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O BRASIL DE JK Angela de Castro Gomes organizadora Clovis de Faro, "'1 - Gerson Moura Helena Bomeny Maria Antonieta P. Leopoldi Maria Victoria Benevides ‘Ménica Pimenta Velloso Salomao L. Quadros da Silva ‘Sheldon Maram 1A—PUCEP. Mi 100088828 Z Editora da Fundagio Getulio Vargas — CPDOC ISBN 85-225-0161-0 Dircits dessa ego reserva Flag Ges Praia de Botafogo, 190 CED 22283 edad a sqrt pri eta beak FA Cin © Cod an Done | de Historia Contemporinea do Brasil 4 a Veto — 191 poles cuxno oe Docuneracho} DEMISTORIA CONTEMPORANEA DO DR Cooatenngio editorial Cristina Mary Pes da Cua Reviso de texto: Dora Rocha Makan RDITORA DA FUNDAGAO GETU ‘Cea Francisco de Castro Aevedo ‘Caordeuagio ctor: Dango Naseincato itor de text: Erclia Lopes de Souza (supervisor) Eeiteraga de arte: Car Gate (supervisor Jar Fercea Vaz, ie rid de Puls, Rovalra Conecigho ‘Se Arm (igitadores), Balt eet (cece em DTP); Marla Azevedo Barbora, Osvaldo Moreire th Siva (qugndores), Alcs de ian, Fata Caron Helis Vieira, Renato Baraca (evsors) Shperviso pric: Helio Loueo Neto Capa: Marco Taper Fotos ds capa: Funda Oar Ni ame MEMORIA] : BRASIL ge ao an? ed wuss © Brasil de JK/Angsla de Catt Gomes (org); Clovis de Faro et al. Ro de Janeiro: Fala Pango Geto VarpsfCPDOC, 191 16%. Inet bibogrtia 1.0 Brasil — Hsia — 1986-1961.2. Brasil Exterions— 1986-19613. Brasil — Condgoes conbmieas — 1956-19614, Figs — Bl, 5, Ctra popular — Brasil. 6. Nacional ‘Angele Cactn.Y04R, es Il Faro, Clovis de, 1941+ II Cemro de Peis © Docinentagao de ists Contempurinea do Tesi ep 981.0633 CU 981.0833 SUMARIO Introdugio 1 ‘Angela de Castro Gomes (© governo Kubitschek: a esperanga como fator de desenvolvimento 9 ‘Maria Victoria Benevides ‘Avangos e recuos: a politica exterior de JK. 23 Gerson Moura A década de 50. 0 Programa de Metas 44 Clovis de Faro e Saloméo 1. Quadros da Silva oo 1 politica econémica do governo JK (1956-60) 71 ‘Maria Antonieta P. Leopoldi Juscelino Kubitschek e a politica presidencial 100 ‘Sheldon Maram A dupla face de Jano: romantismo e populismo 122 ‘Ménica Pimenta Velloso Utopias de cidade: as capitais do modemismo 144 Helena Bomeny dislogo que me ficou na memétia para encerrar esta introdugao. Na pega Galileu, Galilei, de Brecht, hi um momento em que Galileu, preso pela Inquisigdo, ¢ visitado por um discipulo atdnito ante a possibilidade de ver seu ‘mestre negat suas proprias descobertas. Revoltado e desejoso de ver Galileu nao mentir, ele 0 exorta, dizendo algo assim: “Pobre do povo que nao tem herdis!” Ao que Galileu retruca:{*Nao, pobre do povo que precisa ter herdis.” Sendo assim, deixo ao leitoratarefa de escolher qual a cor dos anos dourados. Rio de Janeiro, agosto de 1991 Angela de Castro Gomes* Notas 1 Girardett, Raoul . Mitos e mitologias politicas. Sao Pavlo, Companhia das Letras, 1987, 2 Lafer, Celso. Aamizade na mesma getagao. Jornal do Brasil, 10 mar, 1991, Idéias/En- saios,p.7 2 A entevistade Juscelino Kubitschek a Maria Vietoia Benevides enconta-se deposi- tada no CPDOCIFOV. + Kubitschek, Juscelino. Depoimento. CPDOCIFOY, 1974, 6. 5 Valea pena a citagio: “Bu sempre pensava, quando entre na politica, como a medicina era inspiradora dos meus atos polticos Por exemplo, quando eu chegava no meu gabinete, eu j presidente {ds Republica, no Palicio do Catete,e chegava uma pessoa —, geralmente, a ndo ser as thane figuras do Brasil os que conseguiam aproximar-se de mim vinham numa emoglo Fut grande. Alguns nao podiam nem falar, eram mulheres, homens. Ento eu dizia “Othe, meu filho, eu eonhego bem toda essa gama de emogSes que sentem atualmente as pessoas que se aproximam de mim, porque também passe pelas mesmas dificuldades, {ambém procurel homens poderosos para pedi. Sempre encontei as porta fechadas, porque or pelerosos nunca abriram ports para quem precisa, Bes s6 abrem para quem Bio precisa "(..) Nunca deixei uma pessoa sair desapontada do meu gabinete. As vezes, pods ser impossivel atender 20 que pediarn, mas safam com a minha palavra carinhoss, oma minha assistncia, com a minha atengio.” Kubitschek, Juscelino, Depoimento CPDOCIFGY, 1976, . 23. 5 Sérgio Miceli em seus trabalhos tem recorrentemente chamado a ateng30 para a importincia das rlagées familiares e do easamento no processo de ascensio & careira politica, Ver, por exemplo, Carne e osso da elite politica brasileira pés-1930. In: Fausto, Boris, org. © Brasil republicano.v. 3. S30 Paulo, fel, 1981. (Historia Geral da Civiliza- ‘0 Braille). 7” Além dos livros das duas autoras mencionadas, ambos publicados pela editora Paz € ‘Terta, sto conhecidos os trabalhos de Lafer, Celso. The planning process and the political ‘pater in Brazil: a study on Kubitschek's target plan. Ph.D Thesis. Cornell Univ, 1970 ¢ Ge Bartosa, Francisco de Assis. JK: uma revisao na pottica brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1960. Recentemente, foi publicado umm novo live: JK: 9 estadista do desenvolvimento, Brasilia, Ed. Memorial IK e Subsecretaria de Ediges Técnicas do Sennado Federal, 1991 + Pesquisadora do CPDOC e professora adjunta do Departamento de Historia da UFF. O governo Kubitschek: a esperanca como fator de desenvolvimento Maria Victoria Benevides* Da figura e da atuagao de Juscelino Kubitschek tera ficado, para adversirios ¢ admiradores, a imagem de seu espirito otimista e criador, iluminado por inegvel tolerancia politica. Os saudosistas falariam de um capitalismo “riso- nnho e franco”. Nunca houve tal coisa, é claro. Mas nao deixa de seduzit 0 fascinio do“50.anos em 5” do presidente que ousou duvidar da “eterna vocagio agricola” do pais e que aliou ao desenvolvimento acelerado uma experiéneia bem- sucedida de governo democritico) Tao democritico quanto possivel nos limites dbvios de uma