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05 construtores (1850), detalhe da pintura de Fernand Léger. Nessa pintura de Fernand Léger ha algo de ludico nos operarios que mais. parecem equilibristas de circo em seus trapézios. Como contraponto & leveza da tela, pesquise a letra da cangao Construcao, de Chico Buarque, composta durante a ditadura militar, da qual selecionamos uma estrofe: “E tropecou no céu como se fosse um bébado /E flutuou no ar como se fosse um passaro / E se acabou no chao feito um pacote flacido / Agonizau no meio do passeio publico / Morreu na contramao atrapalhando 0 trafego”. As estrofes repetem-se com variag6es em que predominam as proparoxitonas, com metéforas que nos remetem aos operérios da construcao civil, vitimas didrias dos acidentes de trabalho, Mas também simboliza a morte ~ real ou metaférica -, diante da qual as pessoas parecem indiferentes. Apés a leitura do capitulo, analise a tela e a cangao, aplicando os conceitos aprendidos. Trabalho, alienaga0 © consumo Capitulo 5S ® Trabalho como tortura? Talvez voce jé tenha visto camisetas que trazem estampados o simpatico (e preguicaso) gato Garfield © a frase “Odelo segunde-feiral”, representando o sentimento quase universal de desanimo diante da volta ao trabalho. De fato, enquanto o préximo e de- ‘sejado final de semana nao chega, busca-se alento no happy hour, como se a “hora feliz” s6 pudesse existir no tempo-apés-o-trabalho. Confirmando esse sentido negativo, a propria pa- lavra trabalhar deriva do latim tripaliare, que nomeava, © tripalium, um instrumento formado por tres paus, proprio para atar os condenados ou para manter presos os animais dificeis de ferrar. A origem comum identifica o trabalho a tortura, Se a vida humana depende do trabalho, e este causa tanto desprazer, sé podemos concluir que o ser humano esta condenado a infelicidade. Para re~ verter esse quadro pessimista, vejamos os aspectos Positivos do trabalho, ® Abhumanizagao pelo trabalho 0 trabalho ¢ a atividade pela qual a natureza & transformada mediante o esforgo coletivo para arar a terra, colher seus frutos, domesticar animais, mo- dificar paisagens e construir cidades. Do trabalho ‘surgem instituigdes como a familia, o Estado, a es- cola; obras de pensamento como o mito, a ciéncia, aarte, a filosofia, Podemos dizer que o ser humano se faz pelo tra- balho, porque ao mesmo tempo que produz coisas, torna-se humano, constréi a propria subjetividade. Ao se relacionar com os demais, aprende a enfren- tar conflitos e a exigir de si mesmo a superacao de dificuldades. Enfim, ninguém permanece o mesmo, Porque o trabalho modifica e enriquece a percepgao. do mundo e de si proprio. Como condigéo de humanizagao, o trabalho liberta, 0 viabilizar projetos e concretizar sonhos. Se em um primeiro momento anatureza apresentase como desti- ‘no, com o trabalho surge a possibilidade de superar os determinismos. Nesse sentido, aliberdade humana néo € dada, mas resulta da ago humana transformadora. No entanto, nem sempre prevaleceu essa concep- 980 humanizadora do trabalho, sobretudo quando as pessoas so obrigadas a viver do trabalho alienado, que resulta de relacoes de exploracao. Estamos, portanto, diante de um impasse: 0 tra- balho ¢ tortura ou emancipac&o? Se valtarmos nosso olhar @ histéria para ver como as pessoas trabalham © 0 que pensam sobre o trabalho, teremos uma per- Cepcao mais clara dessa contradicéo. BD) 54 unidade 2- antropotogs filosotica ® cio enegécio Nas sociedades tribais, as pessoas dividem tarefas de acordo com sua forca e capacidade. Os homens cagam e derrubam érvores para preparar 0 terreno das plantagbes, enquanto as mulheres se~ meiam e fazem a coleta. Como a divisao das tarefas se baseia na cooperacao e na complementagao e no na exploragdo, tanta a terra camo os frutos do trabalho pertencem a toda a comunidade. Por que essa