa idéia da mente como uma construcao intrincada que incorpora cama- das de idéias de variada complexidade era comum ao pensamento empirista britanico ¢ reflete a influéncia de outras ciéncias, espe- cialmente da fisica e da quimica, Assim co- mo a agua pode ser reduzida a seus elemen- tos ca luz pode ser decomposta nas cores que formam 0 espectro, a mente poderia ser ana- lisada em suas unidades fundamentais. A idéia de que a complexidade da natureza po- de ser entendida pela redugao dos objetos a seus elementos mais basicos ¢ as vezes cha- mada de atomismo ¢ constitui um pressu- posto de muitos dos primeiros sistemas da psicologia, inclusive do estruturalismo de E. B. Titchener (Capitulo 7) e do behaviorismo de John Watson (Capitulo 10). Na quarta edigdo do Essay, Locke abor- dou a questao de como as idéias simples for- mam idéias compostas e, ao faz8-lo, introdu- ziu na discussio 0 conceito de associagio. Assim como a gravidade, que mantém jun- tos os elementos do universo, foi o conceito central da fisica newtoniana, a associacao seria a cola que interligaria as experiencia de vida do individuo. Porém, como Locke discutiu 0 conceito apenas até certo ponto, caberia a outros filosofos britanicos — que conheceremos em breve — desenvolvé-lo mais minuciosamente. Como ficara claro, 0 empirismo e 0 associacionismo britanico ca- minharam lado a lado. Uma distingao final digna de nota €a que Locke tragou entre as qualidades primdrias e secundarias da matéria. Trata-se de uma distingio muito famosa no século XVI, ini- cialmente difundida por Galileo. Afirmava- se que as qualidades primarias seriam uma propriedade inerente dos objetos. Extensao, forma e movimento séo exemplos. Essas eram as caracteristicas que Descartes acredi- tava serem idéias inatas. Para Locke, elas nao tinham nada de inato; os conceitos de fato poderiam resultar da reflexao da mente, 58 HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA mas os dados para essa reflexao provinham das experiéncias sensérias com diversos ob- jetos. As qualidades secundarias, por sua ‘vez, nao seriam atributos inerentes aos obje- tos, mas dependeriam da percepcao. A cor, 0 odor, 0 calor ¢ 0 sabor dos objetos sto exem- plos. Assim, a vermelhidao de um objeto nao existe nesse objeto em si, mas na expe- rigncia perceptual do observador. A medida que se torna mais escuro, 0 tomate nado mu- da de forma, mas sua cor se altera, pasando de vermelho a quase negro. No proximo ca- pitulo, vocé vera a importancia que 0 con- ceito de qualidades secundarias assumiu pa- ra um famoso modelo novecentista do sistema nervoso, 0 qual propunha que os sentidos diferiam em termos de “energias es- pecificas”. A distingao primario X secunda- rio levantou também outras questoes que le- varam naturalmente a uma analise direta de como os sistemas sensorios funcionam para criar nossas “compreensdes”. Se “vermelho” nao esta no objeto, mas no cérebro, como é que ele vai parar la? ‘A filosofia empirista de Locke suscitou di- versas implicagoes interessantes. Primeiro, s¢ © nosso conhecimento do mundo baseia-se nas nossas experiéncias ¢ a sensagdo € uma das principais fontes de experiencia, uma fa- Tha dos sentidos deveria produzir uma visto distorcida do mundo. Essa questao foi apre- sentada em carta a Locke por William Moly- neux, um amigo de Dublin, Molyneux per- guntava 0 que aconteceria se um cego de nascenga, cuja experi¢ncia de objetos como cubos e esferas se limitasse ao sentido do ta- to, recomtheceria esses objetos se a sua visdo de repente se restabelecesse. E respondeu com uma negativa, coma qual Locke concor- dou. Depois que sua visio tivesse sido resta- belecida, esse cego teria de aprender a distin- guir o cubo da esfera novamente, criando relacées entre as informacdes recebidas da vi- sto e do tato. Ja no século XVII, a catarata congenita estava sendo operada, permitindo assim um teste direto ¢ uma forte defesa des- sa alegacao empirista (Morgan, 1977). Outra implicacao da teoria de Locke liga sua visdo psicologica a politica ¢ ilustra co- mo os tempos agitados em que viveu con- tribufram para a formacao de suas idéias. Se a compreensio humana resulta da expe- riéncia, entao as pessoas que vivem em am- bientes diferentes tém necessariamente experiéncias diferentes. Dai, havera dife- rengas entre as pessoas, que vao desde pre- feréncias alimentares a preferéncias religio- sas e crengas acerca do melhor modo de viver. Locke nao acreditava num relativis- ‘mo total — nem todos os sistemas de cren- ¢a tém o mesmo valor, tanto intelectual quanto moralmente. Mas sua conviccao da importancia do ambiente na moldagem da mente —e as resultantes diferencas entre as pessoas — estava intimamente ligada ao seu liberalismo politico e, em especial, 2 sua conviegao de que as diferencas individuais, mesmo em se tratando de preferéncias reli- giosas, deveriam ser toleradas. Tendo atra- vessado diversos periodos de extrema into- lerancia religiosa, Locke conhecia sua influéncia destrutiva. Locke Acerca da Educa¢géo ‘Uma implicagao final do pensamento empi- rista de Locke diz respeito a criacao e educa- ao das criancas. Se a mente ¢ moldada pelas ‘suas experiéncias, um programa de educacao expressamente baseado nos principios empi- ristas deveria produzir a pessoa ideal, A con- tribuicdo de Locke a questio veio em Some Thoughts Concerning Education (1693/1963), um breve volume baseado em cartas a um amigo que buscava orientacao para educar 0 filho. Entre seus abrangentes conselhos, en- contravam-se os seguintes: 1. Formado em medicina, Locke estava convencido da importancia da sauide fisi- ca e inicia o livro defendendo a idéia de que a mente sa requer um corpo sao. As sugestoes que especificamente deu eram um reflexo de sua rigida criacao puritana, que valorizava a simplicidade, a iniciati- va e o esforco individual, ¢ a crenga de que os bons desfechos exigem certo grau de sofrimento. Por exemplo, para ele, as camas das criangas nao deveriam ser ma- OCONTEXTOFILOSOFICO 59 cias, mas duras, pois estas fomentam nas pessoas a resisténcia, ao passo que “enter- rarse cada noite em plumas promove a dissolugao do corpo, muitas vezes causa fraqueza e € o prentincio da morte prema- tura” (Locke, 1693/1963, p. 22). Usando a logica da inoculacao, ele sugeriu tam- bem que as criancas poderiam criar resis- téncia as doengas se lavassem os pes dia- riamente em agua fria e usassem sapatos furados. . O treinamento deve comegar cedo por- que as criangas menores sdo mais maled- veis ¢, se ndo cultivarem bons habitos desde cedo, acabarao cultivando maus habitos. Locke achava que um dos maio- res erros dos pais era ndo tornar a “men- te [dos filhos] obediente a disciplina e suscetivel a razao quando esta se mostra mais flexivel e facil de dobrar” (Locke, 1693/1963, p. 27). Os bons habitos tam- bem exigem pritica. As criancas os aprendem fazendo as coisas repetida- mente e nao por meio de regras “que sempre Thes fogem a memoria” (p. 46). Locke condenava o uso do castigo, prin- cipalmente a medida que as criancas iam crescendo. A crianga que apanha por nao fazer suas ligdes logo passa a ter aversao completa a aprendizagem (e aos instruto- res). Além disso, embora possa reduzir a indisciplina da crianca, se severo ¢ repeti- do, 0 castigo tem o risco de “quebrar a mente ¢, assim, em lugar de um jovem re- belde, tem-se uma criatura apatica ¢ de- primida” (Locke, 1693/1963, p. 38). ‘As recompensas concretas também deve- riam ser evitadas. Dar doces a uma crian- ¢a pelo bom desempenho produz uma crianga