democracia de elites, com forte tradigao oligirquica, militarista e mesmo golpista Quinze anos depois da morte do presidente — cujo féretro levou as ruas, em pleno regime de opressio, uma multidio que chorava, cantava o “Peixe vivo" e pedia democracia — muito ha ainda a se discutir sobre o seu modelo de desenvolvimento, assim como sobre sua brilhante personalidade politica ‘Temas polémicos, sem diivida — tanto o modelo quanto a persona —'mas que permanecem associados a idéias-forgas que povoam, para o bem ou para 0 ‘mal, 0 imaginario e o debate politico nacional: a crenga no Brasil “pais do futuro”, a consolidagio da “identidade nacional”, o desequilibrio entre “os dois brasis",a intervengao do Estado e a “sedugao da tutela”, o papel dos militares “salvacionistas” e a conjugacao entre liberdades puiblicas ¢ desenvolvimento — enfim, as varias formas de que se reveste a velha questio, itresolvida, de traso versus modemizagao. “Pois foi no governo Kubitschek que se consagrou, definitivamente, 0 vocibulo “desenvolvimentismo”, como ja salientou 0 escritor Antonio Calla- do. Antes de JK falava-se em “fomento” e em “fomentar o desenvolvimento”:) Juscelino teria sido o inventor da palavra, cuja mistica ficou, na historia ‘contemporanea, inarredavelmente vinculada ao seu nome. Até hoje, qualquet sinal de “modemidade” ou de “espirito realizador” — misturados a um certo otimismo e as virtudes da conciliagao politica — costuma ser identificado como trago de um “juscelinismo” redivivo. Justifica-se, portanto, esta breve revisio sobre o periodo ¢ o personagem. + rofessora de Sociologia Politica da Faculdade de Eaeago da Universidade de Sio Paulo USP, membra do Centro de Estudos de Cultura Contemporiinea- CEDEC e da Comissio Jusiga Tar de Sie Paulo, E autora de O governa Kubitschek, UDN « o udenismeo (ambos na Ba. Paz Terra}; O governo Jénio Quadros, Voléncia, pow e policia, O PTB e otrabalhismo (os tes wa fd. Brasiiense) €A eidadania ava: plebiscito,referendo e iniciativa popular (EA. Atica). / Minha questio inicial diz respeito ao significado do juscelinismo (se é que se pode falar em “juscelinismo”) para essa juventude que tem, do governo | Kubitschek (1956-61), a imagem esmaecida de um tempo marcado pelo u impulso industrializante e pela mudanga da capital para Brastlia, no contexto de relativa liberdade politica e cultural. E me pergunto, entio, se esse perfodo ‘conteria certas caracteristicas que o justificariam, coerentemente, como “is~ mo” da histéria politica brasileira. E até que ponto o juscelinismo estaria vinculado a outros “istnos” famosos, como poptlismo ¢ nacionalismo, ou, em plano mais pessoal, ao getulismo? Em outros termos, pode-se dizer que 0 juscelinismo faz parte do “inconsciente politico” nacional? Creio que vale a pena retomar a indagagio basica que motivou minha pesquisa sobre 0 governo Kubitschek: como explicar a aparente estabilidade politica do govemo, cujo chefe foi o nico presidente civil, depois de 1930, a assumira presidéncia da Republica e a transferi-la ao sucessor no dia marcado pela Constituigio?(Pois Kubitschek assumiu 0 governo em circunstincias delicadas; sua posse, e a do vice-presidente Joao Goulart, foram violentamente ‘combatidas por setores antigetulistas e por civis ligados & conservadora UDN. "a Unio Democratica Nacional (0 partido de politicos de atuagao recente como José Samey, Afonso Arinos, Aureliano Chaves, José Aparecido, Anténio Carlos Magalhaes, Sandra Cavalcanti e Amaral Neto, além das origens poli cas familiates do atual presidente Collor de Mello)..) I Empossado a partir do famoso “contragolpe preventivo” do entio ministro da Guerra, general Lott, © assumindo a presidéncia apis dois presidentes interinos, Juscelino conseguiu manter-se até o fim do mandato. Também é preciso lembrar que as crises com a remtincia de Janio Quadros (agosto 61) € 2 oposigao golpista a investidura do vice-presidente Goulart quase levaram 0 pais a guerra civil O governo de Juscelino encrava-se, pois, num periodo extremamente critico, entre 0 suicidio de Getilio Vargas (agosto 54) € a rentincia de Janio Quadros. No entanto, essa experiéncia resultounum governo politicamente estivel, apesar de marcado por crises militares no comeso € no fim do periodo, como os levantes de Jacareacanga e de Aragargas; pelas crises provocadas por conflitos entre as trés armas miilitares; por uma intensa ativi- dade sindical e pattidaria; pela ascenso dos movimentos camponeses, ¢ pela ‘erescente intervengao da Igreja na area politico-social, sobretudo no Nordeste. ‘Alias, este tiltimo ponto merece uma certa qualificagao, pouco lembrada nas analises politicas do petiodo. | A Igreja Catélica inicia, nesta fase, ‘que, desta vez, do lado das reivindicagoes dos dominados —, sensivel com aquele padrio de intervengao politica no estilo da Liga Eleitoral Catolica ou de apoio incondicional as “autoridades". A presenga de JK nos Encontros dos Bispos do Nordeste, em 1956 c em 1959, é significativa Tuscelino contaria com o apoio da Igreja (l/mbre-se da aproximagio ostensi entre JK e Dom Helder Camara) para seus projetos de desenvolvimento, assi 10 A . como reconheceria 0 importante papel da Tgreja em suas mensagens sobre a | tapi da Sudene Esse governo, todavia, deixou a marca de estabilidade politica exatamente ' porque conseguiu “administrar” e superar essas crises. Anegociagio consistia no principal recurso do governo para enfrentar as freqiientes greves no eixo Rio-Sio Paulo. As liderangas sindicais e os dirigentes patronais geralmente entravam em acordo (com a intermediacio dos petebistas nas Delegacias Regionais do Trabalho) sem precisar recorter a teptessio policial.,As crises, militares, igualmente numerosas, foram todas absorvidas no ambito da disci- plina hierarquica. E