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Ricardo Barbosa Schiller & a cultura estética Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Friedrich SCHIALER O autor do artigo “Sobre o perigo dos costumes estéticos no décimo primeiro nimero de As horas do ano pasado, colocou em diivida, com razio, uma moralidade fundada apenas em sentimentos da beleza ¢ que tem unicamente no gosto o seu fiador, No entanto, um sentimento puro e vivo para a beleza tem manifestamente a mais feliz influéncia sobre a vida moral, e desta tratarei aqui. ‘ Se atribuo ao gosto 0 mérito de contribuir para a promogio da eticidade, minha opinido nao pode ser de modo algum que 0 quinhao que o bom gosto tem numa acfio possa torné-la numa ago ética, Nunca é permitide 20 ético ter um outro fundamento que nao ele mesmo. O gosto”) pode favorecer a moralidade da conduta, como espero pro- | var no presente ensaio, mas ele mesmo nunca pode produzir algo de moral através de sua influéncia. e Aqui, no que diz respeito 2 liberdade interna e moral, trata-se inteiramente do mesmo caso relativo a liberdade externa e fisica; ajo livremente no itiltimo sentido somente quando, independentemente de toda influéncia estranha, sigo apenas minha vontade. Mas a possibilidade de seguir ilimitadamente minha propria vontade, posso por fim devé-la a um fundamento diferente de mim, t4o logo se admita que este teria podido limitar minha vontade. Do 55. 56 Ricardo Barbosa mesmo modo, posso por fim dever a possibilidade de agir bem a um fundamento diferente de minha razdo, tao logo este é pensado como uma forca que teria podido limitar minha liberdade do animo. Como se pode muito bem dizer que um homem recebe a liberdade de um outro, embora a liberdade mesma consista na dispensa de se orientar de acordo com os outros; do mesmo modo pode-se dizer que © gosto auxilie a virtude, embora a virtude mesma implique expressamente que ndo se recorra a nenhum auxilio es- tranho. Uma agao nao deixa de modo algum de se chamar livre porque aquele que teria podido limité-la felizmente nada faz; e isso tao logo apenas sabemos que o agente seguiu aqui meramente sua propria vontade, sem considerar uma von- tade estranha. Do mesmo modo, uma acao interna ainda nao perde o predicado de uma ago ética porque felizmente faltam as tentagdes que teriam podido anulé-la; ¢ isso tao logo apenas admitimos que o agente seguiu aqui meramen- te a sentenga da sua razao, excluindo mébeis estranhos. A liberdade de uma a¢ao externa baseia-se meramente sobre sua origem imediata a partir da vontade da pessoa; aeticidade de uma aco interna, meramente sobre a determinagiio ime- diata da vontade através de lei da razio. Pode se tornar mais dificil ou mais facil para nés agir como homens livres conforme nos chocamos com forcas que atuam contra nossa liberdade e que tém de ser coagidas. Nesse sentido, existem graus de liberdade. Nossa liberdade € maior, ao menos mais visivel, quando nés a afirmamos, por mais veemente que seja a resistencia de forcas hostis, Schiller & a cultura estética 57 mas ela nao cessa quando nossa vontade nao encontra nenhuma resistencia, ou quando uma violencia estranha se interfe- intromete ¢ aniquila esta resistencia sem a nos réncia. O mesmo se passa com a moralidade. Pode nos custar mais ou menos luta obedecer imediatamente & razao con- forme se agitem em nés impulsos que esto em conflito com as suas prescrigées e que temos de recusar. Nesse sentido, existem graus de moralidade. Nossa moralidade é maior, a0 menos mais destacada, quando obedecemos imediatamente 8 razio, por maiores que sejam os impulsos no sentido contririo; mas ela néo cessa quando nao hé nenhum esti- mulo contrério, ou quando algo diferente da nossa faculda- de da vontade enfraquece este estimulo. Enfim, agimos eticamente bem tao logo agimos apenas porque a acto é ética e sem nos perguntarmos primeiro se é também agra- davel — posto também que existiria a probabilidade de agirmos de outro modo se isso nos causasse dor ou nos privasse de um prazer. Para a honra da natureza humana, é poss(vel admitir que nenhum homem pode descer tao fundo a ponto de preferir o mal meramente porque se trata do mal, e sim que cada um preferiria sem diferenca o bom, porque é 0 bom, se nao excluisse casualmente o agradavel ou nao acarretasse o desagradavel. Toda imoralidade na realidade parece surgir, pois, da colisao do bom com o agradavel, ou, o que chega a ser 0 mesmo, da apeticao com a razAo, eter como fonte, por um lado, a forga dos impulsos sensiveis e, por outro, a {fraqueza da faculdade da vontade moral. 58 Ricardo Barbosa A moralidade pode pois ser promovida de dois modos, assim como € impedida de dois modos. Ou tem-se de fortalecer o partido da razao e a forga da boa vontade, de modo que nenhuma tentagdo possa dominé-la, ou tem-se de romper o poder da tentagio para que mesmo a razio mais fraca e a boa vontade mais fraca ainda lhe sejam superiores. Em verdade, poderia parecer como se a moralidade mesma nada ganhasse através da ultima operacao, pois ndo acontece aqui nenhuma mudanga com a vontade, cuja na- tureza (Beschaffenheit) unicamente torna uma agao moral. Isso porém nao é de modo algum necessdrio também no caso tomado, onde nao se pressupde nenhuma ma vontade que teria de ser mudada, mas apenas uma boa vontade que é fraca, E esta fraca boa vontade entra em ago por este caminho, 0 que talvez nao tivesse acontecido se impulsos fortes a tivessem contrariado. Onde porém uma boa vonta- de torna-se o fundamento de uma a¢do, a moralidade existe efetivamente. Nao tenho, pois, divida em estabelecer o principio segundo o qual aquilo que promove verdadeira- mente a moralidade é o que aniquila a resisténcia da incli- nagao contra o bom. O inimigo interno natural da moralidade é o impulso sensivel, que, tio logo se lhe apresenta um objeto, anseia pela satisfagao, e tio logo a razao lhe ordena algo ofensivo, contrapde-se as prescrigdes dela. Esse impulso sensivel esta incessantemente ocupado em a:rair a vontade em seu inte- esse, que, no entanto, esté sob leis éticas e tem sobre si a Schiller & a cultura estética 59 obrigatoriedade de nunca se encontrar em contradigao com as exigéncias da razao. impulso sensfvel nao conhece, porém, nenhuma lei ética e quer ter realizado seu objeto através da vontade, pouco importa o que a razo possa dizer sobre isso. Essa tendéncia da nossa faculdade da apetigao de dar ordens & vontade, imediatamente e sem qualquer referéncia a leis superiores, encontra-se em conflito com a nossa determi- nagio ética ¢ é 0 mais forte adversério que o homem tem a combater no seu agir moral. Aos animos rudes, aos quais falta ao mesmo tempo formagao (Bildung) moral e estética, a apeti¢ao da imediatamente a lei, ¢ eles agem meramente como apetece (geltistet) aos seus sentidos. Aos animos mo- rais, aos quais, porém, falta formagao estética, a razio dé imediatamente a lei, ¢ é meramente pela consideragao a0 dever que eles vencem a tentacdo. Em animos esteticamente refinados existe ainda uma instancia a mais, a qual nao raro substitui a virtude, onde ela falta, e a facilita, onde ela est presente, Essa instancia € 0 gosto. O gosto exige moderacao ¢ decoro, detesta tudo 0 que €anguloso, duro, violento, ese inclina a tudo o que se rene com leveza ¢ harmonia. Que também na tempestade da sensa¢4o ouvimos a vor da razdo e colocamos um limite aos rudes impetos da natureza, éalgo que exige de todo homem civilizado, como jé se sabe, o bom tom, que nao outra coisa sendo uma lei estética, Esta coersao que o homem civilizado se impée na manifestagao dos seus sentimentos lhe propor- ciona um grau de dominio sobre estes sentimentos mesmos, faz com que ele adquira ao menos uma habilidade de inter- 60 Ricardo Barbosa romper o estado meramente passivo de sua alma por um ato de auto-atividade e de deter pela reflexdo a répida transigao dos sentimentos as ages. Porém, tudo 0 que rompe a cega violencia dos afetos ainda nao produz em verdade nenhuma virtude (pois esta tem de ser sempre sua propria obra), mas abre espaco paraa vontade se voltar para a virtude, Essa vit6ria do gosto sobre o rude afeto nao é porém, de modo algum uma agac ética, e a liberdade que a vontade ganha aqui através do gosto ainda nao é de modo algum uma liberdade moral. O gosto liberta 0 animo do jugo do instinto apenas na medida em que 0 conduz a sua prisio, € enquanto o gosto desarma o primeiro e manifesto inimigo da liberdade ética, nao raro ele mesmo ainda per- manece como o segundo que, sob a capa do amigo, pode ser apenas tanto mais perigoso, O gosto, a saber, também rege © animo apenas através do atrativo do prazer (Vergntigen) — de um prazer nobre, sem diivida, pois sua fonte 6a razao —mas onde o prazer determina avontade, ai no hd ainda nenhuma moralidade. No entanto, algo de grande foi ganho nesse imiscuir do gosto nas operacdes da vontade. Todas aquelas inclinacdes materiais ¢ rudes apetites, que freqilentemente se contra poem tao tenaz e tempestuosamente ao exercicio do bem, esto expulsas do animo através do gosto, ¢ no lugar delas foram plantadas inclinagdes mais nobres ¢ mais suaves, que se referem a ordem, harmonia e perfeigao, ¢ embora elas mesmas nao sejam virtudes, partilham um objeto com a virtude, Se pois agora fala o apetite, entao ele tem de resistir a. um rigoroso exame diante do sentido da beleza; se agora Schiller & a cultura estética 61 fala a razio, ¢ exige agées de ordem, harmonia e perfeicéo, entio ela encontra nao apenas nenhuma resisténcia, e sim antes a mais viva e ardente aprovagao por parte da inclina- ‘ao. Se percorrermos as diferentes formas sob as quais a eticidade pode se manifestar, poderemos reduzi-las sem esforco as duas formas seguintes. Ou a sensibilidade faz a mogéo de que algo acontesa ou nao acontega, ¢ a vontade dispde sobre isso segundo a lei da razdo; ou a razdo faz a mogao e a vontade a obedece sem a interpelagao dos sen- tidos. A princesa grega Anna Komnena nos conta de um. rebelde preso que o pai dela, Alexius, quando ainda era 0 general do seu predecessor, teve 0 encargo de escoltar até Constantinopla, No caminho, enquanto ambos cavalgavam sozinhos, Alexius teve vontade de parar sob a sombra de uma arvore e restabelecer-se ali do calor do Sol. Logo 0 sono © venceus apenas 0 outro, a quem 0 temor da morte que 0 esperava nio Ihe permitia descanso, permaneceu acordado. Pois bem, enquanto aquele se encontrava em sono profan- do, este avistou a espada de Alexius, que estava pendurada num ramo da Arvore, ¢ caiu na tentagdo de se por em liberdade pelo assassinato do seu guarda. Anna Komnena dé a entender que nao saberia o que teria acontecido se Alexius felizmente nao tivesse acordado. Aqui foi 0 caso de um litigio moral da primeira espécie, onde o impulso sen- sivel se manifestou primeiro e somente depois reconheceu a razio como juiza. Tivesse aquele vencido a tentagdo a partir apenas do respeito pela justiga, entao nao haveria nenhuma diivida de que ele teria agido moralmente. 