que s6 se interessa por ganhar do- ces. Por outro lado, Locke recomendava © uso de castigos ¢ recompensas na for- ma de reprovacao € aprovagao dos pais. “Quando se consegue instilar numa crianga o amor ao mérito € a apreensio da vergonha, instila-se entao o verdadei- ro principio, que funcionard constante- mente ea inclinara ao que € certo” (Loc- ke, 1693/1963, p. 41). Os pontos de vista de Locke em relagao a educacao, assim como sua filosofia empi- rista em geral, apresentam uma grande afi- nidade com o behaviorismo do século XX, como se evidenciara nos Capftulos 10 € 11 Embora Locke estivesse interessado pela vi- da mental e os behavioristas, pela acao visi- vel, ha fortes semelhancas. Como os atuais behavioristas, Locke acreditava que a com- plexidade mental poderia ser entendida me- diante a andlise de seus componentes, que o ambiente moldava diretamente a mente e © comportamento e que se pode dizer mui- to acerca de alguém quando se conhece algo de suas experiéncias na vida. O empirismo e 0 behaviorismo também compartilham a énfase na importancia da associacdo, embo- ra, como antes foi mencionado, tenha cabi- do aos empiristas que sucederam a Locke desenvolver plenamente a doutrina associ cionista. E, portanto, para os descenden- tes intelectuais de Locke que nos voltare- ‘mos agora. George Berkeley (1685-1753): O Empirismo Aplicado a Viséo A medida que o século XVII se aproximava do fim, ficou claro para a Intelligentsia que sua marca havia sido 0 declinio estavel da autoridade da Igreja e do escolasticismo, guido — e, em grande parte, precipitado — por enormes avancos da ciéncia. De Bacon a Galileo € de Harvey a Boyle ¢ Newton, evoluiu um Zeitgeist que via 0 universo co- mo uma grande maquina, composta de pe- materiais e sujeita a leis cuja descoberta 6 poderia ser feita pela uniao entre os mé- todos cientificos e 0 rigor matematico. Em- bora sé no século XIX o materialismo vies- se a atingir seu pleno desenvolvimento, suas raizes estao fincadas no século XVIL Os materialistas sio monistas no que se re- fere A questo mente-corpo, acreditando que a tinica realidade ¢ a realidade fisica e que todo acontecimento do universo, inclu- sive aqueles que denominamos eventos mentais, envolve objetos materiais mensu- raveis que se movem no espaco fisico. O OCONTEXTOFILOSOFICO 65 em duas partes: corpo e mente” (Hartley, 1749/1971, p. i). Ao contrario de Descartes, Hartley nao defendeu o interacionismo, ado- tando uma posicéo conhecida como parale- lismo psicofisico. Ou seja, ele considerava 0s eventos psicologicos e fisicos (fisiolgi- cos) separadamente, mas os via atuar parale- lamente, chegando mesmo a estruturar o li- vro numa série de proposigdes que se alternavam entre mente e corpo. As proposi- goes X e XI, muito citadas, demonstram o micleo do seu associacionismo, primeiro no lado mental e, em seguida, no fisico. A pro- posigao 10 diz, em parte, que: Quaisquer Sensagdes A,B, C et coetera, por estarem associadas umas as outras um Nu- mero de Vezes suficiente, assumem tal Forga diamte das correspondentes Idéias a, b, ¢ et coetera que qualquer das Sensagdes A, quan- do ocorrer sozinha, sera capaz de excitar na Mente b, ¢ et coetera das idéias restantes, Pode-se dizer que as Sensacdes se asso- 1m quando suas Impressdes se verificam precisamente no mesmo Instante de Tempo ‘ou nos Instantes contiguos sucessivos. Pode- ‘mos, portanto, distinguir dois tipos de Asso- ciagdes: as sincrOnicas e as sucessivas. (Har- ey, 1749/1971, p. 65) Assim, para Hartley a principal lei da as- sociagao ¢ a contigiidade, a experiencia de eventos conjuntos. Se repetidamente vemos Adam (A), Brent (B) ¢ Charlie (C) juntos, com cada experiéncia senséria produzindo as idéias que a eles correspondem (A, Be C), entao se, no futuro, virmos Adam (A), as idéias de Brent (B) ¢ Charlie (C) também nos ocorrerao. A probabilidade de isso acontecer esta ligada ao niimero de vezes que os vimos juntos. Assim, a forga da associacao jaz na re- petigao. Além disso, a contigitidade se veri- fica no caso de eventos vivenciados tanto si- multaneamente quanto em nipida sucessio. Embora Hartley tenha usado os termos “sin- crénico” € “sucessivo”, esses conceitos cos- tumam ser usados em referéncia & contigai- dade espacial e a contigitidade temporal, respectivamente. Ao pensar na sua casa, vo- cé pode ser levado a pensar no seu cachorro sentado diante da porta de entrada (espa- cial), enquanto a salivagao do cdo pode ser resultado da associacgao que ele faz entre ver vocé sorrir e a apresentacio imediata de co- mida (temporal). Nao ha necessidade de citarmos a Propo- sigdo 11 porque ela ¢ idéntica a 10, exceto pelo fato de a palavra “Vibragdes” substituir “Sensagdes”, € a frase “Vibrages miniatu- rais” substituir “Idéias”. Essa era a versdo de Hartley da atividade do sistema nervoso, ex- traida de Sir Isaac Newton, que sugeriu que toda matéria pode ser conceitualizada como particulas que vibram no espaco. Hartley ti- nha sobre Descartes a vantagem de saber que 0s nervos nao sao ocos e que, portanto, nao havia espaco para o fluxo de espiritos animais. Em vez disso, os nervos cram feixes de fibras muito compactas que Hartley acre- ditava poderem transmitir informagées sen- sorias por meio da vibracao. No cérebro, nervos menores produziam vibragdes ainda menores, que Hartley denominou “vibra- des miniaturais” ou miniaturas, ¢ corres- pondiam as idéias. Como Hume, que afir- mava serem as idéias “copias vagas” das impress6es, Hartley via as idéias (vibragdes miniaturais) como menos “vigorosas” que as sensacdes (vibracdes). O modelo criado por Hartley para a men- te era uma espécie de estrutura basica, na qual as idéias complexas seriam construidas a partir das partes que as compunham. Ele tusou como exemplo a idéia complexa de um. cavalo, afirmando que “nao poderiamos fa- zer uma idéia apropriada do Cavalo se cada uma das idéias de Cabeca, Pescoco, Corpo, Pernas e Rabo, peculiares a esse animal, nao se jumtassem umas as outras na Imaginagao listo é, se nao nos ocorressem}, a partir da frequente Impressio conjunta” (Hartley, 1749/1971, p. 71), Essas subpartes também podem ser divididas em idéias ainda mais 6. Como voce pode deduzir do tiltima exemplo, a contigaidade foi um conceito importante para o fi- sidlogo russo Ivan Pavlov, que vocé encontrara no Capitulo 10. 66 _HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA simples (por exemplo, as pernas possuem cascos etc.). Se a nossa experiéncia nos ex- puser com freqiiéncia suficiente a esses ele- Mentos atomisticos, ao vermos parte de um cavalo (por exemplo, um casco), pensare- mos no cavalo como um todo. A analise de Hartley poe em foco a ques tao do atomismo X “holismo”. A maioria dos fildsofos britanicos adotou a abordagem ato- mistica, sendo Hartley talvez o mais explici- to dentre os que consideramos até aqui. Um dos problemas dessa abordagem € que exige ‘0 conhecimento das partes antes que se pos- sa conhecer 0 todo. Ou seja, as idéias com- plexas criam-se a partir de idéias mais sim- ples. No exemplo do cavalo, por exemplo, Hartley fala de partes que se “fundem” até criar-se o animal inteiro. O todo é igual a so- ma das partes. O holismo, por sua vez, de- fende a primazia do todo sobre as partes que © constituem, sugerindo que as partes ndo tem sentido se antes nao conhecermos 0 to- do, O psicologo G. F Stout certa vez usou 0 caso da piramide consuuida com pedras ovais como exemplo (Klein, 1970). Cada elemento da piramide pode ser perfeitamen- te arredondado, mas o todo da figura