mesmo aqueles oficiais da Aerondutica envolvidos nas rebelides de Jacareacanga e de Aragargas foram prontamente anistiados — ‘embora tenham sido identificados com as forgas derrotistas e reacionarias, pois, seriam “contra 0 desenvolvimento'} © documentitio Os anos JK, de Silvio ‘Tendler, mostra cenas relativas aqueles levantes onde se véern — triste ironia — {ndios e caboclos arregimentados para, supostamente, “defenderem a democracia”. A narragao enfatiza a anistia e a reintegragio dos militares tevoltosos. © governo perdoava o primeito seqiiestro de aviio e a camera registra os “subversivos” desembarcando, livres e sorridentes, abragados aos filhos e ovacionados no aeroporto. Mas seri Celso Furtado quem melhor compreende a atitude de Juscelino nesses momentos de gravissima perturbagao da ordem e de contestagao a sua utotidade como chefe supremo das Forgas Atmadas. Vejam-se seus comen- tarios, por exemplo, no segundo volume de suas memsrias, A fantasia desfeita (Paz Terra, 1989): “Mais do que os ensaios de insubordinagio de Aragargas € Jacateavanga, cujo alcance estava limitado por se localizarem na Aeronau- tica, a manobra dos oficiais do Exército para firmar pé no Nordeste, regio do _gencral Juatez Tivora, candidato derrotado nas iltimas eleig&es presidenciais, preocupou Kubitscheck. Sem conhecimento efetivo da regido (...) se inter- rogava sobre o que fazer para evitar que a questio nordestina pusesse em riseo a obra de redengo nacional que imaginava estar realizando,” ‘Além das crises militares, deve ser enfatizado que, apesar de contar com confortivel maioria parlamentar (fruto da historica alianga PSD-PTB), 0 ‘governo era alvo constante da virulenta oposigao udenista. AUDN — através sobretudo de sua implacavel “Banda de Miisica” — especializou-se na dentin- cia dos “escindalos” da administragao e na obstrugio aos projetos do Execu- tivo. “A UDN sempre me trouxe de canto chotado” — dizia JK com ironia desprovida de ressentimentos. “E uma expressio Ii de Minas, quer dizer sempre na mira para atacar, sempre perseguindo, uma perseguigao medonha” (entrevista a autora). Isso porque nao ha diividas de que Juscelino era, para ‘amigos ou inimigos, apresentado ¢ identificado como “herdeiro” de Getilio. (0 que nao foi simples. Embora encamnasse, em sua trajet6ria politica, o estilo do pessedismo mineiro (0 poderoso PSD que, com honrosas excegdes como ‘Tancredo Neves, afastara-se de Gettlio no final de seu governo), estava claro para JK que apenas uma sélida bandeira trabalhista-getulista congragaria 0 ‘ u tn apoio popular apés 0 trauma do suicldio. Foi por isso, als, que Juscelino na alianga eleitoral com 0 PTB e no nome de Joio Goulart, apesar de saber que enfrentaria a imediata oposigio udenista e militar: “Eu sabia que uma alianga com o PTB era imprescindivel; somente uma alianga muito forte Poderia enfrentar a opasigao esa vitoriosa, Esomente com umn eandidato que conseguisse a reconciliagao entre o voto rural do PSD e 0 voto urbano do PTB... 0 nome de Goulart era o que reunia maiores possibilidades” (OK, entrevista a autora, 1.4.74). Assim, Juscelino e Jango, personificando a heranga getulista, consagraram o “ponto étimo” da alianga PSD-PTB, solidamente reinstalada no poder. Creio que, mais do que estavel, esse periodo representaria um “equiltbrid instdvel”, gragas aos “mecanismos de compensagies” entre as variaveis que, xno meu livro, assinalei: a eooptagio dos militares; a forte alianga PSD-PTB, indispensivel no Congresso em virtude das disputas orgamentitias; 0 de \, senvolvimento do Programa de Metas e a “administragao paralela”, ou seja, uma “administragdo de notaveis", um médulo de eficiéncia, e, como o nome indica, paralelo a administragao formal que devia ser mantida, Nesse sentido, sob a égide dos poderes concentrados nas mios do presidente da Repiiblica, © Executivo conseguia implementar uma politica inovadora sem destruir © lientelismo ja tradicional na administragao brasileira. Deu certo. Pois essa ‘administragao paralela” — ampliada e dinamizada a partir de breve ensaio no segundo governo Vargas — era uma forma de evitar 0 imobilismo do sistema sem contesti-lo, uma vez que 0s novos éngios funcionavam como centros de assessoria ¢ execugio, enquanto 0s antigos continuavam a corres onder aos interesses das clientelas politicas, sobretudo regionais (Francisco de Assis Barbosa considera que essa titica de Kubitschek antecipava, de eerta forma, o que faria o presidente Kennedy, na linha da politica iniciada nos tempos de Roosevelt, com o New Deal) Em breve resumo sobre o governo Kubitschek, consideto que se poderia caracterizar © “juscelinismo” por uma politica que, nas palavras de Celso Lafer, procurou a conciliacao entre o velho e o novo, entre a elite e as massas. Esse “ismo” também se identifica com um novo tipo de nacionalismo que se istanciava do nacionalismo getulista pela énfase concedida ao capital es- trangeiro, cujo ingresso privilegiado constituiria o principal motivo da critica das esqueridas a0 governo. Esse nacionalismo de certa forma confundia-se com. desenvolvimentismo em termos de mobilizagéo de recursos e de apoio e também no nivel ideologico, gragas ao grupo dos intelectuais atticulados em toro do Insti inovadora quanto industrializagio e a0 crescimentoeconémico —umaalianga politica conser- vadora, que reunia os interesses da burguesia comercial, da oligarquia rural e da classe média tradicional, reptesentadas nos partidos PSD (Partido Social Democritico) e PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Essa composigao de forgas significava 0 apoio da industrializagao modernizadora, aliada 4 manu- } 5) defrontam e si Poor. tengo da “paz ¢ trangiillidade” no campo; a criagao de empregos e a mobili- zagao do voto