62 Ricardo Barbosa Quando 0 saudoso duque Leopold von Braunschweig, as margens do caudaloso Oder, ponderou consigo mesmo se devia abandonar-se, com perigo para sua vida, a turbu- lenta torrente, para que assim fossem salvos alguns infelizes que sem ele estavam sem socorro —e quando ele — intro- duzo aqui esse caso — unicamen‘e a partir da consciéncia deste dever, saltou no barco no qual nenhum outro quis subir, ninguém negaré que ele agiu moralmente. O Duque encontrava-se aqui no caso oposto ao anterior, A repre- sentagio do dever se deu antes, e somente depois o instinto de conservacao se deu conta de combater a prescrigao da razao. Em ambos os casos, porém, a vontade se comportou do mesmo modo; ela seguiu imediatamente a razio, por isso ambos so morais. Mas ambos os casos ainda permanecem assim quando concedemos influéncia ao gosto? Posto, portanto, que o primeiro, o qual foi tentado a praticar uma mé ago e deixou de fazé-lo em respeito & justiga, tenha um gosto tao formado que tudo 0 que é infame e violento Ihe desperta um horror que nada pode vencer, no momento em que o impulso de conservagao persiste em algo vergonhoso, 0 mero sentido estético jé 0 rejeitaré — ele pois sequer chegaré diante do frum moral, diante da consciéncia (das Gewissen), e sim cairé jé numa instancia anterior. Pois bem, o sentido estético rege a von- tade, mas apenas através de sentimentos, nao de leis. Aquele homem se priva, pois, do agradével sentimento da vida salva, pois no pode suportar a contrariedade de ter come- tido algo abjeto, Assim, todo o assuato ¢ tratado ja no forum Schiller & a cultura estética 63 da sensagio,¢a conduta desse homem, por legal que ela seja, € moralmente indiferente; ela é um mero efeito belo da natureza, Posto entao que o outro, ao qual sua razo prescreveu fazer algo contra o que 0 impulso natural se revoltou, tenha igualmente um sentido para a beleza tao exitavel que tudo © que € grande e perfeito o encanta, entio no mesmo momento em que a razio profere sua sentenga também a sensibilidade passaré para o lado dela, e ele fara com incli- nagao 0 que sem esta terna susceptibilidade para o belo teria de ter feito contra a inclinagao. Mas iremos por isso consi- dera-lo menos perfeito? Certamente nao, pois ele age origi- nalmente a partir do puro respeito pela prescrigio da razao; e queele tenha seguido esta prescricéo com alegria nao pode prejudicar a pureza ética do seu feito. Ele é, pois, moralmente igualmente perfeito; fisicamente, em contrapartida, ele ¢ de longe mais perfeito, ja que ¢ um sujeito muito mais confor- me a fins para a virtude, O gosto oferece ao animo uma disposigéo conforme a fins para a virtude, pois afasta as inclinagdes queaimpedem ¢ desperta aquelas que lhe sio favordveis. O gosto no pode causar nenhum prejuizo a verdadeira virtude, embora em todos os casos em que o impulso natural provoca o primeiro estimulo ele ja decide diante do seu tribunal acerca daquil que sendo a consciéncia teria de ter reconhecido, e portanto 6a causa de que, entre os que sio regidos por ele, seencontre muito mais ages indiferentes do que verdadeiramente mo- rais. Pois a exceléncia dos homens no se baseia de modo algum na maior soma de ages rigoristico-morais isoladas, ¢ 64 Ricardo Barbosa sim na maior congruéncia de toda a disposigao natural com a lei moral, e nao depde muito a favor de um povo ou de uma época quando se ouve falar com tanta freqiiéncia sobre moralidade ¢ feitos morais isolados; antes ¢ permitido es- perar que ao final da cultura, se tal coisa se deixa em geral pensar, falar-se-4 muito menos disso, O gosto, em contra- partida, pode ser positivamente atil a verdadeira virtude em todos os casos em que a razio provoca o primeiro estimulo ¢ esta em perigo de ser derrotada pela violéncia mais forte dos impulsos naturais. Nesses casos, a saber, ele harmoniza (stimms) nossa sensibilidade em proveito do dever, e faz portanto que mesmo um grau menor de forsa de vontade moral esteja a altura do exercicio da virtude. Pois bem, se em nenhum caso 0 gosto como tal preju- dica a verdadeira moralidade, e em muitos, porém, é mani- festamente titil, entao a circunstancia de que ele é vantajoso no mais alto grau a legalidade de nossa conduta tem de receber um grande peso. Posto que a cultura do belo nao poderia de modo algum contribuir para nos tornar melhor intencionados, ela nos torna ao menos hébeis para agir mesmo sem uma convicsao (Gesinnung) verdadeiramente ética, como uma conviccdo ética o teria exigido. Pois bem, diante de um forum moral, nossas ages s6 importam realmente na medida em que so uma expressdo de nossas convicgdes; mas, justo ao contrério, diante do forum fisico € no plano da natureza nossas convicgdes s6 realmente importam na medida em que ocasionam ages pelas quais o fim da natureza é promovido, Pois bem, ambas as ordens do mundo, a fisica, onde forgas governam, e a moral, onde Schiller & a cultura estética 65 leis governam, esto porém tao exatamente calculadas uma para a outra e tao intimamente tecidas entre si, que as agdes que, segundo sua forma, s4o moralmente conforme a fins, a0 mesmo tempo encerram em si, pelo seu contetido, uma conformidade a fins fisica; e assim como todo 0 edificio da natureza parece existir apenas para tornar posstvel 0 mais alto de todos os fins, que é 0 bem, assim o bem se deixa usar de novo como um meio para manter de pé 0 edificio da natureza. A ordem da natureza é tornada, pois, dependente da eticidade das nossas conviccées, ¢ nao podemos violar 0 mundo moral sem ao mesmo tempo causar uma perturba- 20 no mundo fisico. Pois bem, se jamais cabe esperar da natureza humana — enquanto permanega natureza humana — que aja, sem interrupgao e recaida, uniforme e persistentemente, como pura razio, e que nunca viole a ordem ética — se em toda conviccéo (Uberzeugung) temos de confessar, tanto da ne- cessidade como da possibilidade da virtude pura, quao contingente € 0 seu exercicio efetivo e quao pouco estamos autorizados a edificar sobre a inexpugnabilidade dos nossos melhores principios — se nessa consciéncia do nosso caré- ter incerto nos lembramos que o edificio da natureza sofre através de todos os nossos tropecos morais — se nos recor- damos de tudo isto, entao a mais injuriosa temeridade seria deixar 0 melhor do mundo depender dessa casualidade da nossa virtude. Disso resulta para nés antes uma obrigato- riedade de satisfazer a0 menos a ordem fisica do mundo através do conterido de nossas ages, ainda que, no que toca a ordem moral, nao o fizéssemos como se deve, isto é 66 Ricardo Barbosa através da forma das nossas agdes — ao menos, como instrumentos perfeitos, de pagar ao fim da natureza 0 que nés, como pessoas imperfeitas, permanecemos devendo a 1az4o, para nao ficarmos reprovados com desonra em am- bos os tribunais ao mesmo tempo. Se nao queremos tomar nenhuma medida para a legalidade de nossa conduta, por ela nao ter valor moral, entéo a ordem do mundo poderia se dissolver e todos os vinculos da sociedade estarem dila- cerados antes que estivéssemos prontos com os nossos prin- cipios. Quanto mais contingente ¢ porém nossa moralidade, tanto mais necessdrio é tomar medidas pela legalidade, e uma falta leviana ou orgulhosa desta ultima nos pode ser moralmente imputada. Do mesmo modo que o louco, que pressente o seu préximo paroxismo, afasta todas as facas ¢ se deixa prender voluntariamente para nao ser responsavel num estado sadio pelos crimes do seu cérebro destruido — do mesmo modo também nés estamos obrigados a nos prender pela religido e pelas leis estéticas para que nossa paixdo nao fira a ordem fisica nos periodos do seu dominio. Coloquei aqui, nao sem intengao, a religido e o gosto numa mesma classe, pois ambos tm em comum o mérito de servir para o efeito, embora nao segundo o valor interno, de um sucedaneo da verdadeira virtude e de assegurar a legalidade onde nao se é de esperar a moralidade. Embora aquele que nao tivesse necessidade nem do atrativo da beleza nem da perspectiva de uma imortalidade para se conduzir conforme a razao em todos os acontecimentos da vida ocupasse incontestavelmente uma alta posigao na ca- tegoria dos espiritos, os conhecidos limites da humanidade Schiller & a cultura estética 67 obrigam mesmo o mais rigido ético a abrandar algo do rigor do seu sistema ao aplicé-lo, embora nada deva conceder a0 mesmo na teoria, e, ainda por seguranca, fixar 0 bem-estar do género humano, que estaria muito malprovido pela nossa virtude contingente, nas duas fortes ancoras da reli- gido e do gosto. “Sobre a utilidade moral dos costumes estéticos” Friedrich Schiller Friedrich Schiller FRAGMENTOS DAS PRELEGOES sobre Esstética do semestre de inverno de 1792-93 Recolbides por: Christian Friedrich Michaelis Tradigéo eintrodugaa: Ricardo Barbosa Departamento de Filosofia FAFICH/UFMG Belo Horizonte 2004 Editora UFMG Introdugao Ricerdo BAK Bosg l'ragmentos de um “atelié filos6fico” Estes Fragmentos das Prelec6es sobre Estética do semes- tre de inverno de 1792-93 sio um testemunho indireto do ensino de Friedrich Schiller (1759-1805) na Universidade de lena e de suas tentativas de se haver com o problema do fundamento do gosto e da arte, especialmente depois que Immanuel Kant se manifestara sobre isto na Critica da faculdade do juizo (1790). Numa carta a Christian Gottfried Korner, escrita a5 de marco de 1791, Schiller conta que acabara de adquirir um exemplar desta obra recém-publicada e que sua leitura o deixara especialmente disposto a enfrentar a filosofia de Kant, apesar dos obstaculos que com certeza encontraria. Schiller ainda nao se sentia prepa- rado para estudar a Critica da razao pura ou os escritos de Karl Leonard Reinhold, seu colega na Universidade de lena e o mais famoso kantiano alemao. No entanto, sua familiaridade empirica com problemas estéticos facilitou-Ihe 0 acesso a terceira Critica e, por esta via indireta, as teses da primeira Critica, 0 que o deixava algo mais animado para encurtar a distancia que o separava da filosofia, especialmente de suas manifestaces mais recentes na Alemanha. “Em suma", dizia Schiller a Kérner, “pressinto que Kant nao é para mim uma montanha intransponivel, e certamente ainda me envolverei com ele com mais exatidao, Como no préximo inverno lecionarei estética, isto me da a oportunidade de dedicar algum tempo & fiosofia em geral."* Este curso de estética terminou adiado para o semestre de inverno de 1792-93. No entanto, Schiller ndo interrompeu os estudos necessarios para prepard-lo. Como se lé numa carta a Korner, escrita 2 1° de janeiro de 1792, Schiller continuou a ler com afinco a obra de Kant e tinha ainda em mente dedicar-se a Locke, Hume e Leibniz.’ Embora em meados de margo deste ano o estado de satide de Schiller o tivesse forgado a obter uma dispensa de suas atividades académicas para o semestre de verao, a correspondénda com Kérmer registra a retomada do estudo da terceira Critica no final de maio’ e em outubro. Schiller conta que estava “enfiado até as orelhas” na Critica da faculdade do juizoe que ndo largariaesta obra enquanto nao a tivesse dominado intei- ramente.” O culdado de Schiller com esta leitura de Kant e de muitos outros autores s2 devia sobretudo ao fato de que as prelecdes de stética que terclonara oferecer j4 estavam anunciadas para o préximo semestre e deveriam comecar a 5 de novembro. Numa carta escrita a Korner no dia seguinte ao da primeira aula, Schiller 10 Viragmentos das Preleges comentou sobre a carga de trabalho que tinha pela frente e suas expectativas quanto aos efeitos que estas prelecdes poderiam ter sobre o seu animo: Comecei agora meu privatissimum sobre estética. Como nao posso observar a praxe, preciso me esforgar bastante para ter material suficiente para 4 a 5 horas semanais. Além disso, vejo pelas primeiras prelecdes quanta influéncia este curso tera na retificagdo do meu gosto, O material se acumula quanto mais eu progrido, e ja cheguel a muitas idéias plenas de luz.” As prelegdes nao seguiram a praxe universitéria pelo sim- ples motivo de que aconteceram na casa de Schiller, cujo estado de satide era ainda fragil. No dia 22 de margo de 1793, Schiller sofreu uma crise durante uma das aulas.” Elas foram encerradas a 26 de marco e retomadas no semestre de verao, embora no se saiba se Schiller chegou a concluir seus trabalhos.” Naquela mesma carta a Korner de 6 de novembro de 1792, Schiller conta que tinha 24 ouvintes, dos quais 18 pagantes, e se dizia satisfeito com isto. Entre estes ouvintes estava um jovem chamado Christian Friedrich Michaelis. Em 1806 — 0 ano se- guinte ao da morte de Schiller — Michaelis publicou parte do que anotara destas aulas. Sob o titulo de Fragmentos ainda nao impressos das prelegdes sobre estética de Schiller do semestre de inverno de 1792-93, este material figura como anexo a segunda parte de uma obra em dois volumes organizada pelo proprio Michaelis em memoria ao poeta e pensador recém-falecido.” As anotagdes de Michaelis sé voltaram a circular mais de um século e meio depois, quando foram republicadas na mais igorosa edigdo das obras e da correspondéncia de Schiller, a Nationalausgabe, sob 0 titulo Fragmentos das prelecées sobre estética de Schiller do semestre de inverno de 1792-93. No aparato critico que acomparha esta publicacao do texto, Ié-se o seguinte excerto da apresertagéo de Michaelis: © anexo contém uma parte das prelegdes sobre estética de Schiller, as quais 0 auter (apés a conclusdo do seu estudo académico) teve a felicidade de owvir e conservar por escrito o essencial. © comunicado aqui sao, porém, apenas fragmentos, ou seja, proposigées isoladas, tal como elas se deixavam compreender e anotar a partir da coerente exposigdo, mas espero que nao sem todo interesse para os que veneram e conhecem as idéias de Schiller. As partes sobre o sublime e sobre a arte tragica nao foran tomadas deste manuscrito, pois o préprio Schiller em seguida as elaborou para impressio e as editou. Benno von Wiese, um dos mais renomados estudiosos da obra de Schiller e 0 seu melhor bidgrafo,"’ a quem também se deve a edigao do volume da Nationalausgabe no qual as anotagdes de Michaelis foram recolhidas, observa que elas “veiculam uma impressdo de certo fragmentéria e nao auténtica do curso sobre estética que Schillercomecou a5 de novembro de 1792." A obser- vago de von Wiese sobre o cardter inauténtico destas anotagoes Janga uma Injusta sombra de suspeita sobre Michaelis. Afinal ele no fol apenas um aluno casual de Schiller ou um curioso de boa vontade das coisas da arte e do espirito. Christian 12 - Vrggmentos dat Prebyies. Friedrich Michaelis nasceu em Leipzig a 3 de setembro de 1770, onde morreu a 1° de agosto de 1834. Estudou direito, filologia e filosofia na universidade de sua cidade natal, onde obteve o grau de mestre em 1790. Em 1792, mudou-se para lena, onde perma- neceu até o ano seguinte, quando retornou para Leipzig. Em 1794, apés concluir sua tese de habilitacao, ofereceu preleces de estética e filosofia na Universidade de Leipzig. Michaelis jamais conseguiu ir além da posigao de Privatdozent, embora nao por uma questo de mérito, e sim por ter sido identificado como um simpatizante de Fichte, cuja fama de plebeu, demo- crata radical e revoluciondrio ja crescia, tornando-se depois na acusacao de ateismo que 0 obrigou a abandonar sua catedra em lena. Por forca das dificuldades advindas desta associacao a “ma fama" de Fichte, Michaelis deixou a universidade e passou a viver como professor particular, tradutor e escritor. Autor de diversos livros e artigos sobre filosofia (especialmente sobre Kant e Fichte)’” e estética da musica, foi um dos primeiros a considerar a musica sob 0 ponto de vista da Critica da faculdade do juizo. Seus ensaios de estética musical, muitos deles publicados em periddicos importantes como a Allgemeine Musikalische Zeitung (Leipzig) ea Berlinische musikalische Zeitung, sao até hoje citados e mereceram uma nova edicao." Benno von Wiese observa ainda que as anotagées de Michaelis deveriam ser usadas com atengdo. Elas em verdade nos dé uma nogéo de com quais teorias estéticas Schiller se confrontou, mostram Friedrich Schiller - 13 também 05 tregos do seu proprio filosofar e até se aproximam em algumas passagens das idéias das cartas a Korner sobre “Kallias” embora revelem apenas pouco do especifico modo de configuracto do espirito de Schiller ou mesmo da particularidade do seu estilo loséfico, Mas justo na filosofia de Schiller, forma e contetido mal se deixam separar. Para isto pode-se reportar as suas proprias exposicées Ro artigo “Sobre os limites necessérios no uso das formas belas’, no qual € exigido que 1 exposigdo filos6fica deve unir de novo o separado “recorrer sempre ao homem como um todo através da exortagao Unificada das forgas sensiveis e espirituals” (NA 21, p. 14, 18 seg.) Sem divida, nem se pode pensar nisso no palido reflexo das prelecdes copiadas (...) No entanto, se esta "Nachschrift” de fato néo apresenta aquelas caracteristicas, deve-se lembrar que elas so antes as da escrita filos6fice de Schiller. O que as anotacées de Michaelis tem de “inauténtico” prende-se fundamentalmente a isto, e nao ao seu contetido. Alids, em suas notas ao texto, Benno von Wiese refere uma série de motivos que Schiller desenvolvera paralela- mente, tendo em vsta sua intengao de expor sua propria estética numa obra que planejava escrever sob a forma de um didlogo socratico, Kallias ou sobre a beleza. A correspondéncia com Korner em janeiro e fevereiro de 1793 contém as grandes linhas deste projeto. Ele foi reaizado parcialmente em “Sobre graca e digni- dade", escrito em maio e junho deste ano, nos artigos sobre a arte tragica, o sublime eo patético, na correspondéncia mantida com o Principe de Augustenburg entre fevereiro e dezembro deste ano e, finalmente, na reelaboracao desta correspondéncia, cujo resul- tado € 0 mais conhecido trabalho filos6fico de Schiller: Sobre a 1A - Vragmentos das Prebydes educacao estética do homem. Numa série de cartas (1794-95). De resto, o que Schiller pressentira e dissera a Kérner acerca dos efeitos que as prelegdes de estética teriam sobre ele foi ampla- mente confirmado. Afinal, para preparar suas aulas, Schiller estudou intensamente nao s6 a Critica da faculdade do juizo, como também algumas das obras dos mais influentes autores do seu tempo. Como atesta sua correspondéncia com Kérner, a quem Schiller sempre deveu comentarios estimulantes e pertinentes sugestdes de leitura, passaram pela sua mesa de trabalho tanto os escritos de Hume, Baumgarten e Moritz, quanto Uma investi- ga¢do filosofica sobre a origem das idéias do sublime e do belo, de Edmund Burke, Teoria geral das belas artes, de Sulzer, Inves- tigagdo sobre as belezas da pintura, de Daniel Webb, Pensa- mentos sobre a beleza e 0 gosto na pintura, de Anton Raphael Mengs, Historia da arte da antigdidade, de Winckelmann, Ele- mentos de critica, de Henry Home, Curso de belas letras ou principios da literatura, de Charles Batteux, Um ensaio sobre 0 Bénio original e os escritos de Homero, de Robert Woods, Sobre as sensagées, de Moses Mendelssohn,” entre outros."’ Estas leituras resultaram nos j4 mencionados escritos sobre a arte tragica, 0 sublime e 0 patético, bem como em “Pensamentos sobre 0 uso do comum e do balxo na arte" e " Observacdes dispersas sobre diversos objetos estéticos”,” sem falar nas préprias prelegdes sobre estética, cujos materiais certamente serviram de base para a redacio daqueles textos e da densa correspondéncia que Schiller mantivera com Kérner em Janeiro e fevereiro de 1793 em torno do projeto de Kallias ou sobre a beleza Friedrich Sehillee - 15 idas no contexto da correspondéncia com Kérner e com © Principe de Augustenburg, bem como daqueles trabalhos, estas prelegGes refletem dois aspectos centrais das reflexes de Schiller: o estritamente conceitual, relativo a natureza do belo e do gosto (1), 0 pratico-moral, referente ao significado da arte e da experiéncia estética para a formagéo do homem (2). Aquele aspecto foi particularmente abordado na correspondéncia com Kérner sobre Kallias, cujo nuicleo é o problema do carater objetivo do belo; jd 0 outro aspecto, é dominante em sua correspondéncia com 0 Principe de Augustenburg ao longo daquele mesmo ano de 1793, Ambos convergem no texto destas Prelecdes. 1. Com Kant, Schiller formula a tarefa da estética como um momento da auto-reflexdo da razao, centrada agora na faculdade pela qual o belo é ajuizado: 0 gosto. “A estética investiga a facul dade operante no ajuizamento do belo; ela busca assinalar com exatiddo e correcdo os limites do gosto."