dindmica se transformau? Para Jean-Jacques Rousseau, filésofo do século XVIII, a desigualdade surgiu quando alguém, ao cercar um terreno, lembrou-se de dizer “Isto ¢ meu", criando assim a propriedade privada. Nesse momento, abriu- “se 0 caminho para a divisdo social, as relagdes de dominagao e a desigual apropriagao dos frutos do trabalho. Desse modo, desde as mais antigas civi- lizagOes existe a diviséo entre aqueles que mandam = @ portanto projetam, concebem, inventam — e os que 86 obedecem e executam. E o que se denor gdicotomia entre a concepcaa e a execugao do trabalho. Ainda hoje ha os que admitem ser “natural” essa divisdo de fungoes, pois alguns teriam mais talento para pensar, ao passo que outros s0 seriam capazes de realizar atividades bragais, Um olhar mais atento constata, no entanto, que existem mecanismos proprios para manter a divis8o, nao conforme a ‘capacidade, mas sim de acordo com a classe a que cada um pertence, Entre os antigos gregos e romanos, que viviam em sociedades escravagistas, era nitida a diviséo entre atividades intelectusis e bracais, coma evidente des- valorizacao desta Ultima. Um dos indicios da diviséo social era a educago, por ser privilégio dos propriata- rios. NBo por acaso, a palavra escola na Grécia antiga significava literalmente o “lugar do écio", onde as criangas se dedicavam a ginastica, aprendiam jogos, misica e retérica ~a arte de bem falar. CI Ottermo dcio ndo tinha naquele tempo omesmo sen- tido de hoje. Para ns, écio 60 nao fazer, a descanso. Para os gregos, tratava-se do “écio digno”, que os ‘sentava das atividades que apenas garantem a sub- Sistncia, para gozar o tempo live e dedicar-se as fungdes nabres de guerrear, fazer politica, pensar, decidir. Entre os romanos @ palavra écio (do latim, ‘tium) manteve o sentido original grego, tanta ¢ que © trabalho para sustentar a vida era expresso pela ppalavra negocio (nec-otium, "nd écio") BER MA Dicotomia.Cvisd0 om dues partes. D uma nova concepgao de trabalho Até a Idade Média, a riqueza se restringia a posse de terras, mas ao final desse periodo e durante a Idade Moderna, as atividades mercantis e manufa~ tureiras passaram a predominar. No mesmo espirito da Idade Moderna, Galileu inaugurou o métado das ciencias da natureze, que se baseava no.uso da técnica e da experimentacao. ) As teorias da modernidade ( que diziam as pensadores da modernidade @ respeito dessas mudangas, ao longo dos séculos, XVII e XVIII? Francis Bacon (1561-1626), com seu lema "saber é poder”, criticou a base metafisica da fisica gregaeme- dieval e realcou o papel histérico da ciéncia e do saber instrumental, capaz de dominar a natureza. Numa linha semelhante, René Descartes (1596- 1850) antevia um mundo em que os seres humanos vi- iam ase tornar“senhores e possuidores da natureze”. Comegava ai o ideal prometeico da ciéncia. Embora Bacon e Descartes seguissem linhas de reflexao diferen- tes eem certos pontos antagonicas, ambos destacam que a ciéncia e a técnica sao capazes de “dominar a natureza". Como se vé, no Renascimento e na Idade Moderna houve a valorizacao da técnica, da experimen- taco, do conhecimento alcangado por meio da pratica. No campo politico e econdmico, estavam sendo elaborados os principios do liberalismo. Quais as, consequéncias das ideias liberais para o trabalho? Superando as relagbes de dominagao entre senhores: @ servos, foi instituido o contrato de trabalho entre individuos livres, 0 que significa 0 reconhecimento do trabalhador no campo juridico. Uma das novidades das ideias liberais ¢ a va- lorizac&o do trabalho. Assim escreveu John Locke (4832-1704); Emboraa terra e todas a rats inferores sean comuns a todos os homens, cada homem tem propriedade em sua propia pessoa esta ninguém tem qualquer direitosendo ele mesmo. O trabalho do seu corpo ea obra de suas més, pode ders, so propriamente del. .] Desde que esse trabalho & propriedade exclusiva do trabalhador,nenhum outro hhomem pode ter dieto ao que sejuntou, pelo menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade ern comum para terceios, LOCKE, John, Segundo tratado sobre o goverra Sto Paulo: ‘Abi Cultural, 1873.9. 