urbano, e o controle sobre as reivindicagées sindicais, princi- palmente através do vice Joao Goulart, que dominava o Ministério do Traba- Ihd}Para a classe empresarial o Programa de Metas tinha evidentes atrativos. EO presidente erffatizava incéntivos, e nao ordens ou proibiges. Isso significa. va estimulos a inversio privada, legislagao favoravel #obtengao de financia- © mentos externos, créditos’ a longo pra, baixa taxa de juros e reserva de 2 mercado interno para as produgdes substitutivas de imporiagdes (Iembre-se 0 ‘+ éxito da industria automobilistica). Nesse ponto, vale a pena lembrar a obser- vagio de Roberto Gusmao: “Nenhum presidente da Confederagao Nacional das Indistrias ou de confederagies estaduais — como a FIESP — fez oposigao a0 governo JK. Quando se fala péjorativamente em peleguismo da lideranga sindical operaria é preciso lembrar que, do outro lado, havia também o peleguismo dourado das classes produtoras, tio dependentes do governo ‘quanto os pelegos sindicais” (entrevista & autora, 16.5.75). A preocupagio com 0 “discurso” juscelinista nfo pode, ¢ claro, ser desvin- culada da conjuntura politica (daf por que considero do maior interesse entender a conjugagao entre um estudo de ciéneia politica e uma perspectiva, de historiador politico). Entendo pot conjuntura politica aquele nivel onde se legram evolugdes estruturais de longa e média duragao. E também acontecimentos que podem destoar, quer por serem relativamente imprevisiveis, quer por ocorrerem em contextos diferentes. Nesse sentido, entendo que, numa anzlise sobre o governo Kubitschek, é possivel apontat tendéncias estruturais que jé vinham desde os anos 30, como o lento cresci- ‘mento da participagdo substantiva — e ndo apenas arbitral — dos militares nna politica. E, pelo lado do imprevisivel, avulta como fenémeno singular a personalidade de Juscelino Kubitschek. Se é verdade que nao se avalizam andlises historicas em termos meramente personalizantes, é igualmente verdade que so exatamente nessas conjunturas e encruzilhadas que o homem faz a Histéria. No caso especifico de Juscelino, ele disporia daquilo que o cientista politico David Easton denomina “talento das autoridades”, ou seja, sensibilidade para captaro estilo de politica possivel no momento de demandas conflitantes. Mais do que a encamagio da velha “conciliagio” — recotrente na histéria de nossas elites — o talento de JK consistia na provocagao contagiante de um “estado de espirito” de esperanga € otimismo. Afonso Arinos de Mello Franco identifica este “estado de es- pitito”, por exemplo, ao evocar a construgio da nova capital: “Brasilia foi a ‘exaltagao da esperanga nacional, do sentimento de grandeza, do aspecto sentimental da esperanga de cada um” (entrevista a autora). Além disso, avesso ‘a qualquer radicalismo, JK repudiava o refrdo da “infiltragao comunista”, tio a0 gosto de carcomidos, civis ¢ militares, aquele velho temor ironizado por Miro de Andrade, na déeada de 40, como a “assombracio medonha”. Medo- nha é a miséria, que gera a revolta, dizia Juscelino. E, assim, até mesmo 0 Partido Comunista, apesar de ainda na ilegalidade, desfrutava de uma certa 12 B liberdade de agio — dispunha de ativa imprensa propria, vendida em bancas, ¢ Iideres importantes, como Luiz Carlos Prestes, apareciam em comicios @Prestes, aliés, apoiou JK publicamente, por ocasiéo do rompimento com 0 Fundo Monetirio Internacional e trabalhou ostensivamente pela candidatura do marechal Lott a sucessao presidencial). A imprensa oposicionista, de esquerda ou de direita (como o tabldide sensacionalista Maquis, ligado a UDN carioca mais radical e golpista), gozava de ampla circulagao, praticamente sem atrito com a censura A historiadora Maria Yedda Linhares escreveu, na ocasiio do langamento de meu livro, as criticas mais contundentes a este tipo de argumentagio. “O seu modelo, assim como um navio que é langado ao mar, no flutua. Isto porque ©conereto — ou seja, a historia — sobre a qual ele foi construtdo parece nao ter levado em conta outros fatores, ou outras variaveis, igualmente fundamen- tais”, como “a relagdo dialética entre desenvolvimento acelerado de um pais subdesenvolvido, periférico e dependente e a recuperagio do capitalismo no plano internacional da guerra fria” (..), “o imperialismo” (...) e “as classes sociais, o que elas sio e representam no jogo politico” (Opinido, 17 set. 1976). Creio que, com outros termos e outta abordagem teérica, aproximo tais consideragdes quando discuto o esgotamento do modelo — inclusive pelos ‘motivos salientados por Maria Yedda — tanto do pontode vista da participagao dos militares (sensiveis ao “imperialismo”, a “guerra fria”e “luta de classes”) quanto do ponto de vista da politica econémica. Eassim que, para a compreensio do periodo, eu incluiria nfo apenas aquelas evolugées ja presentes na década de 30, mas também as brechas franqueadas a0 capitalismo periférico, 0 que permitiu a autonomia das macrodecisées de investimento e os desdobramentos estruturais do capitalismo central na década de 50. Tais consideragdes, embora brevissimas, sio necessétias porque a politica econémica juscelinista acabou tomando-se eixo para a anilise, positiva ou negativa, desse importante periodo de nossa experiéneia democri- tico-populista que vai de 1946 a 1964. E por que populismo? Até que ponto podemos associar populismo a Juscelinismo e considerar Juscelino Kubitschek um lider populista? Ameu ver, foi o presidente que levou a0 maximo as virtualidades do periodo populista, Mas, integrado numa época onde ptedominou o populismo, nao exibia as caracteristicas “tradicionais” do populista, como, por exemplo, Joao Goulart, pelo apelo do trabalhismo, Ademar de Barros, no sentido paternalista, com aspectos reacionérios, ou ainda Jénio Quadros, com sua versio de populismo moralista-autoritatio. E ainda sobre 0 “discurso juscelinista” e a possivel aproximagio com o opulismo, é importante lembrar que nele nao ha uma carateristica essencial 0 pensamento reacionétio, no sentido de que este distingue-se, sob qualquer vertente politica ou ideolégica, pela vontade explicita de volta d situagdo anterior, de exaltagio do passado. O futuro é sempre a referéncia maior de JK e seu discurso. 