*" O gosto é uma facul dade essencialmente comunicativa, pois a experiéncia estética so $@ consuma quando o nosso contato silencioso com as belezas Ja arte e da natureza é rompido pela comunicagao irrestrita do 16 = Vrugmentor dus Preleydes... nosso prazer. Mas o que implica tal possibilidade de comunicagao? "Se uma sensacdo de prazer deve ser universalmente comuni- cdvel, entao tudo de empirico, material, toda influéncia da incli- nagdo tem de estar separada disto.””' A capacidade de ajuizar 0 belo opera de modo analogo 4 capacidade de ajuizar o moral- mente bom: em ambos os casos, a pretensao de universalidade dos julzos estéticos e morais tem como uma de suas condicées a abstracao de todo fundamento de determinacao material. “O jutzo de gosto tem de comprazer sem inclinagdo, como 0 [juizo] moral; pols ambos se restringem apenas a forma e decidem imediata- mente." O que efetivamente neutraliza toda inclinacao é a consi- deragao desinteressada do objeto. Se o belo apraz desinteressa- damente, é porque tomamos 0 objeto na gratuidade de sua pre- senga, sem nenhuma referéncia ao nexo possivel entre a sua existéncia e as nossas necessidades. A consideragdo estética é andloga a consideracdo moral na medida em que 0 objeto é tomado como um fim em si mesmo, nunca como um meio. E assim como nao ligamos ao objeto nenhum interesse, como que colocando entre parénteses tudo o que em nés se encerra no Ambito do privado, também no o determinamos mediante con- ceitos, razdo pela qual nao o representamos segundo um fim. Em sua presenga livre e gratuita, o objeto mobiliza nossas facul- dades de conhecer na medida mesma em que as desonera de suas fungdes cognitivas. Do carater conforme a fins do objeto resta apenas sua forma. O desinteresse é, por assim dizer, 0 primeiro passo naquele movimento de abstra¢ao pelo qual nos Feiedtich Schiller - 17 distanciamos de nossas inclinacdes e nos concentramos na forma do objeto, comunicando 0 que s6 assim se deixa comunicar univer- salmente, Como a beieza consiste meramente na forma da conformidade a fins, entéo a beleza em geral consiste apenas na forma. Um juizo de gosto é entdo puro se nem atrativo nem comogao estao aqui em jogo. Per isso, todo enobrecimento da arte consiste na simplicidade. (...) Uma pintura pode atrair apenas por suas cores, mas pode ser bela apenas pela composicao e 0 desenho.” Esta rigorosa exigéncia de abstracdo deixa ver o estético como a contraface do moral e ambos como as duas faces da berdade. “O gosto", diz Schiller, "possui, como a razao pratica, um principio interno de ajuizamento" .” Este principio interno de ajuizamento ¢ derivado do principio fundamental da razao pratica: a autodeterminacao. Se no plano moral seu uso é constitutivo, no plano estético — e eis aqui um passo importante dado por Schiller em sua interpretagdo de Kant — ele se presta a um uso regulativo. Na consideragao desinteressada e sem conceitos dos objetos, emprestamos a eles — regulativamente — o prin- ipio da autodeterminacao. A rigor, tudo se passa como se 0 objeto fosse livre. Como autodeterminagao rigorosa, a liberdade consiste assim no apenas no fundamento da a¢do (moral), mas também no da contemplacao (estética) ‘Mas sobre o que repousa a validade universal do prazer cuja comunicacac irrestrita ¢ reivindicada pela contemplacao estética? "A clrcunstancia de que o belo é meramente sentido, e nao 18. iragmantos das Preksies propriamente conhecido, torna passivel de divida a deducao da beleza a partir de principios a priori. Parece que temos de nos contentar com a validade pluralista dos juizos sobre a beleza.””” Naturalmente, Schiller — como Kant — nao se contenta com tal “yalidade pluralista", embora deduza 0 juizo de gosto mediante aquela extensdo do uso da razo pratica 4 esfera da contemplagao. 5 fendmenos naturais s4o ou bem cbservados ou bem contemplados por nés; mas apenas a contemplacdo diz respeito a beleza. A sensibi- lidade oferece 0 miltiplo; a razdo oferece a forma. A razéo une tepresentagdes para o conhecimento ou para a agdo. A razdo & tedrica e pratica. A liberdade dos fendmenos é 0 objeto do ajuiza- mento estético. A liberdade de uma coisa no fendmeno ¢ a sua autodeterminagio, na medida em que ela recai sobre os sentidos. © ajuizamento estético exclui toda referéncia a conformidade a fins objetiva & conformidade a regras, e se dirige meramente ao fend- meno; um fim e uma regra nunca podem aparecer. Uma forma aparece entao livremente se ela se explica a si mesma, nao sendo necessdrio que o entendimento reflexionante saia em busca de um fundamento fora dela. O moral & conforme & razio; 0 belo € similar & razdo.” Porque desoneradas de suas fungSes cognitivas, as faculdades de conhecimento jogam livremente umas com as outras na comuni- cago universal do prazer suscitado pela contemplacao do objeto. As sensagdes a serem admitidas como universalmente comuni- tdvels encontram-se sob condigdes subjetivas internas que tem de ser necessariamente comuns a todos os homens." Por isso 0 julzo de gosto é ao mesmo tempo empirico e a priori Friedrich Schiller - 19 Em primeiro lugar, ele é empirico, na medida em que algo é proferido acerca de um objeto dado pela experiéncia; contudo, ¢ a priori, na medida em que uma validade universal, uma comunicabilidade uni- versal do prazer & proferida sobre 0 objeto. A rigor, ajuizamos 0 objeto belo através de um sentimento de prazer; somente este se une inicicimente, no com a sensagdo dos sentidos, e sim com a reflexdo. © sentimento de prazer pressupde um estado do animo valido a priori. Tao logo estamos conscientes de nenhuma fonte material co nosso prazer, sua fonte tem de ser formal e, portanto, 0 prazer tern de ser universalmente comunicavel: n6s nos comportamos entao em face do objeto como homens em geral. A razao pela qual afirmamos que 0 objeto tem de aprazer universalmente esta presente antes de toda experiéncia; nés invocamos um sentido comum estético. Um tal sentido comum pode ser pressuposto e é pressuposto enquanto atribuimos aos outros uma faculdade de sentir semelhante.* Com Kant — e contra Kant —Schiller porém estende a dedugao do juizo de gosto aos préprios objetos. Em outras palavras, sua busca de um principio objetivo do gosto implica a demonstragaio de que existe algo nas coisas que nos coage a representa-las como zando 0 uso regulativo da razao pratica. Segundo Schiller, o que assim nos coage é a técnica do objeto, seu principio de individuagao. Embora em sua técnica o objeto remeta a sua conformidade a regras e a fins, a consideracao estética, sendo desinteressada e sem conceitos, no carece de tal remissdo. A mera forma da conformidade a fins, corresponde o movimento da busca de uma regra que permanece indeterminada. As faculdades de conhecimento jogam livremente umas com as outras. Nisto consiste o prazer da reflexao estética, cuja comunicacao universal € exigida pela contemplacao. A reflexdo 6 0 movimento pelo 20 - Fragmentos des Prelegbes. qual subsumimos um objeto sob o universal “beleza” — um universal que ndo se deixa determinar, mas que pode ser inces- santemente mostrado através de exemplos. Quando dizemos que algo ¢ belo, tomamos 0 objeto como um exemplo deste universal. Areflexio estética é, portanto, um movimento de exemplificagao. Na exigéncia de Kant, segundo a qual a natureza deve aparecer como arte e esta como natureza, Schiller encontrava a chave da fungao da técnica, ao mesmo tempo em que a voltava contra Kant, que admitia apenas um principio subjetivo para o gosto. A técnica do objeto se deixa perceber em sua conformi- dade a uma natureza que se manifesta como arte e a uma arte que se manifesta como natureza: ela mobiliza a totalidade das faculdades do Animo, liberando-as de suas fungGes cognitivas. Em sua conformidade técnica a natureza e a arte, o objeto como. que se pde diante de nds em sua liberdade porque nao é mais colhido por nés segundo um interesse teérico ou pratico. A observagto da conformidade a regras néo é natural em todos os ‘obletos ¢ detém a liberdade da natureza naqueles aos quais ela [a conformidade a regras] nao pertence. A conformidade a regras nao pode pois valer como o conceito fundamental universal da beleza, mas sim a liberdade, ou seja, a qualidade determinada pela natureza de uma coisa mesma. Kant diz: A arte é bela se ela se parece com a natureza, e vice-versa.” A beleza da arte resulta assim do duplo movimento pelo qual @ natureza do artista e a natureza da matéria desaparecem na obra para que a natureza do imitado apareca pela forca Friedrich Schiller = 27 da forma. Ao primado da forma corresponde assim o do estilo, “que nada mais é do que a suprema independéncia da apresen- tagdo perante todas as determinagées subjetiva e objetivamente contingentes. Pura objetividade da apresentacao é a esséncia do bom estilo: o principio supremo das artes." Pois se a natureza do artista sobressai face a natureza da matéria e a natureza do imitado, a obra resulta amaneirada, assim como se a natureza da matéria se impde sobre a do artista e a do imitado, resulta simplesmente rude. © estilo esta para a arte assim como a determinagao racional da vontade est para a moralidade: em ambos os casos, o fundamento de determinacao é formal.” “A natureza do imitado 6 0 que esperamos numa obra de arte; a matéria tem de perder-se na forma, a realidade no fendmeno. A forma da estétua nao pode perder nada através da natureza do mérmore."” A liberdade, , 60 “fundamento imediato da beleza”, mas a técnica é a sua “condicdo mediata": “O funda- mento da liberdade adjudicada ao objeto encontra-se pois nele mes- mo, embora a liberdade se encontre apenas na razéo. A bela natureza se deixa ajuizar do mesmo modo. A conformidade a arte serve apenas para tornar visivel a liberdade também em objetos naturais que devem ser ajuizados como belos: a lembranga de uma regra deve meramente nos fazer notar a inde- pendéncia de um objeto da mesma. (...) Toda formagao (Bildung) ou forma consiste na limitagdo e &, pois, de certo modo, uma restric#o surgida ou por uma tegra ou pelo acaso. Em todos os produtos da natureza que se referem a uma técnica encontramos a dependéncia Feciproca das partes em sua disposigo mitua. Beleza, porém, & 22 - Fragmentos das Prelesie. Iberdade no constrangimento, natureza na conformidade & arte; ela ‘std presa apenas a intuigdo imediata; a beleza natural néo se funda sobre um conceito; a técnica de um produto natural recai imediata- mente sobre os olhos.” 2. A exigéncia da comunicagio universal do prazer faz do gosto uma faculdade essencial para a promogao da sociabilidade da humanidade. Tal exigéncia favorece igualmente a disposi¢éo moral, ao mesmo tempo em que dignifica a sensibilidade. © gosto unifica as faculdades do animo superiores e inferiores; ele chama a razio filosofante de volta das reflexdes a intuigao; ele oferece humanidade, ou seja, unifica no homem o ser natural com a Inteligéncia e promove sua influéncia reciproca, de modo que a sensibi- lidade & enobrecida pela eticidade.”