51-52. (ColocBo Os Pensadores} A novidade dessa nova concepgao ¢ que fun- damentava a teoria contratualista, que rejeitave a servidao medieval e 0 poder absoluto instituido pela nobreze, da qual Locke foi um dos teéricos. Segundo ele, se qualquer pessoa possui seu cor po, também é proprietério do seu trabalho e dos fru- tos dele, Naquele momento essa teoria foi um avango, mas sofreria criticas do sacialismo do século XIX. B® Otrabatho como mercadoria: aalienagao No século XIX, os avangos que resultaram da Re- volugéo Industrial néo ocultaram a questo social. A exploragao dos operdrios aparecia explicita em extensas jornadas de trabalho, em péssimas instala~ ‘ges, nos salarios baixos, na arregimentagao de criarr Gas e mulheres como mao de obra mais barata. Esse estado desencadeou os movimentos socialistas & anarquistas. Nesse panorama, Karl Marx (1818-1883) reforcou ‘a tematica do trabalho como condigao de liberdadk pelo trabalho que o ser humano se confronta com as forgas da natureza e, 20 mesmo tempo que e modifi- a, transforma a si mesmo, humanize-se. Marx negou, porém, que a nova ordem econd- mica do capitalismo fosse capaz de possibilitar a igualdade entre as partes, porque o trabelhador perde mais do que ganha, jé que produz para outre a posse do produto Ihe escapa. Nesse caso, ¢ ele proprio que deixe de ser o centro de si mesmo. Nao escolhe o salario ~ embora isso Ihe aparece ficticiamente como o resultado de um contrato livre -, n&o escolhe o horério nem o ritmo de tra- balho e € camandado de fora por forgas que néo mais controle. O resultado que o trabalhador torne-se “estra- ho”, “alheio"a si proprio: 6 o fendmeno da alienacao. in ‘Alienagao. Qo latim alienore,“afastar’ alienus, “que ppertence a um outro’; allus,“outro".Portanto, alienar € tornar alheio, transferir para outrem o que é seu. Modernidede. Ou Idade Moderna, 60 periodo que comega ino Renescimento em oposicao 8 tradicdo medieval, valo~ fizando o esprteeritico e racionalidade cientifica. Os principal representantes sto Bacon, Galleu e Descarter ro secule XVI | Prometeico, Relative 3 Prometeu, figure da mitologia rege que roubou 0 fogo dos deuses pare dé-io a mortals. Simboliza a valorizagBo da técnica e do trabalho humane Trabalho, alenacao.e consumo -capruios 55 Trabathadores de volta para casa (18121816), pinture de Edvard Munch. 0 artista noruegués Edvard Munch (1863-1944) representou nesta obra a opressia e @ ansiedade do ‘trabalhador: com rostos paidos e olhares perdidos. tal como fantasmes, retornam & noite para cass, ‘Objeto educacional digital | {=") orientacées para o cthar de Trl do Amaral sobre Brel inusiazado Gee Hé varios sentidos para a palavra allenacao. Em todos eles, ha algo em comum: do ponto de vista Juridico, perde-se a posse de um bem; para a psi- Quiatria, © alienado mental perde a dimenséo de ‘sina relacao com os outros; segundo Rousseau, © poder do pave é inaliendvel, porque s6 a ele per- tence; na linguagem comum, a pessoa alienada perde @ compreensao do mundo em que vive. ? Alienagao na producdo Para Marx, que analisou esse conceito basico, a alienagao nao é puramente tedrica, porque se ma- nifesta na vida real quando o produto do trabalho deixa de pertencer a quem o produziu. Isso acarre Porque na economia capitalista prevalece a Io do mercado, em que tudo tem um prego, ou seja, ao vender sua forga de trabalho mediante salario, o ope~ rério também se transforma em mercadoria, Trata-se do que Marx chama de fetichismo da mercadoria e reificagdo do trabalhador. Vejamos o que significam esses conceitos, + O fetichismo ¢ o proceso pelo