4 Se nao era “tradicionalmente” populista, poderiamos falar de “ideologia” do juscelinismo? Nas anélises sobre “ideologias”, interessa-me especialmente o confronto das ambigiiidades e das contradligdes, partes integrantes de qualquer discurso politico — como, alis, de qualquer linguagem simbolica. Interessa-me o que ha de logiconas ambigiiidades, ja que tais ambigitidades possuem uma “Io propria”, muito mais importante do que a redugao a oposigées contraditérias e muitas vezes antagonicas.fPortanto, a légica dessas ambigiiidades e contra- digdes constituio perfil ideoldgico, tanto de um partido quanto de um governo, ¢ identifica determinado projeto politied (nesse ponto, lembro o estudo verda- deiramente clissico do saudoso mestre Victor Nunes Leal que, em Coronelis- mo, enxada e voto, desenvolve a idéia de que 0 coronelismo nio significa a redugo das polatidades entre o poder ptiblico e o poder privado, mas sensiveis ‘complementatidades entre o piblico e o privado). Ameu ver, a ambigtiidade mais visivel nos discursos juscelinistas refere-se, ‘de inicio, & conjugagao entre o nacionalismo da heranga varguista e um novo modelo de desenvolvimento amarrado ao capital estrangeiro. Tais contra. \digdes compdem o perfil ideolégico do governo e se inserem no projets \politico que, no caso do juscelinismo, era o projeto de desenvolvimento econémico, aqui entendido nio como crescimento “tradicional”, mas cresci- ‘mento com mudanga estrutural, profundamente dependente de planos es- pecificos de execugao mum ptazo determinado. No juscelinismo esta cla roposta para o futuro, em termos ideol6gicos da “construgao do novo” — pais, Esiado e hagio — e uma proposta pratica de mudanga na administracao pblica. E assim que 0 populismo toma outro sentido com Juscelino, além de Ser a expresso de uma alianga vitoriosa e virtualmente contraditéria entre um +) Partido conservador de base rural, como o PSD, e uma agremiago de base ="_urbana, como o PTB. Isso nio significa dizer que um governo proveniente do PSD nio dispusesse do voto urbano e do apoio das camadas emergentes. E aqui voltamos para outro aspecto daquele populismo. Pois um ponto da maior relevancia deve ser enfatizado: Juscelino foi eleito por apenas 36% dos votos vilidos (contra os 49% de Getilio em 1950 e os 35% de Dutra em_1945).e sabia que teria que enfrentar® “complexo de minotia”. Assim, nao somente apostou com sticesso nas composiges partiditias e outros compromissos assumidos na campanha (no velho sistema do clientelismo) como, sobretudo, desenvolveu uma com- preensio mais “modema” sobre o populismo. O que significava dimensionar pragmaticamente a ampliagao da participagio politica através do voto, conse- ‘, qliéneia da Carta de 46 e das novas franquias eleitorais. Em outros termos, JK compreendeu que, se 0 voto eta necessario para conferir legitimidade a0 sistema e a0 seu governo (apesat de todas as distorgées e insuficiéncias da 2 Fepresentagdo via partidos, atuantes porém precarios do ponta de vista da © ‘representatividade democritica), a contrapartida do governante, para canalizat © apoio dos grupos e classes emergentes, eta justamente a maciga criagio de 15 1 / pd ower! empregos, A euforia desenvolvimentista e, especificamente, a fundagao de Brasilia e a implantagio da industria automobilistica, no ambito do Programa de Metas, converteram-se na resposta de um novo e “modeno” populismo. E nesse sentido que entendo a argumentag3o de um arguto analista do fenémeno do populismo, como Francisco Weffort, que chama a atengio Justamente para os aspectos contraditérios do fenémeno: “O populismo nao ‘era apenas esse fendmeno de lideranga, de comando politico, de organizagio politica que tentei descrever.(..) era também um fenémeno de Estado, nio marginal ao processo politico, era um dos travejamentos da estrutura de poder do Brasil, embora nio fosse 0 tinico (...)e 0s populistas eram grandes politicos nacionais (...) Na verdade, nao hé, no populismo, representagao alguma na qual o representado possa fazet a sua vor set ouvida — mas 0 populismo é contradit6rio no sentido de ser democratico, quando alguém no poder reco- mhece a emergéncia de certas reivindicagées que vém vindo pela base e busca, dentro do possivel, atendé-las: ao fazer isso, introduz. novos atores no ceniirio politico” (1976, p. 176). E continua: “O periodo de meados dos anos $0 foi de crise geral do populismo latino-americano, e 0 populismo brasileiro, em que pesem suas particularidades, nao é uma excegio a regra. As quedas de Atbens na Guatemala (1953) ¢ de Perdn na Argentina (1955), 0 curto e fracassado perfodo de Rojas Pinilla na Colémbia (1953-1957), sem deixar de mencionar ‘0 tragico destino que estaria reservado a revolugio boliviana de 1953 — todos i i i diversas pelas quais os sistemas politicos latino-americanos recebiam (e respondiam) os primeiros impactos da nova linha de expansio do sistema capitalista internacional (..