* Ao favorecer a Vel, 0 gosto tempera a natureza mista do homem. Para Sc! cardter 6 belo influncia reciproca" entre o racional e o sensi- um se nos infunde mais amor do que respeito (...). A sensibilidade tem também de aparecer como livre em ages morais, embora no 0 seja (..), Beleza é liberdade no fenémeno. Uma agao segundo a lei da razio & entdo bela se se afigura como se tivesse acontecido a partir da inclinagao e sem nenhuma coagao. As anotag6es publicadas por Michaelis versam sobre as relacbes entre o estético eo pratico apenas sob o ponto de vista Schiller - 23 da beleza moral (tema ja presente nas cartas a Kérner sobre Kallias) e do significado genérico do gosto para a formacao do homem. A rigor, este material nao registra um Unico passo sobre um problema de primeira grandeza na correspondéncia com 0 Principe de Augustenburg em 1793: o da importancia da dimensdo estética para a institucionalizagao politica da liberdade, tema central nas reflexdes de Schiller sobre o Estado e a sociedade, desenvolvidas sobretudo no ano seguinte em Sobre a educagao estética do homem. Ainda assim, as anotacdes de Michaelis atestam 0 quanto estes problemas estavam integrados uns com 0s outros no pensamento de Schiller, sugerindo que eram apresen- tados nas prelegdes segundo a idéia de um todo mais amplo, em cuja direcao convergiam. A referéncia a Kant 6, mais uma vez, decisiva aqui. Se, por um lado, Schiller buscava — com e contra Kant —estabelecer um critério objetivo para o belo, por outro, ele retomava a proble- matica da critica do gosto precisamente no ponto em que Kant a deixara nos dois ultimos paragrafos da primeira parte da Critica da faculdade do juizo. € justamente neste ponto que o problema do significado pratico-moral do gosto e da arte reaparece em sua figura final, pois a analogia entre o estético e 0 ético é estabele cida de tal modo que o belo € caracterizado como 0 simbolo do eticamente bom.” No entanto, ao tocar estes problemas, Kant chegava aos limites da tarefa que se fixara e assinalara claramente no Prefacio: 24-1 ymentor das eles Visto que a investigacao da faculdade do gosto, enquanto faculdade de Julzo estética, nao & aqui empreendida para a formagao e cultura do Rosto (pois esta seguird adiante como até agora o seu caminho, mesmo tom todas aquelas perquiriges), mas simplesmente com um propésito transcendental, assim me lisonjeio de pensar que ela sera também aj ada com indulgéncia a respeito da insuficiéncia daquele fim.” As reflexGes de Schiller sao uma tentativa de unir estes dols aspectos: ou seja, de combinar o “propésito transcendental que gulara a investigacao de Kant com o problema pratico-moral Inerente a formacao e a cultura do gosto, por ele apenas indicado @ como que deixada a sorte da experiéncia, No entanto, a tenta- tiva de Schiller nao se apresenta como um simples prolongamento do trabalho de Kant; ela é antes um esforco de superd-lo, mas com os préprios meios da filosofia transcendental. Numa carta a Bartholomaus Ludwig Fischenich, escrita a 11 de fevereiro de 1793, Schiller se refere com alguma ironia a atmosfera filoséfica de lena, dominantemente kantiana, e reitera 0 seu propdsito de publicar sua propria estética: Aqui, ouve-se ressoar em todas as ruas as palavras forma e conteddo; quase nao se pode mais dizer nada de novo na cétedra, a nao ser que ‘4 gente se proponha nao ser kantiano. (...) Minhas prelegdes sobre estética me introduziram com bastante profundidade nesta matéria complicada e me obrigaram a chegar a conhecer a teoria de Kant com tanta exatid’o quanto é preciso para ndo ser um mero repetidor. Estou efetivamente no caminho de refuté-lo e de atacar sua afirmagao de que nao é possivel um principio objetivo do gosto, pois estabe- lego um tal principio. (...) Estudei Kant e, além disso, ainda li os Friedrich Schillor - 25 outros estetas mais importantes. Este estudo continuo me conduziu a alguns resultados importantes, os quais, espero, resistirdo & prova da critica De inicio, queria publicar minhas novas idéias sobre 0 belo num dialogo filoséfico; porém, como meus planos se estenderam, quero dispor de mais tempo para isto e deixar minhas idéias germinarem completamente, Acorrespondéncia com o Principe de Augustenburg — que se deixa ler come a contraface do projeto daquele didlogo filoséfico, Kallias, dada a énfase na questdo da relevancia pratico-moral do belo e da arte — resultou numa excelente oportunidade para 0 desenvolvimento dos planos e das nascentes idéias de Scl é de se supor jue suas prelecdes de estética foram uma espécie de laboratério, uma ocasido adequada para que ele pudesse experimentar suas idéias, avaliando o seu alcance e precisao. A seqiiéncia das anotacées de Michaelis, em que pese 0 carter fragmentario de muitos passos, deixa ver o profundo acor: do de Schiller com algumas das principais teses de Kant. Este acordo é evidente ja nas primeiras segdes — ou seja, antes mes- mo de Schiller tratar diretamente de Kant. Motivos tais como 0 da diferenca entre o belo, o agradavel e o bom, do desinteresse exigido pela contemplagao do belo, da validade ut de gosto e da sociabilidade promovida pelo impulso de comunicacao irrestrita do prazer estético s4o aqui expressamente referidos comentados. No entanto, a preocupacio de Schiller como valor, a influéncia e autilidade do gosto para a formagao do homem jéo leva a mescla suas préprias idéias com os argumentos de Kant sobre a natureza do belo e do prazer por ele proporcionado. 26- ‘nagmentos és Prelegies. Ao mesmo tempo, a seqiiéncia das anotacdes de Michaelis indica om clareza a divergéncia central entre ambos, anunciada jd no titulo da seco "Sobre as condicées objetivas da beleza”. A secao seguinte — “Relacdo do belo com a razao" — se deixa ler como uma subdivisdo daquela. Nelas sao tratados alguns dos motivos centrals sobre os quais Schiller discorrera detalhadamente em ua correspondéncia com Kérner a propdsito de Kallias. Estes motivos — especialmente o conceito de técnica, o problema da Imltag&o artistica e os seus meios, bem como o nexo entre as feras do estético e da razao pratica — giram em torno da tese de Schiller, segundo a qual a beleza é a liberdade no fendmeno. Para tornd-los mais claros, longas passagens destas cartas de Schiller a Korner foram citadas em notas. Observou-se o mesmo procedimento a propdsito de outros trechos das prelegdes, nos quals aparecem o problema da beleza moral e o da tensao entre subjetivismo e objetivismo na concepgao do belo. No entanto, se se quer avaliar a dimensao do propésito — @ mesmo o éxito — de Schiller em sua tentativa de refutar Kant com os melos da filosofia transcendental e desenvolver a critica do gosto no plano de sua relevancia pratico-moral, é indispensavel 40 menos a leltura das cartas a Korner sobre Kallias e ao Principe de Augustenburg. Embora estas prelegées sejam um testemunho Indireto dos esforcos de Schiller nesse sentido, poderao servir de Introdug&o A impressionante série de escritos estéticos produzida @ partir do inverno de 1792-93 — ou seja, justo desde o momento mM que Schiller fechara provisoriamente sua oficina poética para abrir 0 que ele mesmo chamara de o seu “atelié filosofico” Friedrich Schiller Kallias ou Sobre a beleza A correspondéncia entre Schiller e Korner, janeiro-fevereiro de 1793 Tradugio e introdugéo Ricardo Barbosa Schiller ou sobre a beleza Recerde BAR Boss adr, A beleca deve pois ser vista como cidade do ‘ertencendo ao primeire por nacimento ao segundo por copies elt reebe ma exittnca na nature serstuel e ‘bitin sex divcitedecidadania no mundo da raat, "Sobre grasa edignidade” Como se Ié na carta de 25 de janeiro de 1793, Schiller ndo lades de sua tentativa de — com e contra Kant — estabelecer ao belo. O cariter objetivo desse estd em jogo é determinaszo 1 & pretensio de validade pelo objeto como uma pretensio universal ¢ dria. Mais do que uma dedugio do jutzo de gosto, em Kant, trata-se de uma dedugo da beleza como uma idade objetiva”. Es c cia filosdfica pré-critico, confere as suas idéias uma entre as principais teorias concorrentes do pois enquanto critica o subjetivismo sensivel de ¢ dos sensualista Introdusao 8 verdade das teorias rivais no interior de uma concepgio sen- sivel-objetiva da beleza, Embora a démarche de Schiller ndo apresente a mesma sistematicidade nem 0 empenho arquitetdnico de Kant, & possivel dividi-la em dois momentos: o da determinagao subjetiva do belo, 20 qual corresponde a conhecida tese se- gundo a qual a beleza é a liberdade no fendrreno, € 0 da determinagio objetiva do belo, centrada no conceito de téc- do mediata da beleza. Comegarei re- nica como con capitulando brevernente os passos da argumentayao de Schil- ler, cujo resultado é condensado naquela tese (1):em seguida, passarei ao problema da técnica (2). A solugio apresentada por Schiller para esse problema incide de tal modo sobre a determinagio da especificidade do belo artistico, que a dedu- cao de um critério objetivo do belo resulta numa espécie de dedugio da obra de arte, cujo ponto alto ¢ 0 conceito de estilo como a pura objetividade da apresentagio (3). Por fim, gos- taria 20 menos de indicar como a problemdtica geral de Kallias poderia ser reformulada (4). (1) A beleza como liberdade no fenimeno. A rario tebrica ea razio pritica — cujos dominios nao se confindem, pois estio submetidos a legislagées distintas — pocem contudo aplicar suas formas tanto 20 que existe por natureza quanto a0 que existe por liberdade. Quando a razio pritica aplica sua forma ao que existe por natureza, ela proced: do mesmo modo que a razao teérica a0 aplicar sua forma a0 que existe por liberdade: “empresta ao objeto (regulativamente, ¢ no constitutivamente, como no ajuizamento moral) uma facul- dade de determinar a si mesmo, uma vontade, = 0 considera em seguida sob a forma dessa vontade dele (¢ nio da vontade dela, pois sendo 0 julzo tornar-se-ia um juizo rroral). .. Pois bem, se na consideragéo de um ser natural a razo prética descobre que ele € determinado por si mesmo, entio ela lhe atribui (como a razio tedrica, no mesmo caso, concede simi- laridade @ razdo a uma intuigio) similaridads @ liberdade [Freibeitsibnlichkeit\ ou, numa palavea, liberdade. Mas por- que essa liberdade é apenas emprestada pela razio a0 objeto, como nada pode ser livre a néo sero supra-sensivel, e a liberdade ‘mesma como tal nunca pode cair sobre os sentidos — numa palavra — como se trata aqui apenas de que um objeto Apareca como livre, e nao que o seja efetivamente: entio essa analogia de um objeto com a forma da razio pritica nao é berdade de fato, ¢ sim meramente liberdade no fendmeno, ‘autonomia no fendmeno. A beleza encontra-se pois na esfera da razio prética; mas, como vimos, a experiéncia estética mobiliza a razo pritica enquanto a desonera dos imperativos da agio, para a mera contemplagdo. (ages morais), segundo a forma da vontade pura, é moral; yerando-a Jm ajuizamento de efeitos livres um ajuizamento de efeitos nao-livres, segundo a forma da vontade pura, é estético, ... 