possui uma forma triangular nao encontrada em nenhuma de suas partes, A abordagem ho- listica finalmente viria a encontrar voz den- tro da psicologia com a obra dos psicélogos gestaltistas (Capitulo 9). Hartley pertencia claramente a ala dos atomistas e teve influéncia direta sobre Ja- mes Mill (1773-1836), outro representante da longa linhagem de empiristas e associa- CLOSE-UP: Criando um Fildsofo cionistas britanicos. Essa influéncia se evi- dencia no exemplo abaixo, muito citado, fornecido por Mill em Analysis of the Pheno- mena of the Human Mind (1829/1948): Tijolo € uma idéia complexa; cimento, outra Essas ideias, junto com idéias de posigao € quantidade, compoem a idéia que faco de uma parede. Minha idéia de prancha é uma idéia complexa, minha idéia de viga € uma ideia complexa, minha idéia de prego € uma idéia complexa. Estas, unidas as idéias de posicto quan- tidade, compoem a minha idéia duplice de piso, Da mesma forma, minha ideia comple- xa de vidro, madeira etc., compoem a minha idéia duplice de janela; ¢ essas idéias dupli- ces, unidas, compdem a minha idéia de casa. [...] Quantas idéias complexas — ow idéias duplices — esto reunidas na idéia de mo! Jia? Quantas mais na idéia de mercadoria? E quantas mais na idéia chamada Tudo? (p. 154) Mill foi personagem importante na filo- sofia britanica e, como Hume, era também famoso como historiador: sua History of British India (Historia da {ndia britanica], escrita em 1817, ajudou-o a obter seguran- ¢a material. Porém, James Mill nao foi tao importante quanto 0 filho, algo que se em- penhou em produzir empregando sistema- ticamente a doutrina empirista ¢ associa- cionista a educagao da crianga. Leia o Close-Up para conhecer melhor a criagao deliberada de um filésofo. James Mill ndo se contentou em simplesmente escrever acerca da impor- tincia da experiéncia no desenvolvimento da mente. Quando o filho nas- ceu, ele se dispds a colocar o empirismo em pratica preenchendo a folha em branco de sua mente com 0 maximo possivel de informacdes. John Stuart Mill teve (melhor dizer: resistiu a) uma infancia incomum, que ele descreveu numa autobiografia breve, porém notavel (Mill, 1873/1989). Mill, filho, jamais foi a escola com outras criangas, mas, ao chegar aos 12 anos, jé era capaz do mesmo desempenho intelectual de qualquer alu- no satdo da universidade. Sob a tutela do pai, comecou a aprender grego OCONTEXTOFILOSOFICO 67 aos 3, latim aos 8 ¢, ao atingir os 10 anos de idade, havia lido a maioria dos textos classicos dos gregos e romanos, das fabulas de Esopo e dos Did- logos de Platao as historias de Herodoto (0 “pai” da historia) e a Retorica de Aristoteles. Além disso, devorava arte ¢ literatura e dominava a Alge- bra ea geometria, Para distrait-se, lia livros como Robinson Crusoé, As mil € uma noites € as pecas historicas de Shakespeare. Essa iltima leitura tal- vez tenha sido um ato menor de rebeldia diante do pai, que “jamais foi um grande admirador de Shakespeare, cuja idolatria atacava com certa se- veridade” (Mill, 1873/1989, p. 35). © jovem Mill passava a maior parte do dia estudando suas ligdes. O pai era seu instrutor, mas esperava que ele aprendesse muito por conta propria. A rotina geralmente consistia na leitura de trechos de alguma obra, realizagao de anotacdes e relatorio ao pai no dia seguinte, durante caminhadas no campo antes do café da manha. Mill escreveria depois: “minhas primeiras lembrangas de campos verdejantes ¢ flores silvestres [estavam] misturadas [ao] relatério que eu lhe fazia diariamente daquilo que lera no dia anterior” (p. 29). Durante essas caminhadas, 0 pai tam- bem dava-lhe palestras sobre “civilizacao, governo, moralidade [e] culti- vo da mente, pedindo-me em seguida que as reproduzisse para ele com minhas prdprias palavras” (p. 30). A educagao prosseguia mesmo quan- do Mill, pai, estava ocupado com o seu proprio trabalho. Mill admirava a capacidade que o pai tinha de escrever, mesmo sendo constantemente in- terrompido pelo garoto sentado a outra ponta da mesa. A imagem que ele pinta é, sem querer, engracada Até que ponto ele estava disposto a ir pela minha instrugdo pode ser de- preendido do fato de que eu preparava minhas ligdes de grego na mesma sala ena mesma mesa em que ele escrevia. E, como naquela época ndo existiam vocabulérios de grego e inglés, eu era obrigado a perguntar-ihe o significado de cada palavra que desconhecia. A essa interrupgéo incessan- te, ele — um dos mais impacientes entre os homens — acedia, tendo escri- to em meio a ela varios volumes de sua History [of India} tudo o mais que tivesse de escrever naqueles anos. (p. 28) John Stuart Mill muitas vezes ¢ citado como exemplo de crianca-pro- digio, alguém cujos dotes intelectuais inatos permitiram aprender tanto tao cedo. Provavelmente ha alguma verdade nisso, mas Mill jamais acte- ditou um sé minuto nessa histéria. Como nao tinha permissao para brin- car com outras criancas enquanto crescia, ele nao tinha outra referencia a nao ser o pai. Com efeito, ao longo da infancia, ele teve a impressao, co- mo ele mesmo disse, de “estar bastante atrasado nos estudos, ja que sem- pre me via assim diante do que meu pai esperava de mim” (Mill, 1873/1989, p. 46). Quando finalmente percebeu o quanto estava avanga- do, demonstrou o espirito empirista creditando-o as suas experiéncias, ¢ nao a alguma capacidade inata. Na verdade, ele acreditava que seus “do- tes naturais [esto] mais abaixo que acima do esperado” (p. 44) e que suas vantagens diante dos outros deviam-se a inferior qualidade da educagdo destes. Em suas modestas palavras, suas realizagdes “nao poderiam ser atribuidas a nenhum mérito em mim, mas a vantagem extremamente in- comum que me coube, de ter um pai que me pode ensinar” (pp. 46-47). QCONTEXTOFILOSOFICO 69 A Psicologia de Mill ‘As opinides de Mill acerca da psicologia en- contram-se dispersas em varias de suas obras — entre as quais System of Logic/Sis- tema da légica (1843/1987), que veremos em breve —, nas extensas notas que escre- yeu para uma reedigao em 1869 de Analy- sis, de seu pai, e no seu Examination of Sir William Hamilton’ Philosophy/Exame da B- losofia de Sir William Hamilton (1865), O ataque de Mill a Hamilton é mais um exem- plo da forte ligagao entre seu ardor refor- mista e suas opinides acerca da psicologia, colocando-o inteiramente do lado da aquisi- go no que se refere a questao inato-adqui- rido. Mill associou o racionalismo de Hamil- ton a crenga nas idéias inatas e argumentou que seu resultado era uma filosofia anti-re- forma. Conforme afirmou, 14 muito venho sentindo que a tendencia reinante a considerar todas as marcadas dis- tingdes do cariter humano como inatas ¢, no geral, indeléveis, ea ignorar as provas incon- testaveis de que a maior parte dessas diferen- as — sejam entre individuos, ragas on sexos —sio em grande parte ...] resultantes de di- ferencas de circunstancias, é um dos princi- pais obsticulos ao tratamento racional de grandes questdes sociais ¢ um dos maiores obsticulos ao aperfeigoamento humano (Mill, 1873/1989, p. 203) Mill defendia os principios basicos do empirismo/associacionismo britanico, mas ampliou as idétas do pai e de outros (princi- palmente de Hartley) recorrendo a uma me- tafora quimica, e nao mecinica, ao descrever como as idéias complexas se constroem a partir de idéias simples. A citagdo anterior de James Mill (“Tijolo € uma idéia complexa; cimento, outra” etc.) retrata a mente como agente de uma acumulagao passiva de expe- riéncias, na qual os elementos se combinam ‘mecanicamente para formar todos maiores. Porém John Stuart Mill acreditava que a mente fosse uma forga mais ativa na sintese das experiéncias; ele defendia a posicao ho- Iistica de que as idéias complexas sio mais que a combinagao passiva de elementos: Quando muitas idéias ou impressoes estdo ‘em agao na mente ao mesmo tempo, as vezes se verifica um processo semelhante no tipo ao da combinacao quimica. Quando as im- pressdes sto experimentadas em conjunto tantas vezes que cada uma invoca imediata e instantaneamente as idéias de todo o grupo, essas idéias as vezes se fundem umas nas ou- tras e parecem, nao varias, mas uma sé. [...] Parece-me [portanto] que a Idéia Complexa, formada pela mescla de varias idéias mais simples, deveria, quando realmente parece simples (isto é, quando os elementos separa- dos nio so conscientemente distinguiveis nela) julgar-se resultante das ou gerada pelas idéias simples, e no consistente nelas. (Mill, 1843/1987, pp. 39-40, italicos no original) A parede, entao, decorre das idéias sim- ples de nossas experiéncias, mas vai além da combinagao elementar de tijolo ¢ cimento e tem propriedades inteiramente suas, assim como a agua tem suas proprias propriedades, mesmo que resulte de elementos simples (hi- drogénio e oxigénio). Para usar a frase que viria a ser popularizada pelos gestaltistas, o todo ¢ maior que a soma de suas partes. A Légica de Mill Em 1843, Mill publicou A System of Logic, Ratiocinative and Inductive, Being a Connec- ted View of the Principles of Evidence, and the Methods of Scientific Investigation/Um siste- ma em que a l6gica, raciocinativa ¢ induti- va, € uma visdo associada aos princtpios da evidencia ¢ os métodos da investigacao cientifica. Ali abordou algumas de suas con- vicges acerea da associagio e da quimica mental ¢ incluin uma defesa da criagao de uma abordagem cientifica ao estudo da psi- cologia (a que chamou etologia), com base no fato de que, embora pudesse nao atingir o grau de precisio da fisica, poderia ter re- sultado tao bom quanto em outras discipli- nas que eram consideradas cientificas na época (por exemplo, a meteorologia). A obra delineava ainda uma série de métodos para a aplicacao da légica indutiva na tentativa de determinar a causalidade na ciéncia. Mill os denominou métodos de Concordancia, 70 __ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA Diferenca e Variagdo concomitante. Esses métodos continuam populares atualmente —em minha colecao de mais de trinta tex- tos modernos de pesquisa de texto, Mill € mencionado em varios e seus métodos ‘sao descritos em detalhes em cerca de 20% deles. No Método da Concordancia, procura- se um elemento comum em varias ocorrén- cias de um evento. Por exemplo, suponha- mos que um pesquisador suspeite que um determinado gene cause a depressao. Diga- mos que X represente a causa proposta (0 DATA-CHAVE Esse ano marcou a publicagao de Logic, de John Stuart Mill, que apresentava as regras fundamentais para a condugao da pesquisa empirica Os seguintes fatos também ocorreram: * O fisico ingles J. P Joule determinou 0 total de trabalho necessario para a produgao de uma unidade de calor + SS Great Britain, primeiro navio a motor a cruzar 0 Atlintico, foi langado a0 mar + O Congresso dos Estados Unidos concedeu a S. FB. Morse a verba de US$30 mil para a construcao da primeira linha de telégrafo (Washington-Baltimore) * Charles Dickens publicou Martin Chugzlewit e A Christmas Carol * William Wordsworth torna-se poeta laureado inglés + Nos Estados Unidos, 0 norte-americano Daniel Webster aposenta-se como Secretario de Estado + Nasceram: William McKinley, presidente dos Estados Unidos Henry James, escritor ¢ irmao do psicologo William James + Morreram: John Trumbull, pintor norte-americano Noah Webster, lexicografo norte-americano gene) e Y, seu efeito (a depressio). Para usar ‘© método da concordancia, 0 pesquisador estuda um grupo de amostragem de pessoas deprimidas ¢ procura determinar se todas possuem o gene X. Se for esse 0 caso, pode- se entao afirmar que X ¢ suficiente para que ocorra Y: “se X, entao Y”. Isso implica que X causou Y? Nao necessariamente, e 0 exemplo ilustra o problema presente na in- dugao. Cada um dos deprimidos da amostra poderia ter X, mas seria possivel que uma pessoa deprimida ainda nao descoberta nao possutisse o gene X. Alem disso, a coexisten- cia de X e Y nao implica por si so que am- bos tenham relacdo. Poderia ser uma coin- cidencia que todas as pessoas do grupo de amostragem possuissem o gene X. O méto- do da concordancia tanto pode apoiar uma hipotese quanto coloca-la em questao, mas por si s6 nao pode determinar causas. Tampouco 0 pode o Método da Dife- renga, no qual buscam-se provas de que a auséncia de um efeito seja sempre acom- panhada pela presenca de uma causa pro- posta: “se nao X, entéo nao Y”. Para conti- nuarmos com o exemplo da depressao, isso implicaria o exame de pessoas nao deprimi- das em busca do gene X, na esperanga de nao encontra-lo. Se isso acontecer, sera pos- sivel afirmar que 0 gene X € necessario pa- ra que haja depressao, pois sem X (o gene), ninguém ¢ Y (deprimido). Mais uma vez, ha problemas. A amostragem de nao deprimi- dos que nao possuem o gene nao comprova a hipotese: ainda poderia haver pessoas nao deprimidas que tivessem o gene X. Combinados no que Mill chamou de Mée- todo Conjunto, os métodos da concordan- cia e da diferenca tém a possibilidade de identificar causas, dentro dos limites da in- dugao (ou seja, nunca se poderao estudar to- dos os casos). Assim, se se pudesse determi- nar que todo aquele que possufsse o gene X também estaria deprimido e que ninguém que nao © possuisse teria depressao, poder- se-ia concluir que o gene X € tanto suficien- te quanto necessario para a ocorréncia da depressao (ou seja, 0 gene causa depressao). Naturalmente, a conclusao acerca da causa OCONTEXTO FLOSOFICO 71 seria tentativa, sujeita a refutacdo potencial em algum momento do futuro. A logica dos métodos da concordancia e da diferenca subjaz ao emprego atual do mé- todo experimental na psicologia, sendo o método da concordancia correspondente a um grupo experimental, ¢ 0 da diferenca, a um grupo de controle (Rosnow ¢ Rosenthal, 1993). Assim, um experimento hipotético sobre 0 efeito do gene (X) sobre a depressio (Y) envolveria a identificagao de dois grupos iguais e o implante do gene no grupo expe- rimental, mas nao no de controle. Se todos ‘0s membros do grupo experimental se de- primirem (se X, entao Y) e se nenhum dos do grupo de controle se deprimir (se nao X, entao nao Y), tem-se a prova de que X cau- sa Y (novamente, dentro dos limites da amostra do estudo). Naturalmente, seria muito dificil encontrar voluntarios para es- se estudo, uma limitagao ética reconhecida por Mill que, junto com a precis4o das me- digdes e do controle, o tornou cético quan to possibilidade de a psicologia vir a ser tao Tigorosamente experimental quanto a fisica: [..