}0 que transformou o caso brasileiro num caso a parte foram as peculiaridades da crise de hegemonia que catacteriza a historia do pais desde os anos 30, e, em particular, o lugar estratégico que estas circunstincias de crise deveriam reservar para o aparelho de Estado e, em especial, para a figura de Getilio Vargas” (1979, p.5). er Resumindo, o populismo juscelinsta pode ser visto como um tipo de conciliagio, ao mesmo tempo modernizante e conservadora, e como um “novo” nacionalismo voltado para as experiéncias de um capitalismo perifé- ~ Fico e dependente do capital estrangeiro, Sobre esse ponto, aliés,é importante destacar a releitura, inovadora e polémica, feita por Fiori e Lessa, sobre 0 segundo governo Vargas. Ao negar as interpretagdes mais cOtfefites sobre 0 “radicalismo nacionalista e popular” do projeto de Getilio, sobretudo a partir {8 “ctise de 1953", os autores enfatizam que no houve rupturas ou descont- nuidades maiores entre a proposta de desenvolvimento de Vargas ¢ a de JK. “A vitdria da industrializagao pesada e a euforia da segunda metade dos anos, cingtienta no se deveu, pois, a derrota de um suposto projeto nacionalista e Popular de desenvolvimento, O Plano de Metas nao foi mais nem menos ‘pré-imperialista'do que 0 plano implicito no conjunto das mensagens iniciativas de Vargas” (1983, p. 31). 16 No entanto, creio ainda que, mesmo no plano mais simples da “retérica” ¢ da “imagem” em telagao a0 nacionalismo da heranga varguista, o de- senvolvimentismo possuia vantagens que tomavam mais atraente, mais “pragmitico”, como recurso dos mais eficientes, tanto para a mobilizagio quanto para a legitimagao. Para a burguesia industrial em expansio, 20 contrario do getulismo, o desenvolvimentismo evitava a énfase na intervengio estatal na economia, Para os trabalhadores, o nacionalismo podia ser uma | abstragao, uma palavra de ordem, uma bandeira, um ideal, e 0 de-“ senvolvimentismo eta concreto, porque dele emanavam frutos imediatos, ‘como o ji citado atendimento as demandas especificas por empregos eservigos basicos. Ja para os militares, o desenvolvimentismo representava o que mais tarde seria identificado como a ideologia do “Brasil grande poténcia”, pela multiplicagao de recursos para aparelhamento belico, comunicagio e trans- portes. Para a esquerda em geral (onde o debate ideol6gico se tornou cada vez mais débil entre 0 nacionalismo, digamos, auténtico, e 0 nacionalismo com tinturas entreguistas), a questo estava esmaecida pela politica conciliadora do Partido Comunista, © PC acteditava na “revolugio burguesa” e via a entrada do capital estrangeito como um mal muito menor do que a oposigio no “estilo uudenista”, antipopular, antiprogressista e antigetulista. 7 No governo Kubitschek, no entanto, a manutengao da ordem foi tio impor- {ante quanto a defesa das liberdades politicas. Relembro a famosa frase: “Meu governo” — dizia Juscelino — * se assenta num tripé.” Esse tripé era formado pelo Ministério da Guerra, chefiado pelo marechal Lott, pelo comando do 1 Exército, exercido pelo general Odilio Denys, e pela chefia de Policia do Distrito Federal, esta tltima bastante importante, numa época em que o ‘govern nio dispunha de centrais de informagio militares, como hoje. lids, aquela frase seria depois ironizada pelo ex-ministro Afonso Arinos, para quem, © tripé de Juscelino “tinha uma perna sé: a bota do general Lott”, Mas é bem verdade que, a0 contririo de Getilio, que teve trés ministros da Guerra, e de Jango, com quatro, Juscelino manteve um tinico ministro na chefia das Forgas. Armadas. O general Lott tomou-se o “fiador do regime”, controlando qualquer, | envolvimento partidirio dos militares eimpedindo que o Exército concretizas- |) se fatalidade latino-americana de se tomar “o grande partido fardado”. Assim || € que o Clube Militar permanece, pela primeira vez, 4 margem das cons“ piragdes e do enredamento com a pregagao golpista das eternas “vivandeiras dos quartéis". Pois embora se mantivesse viva a divisio entre o grupo do 11 de novembro e o do 24 de agosto, as Forgas Armadas, no seu conjunto, tinham intetesse em apoiar a politica econémica do governo. O Programa de Metas no prejudicava o atendimento as emergéncias de equipamentos e aumentos | salariais; 0 orgamento dos militares crescia junto com o PNB. Emantinham-se inalterados os interesses “ndo-negocidveis” dos militares, como a Petrobris e | © controle sobre os minerais energéticos. ‘Nao ha negar, no entanto, que se 0 discurso juscelinista identificava a ordem publica como requisito para o desenvolvimento, enfatizava também a subor- 1 x \, dinagio das exigéncias de “ordem” a manutengio dos diteitos civ, o respeito 4 Constituigio, Os militares eram, sem diivida, essencialmente importantes para a estabilidade do governo sem, contudo, abalar de maneira irreversivel 8 alicerces do poder civil. Tomaram-se co-responséveis pelo programa de | desenvolvimento — e dele muito se beneficiaram — mas nao de forma isolada, | esi em conjunto com as demais forgas pollens que atuam nas democracias | — potmais incipientes que sejam —,comoas liderangas partidatias, os setores da imprensa e aqueles empresérios que participavam dos Grupos de Trabalho «dos Grupos Executives criados especialmente para implementar o Programa de Metas, Portanto, a cooptacao dos militares, que gradativamente foram assumindo posigaes de mando nos postos executives (reforgando uma tendéncia ja visivel ‘nos governos anteriores) também avulta como caracteristica do periodo. Tais virtualidades tiveram seu ponto méximo no governo Kubitschek, e por esse Angulo é que entendo classificé-lo como “apogeu do populismo”. No entanto, por se tratarem de virtualidades tipicas de uma determinada conjuntura, ‘esgotaram suas possibilidades no final do governo. Essa cooptagao foi decisiva no perfodo 1956-61: em meu livro O governo Kubitschek procedo a um levantamento dos oficiais militares que detiveram ‘cargos executivos na administragao publica e nos setores mais importantes da economia nacional. Contudo, essa participagao cresce e muda sensivelmente quando o legalismo militar comeca a alterar-se — por influéncias