0 acordo de uma acio com a forma da vontade pura € a eticidade. A analogia de um fend- meno com a forma da vontade pura ou da liberdade &a beleza (em sua acepgo mais ampla). A beleza nfo ¢ pois outra coisa senao liberdade no fenémeno."32 Contra Kant, Schiller cleva a estética & esfera da razio mediante a introdugéo de um uso regulative para a razio pritica. Em outras palavras, a consideragio estética dos fend- menos é precisamente 0 que o uso regulativo da razio prética toma possivel. Nao creio que Schiller tenha confundido os imites entre as esferas moral ¢ estética, nem submetido esta Aquela, ¢ sim mostrado de modo convincente, segundo os ncios de que dispunha, que as esferas da agio e da contem- plagio sio, por assim dizer, os dois modos da liberdade. (2) A técnica como condigao objetiva da beleza, Em sua res- posta, Kérner argumenta que o prinefpio de Schiller é ainda meramente subjetivo”, pois como a idéia de autonomia, na qual cle se funda, “é acrescentada em pensamento 20 fenmeno dado”, a pergunta principal permanece pendente: “se nao posstvel conhecer nor objetos as condig6es sobre as quais se Schiller ou sobre a beleza Intodugso baseia esse acrescentar em pensamento a autonomia”.' Nas cartas seguintes, Schiller admite a objegio de Kérner, formu- Jando em duas etapas 0 problema que resta a ser resolvido: “Tenho pois duas coisas a mostrar: em primeiro lugar, que aquilo de objetivo nas coisas, pelo que elas sio postas no estado de aparecer como livres, é justo também aquilo que, se esté presente, Ihes confere beleza. ... Em segundo lugar, cabe demonstrat que a liberdade no fendmeno traz necessaria- mente consigo um tal efeito sobre a faculdade de sentir, um efeito que é inteiramente igual iquele que encontramos liga- ”34Vejamos como Schiller resolve do a representagio do 6 primeiro problema, jf que ele mesmo observa que no poderd tratar do segundo. Nossa representagio da liberdade no objeto “tem de ser necesséria, pois nosso juizo do belo contém necessidade ¢ exige 0 assentimento de qualquer um. Pois bem, para isso é exigido que o objeto mesmo, median- te sua propriedade objetiva, nos convide, ou antes nos obri- gue a notar nele a qualidade de nao-ser-determinado-do-cx- 35 terio Como todo ser determinado, ele hé de ter 0 que Ihe determina. Posto que a faculdade de conhecimento que bus- cao determinante para o decerminado é 0 entendimento, ele nfo pode estar fora de agio. No entanto, o entendimento € concernido apenas pela forma do objeto, buscando a regra que lhe corresponde. Como o ajuizamento é estéticoo— eno légico —, 0 entendimento nio se aplica ao conhecimento dessa regra, “pois 0 conhecimento da regra destruiria toda aparéncia da liberdade, como ¢ realmente o caso em toda estrita conformidade a regras”.2°E pois suficiente e necessé- ‘Uma forma que tio que a regra permanega indererminad indica uma regra (que se deixa tratar segundo uma regra) chama-se conforme a arte ou #éenica. Apenas a forma técnica de um objeto provoca o entendimento a procurar o funda- mento para a conseqiiéncia eo determinante para o determi- nado; e na medida pois que uma tal forma desperta a necessi- dade de perguntar por um fundamento da determinasio, assim a negagio do ser-determinado-do-esterior leva aqui de modo inteiramente necessdrio & representagio do ser-de- terminado-do-interior ou da liberdade. A liberdade 38 pode pois ser sensivelmente aprerentada com 0 auxilio da técnica ... Disto resulta pois uma segunda condicéo fundamental do belo, sem a qual a primeira seria meramente um conceito vaio. Liberdade no fendmeno € a rigor o fundamento da beleza, mas a réenica é a condigio necesséria da nossa repre- sentagao da liberdade. Se unirmos ambas as condigées funda- mentais da beleza ¢ da representagao da beleza, segue-se disto a seguinte explicagio: Beleza & natureza na conformidade & arte."37 E preciso elucidar o que Schiller entende aqui por natureza, pois trata-se de uma concepgio estérica de nature- za, Num giro um tanto surpreendente, ele adverte: “A expresso natureza me & mais cara que liberdade porque 20 mesmo tempo designa o campo do sensivel sobre © qual 0 belo se limita e, ao lado do conceito da liberdade, indica sua esfera no mundo senstvel. Diante da técnica, a natureea é 0 que € por si mesma; arte & 0 que é através de uma regra. Natureza na conformidade 2 arte € 0 que dé a regra a si mesma — 0 que é através de sua prépria regra. (Liberdade tna regra, regra na liberdade.) Se digo: a natureza da coisa: a visa segue sua natureza, se determina atravis de sua natureza: jm oponho aqui a natureza a tudo aquilo que € diferente do objeto, a0 que no mesmo € obscrvado como meramente ¢ pode ser desconsiderado sem suprimir a0 mesmo tampo tua esséncia.”3* Em sua acepgio est da coita & a sua individualidade, a “pessoa da coisa’. Em ourtus palavras, ela & 0 principio de individuagio estético, © “prinefpio interno da existéncia numa coisa, considerado ‘49 mesmo tempo como fundamento de sua forma; a neces- sidade interna da forma. A forma tem de ser 20 mesmo tempo autodeterminante ¢ aurodeterminada no sentido tem de haver af néo mera autonomia, ¢ sim 939 a nacureza heautonomi Schiler ou sobre a beleza Introdugao neordin- ‘A natureza na conformidade & arte é“a pura cia da esséncia interna com a forma, uma regra que é ae mesmo tempo dada e seguida pela coisa mesma” 4 Enquanto anature- za (em sentido fisico) nos apresenta antes de tudo corpos dotados de uma massa espectfica e submetidos 8 lei usiversal da gravidade, a natureza (em sentido estético) nos oferece esses mesmos corpos numa relagio especifica entre as suas massas ¢ as suas formas. A beleza, dird Schiller, se manifesta precisamente quando a forma triunfa sobre a massa ea gravi- dade. “A forca da gravidade esté para a forga viva do passaro aproximadamente do mesmo modo que a inclinagic— em determinagées puras da vontade — esta para a razio legisla- dora.”4! A heautonomia é uma propriedade rigorosmente que subsisce no objeto mesmo quando abs:raimos objetiva, do sujeito, mas nfo se confunde com um “em que € subjetivamente mediatizada. A beleza é pois uma s{nte- se das determinagdes objetiva e subjetiva. “A razéc é sem diivida necesséria para fazer um tal uso da qualidade objetiva das coisas, como € 0 caso em se tratando do belo. Mas esse uso subjetivo nao suprime a objetividade do fundamento ... erdade adjudicada ao objeto encontra- © fundamento se pois nele mesmo, embora.a liberdade se encontre apenas na razio,"4? Enquanto a liberdade ¢ 0 “fundamento imediato” da beleza, a téenica € sua “condigio mediata": “A técnica conttibui para a beleza apenas na medida em que seve para suscitar a representagio da liberdade.”® Vejamos agora este problema na esfera espectfica da arte. (3) Estilo e maneira. Um objeto é “liveemente apresentado” imaginasio como determinado “quando & posto diante d por si mesmo”. 40 belo artistico consiste natureza num medium materialmente distinto, diz Schiller, “é a semelhanga formal do materialmeme dife- rente.”4 Que se pense, por exemplo, na relagéo entreo mér- more ¢ 0 cavalo nele esculpido. A natureza do objeto é pois representada na arte no em sua personalidade ¢ individualidade, e sim através de um medium que, por sua vez, a) tem sua prépria individualidade e nature 23, b) depende do artista, que deve ser considerado como uma natureza propria, ... Estio pois aqui trés naturezas que lutam ‘umas com as outras. A natureza da coisa @ apresentar, a natu- reza do materi da apresentagio ¢ a natureza do artista, que dove fazer com que aquelas duas concordem.46 Na luta entre essas trés naturezas deve prevalecer a natu- reza do imitado, ou seja, sua autonomi do-do-interior seu ser-determina- ivremente apresentado € pois apenas 0 ob- jeto cuja natureza néo foi determinada a partir de fora pelo artista ou pelo material. Como a matéria pode receber apenas a forma do objeto imicado, é necessério que a forma submeta inteiramente a matéria. Do contrério, a liberdade da apresen- tagio é perdida e, com ela, a liberdade na aparéncia, ou seja, abeleza. Mediante um simples e util exemplo, Schiller carac- teriza as trés situages tipicas posstveis no embate entre a natureza do imitado, 0 material ¢ o artista, introduzindo assim dois conceitos fundamentais para 0 ajuizamento obje- tivo do belo artistico: os conccitos de maneira e de estilo Se num desenho hd um tinico trago que torna conheciveis a pena ou 0 lipis, o papel ou a chapa de cobre,o pincel ou a mio que 0 realizou, entio ele & rigido ou pesado; se ncle & visivel 0 bout peculiar do artista, a natureza do artista, entéo ele & amancinido, Se fere nomeadamente a mobilidade de um miéis- culo (numa gravura em cobre) pela rigider do metal ou pela mito pesads do artis determinada pela id entio a apresentagio ¢ fei, pois nfo foi .€ sim pelo medium. .. O oposto da ‘maneira & 0 estilo, que nada mais é do que a suprema inde- pendéncia da apresentagio perante todas as determinacbes subjetiva eobjetivamente contingentes.47 O estilo é pois a mais alta determinagio do belo artistico, tna medida em que encarna a beleza como uma qualidade Schiler ou sobre abeleza Introducso objetiva. Se a busca de um critério objetivo do beloimplica a determinacio de um fundamento in re; se essa determinagio pode ser concebida como uma dedugio da obra de arte, como uma resposta & pergunta sobre o direito com que um objeto artistico ergue para si uma pretensio de validade esté- tica tal que deva esperar o assentimento de todos, entdo essa pretensio de validade estética universal ¢ necessétia ndo é outra coisa senio uma pretensio a rigorosa objetividade do estilo. wra objetividade da apresentasio éa esséncia do bom est o esc para a maneira principio supremo das artes, “O est como 0 modo de agir a partir de pris ‘um modo de agir 2 partir de maximas empiricas iprincipios vos). O estilo é uma completa elevacao sobre 0 conti jos formak esté para gente rumo ao universal ¢ necessirio.” O grande artista, po- derse-ia entéo dizer, nos mostra 0 objeco (sua apresentagZo tem objetividade pura), 0 mediocre mostra-se a si mesmo (sua apresentagio tem subjetividade), 0 mau sua matétia (a apre- sentacio é determinada pela naturera do medium ¢ pelos limites do artista) 48 (4) Beleza: uma cidada de dois mundos. Essa guinada do subjetivo 20 objetivo, saudada por Hegel como am passo decisivo para a constituigio da estética, rompe assim os limi- tes de uma erftica do gosto rumo a uma doutrina do belo, na qual Schiller viu o espaso para uma “nova teoria daarte”.A opinigo dominante entre os comentadores é ade que Schiller fracassou em sua tentativa de uma dedugio objetiva do belo, do gosto ¢ da arte.*° No entanto, mais interessante que a pergunta sobre o sucesso ow insucesso de Schiller é— como creio—a possibilidade de uma teflexio sobre a refermulagio dlo problema que lhe subjaz. Com e contra o universalismo estético subjetivo de Kant, o que esté em jogo no esforgo de Schiller pata oferecer tum principio objetivo do belo e do gosto ¢ o problema da alidade intersubjetiva — universal e necessétia — aspirada tanto pelo juizo como também pelo objeto. O problema da fundamentacio da estética se transforma quando se transita do ambito no qual Kant e Schiller permaneceram a esfera da comunicacio, ou seja, da anilise das condigbes universais ¢ necessérias do conhecimento possivel & andlise das condigées universais e necessérias do entendimento possivel. Se tomar- mos 05 jufzos estéticos como atos de fala cujas pretensdes de validade representam uma tomada de posigao perante as pre- tenses de validade estética erguidas pelas obras de arte, 0 ino da investigacio se desloca: jé no mais se trata (como para Kant) de uma “analitica da faculdade de juizo estética”, nem da busca de um prinefpio objetivo para o belo (como para Schiller), e sim de uma analise pragmitico-lingtifstica da comunicagio estética. Mas estaria essa transformacio prag- nalitica da faculdade de juizo estéti- ca” em condigées de reformular a problemética kantiana da dedugio do juizo de gosto? Creio que sim — e por um argumento andlogo ao de Kant. Pois se Kant entende que essa pretensio se funda meramente sobre as condigées formais requeridas para a possibilidade de um conhecimento em ge- I, condigées que ele explicita recorrendo & idéia de um rentido comum”, penso