qual a mercadoria, um ser inanimado, adquire “vida” porque os valores de troca tornam-se superiores avs valores de uso © passam a determinar as relagbes humanas, ao contrério do que deveria acontecer. Desse modo, 8 relagao entre produtores ndo se fez entre eles Préprios, mas entre os produtos do seu trabalho. Por exemplo, n&o sao relag6es entre alfaiate e carpinteiro, mas entre casaco e mese, que s80 equiparados conforme uma medida comum de valor. WD) 56 unidade 2-Antropoiogie fosonica + Areificacao (do latim res, “caisa") ¢ a transfor- magao dos seres humanos em coisas. Em conse- quéncia, a “humanizagao” da mercadoria leva & desumanizagao, & coisificacao do individuo, isto 6, ele ¢ transformado em mercadoria, Aalienacao nao se aplica apenas a produgao do trabalhador, mas também as formas do consumo, como veremos mais adiante. }D Aerado olhar: a disciplina Outros pensadores investigaram as mudan- gas decorrentes do capitalismo e do nascimento das fébricas, analisando-as sob outro angulo, o da instau- ragéo da era da disciplina, Segundo Michel Foucault, um novo tipo de disciplina facilitou a dominag8o mediante a “docilizacao” do corpo, Para exemplificar, vamos voltar & Franca do sé culo XVIII historiadora francesa contemporénea Michelle Perrot relata a descricao feita por um inspetor de manufaturas de uma oficina téxtil com cerca de 100 metros de comprimento, pavimentada or lajes e iluminada por 50 janelas com tela branca: 'Nomeio dessa sala [em] um canal coberto com lajes entreabertas cada fiandeira vai em siléncio,tirar a agua de que precisa [para a fico. Essa oficna, primeira Vista, surpreende o visitante pela quantidade de pessoas ai empregadas, pela ordem, pela limpeza e pela extrema Ssubordinacso que al rena... Contamos 50 rocas duplas [.] ocupadas por 100 fiandeiras e o mesmo tanto de dobradeiras, tao isciplinadas como tropas. PERROT, Michele. Os excutdos da hist: ‘nerdrios, mulheres e prisionsiras, Rio de Janeiro: Par 8 Tera, 1968, p. 67-58, Michel Foucault (1926- 1984), filésofo fran- és, desenvolveu um metodo de investiga 80 histérica e filosé- fica que chamou de genealogia. Examinando ‘amudanga dos eompor- tamentos no inicio de Tdade Moderna, sobretudo nas instituigses pri- sionais e nos hospicios, buscou compreender os rocessos da produgao dos saberes que tornaram ossivel o controle difusn e nao tematizado, que chamau de microfisica do poder, Suas principais obras s8o Historia da loucura na Idade Classica, As palavras e as coisas, Historia da sexualidade, Vigiar @ ‘Bunir e Microfisica do poder. Michel Foucault, foto de 1967, Ahistoriadora destaca em itélico a nova maneira de trabalhar, representada por dois modelos disc plinares: 0 religioso (silencio) e o militar (hierarquia, disposigao em fileiras).A disciplina é mantida pelos supervisores, que avaliam a qualidade do servico, evitam brigas e fazem cumprir os severos regule~ mentos por meio de proibigdes (nao falar alto, ndo, dizer palavroes, nao canter), regras de horérios {comeca a “tirania” do relégio para entrada, sada e intervalos) e ainda penalidades como multas, ad- vertencias, suspens6es, demissoes, de acordo com a gravidade da “falta”. Na nova estrutura, 0 “olhar vigilante” sobressal de maneira decisiva. A organizacao do tempo e do espago imposta na fabrica ndo é, porém, um fend- meno isolado. Nos séculos XVII e XVILI, formava-se a chamada “sociedade disciplinar", com a criagao de instituiges fechadas, voltadas para o controle social, tais como prises, orfanatos, reformatorios, asilos de miserdveis @ “vagabundos”, hospicios, quarteis e escolas, ‘Assim escreveu Michel Foucault: Esses métodos que permitem o controle minucioso das operacées do corpo, que realizam a sujeic30 Constante de suas forcase thes impdem uma relagdo de docilidade-utildade, sdo 0 que podemos chamar as

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