-] Serdo as leis da formagao do carater {is- to 6, da personalidade] suscetiveis de inves- tigagao satisfatoria pelo método da experi- mentagio? Evidentemente nao, pois, mesmo que suponhamos o poder ilimitado de variar © experimento (o que em abstrato € posstvel, mas ninguém sendo [um] déspota tem esse poder [...]), faltaria uma condicao ainda mais essencial: 0 poder de conduzir todos os experimentos com precisio cientifica. (Mill, 1843/1987, pp. 50-51) O terceiro método de Mill, o da Variacao Concomitante, faz lembrar Hume e subjaz ao atual método correlacional. Com essa abordagem, busca-se determinar se as alte- ragdes em X se associam a alteracoes previ- siveis em Y. O método ¢ especialmente util quando X, Y ou ambos sao encontrados em certo grau em todas as pessoas. Por exem- plo, todo mundo faz ao menos algum exer- cicio € € mais ou menos saudavel. Usando o método da variacdo concomitante, 0 pes- quisador poderia determinar se os que se exercitam muito sio mais saudaveis que os que o fazem de maneira irregular. Ao contrario de todos os filosofos até aqui considerados, John Stuart Mill nao tentou escrever nenhum ensaio sobre a compreensio humana (Locke), um tratado sobre o conhecimento humano (Berkeley) ou sobre a natureza humana (Hume), uma série de observacées sobre o homem (Har- ley) ou uma andlise da mente (0 pai). Ou seja, nenhum de seus livros pode ser rotu- lado como “a psicologia de J. S. Mill”. Co- mo ele se julgava acima de tudo um filéso- fo politico € econdmico, isso nao chega a surpreender muito. No entanto, Mill é tao importante para a psicologia moderna quanto qualquer dos filésofos que escreve- ram uma “psicologia”. Com ele, 0 associa- cionismo britanico atingiu o apice e dele € uma andlise do pensamento cientifico que norteia ainda hoje a pesquisa em psicologia. Mill foi uma figura-chave na transigao entre a filosofia da mente ¢ a ciéncia da mente. RACIONALISTAS AO EMPIRISMO Excetuando a parte sobre Descartes, este ca- pitulo concentrou-se na filosofia empirista e associacionista britanica. Isso faz sentido, tendo em vista a forte relacdo entre essa es- tratégia filosofica e a moderna psicologia, em especial a psicologia behaviorista. Mas outras ‘vozes, nas quais também ressoaram aspectos da moderna psicologia, também se fizeram ouvir na época que estamos estudando. Dois filsofos alemaes representaram um contras- te marcante em relacéo ao empirismo/asso- ciacionismo britinico, Gottfried Leibniz foi contemporaneo de Locke e respondeu ao Es- say Concerning Human Understanding, de Locke, com o seu New Essays on Human Un- derstanding {Novos ensaios sobre a com- preensao humana], publicado postumamen- te em 1765. Immanuel Kant viveu na mesma epoca que Hume e Hartley e escreveu em res- posta a eles (especialmente a Hume). ‘72__ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) Leibniz era um homem cujos interesses abrangiam a politica, a matematica, a enge- nharia, a alquimia ea filosofia. Como mate- matico, ficou conhecido como co-inventor (ao lado de Newton) do calculo. Sua impor- tancia para a psicologia esta na resposta que deu a Locke, sua abordagem do problema mente-corpo e sua “monadologia”. Grande admirador de Locke, ele concordava em que a experiencia era essencial a formagdo do conhecimento. Contudo, discordava de sua metafora da mente como uma folha em branco, propondo no seu lugar que a men- te fosse vista como andloga ao marmore com veios (Leibniz, 1765/1982). Trata-se de uma bela metafora da questao do inato X adquirido. O escultor pode pegar um blo- co de marmore e dar-Ihe muitas formas di. ferentes, mas 0 modo como os veios se dis- poem no marmore limita o mimero de formas possiveis. Os veios em esséncia presentam as propriedades inatas do mar- more, que a habilidade do artista ira revelar. Do mesmo modo, segundo Leibniz, a men- te possui propriedades inatas que contri- buem para determinar os limites ¢ a forma dos efeitos da experiéncia. As propriedades inatas, como a razdo, permitem que o indi- iduo chegue ao que Leibniz chamou “ver- dades necessdrias”, verdades provadas pela razao ¢ pela logica, ¢ nao pela experiéncia direta. Os principios fundamentais da mate- matica (por exemplo, a soma dos trés lados do triangulo sempre ¢ 180°) sao exemplos de verdades necessirias. A alegacao empi- rista de que nao haveria nada no intelecto que nao estivesse primeiro nos sentidos, Leibniz respondeu: “Exceto o proprio inte- lecto!” Como Descartes, Leibniz achava que aos animais faltavam as propriedades inatas encontradas nos seres humanos e, por isso, eles poderiam ser considerados “empiricos” puros. No que se refere a questao mente-corpo, Leibniz nao aceitava a nogao cartesiana de influéncia direta e mitua, pois ela levava inevitavelmente a uma busca pela forma da interacao e resultava no que considerava ser uma busca infruuifera por coisas como glan- dulas pineais. Em vez disso, ele propos a so- lugao do Paralelismo Psicofisico, seme- Ihante a proposta de Hartley. Assim, para Leibniz, a mente (“psico-") ¢ 0 corpo (“fisi co") funcionavam paralelamente, em *har- monia preestabelecida” pela mao de Deus. Ele ilustrou esse paralelismo com a metafo- ra de dois relégios construidos para entrar em harmonia perfeita. Como a mente € 0 corpo, eles funcionam independentemente um do outro, mas em concordancia. Por im- plicacao, o paralelismo legitima o estudo separado dos eventos mentais (psicolégi cos) e fisicos (biologicos), fornecendo as- sim uma base filosofica para a “futura emer- géncia da psicologia como ciéncia a parte, distinta da fisiologia como ciéncia a parte” (Klein, 1970, p. 353), Os elementos das realidades mental e fi- sica foram chamados de ménadas por Leib- niz, Elas eram infinitas em numero e mais semelhantes a forcas de energia que a ato- mos materiais. Estavam organizadas hierar- quicamente, de racionais a sensiveis e a sim- ples. As monadas racionais, de acordo com Leibniz, constituem a esséncia da mente humana; as sensiveis encontram-se em to- dos 0s seres vivos nao-humanos; as simples constituem a realidade fisica, As monadas racionais justificariam a consciéncia, mas Leibniz nao acreditava que a percepeao fos- se uma questo de tudo ou nada. Em vez dis- so, propds um continuum de percep¢ao, lan- cando assim a base para dois importantes avancos da psicologia. Primeiro, 0 conti- nuum implica um nivel de percepcdo, uma idéia semelhante ao conceito do inconscien- te, que viria a ser o eixo principal das teorias de Freud. Leibniz distinguia entre o que chamou de apercepgio, percepcao e pequenas percepcdes. A apercepcao, termo cunhado por ele, constituia o mais alto nivel de per- cepgao, no qual a atencdo se concentra na informagao ¢ a apreende integralmente. A percepeao era a consciéncia de algo, porém ndo tdo aguda quanto na apercepgao. As pe- OCONTEXTOFILOSOFICO 73 quenas percepcdes estavam abaixo do nivel da percepgao, mas eram essenciais & ocor- réncia de niveis mais elevados. Para ilustrar estas ultimas, Leibniz usou o exemplo da onda do mar ou da queda d'dgua. Cada pe- quena percepcao ¢ formada por uma tinica gota de agua, que jamais escutamos. No en- tanto, todas as gotas juntas s4o necessarias para que possamos perceber ou aperceber a tealidade maior da onda do mar. A segunda implicacao da proposta de di- ferentes niveis de percepgao ¢ a existéncia de Pontos no continuum da consciéncia em que se passa da ndo-percepeao a percepedo; esses pontos podem ser chamados de limiares e, como veremos no proximo capitulo, sua de- terminacao € mensuracao constituiram im- portantes caracteristicas dos primeiros expe- rimentos psicoldgicos. Immanuel Kant (1724-1804) Em sua carreira diplomatica, Leibniz viajou por toda a Europa, enquanto Immanuel Kant nunca se aventurou além de um raio de oitenta quilémetros de sua casa na cida- de de Konigsberg, Alemanha Ocidental. Ali, ele ali nasceu, frequentou a escola e, por fim, tornou-se professor universitario. Ape- sar desse aparente provincianismo, Kant fot um dos mais destacados intelectos da filo- sofia alema, tendo feito pela visdo raciona- lista do século XVIII o mesmo que Leibniz no século XVII. Kant ¢ mais conhecido en- tre os psicdlogos por trés livros publicados em sua maturidade: Critique of Pure Rea- son/Critica da razao pura (1781/1965), Cri- tique of Practical Reason/Critica da razio pratica (1788/1959) e Critique of Judg- meni/Critica do julgamento (1790/1952). Kant concordava com os empiristas em que o conhecimento se constréi com a ex- periéncia, mas, assim como Leibniz, argu- mentava que a questo mais importante era © modo como o processo ocorria. Ou seja, ele estava interessado em saber como a ex- periéncia em si era possivel e concluiu que ela exigia a existéncia de algum conheci- mento a priori (anterior a experiéncia) que contribua para dar forma as nossas expe- riéncias. Por exemplo, Kant observou que, sempre que experimentamos os eventos do mundo, nds os organizamos com relaca4o ao espaco ¢ ao tempo. Assim, molhamos o jar- dim, que ocupa espaco ¢ exige X tempo. Nossa compreensao do conceito de “molhar 0 jardim” nao € posstvel sem 0 conhecimen- to a priori de espaco e tempo. E esses dois conceitos, por sua vez, nés conheceriamos “intuitivamente”, de acordo com Kant; nao precisariamos “aprende-los”. Em contrapo- sicao a idéia de Hume de que a certeza acer- ca da causalidade é impossivel, Kant argu- mentou que a mente pensa inevitavelmente em termos de causa e efeito — a experién- cia de mundo que todos temos é que ele funciona segundo leis causais (0 leite derra- mado sobre a terra sempre cai). Como espa- 0 € tempo, causa ¢ efeito eram considera dos por Kant propriedades inatas da mente. Uma consideracao final acerca de Kant ¢ © seu argumento de que a psicologia jamais poderia tornar-se uma ciéncia como as cién- cas fisicas. Ele chamou a atengao para o fa- to de que, ao contrario dos objetos fisicos, os fendmenos mentais nao podiam ser direta- mente observados nem definidos ou medi- dos com precisio matematica. Como vere- mos em breve, quando psicdlogos alemdes, como Wilhelm Wundt, declararam a psico- logia uma ciéncia no século XIX, tiveram de refutar a opiniao desse compatriota quanto a viabilidade desse empreendimento. EM PERSPECTIVA Este capitulo apenas arranha a superficie do “longo passado” da psicologia. Entre- tanto, voce deve concluir a leitura deste material com a compreensao basica de al- guns dos fundamentos filos6ficos da psi- cologia moderna. Além disso, deve come- car a formar uma nocao da continuidade das idéias historicas de nossa disciplina. A psicologia nao surgiu do nada, assim sim- plesmente, no final do século XIX — seus fundadores se viram a bracos com os mes- 74 __ HISTORIA DAPSICOLOGIA MODERNA mos problemas pelos quais se interessaram as pessoas destacadas neste capitulo. Eles preferiram atacar essas questdes de um an- gulo um pouco diferente do dos filésofos — o da experimentagao direta —, mas es- tavam tentando responder as mesmas per- guntas: Como acumulamos 0 nosso co- nhecimento do mundo? Como se organiza a mente? Como funcionam os sentidos? O conhecimento esta de algum modo embu- tido no sistema (isto ¢, inato)? Os funda- dores da psicologia do século XIX também dispunham de um conhecimento crescen- te do funcionamento do cérebto € do siste- ma nervoso, e comegavam a criar métodos objetivos para o estudo da mente, Vocé co- nhecera esses avancos na fisiologia e nos métodos no Capitulo 3. Antes de encerrarmos este capitulo, po- rém, ha um ponto importante a ressaltar acerca do presentismo. Do ponto de vista do inicio do século XXI, sabendo que a psico- logia evoluiu até estabelecer-se como uma disciplina cientifica ampla ¢ bem-sucedida, ¢ facil olhar para tras e perguntar por que os RESUMO UM LONGO PASSADO +A afirmativa de Ebbinghaus de que a psicologia possui um longo pasado e uma historia curta faz-nos lembrar que as questées que interessam 08 psicdlogos tm sido tratadas por pensadores sérios ha milhares de anos, mesmo que a psicolo- gia, como disciplina estabelecida, tenha apenas pouco mais de 120 anos. A “nova psicologia” que surgi no final do século XIX diferia da filosofia pelo fato de as questies sobre 0 comportamento humano e a vida mental terem sido levadas ao la- boratorio pela primeira vez DESCARTES E OS PRIMORDIOS DA CIENCIA E FILOSOFIA MODERNAS + Descartes viveu no final da Renascenga, num mo- mento de grandes avancos na ciéncia € na tecno- logia. Foi uma era que questionou a autoridade da Igreja e de Aristoteles por meio, por exemplo, do apoio de Galileo ao modelo heliocéntrico do universo proposto por Copémico, em substitui Glo ao modelo geacéntrico tradicional. Descartes filosofos nao conseguiram dar este que pa- recia ser um passo facil: ir das observagdes cuidadosas e da minuciosa analise logica de certos fendmenos mentais a sua investiga- cdo experimental, Ou seja, quando inicial- mente lemos acerca de pessoas como Des- cartes, Locke e Mill, tendemos a vé-las aproximando-se gradualmente, mas jamais, atingindo o “santo graal” da psicologia cientifica. Porém, ¢ um erro grave pensar que essas pessoas de algum modo fracassa- ram. Na verdade, clas foram as melhores de sua era, superando em muito seus pares pe- lo brilhantismo de suas idéias. A maneira apropriada de vé-las é situando-as no con- texto do tempo em que viveram ¢ pensando que lutaram do melhor modo possivel com os problemas da época. O fato de esses fild- sofos haverem lutado com as mesmas ques- tes que existem hoje nao é indicacao de progresso éstavel daquele momento para agora, mas sim da niversalidade dos pro- blemas. E inutil ¢ extremamente injusto cri- tica-los por ndo verem o que outros viram depois foi contemporaneo de Sir Francis Bacon, que de- fendeu o uso de uma estratégia cientifica induti- va para a compreensio do universo * Descartes era racionalista ¢ acreditava que 0 ca- minho para o verdadeiro conhecimento passava pelo uso sistematico das faculdades de racioci- rio, Como considerava que certas verdades fos- sem universais © pudessem ser atingidas por meio da razio, sem necessidade da experiéncia sensoria, Deseartes era também um nativista Além disso, ele era dualista e interacionista, acre- ditando que mente e corpo eram essencias distin- tas que exerciam influéneia reciproca direta. Para explicar a interagao mente-corpo, Descartes criou um modelo da atividade do sistema nervo- so, tendo sido o primeiro a descrever 0 ato refle- xo. Seu modelo da atividade corporal era meca- nicista — 0 corpo era como uma maquina Segundo a dicotomia cartesiana, os animais sto miquinas puras, mas os seres humanos tém uma mente racional (alma) que complementa seu cor- po mecanico. OCONTEXTOFILOSOFICO 75 © ARGUMENTO DOS EMPIRISTAS BRITANICOS E OS ASSOCIACIONISTAS + O fundador do empirismo britanico foi John Loc- ke, que rejeitou a crenga nativista nas idéias ina tas e argumentou que a mente era como uma fo- Tha de papel em branco, onde a experiencia escreve. As idéias resultantes da experiencia t¢m duas fontes: a sensagio € a reflexdo, Locke usott um modelo atomista, partindo do principio de que as ideias complexas se construiam a partir dos elementos baisicos das idéias simples. As qua- lidades primarias (por exemplo, a extenssio) exis- tem independentemente de quem as percebe, mas as secundérias (por exemplo, a percepcio das cores) dependem da percepgio. As convic- ‘cbes de Locke levaram-no a recomendar aos pais que assumissem papel ativo na educagio dos Thos, que os incentivassem com elogios, em vez de recompensas concretas, ¢ que evitassem a pu- nicdo como estratégia educacional, George Berkeley fez uma detalhada analise da ppercepeao visual com base nos argumentos