que a pretensio ao assentimento de todos radica-se nas condigdes formais, universais ¢ necessé- rins, para a produgio de um acordo em geral, condigées a partir das quais 0 gosto se deixa ver como uma espécie de sensus communis constivuido pelo uso da linguagem voltado para o entendimento. Assim tomado, 0 sensus communis te- mete & idéia reguladora de uma comunidade ilimitada de comunicagio, entendida como uma comunidade de leitores, ou obras erguem sua pretensio de validade estética com vistas a tum reconhecimento universal. A pragmatica da linguagem ¢ uma teoria normativa so- bre as condigées universais ¢ necessérias do entendimento pomvel, Se se admite que 0 consenso habita a linguagem intes, espectadores € autores, perante a qual também as Schiller ou sobre a beleza Introdusae como 0 seu selos, cabe A pragmtica explicitar as condighes fem que isso deve ocorrer, ainda que nao ocotra. A pretensio ao assentimento de todos erguida por uma pretensio de vali- dade & verdade, & corregio normativa ou a beleza possui um caritet incondicional. Verdade, cortegao normativa e beleza so pretensées de validade “incondicionais” pois, embora fandamentadas por justficagées, transcendem-nas na medi- ‘da mesma em que as justificagGes apresentadas em cada caso para o que se pretende como verdadeiro, correto ou belo sio ci ouda iveis em nome da verdade, da correcio normati beleza. Verdade, corresio normativa ¢ beleza sio poi que se impdem com a forga de um “imperative”. “Idéias” porque so objeto de uma aproxim iveis ¢ inervados a partir de dentro pela finita pelos discur- 0s reais, sempre dialética de identidade e nao-identidade de validade e justifi cagio; “imperatives” porque néo sio simples conceitos empi ricos, mas principios constitutivos e regulativos do uso da Jinguagem voltado para o entendimento. E nesse sentido que a analogia feita por Schiller entre 0 estilo como o principio supremo das artes ¢ a Ici moral como o principio supremo da aio dé a dimensio exata do belo como um imperative. “O belo nao é um conceito da experiéncia, mas antes um im- perativo. El & certamente objetivo, mas apenas como uma tarefa necesséria para nature se tisfeita...E algo inteiramente como belo, mas isso deveria ser o Embora sempre enraizados em contextos particulares, as obras de arte ¢ os juizas sobre elas transcendem seus contex- tos de origem, dirigindo-se a um piiblico ideal — ou a uma comunidade de comunicas de dois mundos, & porque de fato recebe sua existéncia no mbora s6 obrenha seu diteito de cidadania ideal. Se a beleza & uma cidada quando sua pretensio ao reconhecimento é referida a uma comunidade de comunicagio ideal como ¢ horizonte de sua validade. Friedrich Schiller A EDUCAGAO ESTETICA DO HOMEM numa série de cartas Tradugao Roberto Schwarz e Marcio Suzuki TLUMI/URAS O belo como imperativo Msrcio SU2vkK 1} “0 gbnlo em geral é potico. Onde 0 sénio atuow — atuou poetcamente. O “A revolugdo no mundo filosdfico abaiou 0 fundamento so- bre o qual a estétca estava assentada, e seu sistema anterior, se é que se pode dar- essas palavras que, numa carta ao principe Augustenbu ler descreve o estado de coisas em que se encontra a esttica des- de que seus alicerces foram estremecidas pela critica kantiana, Depois de ter provocado tamanka reviravolta na filasofia tebri- cae na filosofia pritica, a “‘revolugdo copernicana” chega en- Novalis, Palen. Fragmenios Didogas Monéiogo. Sto Paulo, Tuminuras, 1988, Trad. apres. ¢ potas d= Rubens Rodrigues Torres Filho, p 124 fim ao dominio estético: “Como nao preciso dizer-Ihe, principe, em sua Critica do Juizo Estético Kant jd comecou a aplicar os principios da filosofia critica também ao gosto e, se ndo forne- ceu, pelo menos preparou os fundamentos para uma nova teoria da arte” Essas duas passagens, extraidas de uma carta de Schiller ao ‘seu “mecenas” datada de 9 de fevereiro de 1793, dao uma idéia precisa de suas preocupacdes nessa época. Certamente elogiosas ‘no que concerne ao desempenho da critica kantiana na estética, se lidas com atengéo — sobretudo a segunda —, elas mostram, porém, que a filosofia kantiana para Schiller parece carecer de wm acabamento: a Critica do Juizo, que abalara toda a estética de até entéo, nao conseguira elevd-la & condiedo de doutrina do gosto. A estética kantiana parece ter permanecido uma mera “‘pro- pedéutica”” — @ medida que “‘preparou os fundamentos” — @ teoria da arte e, concordando neste ponto com toda a filosofia pés-kantiana, Schiller propée-se como tarefa completar o siste- ma entrevisto por Kant: “‘Com efeito, eu jamais teria tido a co- ragem de tentar solucionar o problema deixado pela estética kan- tiana, se a prdpria filosofia de Kant ndo me proporcionasse os ‘meios para isso. Essa filosofia fecunda, que com tanta fregilén- cia tem de repetir que ela apenas demole e nada constréi, fornece as pedras fundamentais sdlidas para erigir também um sistema da estética, 0 fato de que ndo the tenha proporcionado também esse mérito eu sé posso explicar como uma idéia premeditada de ‘seu autor. Longe de considerar-me aquele a quem isso esteja re- servado, quero apenas experimentar até onde me leva a trilha des- coberta. Se ndo me levar diretamente a meta, ainda assim no estd de todo perdida a viagem pela qual se busca a verdade”4 E nesta linha de buscar os resultados tiltimos que desponta- vam jé no horizonte da critica kantiana que se inserem os ensaios estéticos de Schiller. Num destes, em forma de epistolas a seu ami- g0 Korner, denominado Kallias ou sobre a Beleza (que foi escri- fo exatamente na mesma época que as Cartas a Augusienburg), 3 Cartas @ Augustenburg, ed. cit. p. 34 Idem, p. 35. Numa carta a F. H. Jacobi, de 29/06/1795, Schiller é mais incisi- vo na diferenca que o separa de Kant: “Ali onde eu apenas destruo e procedo sou rigorosamente kantiano; ape- onde eu construo, encontro-me em oposicao a Kant” © Intuito é justamente mostrar aquilo que falta para a completu- de do sistema, a saber, uma deducdo objetiva do jutzo de gos- 10.5 Sem essa fundamentagao objetiva, os jutzos acerca do belo estdo condenados a uma validade meramente empirica e subjeti- va, condiedo a que ndo se furtaram nenhuma das teorias anterio- res @ de Kant e, a bem da verdade, nem mesmo esta. De resto, esse texto Schiller confessa a seu amigo Kérner sua propria im- ‘poténcia em solucionar 0 problema, sem recorrer a um conceito da experiéncia.* Ao buscar um fundamento objetivo para o belo, a estética de Schiller é aniniada por esse desejo de ver “0 mais eficaz de todos os mébeis, a arte formadora de almas, elevado & condi¢do de uma ciéncia filosdfica”.” Para tanto, essa nova disciplina nao pode ser construida sobre um mero jogo subjetivo entre imagi- nacao e entendimento — jogo mediante o qual Kant deduzia 0 Juizo de gosto na Critica do Juizo —, mas precisa, tanto quanto possivel, ter uma pretensao @ validade universal determinada na propria razéo: “Assim como a verdade e 0 direito, também a be- leza, parece-me, tem de residir em fundamentos eternos, e as leis origindrias da razdo tm de ser também as leis do gosto”.® To- do o empenho de Schiller serd, por conseguinte, o de mostrar co- ‘mo ocorre essa amarragdo do jutzo estético aos principios da ra- 2d0 — razio, alids, ndo em seu uso tedrico, mas em seu uso mais sublime, 0 prdtico. Com efeito, é unicamente sob a jurisdigdo da razdo prdtica que podem ser dirimidas as controvérsias em que se viram enredados todos aqueles que algum dia refletiram sobre a questio estética. Numa carta a K6rner de 25 de outubro de 1794, Schiller afirma estar convencido “‘de que todas as divergéncias surgidas entre nds e outros como nds, que de resto somos tao con- cordes no sentimento e nos principios, provém de que estabele- cemos um conceito empirico de beleza, 0 qual todavia ndo exis- + Kallias ou da Beleza. Cartas a Gottfried Kémer. tn: Sdmiliche Werke. Muni- que, Carl Hanser, 7! ed., p. 394. Organizado por Gerhard Fricke e Herbert G. Goprert. 52 volume: Narrativase escitos tebricos. (Todos os ensaios de Schiller serdo citados pela paginagao dessa ediqao, excegdo feta & Educardo Estetica, que segue a paginacdo do presente volume.) 6 Kallis, p. 394, 7 Cartas a Augustenburg, p. 34 * bidem, p. 35, te. Tinhamos necessariamente de encontrar todas as nossas re- presentacées /do belo/ em conflito com a experiéneia, porque a experiéncia ndo expde absolutamente a Idéia do belo, ou antes, porque aquilo que se sente comumente como belo ndo é absolu- tamente 0 belo. O belo ndo é um conceito de experiéncia, mas 10, mas apenas como uma tarefa necesséria para a natureza r periéncia real, porém, ela permanece comumente inacabada, e por ‘mais belo que um objeto seja, 0 entendimento antedpador o tor- na um objeto perfeito ou o sentido antecipador 0 torna um obje- to meramente agradével. E algo inteiramente subjativo se senti- ‘mos 0 belo como belo, mas deveria ser algo objetv. Como se pode notar por esse trecho, Schiller parece nao ver ‘outra alternativa: uma vez que para fundamentar objetivamente (0 juizo de gosto é impossivel dispor de um critério do tipo das ciéncias mateméticas ou fisico-matematicas, 0 tinico recurso é ape- lar para 0 mesmo procedimento utilizado por Kant na parte pra- tica de sua filosofia. Ou seja, 0 critério de objetividade do belo — se é que hd algum — néo pode ser encontrado na ordem do ser (que no caso da estética é sempre particular, emptrico), mas na ordem de um dever ser, que confere ao jutzo estético o cardter de um imperativo. Assim, se nd le objeto seja de fato belo, e ainda que nenhu do efetivamente o seja, isso ndo exclui a po: do julzo de gosto puro, vélido universalmente e a priori para to- dos, e ndo apenas de forma empirica e subjetiva paraeste ou aque- le individuo. Tal como na moral, na estética importa descobrir “nao os fundamentos daquilo que ocotre, mas leis para aquilo que deve ocorrer, mesmo que jamais ocorra”.!? Seguindo 0 mesmo plano tragado por Kant na investigagdo do imperativo, Schiller poderd afirmar que o belo eu 0 juizo so- bre o belo nunca é inteiramente puro, & medida que na experién- 1a con- jado de espirito momentaneo. Dessa forma, 0 equi necessério @ apreciagao “pura” do bel, “esse equi- brio permanece sempre apenas uma Idéia, que jamais pode ser plenamente alcancada pela realidade. Nesta restard sempre o pre- 9 In: Schillers Briefe ber die dsthetische Erziehung, p- 109. © Kant, Fundamentagdo da Metafisia dos Costumes, 863, 10 dominio de um elemento sobre 0 outro, € 0 mais alto que a expe- riéncia pode atingir é uma variagio entre os dois principios /for- ‘mal e material/, em que ora domine a forma e ora a realidade, A beleca na Idéia, portanto, ¢ eternamente una e fvel, pois po- de existir um tinico equilfbrio; a beleza na experiéncia, contudo, seré eternamente dupla, pois na variagao 0 equilibrio poderd ser transgredido por uma dupla maneira, para aquém e para além 0 belo tende ora para uma “‘beleza de fu- ” ora para uma “bele: porém, a beleza é uma s6, indivisa (da mesma