empi- ristas, descrevendo no processo fendmenos vi suais como a convergencia, a acomodacao ¢ os efeitos da inversto da imagem na retina. Ele re- jeitou a distingao entre qualidades primarias ¢ se- ‘cundarias proposta por Locke e, para contra-ata- car o materialismo, propos que ¢ impossivel ter centeza da realidade dos objetos, exceto pela fé em Deus, 0 Perceptor Permanente (idealismo subjetivo) + David Hume era um empirista“associacionista conhecido pela disting4o que tracou entre as im- pressoes (resultantes da sensagao) e as idéias, por ele chamadas de “c6pias vagas” das impressdes. Alem disso, ele classificou as regras da associag30 como semelhanga, contigdidade e causa/efeto. Hume acreditava que nao podemos conhecer a causalidade de maneira absoluta, mas apenas sa- ber que certos eventos ocorrem conjuntamente com regularidade * David Hartley € considerade 0 fundador do asso- ciacionismo por causa de sua tentativa sistemati- QUESTOES PARA ESTUDO cade resumir tudo 0 que se sabia a seu respeito e do seu argumento de que a esséncia da associa- cfo cram a contigiidade (tanto espacial quanto temporal) € a repeticao. Ele criow um modelo da agao do sistema nervoso baseado no conceito newtoniano de vibragao ¢ adotou a postura do paralelismo psicofisico na questio mente-corpo. + John Stuart Mill, crianca-prodigio, foi o principal filésofo britanico do século XIX. Ao contrario de outros (inclusive seu pai, o filasofo empirista J mes Mill) que descreveram a mente em termos mecanicos € atomisticos de seus componentes basicos, J. 5. Mill usow uma metafora quimica ‘mais holistica, argumentando que as idéias com- plexas sto maiores que a soma das idéias simples que as compoem. Mill analisou a logica da cien- cia e descreveu varios métodos para tentar atin- gira verdade cientifica indutiva: os métddos da concordancia ¢ da diferenga (subjacentes ao atual método experimental) ¢ 0 método da variacao concomitante, semelhante ao atual método cor- relacional REAGOES RACIONALISTAS AO EMPIRISMO * Gottfried Leibniz questionou a analogia da folha de papel em branco proposta por Locke, sugerin- do que a mente era mais como o marmore, cujos veios sto analogos as aptiddes e idéias inatas que moldam as nossas experiéncias. Ele questionou tambem o interacionismo cartesiano, argumen- tando em favor de uma postura paralelista ¢ de- fendendo a sua opiniao com a metafora dos dois relogios em sincronia. Sua monadologia forneceu a base para os conceitos de inconsciente e limia- res sensorios, Immanuel Kant reconheceu a importancia da experigncia no desenvolvimento da compreen- sao de mundo, mas argumentou que a experién- cia por si nao era possivel sem uma base em al- gum conhecimento a priori que fornecesse um arcabougo para a experiéncia. Kant acreditava que a psicologia nao poderia atingir o status de ciencia, 1. O que Ebbinghaus queria dizer quando afirmou que a psicologia tinha um longo passado e uma historia curta? 2, De que maneira o Zeitgeist "mecanicista” influiu sobre o pensamento de Descartes? 3. Trace distingdes entre os modelos heliocéntrico e ‘gcocentrico do universo ¢ explique por que a defesa do primeiro valeu a Galileo a acusagio de heresia. 4. Explique o que significa advogar uma estratégia in- dutiva para conhecer © comportamento humano. 76 _ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA 5. Explique por que Descartes é considerado (a) um racionalista (b) um nativista, 6. Descreva a solugao de Descartes para 0 proble- ma mente-corpo. O que quer dizer “dicotomia cartesiana"? 7. Compare as explicacdes racionalista e empirista do modo como chegamos ao conhecimento de conceitos amplamente difundidos (por exem- plo, Deus). 8. Compare a metifora de Locke (a folha de papel em branco) a de Leibniz (o marmore com veios) ¢ relacione-as a quest6es epistemologicas funda- mentais, 9. Diferencie as qualidades primarias das qualida- des secundarias da matéria © compare as opi- nides de Locke ¢ Berkeley no que diz respeito a esas qualidades. 10. Defina “materialismo” e explique como o idea- lismo subjetivo de Berkeley constituiu um ata- que a esse conceito. 11. Usando os exemplos de Berkeley, mostre como ‘os empiristas britanicos aplicaram seus pré- prios conceitos a percepcao visual. 12. Aponte as diferencas entre as leis da associago de Hume e de Hartley. 13. Descreva a quimica mental de J. S. Mill ¢ com- pare-a a visao de James Mill. 14, Mostre como as regras da logica indutiva de Mill se relacionam com os conceitos modernos dos métodos experimental e correlacional. 15, Mostre como a monadologia de Leibniz se relacio- ‘na com os conceitos de inconsciente e timiares. 16. Descreva a reacao racionalista de Kant ao pen- samento empirista QUESTOES SOBRE O TRECHO DA FONTE ORIGINAL 1. De acordo com Descartes, 0 que so espiritos animais, como se formam e como se relacionam com a agéo muscular? 2. Ainda segundo Descartes, como funciona o re flexo? Use o exemplo do garoto que poe 0 pé no fogo. 3. No modeto cartesiano do sistema nervoso, como Se processa a interacao mente-corpo ¢ por que a LEITURA SUPLEMENTAR ¢glandula pineal foi eleita como ponto dessa inte- racio? Qual era a falha logica essencial da asso- elagio de uma parte especifica do cérebro (a glandula pineal) a um ponto de influencia mi- tua entre mente ¢ corpo? 4. Como Descartes explica a memaria com seu mo delo do sistema nervoso? Vrooman, J. R. (1970). René Descartes: A biogra phy/Rene Descartes: uma biografia, Nova York: G. P. Putnam's Sons Uma biografia relativamente breve ¢ de leitura bas- tante facil, que descreve especialmente bem a epoca em que Descartes viveu; fornece um bom resumo das ideias do biografado e mostra as varias experiéncias que 0 levaram a elas Boorstin, D. J. (1983). The Discoverers/Os desco- bridores. Nova York: Vintage Books. Fornece tratamento substancial de varios dos cientistas rapidamente mencionados neste capitulo, entre os quais Vesalius, Galileo, Bacon, Boyle, Newton e Har- vey; escrito num estilo que valeu a Boorstin um lugar entre 0s historiadores mais famosos da atualidade. Mill, J. S. (1989). Autobiography/Autobiografia London: Penguin Books. (Obra originalmente publicada em 1873) Fascinante relato da infancia e do relacionamento de Mill com o pai, a crise mental ¢ a superacdo, seu re- lacionamento com Harriet Taylor ¢ 0 desenvolvi- mento de suas ideias; pode ds vezes causar certa con- fusao se o leitor nao dispuser de conhecimento sobre @ historia politica da Gra-Bretanha da epoca de Mill Sobel, D. (2000). Galileo’ daughter: A historical me- moir of science, faith and love/A filha de Galileo: uma biografia historica de ciéncia, fé e amor Nova York: Penguin. Bem escrito relato das pesquisas de Galileo ¢ de co- mo estas 0 colocaram em apuros com a Igreja Cato- lica; apresentacao elegante do contexto historico de Galileo (e, portanto, também de Descartes), com parte da historia narrada por meio de notaveis car- tas trocadas entre Galileo e a filha, uma freira en- clausurada OCONTEXTO NEUROFISIOLOGICO BT Num trecho que nos faz pensar em Ivan Pa- vlov (Capitulo 10), Whytt ilustrou a ques- tio com dois exemplos cotidianos daquilo que afinal viria a chamar-se reflexo condi- cionado: “Assim a visio, ou mesmo a idéia de uma comida gostosa, provoca um fluxo incomum de saliva na boca do faminto, a vi- sao de um limao cortado promove o mesmo efeito em muita gente” (citado por Fearing, 1930, p. 80). A existencia dos tipos de reflexos do- cumentados por Whytt exige que se faga uma distingao entre os componentes sen-, sério e motor de uma