maneira que, para Kant, hd varias formas de imperativo, mas uma tinica forma pu- ra de obediéncia @ lei, a do imperativo categorico). Entende-se entéio por que, para fugir do cardter em aos jutzos estéticos, Schiller recorre ao critério de validade obje- tiva proporcionado pelo dever ser (sollen). ‘Contudo, espethando-se unicamente no modelo de validade do imperativo categsrica, a nova doutrina estética a ser construida so- bre prinefpios kantianos correria o risco de desabar num mero for ‘malismo. Com efeito, Schiller mostrard que, se de um lado a estéti- ca apéia-se no modelo da moral, de outro — e todo o seu esforvo ‘argumentativo nos ensaios “filoséficos” ini neste sentido — essa mes- ‘ma estética corrigiré a parcialidade da visao moral contida no im- ‘perativo, dando-lhe um contetido e possibilitando sua aplicagaio no ‘mundo. Decerto, é preciso levar adiante a empreitada erttica, mas despojando-a do aspecto formal que assumiu na filosofia pritica: "A pureza rigorosa e a forma escolistica em que sdo apresentadas sposigdes kantianas emprestam-Ihes uma dureza e uma conteiido e, despidas desse yéu, aparecem como antigas exigéncias da raza comum"”.!? Para Schiller, importa acima de tudo ter cuidado na hora de interpretar 0 mandamento capital da moral kantiana: “‘Na fi- losofia moral kantiana a idéia da dever é apresentada com uma dureza que afugenta toda graca e poderia facilmente induzir um entendimento fraco a buscar a perfeido moral pela via de um ascetismo higubre e mondstico”’.!? Mas foi também esse apego 4 Carta XVI, p. 87, 2 Cartas @ Augustenburg, p. 37 13 Sobre Graga e Dignidade, ed. ct. p. 465. u irrestrito a letra da lei moral que levou os seguidores de Kant a ndo enxergar o verdadeiro espirito de sua filosofia: “‘Observei amitide que verdades filosdficas tém de ser encontradas em uma forma, e aplicadas e difundidas em outra. A beieza de um edifi- ‘cio ndo se torna vistvel antes que se retirem as apetrechos do pe- dreiro e do carpinteiro, e que se derrubem os andaimes por trds dos quais estd erigido. Quase todos os discipulos de Kant, po- rém, permitem que se lhes arrebate antes 0 espirito que a maqui- naria de seu sistema e, precisamente por isso, poem a luz que se parecem mais com 0 trabathador que com 0 mestre-de-obras”.!4 Trata-se, portanto, de nio perder de vista 0 “‘esptrito” do sistema que se quer construir, evitando a unilateralidade de uma “moral demoniaca’”’ fundada exclusivamente no imperativo ca- tegdrico, no ascetismo de uma “‘vontade santa” que obedeceria incondicionalmente @ razdo. Ora, a parcialidade dessa leitura dos chamados “‘rigoristas éticos”’ consiste justamente em desconhe- cer 0 fato de que a natureza humana é “mista”, ou seja, que é dotada nao apenas de razéo, mas de razdo e sensibilidade. Sendo assim, permanecerd sempre uma empresa inudtil a de querer ele- var moralmente — isto é, racionalmente — o homem sem, ao mes- ‘mo tempo, cultivar sua sensibilidade. E mediante a cultura ou educagdo estética, quando se encon- tra no “estado de jogo” contemplando o belo, que o homem po- derd desenvolver-se plenamente, tanto em suas capacidades inte- lectuais quanto sensiveis, Esse é, alids, 0 sentido da passagem mais famosa das cartas sobre A Educacao Estética do Homem, a qual, ‘segundo o prdprio Schiller, “‘suportard o edificio inteiro da arte estética e da bem mais dificultosa arte de viver”’ “Pois, para di- zer tudo de vez, 0 homem joga somente quando & homem no ple- no sentido da palavra, e somente ¢ homem pleno quando jo- za”! No “impulso hidico”’, razio e sensibilidade atuam jun- 1as endo se pode mais falar da tirania de uma sobre a outra, Atra- vés do belo, 0 homem & como que recriado em todas as suas M4 Cartas a Augustenburg, p. 37. 45 No sentido do ‘“daimon" grego. A expressio é de Schiller forma antiga” chamado Moral do Dever e Moral do Amer, dois versos se diz: “E nada mais desprezivel que a moral dos der ‘um povo, ao qual ainda falta a humanidade”’. Carta XV, p. 84 1m “poema em ‘cujos itimos nios,/Na boca 2 potencialidades e recupera sua liberdade tanto em face das deter- ‘minagées do sentido quanto em face das determinacées da razdo. Pode-se afirmar, entéo, que essa “‘disposigao hidica” suscitada pelo belo é um estado de liberdade para o homem. Contudo, deve-se notar, a “‘liberdade estética”” é uma liber- dade sui generis e ndo deve ser confundida de modo algum com liberdade ou autonomia encontrada na razdo prética: “Para evi- tar mal-entendidos, lembro que a liberdade de que falo nito é aque- Ia encontrada necessariamente no homem enquanto inteligéncia, Uberdade esta que ndo the pode ser dada nem tomada; falo da- quela que se funda em sua natureza mista. Quando age exclusi- vamente pela razdo, 0 homem prova uma liberdade da primeira espécie; quando age racionalmente nos limites da matéria e ma- terialmente, sob leis da razdo, prova uma liberdade da segunda espécie. A segunda pode ser explicada somente por uma possibi- lidade natural da primeira’’.!” ‘No impulso hidico, 0 homem ndo desfruta da liberdade mo- ral stricto sensu, mas de uma liberdade em meio ao mundo senst- vel. Isso acarreta uma consegiténcia importante: para Schiller, sempre que contempla um objeto belo, 0 homem estd ao mesmo; tempo projetando simbolicamente sua prépria liberdade nesse ob- Jeto. No jutzo estético, a raziio empresta a sua autonomia ao mun- ido sensivel e é por isso que se pode afirmar que o belo € “liber- dade no fenémeno”.!* Visto dessa perspectiva, 0 homem em sentido pleno — 0 ho- mem hidico — nao busca apenas retirar-se @ “‘clausura’? de sua ‘moralidade, mas empenha-se exatamente em dar vida as coisas que o cercam, em “libertar’’ os objetos que habitam sua sensibi- lidade, tornando posstvel um cultivo cada vez maior desta. O ho- ‘mem assim destinado a aperfeicoar a realidade — seja ele o gé- nio que cria obras de arte ou o individuo de gosto que contempla 0 belo — é chamado por Schiller de nobre: “Onde quer que 0 encontremos, este tratamento espirituoso e esteticamente livre da realidade comum 00 sinal de uma alma nobte. Deve ser dita no- bre a alma que tenha o dom de tornar infinitos, pelo modo de tratamento, mesmo 0 objeto mais mesquinho e a mais limitada ‘empresa. E nobre toda forma que imprime o selo da autonomia Carta XIX, p. 108 (nota). '8 Kallis, p. 400; Carta XI 17 (nota). Aquilo que, por natureza, apenas serve (é mero meio). Um esptri- to nobre ndo se basta com ser livre; precisa por em liberdade to- do 0 mais @ sua volta, mesmo o inerte”.1? Desse modo, tenta-se operar uma mudanca decisiva na tese kantiana de que tudo 0 que foi criado “pode ser usado meramente como meio; apenas o homem, e com ele todo ente racional, é fim em si mesmo” Sem diivida, 0 homem educado esteticamente res- eita esse imperativo, mas vai além dele, visto que trata ndo ape- ‘nas 0 ente racional, mas tudo a sua volta como dotado de autono- ‘mia. E por “enobrecer” também o universo da matéria que um tal individuo se torna, aos olhos de Schiller, um “homem virtuoso”, (01 seja, aquele que toma como mdxima de sua felicidade a plena realizacao da moralidade no mundo. A medida que busca realizar indo meramente o fim estabelecido pelo dever mas o “reino dos fins” na terra, 0 homem tem pleno direito de, por essa causa mais no- bre, transgredir 0 dever: “O fildsofo moral ensina-nos que nunca ‘se pode fazer mais do que o dever, e tem raz, se visa apenas i relasio das ages com a lei moral. Em acdes, porém, que se refe- rem meramente a um fim, ir ao supra-sensivel para além desse fim (0 que néo pode significar aqui sendo realizar esteticamente o fisi- co), quer dizer ao mesmo tempo ir para além do devet, &@ medida que este s6 pode preserever que a vontade seja santa, mas no que ‘a natureza jd se fenha santificado. Embora ndo haja transgressio ‘moral do dever, hd uma transgressio estética do mesmo, e um tal ‘comportamento é dito nobre"?! "Mediante essa concepcao do homem educado pelo belo co- ‘mo individuo virtuoso, a estética acaba por reencontrar a virtu- deea felicidade, doutrinas se nao suprimidas pelo menos relega- das aos aposentos de fundo da moral kantiana. Nesse sentido, a estética para Schiller faz as vezes também de uma doutrina da virtude — de uma ética — que vem completar 0 sistema moral. Certamente anterior & composicao das Cartas, essa visdo pode ser encontrada jd no ensaio Sobre Graca e Dignidade, quando sse afirma que o homem “indo s6 pode, mas também deve unifi- car prazer e dever; ele deve obedecer a sua razéo com alegria”.?? ‘A “cultura estética”’ é aquilo que deve conduzir a natureza hu- °9 Carta XXII, p. 120 (nota). 2 Kant, Critica da Razdo Pritica, A1SS-156. 11 Carta XXII, p. 117 (nota). 2 Subre Graga e Dignidade, ed. cit., p. 464-465. 14 ‘mana @ plenitude de seu desenvolvimento, i conjungao de suas forcas sensiveis e racionais, enfim, @ unido de dignidade moral ‘¢felicidade: “E préprio do homem conjugar 0 mais alto e o mais baixo em sua natureza, e se sua dignidade repousa na severa dis- tincdo entre os dois, a felicidade encontra-se na hdbil supressao dessa distingdo. A cultura, portanto, que deve levar & concordén- cia de dignidade e felicidade, terd de prover a mdxima pureza dos dois principios em sua mistura mais intima”? E portanto apenas a luz dessa investigacdo sobre o homem como natureza sensivel e racional, empenthando-se em unificar obrigagao e felicidade, que se pode avistar o verdadeiro edificio que, segundo Schiller, Kant deixara premeditadamente de cons- iruir, e que deve abrigar a um sé tempo a estética e a filosofia prética. Aqui, porém, surgem os problemas que tanto tém cha- ‘mado a atencdo dos comentadores: ao ser concebida como unifi- cagéo (ideal) entre prazer e dever, no estaria a estética sendo sub- jugada ao dominio ético-moral, perdendo o belo seu cardter au- ténomo? Ou, por outro lado, ndo estaria a prépria autonomia ‘moral recebendo um principio heterondmico em seu interior? En- quanto Ideal a ser buscado, ndo seria a cultura estética jd um fim, deixando sua condigdo de mero instrumento do progresso mo- ral? Nao seria a educacao estética, pela propria condicao mista ‘da natureza humana, a meta tiltima a que 0 homem pode aspirar para a sua humanidade? Essas ambigitidades derivam, sem ditvida, da proximidade entre ética e estética na obra de Schiller. O homem estético (que é também 0 virtuoso) tem como imperativo aproximar dignidade ¢ felicidade, dever e prazer no belo ou, sendo génio, na obra de ‘arte. Ora, visto que essa tarefa s6 pode ser solucionada por “‘apro- ‘ximagdo”, jd que o jogo estético puro é um Ideal inatingivel na realidade, ndo estaria a estética destinada a ser, paradoxalmen- {e, um sistema jamais “acabado””? Criada d imagem e semelhanca de uma natureza humana que ainda deve ser, ndo estaria a dou- trina do belo fadada a condicao de uma eterna ciéncia filosdfica em construgao? Ou quicd sua forca resida justamente nessa imperfeicao? Marcio Suzuki 3 Carta XXIV, p. 125,

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