reagdo, 0 que, por sua vez, implica que certos nervos podem destinar-se a transmissao de informacoes sensérias € outros, & transmissao de men- sagens aos muisculos, dizendo-lhes que se movimentem. Essa distingao entre os ner- vos sens6rios e os motores estabeleceu-se pela obra de dois cientistas que trabalha- ram mais ou menos na mesma época em paises diferentes. A Lei de Bell-Magendie Como voce deve estar lembrado, no Capitu- lo 1 vimas que o “miltiplo” é aquele caso em que duas ou mais pessoas fazem a mes- ma descoberta na mesma época histérica, mas de forma independente. E. G. Boring sou 0 conceito para defender a idéia de que © Zeitgeist contribuia para determinar as ati- vidades e o modo de pensar dos cientistas de um determinado momento hist6rico. A lei de Bell-Magendie as vezes € citada como exemplo de multiplo: dois cientistas, traba- Ihando em diferentes laboratorios (neste ca- so, em diferentes paises), mais ou menos ao mesmo tempo, ¢ sem que um conhega a pes- quisa do outro, chegam aos mesmos resullta- dos. Porém, a situacao nao foi assim tao sim- ples no caso de Bell e Magendie e, nos anos posteriores a descoberta, houve uma briga feia pela prioridade. O julgamento da hist6- ria € que Magendie deveria ficar com o cré- dito: sua pesquisa era mais sistematica e ele a divulgou numa publicacao especializada. A pesquisa de Bell, por outro lado, apesar de ter transcorrido alguns anos antes da de Ma- gendie, foi publicada num folheto particular de distribuicdo limitada e baseava-se mais em inferéncias da anatomia que em experi- mentacao (Sechzer, 1983). Além disso, Ma- gendie acertou; Bell, nao. O fato de o nome de Bell ter ficado ao lado do de Magendie é mais um tributo ao clamor ptiblico do poli- ticamente influente Bell e seus igualmente vociferadores amigos que & qualidade da sua pesquisa. Francois Magendie (1783-1855) cres- ceu durante os conturbados anos da Revo- lugdo Francesa. Era filho de um cirurgiao que militava politicamente em favor da de- posi¢ao da monarquia francesa. Com uma educagao formal que deixava a desejar, Frangois usou a influéncia do pai para con- seguir ser aprendiz num hospital de Paris, onde, na flor de seus 16 anos, foi encarrega- do de executar dissecagoes anatémicas (Grmnek, 1972). Depois de entrar para a fa- culdade de medicina e formar-se em 1808, criou uma fama de cientista talentoso que preferia a coleta indutiva de “fatos” a teoria. Magendie descreveria assim essa atitude ba- coniana: “Sou como um catador de lixo: com meu espeto na mao e minha cesta nas costas, atravesso o campo da ciéncia € vou coletando o que encontro” (citado por Grmek, 1972, p. 7). Em 1822, Magendie publicou um artigo de trés paginas que resumia os resultados de um estudo sobre as raizes dorsal ¢ ventral (ou posterior € anterior) da medula espi- nhal. De suas antigas dissecacdes, ele sabia que as fibras nervosas saiam da medula aos pares antes de juntar-se, com um tipo de fi- bra, a raiz posterior, mais proxima da super- ficie da derme, e que a outra (a raiz ante- rior) ficava mais para dentro do corpo Estruturas diferentes sugerem fungdes dife- rentes, ¢ a pesquisa de Magendie pretendi identifica-las. Usando um cao de seis semanas de ida- de como sujeito, Magendie expés-lhe a me- dula espinhal e cortou as fibras posteriores (isto ¢, as mais proximas da superficie), dei- xando a medula intacta. Costurou a incisdo 82 _HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA € observou o animal apés a recuperacao. De acordo com a sua descricao, [...] Eu nao sabia o que iria resultar dessa operacio. |...) A principio, pensei que © membro correspondente aos nervos corta- dos ficaria completamente paralisado; era insensivel a picadas e as pressdes mais for- tes ¢, além disso, parecia imével. Mas logo, para grande surpresa minha, moveu-se cla- ramente, embora a sensibilidade permane- cesse completamente ausente. (Magendie, 1822/1965, p. 20) Portanto, as raizes posteriores controla- vam a sensacao. Quando destruidas, o ani- mal ainda conseguia mover o membro, mas nele nao tinha sensagao alguma, Em segui- da, Magendie cortou a raiz anterior em ou- tro animal, tarefa que exigiu toda a sua con- sideravel pericia cirdrgica. Como as raizes anteriores ficam abaixo das posteriores, é di- ficil chegar até elas sem danificar estas ulti- mas. Mesmo assim, Magendie executou com éxito 0 procedimento, conseguindo cortar com destreza uma raiz anterior (coisa que Bell nunca pode fazer). Os resultados foram claros: “nao podia haver nenhuma diivida; 0 membro ficou completamente flacido e imo- vel, embora retivesse uma sensibilidade ine- quivoca” (Magendie, 1822/1965, p. 20). Em resumo, entdo, a descoberta de Magendie, hoje conhecida como lei de Bell-Magendie, era que as raizes posteriores da medula espi- nhal controlavam a sensagdo, ao passo que as anteriores controlavam as reagdes moto- ras. Tratava-se de uma descoberta de grande importancia, pois fornecia uma base anato- mica ao posterior estudo dos dois lados do reflexo: a sensacdo ¢€ 0 movimento. Além disso, a distincao implicava que os nervos enviam mensagens numa s6 direcdo e que ha diferentes tratos — sensorio ¢ motor — na medula e, talvez, diferentes regi s6rias € motoras no cérebro. Quanto a Sir Charles Bell (1774-1842), escreveu Idea of a New Anatomy of the Brain: Submitted for the Observation of His Friends [Idéia de uma nova anatomia do cérebro: pa- S sen- ra analise de seus amigos} onze anos antes da publicacao do trabalho de Magendie, mas ‘© enviou em particular a um grupo de me- nos de cem colegas. Bell era um importante anatomista inglés que tinha amigos influen- tes e, juntos, lancaram uma campanha con- tra Magendie quando seu trabalho foi publi- cado, acusando-o de tudo que é possivel, desde a reproducao desnecessaria da des- coberta de Bell até a crueldade contra os animais (0 éter nao tinha sido descoberto quando Magendie fez seus experimentos; portanto a cirurgia deve ter sido dolorosa para os ces). Bell chegou ao ponto de alte- rar as palavras de seu trabalho anterior e re- publica-lo, para dar a impressao de ter-se antecipado a Magendie em uma década (Gallistel, 1981). No entanto, Magendie nao conhecia o trabalho de Bell, que consistia numa andlise anatémica da medula espinhal ¢ um experimento com um “coelho incons- ciente”. Bell merece algum crédito por ter concluido que as raizes anteriores e poste- riores tinham fungdes diferentes, mas con- cluiu erroneamente que ambas tinham fun- des sensorias ¢ motoras, diferenciando-se essencialmente em virtude de suas conexdes com 0 cerebelo (raizes posteriores) e com 0 cérebro (raizes anteriores) (Sechzer, 1983). Magendie, afrontado pessoalmente pe- os ataques que Ihe eram dirigidos do outro lado do Canal da Mancha, reconheceu 0 va- lor da pesquisa de Bell ao tomar conheci- mento dela, mas recusou-se a dar-lhe prio- ridade na descoberta da distingao critica (e correta) entre as funcdes sensorias ¢ moto- ras. E particularmente, apesar de reconhe- cer a prioridade de Bell em relacdo a es- trategia de segregar as raizes da medula espinhal e a descoberta de que a raiz ante- rior influenciava a “contratilidade mus- cular” mais que a raiz posterior, Magendie afirmou energicamente que, “quanto ao es- tabelecimento de que essas raizes tém pro- priedades diferentes e fungoes diferentes, que as anteriores controlam 0 movimento as posteriores, a sensacdo, trata-se de uma descoberta que pertence a mim” (citado por Grmek, 1972, itélicos nossos).

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