externas, em. face dos rumos socializantes da tevolugo cubana, mas também pela eferves- céncia politica interna. O que antes significava um legalismo constitucional- militar, de respeito 4 Constituigdo e subordinagio lei, passa a ser um legalismo condicionado a uma postura basicamente anticomunista e que considerava “subversiva” toda e qualquer manifestagao popular, na cidade e no campo, sendo que estas tiltimas se tornaram substancialmente mais agudas no final do governo. Em sua anélise sobre 0 petiodo, Hélio Jaguaribe lembra “a politica de ‘adiamentos estratégicos” do governo JK, para impedir 0 confronto direto com as forgas opositoras, e que consistia em jogar para a frente os problemas que resultariam nas crises de 61-64. Nesse sentido, encerro estas notas sustentando que o sistema politico era estavel no jogo das forgas politica, porém instivel do ponto de vista institucional. A extrema improvisagao institucional do governo Kubitschek tornou-se responsivel pela instabilidade futura, Essa improvisagao que marcou o governo e teve seu ponto culminante na “adminis- ttagio paralela” — apontava, por um lado, a fragilidade institucional, j crénica desde a década de 30, e, por outro, o esgotamento daquelas virtuali- dades que marcaram 0 apogeu do populismo no periodo. esses termos, aquelas proprias varidveis que garantiam o apogeu foram | também responsiveis pelo declinio do sistema. O Programa de Metas, o apoio | da alianga PSD-PTB, a mobilizacio pelo desenvolvimento e a cooptagio dos militares — varidveis basicas para se entender o éxito do governo Kubitschek, 18 ceva ‘ spy —, esgotaram sua eficécia no perfodo. Na medida em que mudaram as zonas de incerteza na economia, pelo préprio crescimento econémico (incerteza situada nas propostas de financiamento extemno), a “administragao paralela” perdeu sua eficicia, o recurso 4 inflagio e a0 capital estrangeiro comesou @ declinar, no apenas em termos pragmaticos, como em termos da legitimagao de um novo nacionalismo. Eembora se tratasse de uma inflagio razoavelmente baixa, comparada a niveis posteriores, ela se converteria no principal eixo dos ataques ao governo. E facilitou, sobremaneira, a ascensio de Janio Quadros, ‘que se apresentava com a autoridade de quem poria “ordem no caos” O apoio conjunto do PSD-PTB também foi declinando pelo esfacelamento dessa alianga; o crescimento do PTB (0 partido que mais cresceu no periodo) comegou a ameagat a posigdo hegeménica do PSD, que se aproxima de seu tradicional adversirio — a UDN. Os proprios frutos do crescimento econémico mudaram o perfil da econo- mia nacional, em termos das forgas politicas conflitantes € no quadro das relagées internacionais, Paradoxalmente, na medida em que o de- senvolvimento mobilizava camadas sociais cada vez mais reivindicativas — porém sem condigaes de serem absorvidas institucionalmente pelo contribuia para o declinio das virtualidades dos “anos dourados” que signifi- caram, com todas as contradigdes e ambigiiidades, aexperiéneia mais brilhante de nossa democracia liberal-burguesa. Num pais como o Brasil, marcado pot desigualdades sociais tio absutdas e desequilibrios econémicos crescentes, essa democracia — sempre para “os de cima” — pode “dar certo”, mas apenas durante um certo tempo. Enfim, 0 esgotamento das virtualidades do modelo desenvolvimentista revela seus aspectos mais discutiveis: as conseqiiéncias, a longo prazo, da entrada em massa do capital estrangeiro; a descapitalizagio domeio rural, com 08 efeitos multiplicadores do inchago urbano, desemprego e subemprego; a inflagio eo crescimento da divida externa, com o desequilibrio do balango de agamentos etc, Passada a euforia, o premtincio da crise exigia uma politica de estabilizagao (tentada, sem sucesso, no governo Kubitschek, por iniciativa do ministro Lucas Lopes) e de austeridade. O otimismo jamais igualivel da democracia juscelinista seria substituido pela carranca autoritaria, moralista e vingativa do janismo, A vitoria de Janio Quadros em 1960 seria a maior derrota de JK que, além de nao fazer seu sucessor, nio lograra consolidat, no empre- sariado que tanto o apoiara, a crenga duradoura nas virtudes da democracia para a construgio de um capitalismo mais contemporaneo do mundo civiliza- do, (Aliés, uma questo ineémoda permanece: em nome de que a burguesia acabou aceitando, em 1964, a substituigao de um Estado liberal-burgués por um Estado militar e tecnocritico?) Francisco de Assis Rathosa enfatiza © compromisso radical de Juscelino coma legalidade democritica. “Foi um ponto de honra de seu governo; resistiu 4s tentagdes de continuismo, possivel através de uma reforma constitucional 19 que the permitiria a reeleigio. Seu desejo era o de despertat o gigante adormecido, como dizia sempre, mas sem quebra das normas constitucionai ‘Sua obsessio: passat 0 governo ao seu sucessor, eleito pelo povo, garantir a continuidade e a notmalidade democratica. E isso ele conseguiu. Deu conta do recado. Com audicia, energia e confianga, como disse André Malraux” (entrevista & autora). “Tuscelino foi a prova personificada de que o regime democritico é vidvel (..) Sua vocagio de tolerincia, sua capacidade de compreensio, sua tenaci- dade, sua jovial confianga no poder da acio fizeram dele um criador de otimismo, um desbravador de caminhos. Foi isto que 0 povo identificou nele. E por isso, tao grande parte do povo se identificou com ele” (Veja, 25 ag0.1976, P. 8). Tais palavras nio pertencem a um fiel admirador e correligiondrio — ‘mas ao mais ferrenho adversério que JK e seu governo tiveram que enfrentar: Carlos Lacerda. E nio se trata de um necrolégio “i moda cordial” brasileira (pois Lacerda nao perdoava inimigos nem mesmo mortos), mas 0 reco- mhecimento de que, mais do que o lugat-comum da “tolerancia e da simpatia”, percebia no governante a marca de um carisma para a formagao de um ethos ositivo e criador. Em 1990, comentando com agudeza e pungéncia a torpeza da campanha presidencial vitoriosa — que se valera da fraude, das negociatas, da mentira, da manipulagio da miséria e do cinismo do “guerra é guerra” — a escritora Marilene Felinto confessava o sentimento de vergonha de ser brasileira e resumia, numa frase, o desamparo angustiado de tantos jovens de hoje: “tenho trinta anos na cara e nenhum ano de esperanga pela frente” (Folha de S. Paulo, -3,"Acoisa errada”). Esse desencanto, esse brutal complexo de inferioridade de “set brasileiro” (e as filas de espera por mais de um ano no consulado para se obter a cidadania italiana? E a onda imigratéria de jovens na ilusio de fugir para as luzes do “primeiro mundo”?) é, mais do que tudo, a desgraga de uma nagdo. Nagio que se identifica na comunidade cultural e politica, mas s6 se mantém, s6 se consolida “como nagdo” se houver crenga no futuro. Pois foi justamente essa crenga no futuro, essa esperanga nos destinos da nago que fizeram de Juscelino um presidente singular na nossa historia. Singular porque nio encontramos paralelo em nenhum outro. De Getilio ficou o earisma do “pai dos pobres”, fortalecido pelo radicalismo do sangue derramado, mas ele nio incutiu esperanga no povo, que nele venerava o protetor austero ¢ insubs- titutvel. O presidente Jénio Quadros também ndo, pois falava muito mais em “vigiar e punir” do que em criar e desenvolver, e sentimentos nacionais de delagio e vinganga séo, evidentemente, incompativeis com otimismo e es- petanga. E Joao Goulart, matcado pelo fatdo de set 0 novo e contraditério “herdeiro de Getilio”, nao conseguiu enfrentar e superar a devastadora campa- tha de propaganda do terror: a ameaga do comunismo “ateu e solerte”. O que foi decisivo para incutit em grande parte da opiniao publica o medo e'o édio. a0 “inimigo interno” — enesse clima de guerra civil ideologica nao é possivel florescer qualquer tipo de sentimento nacional positivo. 20 \ E nosso primeiro presidente civil depois do regime militar, José Samey, apesar de comprazet-se com uma auto-imagem de “generosidade ¢ espirito conciliador a moda de Juscelino”, precipitou a desesperanga a niveis insus- peitados apés o efémero “Plano Cruzado”. (E razoavel supor que Tanctedo Neves, como o candidato do consenso das “diretas indiretas”, lograsse alcangar ‘amarca da esperanga — mas sé houve tempo para a manifestagao popular de “orfandade”. Talvez tenha sido, no brevissimo espago da ascensio, doenga e ‘motte, um novo cavaleito da esperanga.) Mas Fernando Collor, em apenas um ano de governo, conseguiu reverter completamente as expectativas de metade dos eleitores que acreditaram nas promessas e nas possibilidades de realizagio de quem também se apresentava como um “novo Juscelino” — na determina- io e na radicalidade de suas propostas de “modemizagao”. Deu no que deu. Pesquisas da Standard, Ogilvy & Mather revelam que 74% da classe média brasileira estio pessimistas (Folha de S. Paulo, p.2, 21 jul. 1991), € reportagem especial de um semandtio descteve o que chama de verdadeiro éxodo dos desesperangados, identificando-o como uma nova “diéspora” (Veja, 32,ag0. 1991). E claro que nio podemos perder o senso critico em relagao a superfi dade e ao lado ingénuo e ufanista daquela retética da época — “o pais do futuro”. Mas nao resta duivida de que JK, com sua personalidade na qual Afonso Arinos percebia “imaginacZo, entusiasmo e fé de um visionério do real” — conseguiu manter, por um certo tempo, 0 necessétio “equilfbrio psicologico” da nagdo. Essa é, a meu ver, a marca inconfundivel de um ‘stadista. Consciente ou inconscientemente — e estou convencida de que no se tratava de uma politica deliberada, mas de algo intrinseco a personalidade, do “talento da autoridade” — Juscelino transmitiu a esperanca, obrigacdo de todo homem piiblico. Pois, sem esperanga, como sera possivel construi, criar, participar, acreditar em seu préprio pals? Sem esperanga no futuro estaremos sempre, ressentidos ou aparvalhados, “estrangeiros em nossa terra” — ou, em analogia com o que cofistatava Sérgio Buarque de Holanda, emeagados pelo ““deménio pérfido e pretensioso”, aquele que nos toma “comparsas desatentos do mundo em que habitamos”. Talvez seja nesse sentido que podemos compreender melhor como Jusceli- no repudiava, com veeméncia — e até mesmo com uma certa repugnancia ppelos derrotistas e acomodados, que se comportavam como na imagem dos “caranguejos” — as cassandras da fatalidade, da inexorabilidade do subde- senvolvimento num pafs como o Brasil. Em seu discurso de despedida é enfético: “Nao fecho os olhos realidade. Conheso e reconhego que é um trabalho imenso o que desafia os nossos administradores e homens publicos. Sei que o pauperismo continua a afligir-nos, a danificar-nos. Sei que nao foram extintas as fontes do sofrimento e da miséria. Mas, ao mesmo tempo em que ‘me dou conta disso, dou-me conta, também, de que jé nao aceitamos um 21 O presidente Juscelino foi, sem diivida, um grande politico nos moldes do ‘que ja se convencionou denominar “modemizagao conservadora”. Mas sacu- diu o pais do marasmo “caranguejeiro” e conseguiu incutir, no brasileiro, algo mais do que o fugaz e alienante sentimento da “patria em chuteiras”. Durou pouco e trouxe algumas conseqiiéncias funestas — sobretudo no plano da itucional. Se vivo fosse, estarfamos em campos diferentes; ‘mas tenho certeza de que Juscelino Kubitschek teria com o meu partido — 0 Partido dos Trabalhadores — um didlogo mais respeitoso e democritico do ‘que muitos dos chamados “liberais” da ja velha “Nova Republica” e deste triste, apagado e vil “Brasil novo”. Referéncias bibliogrificas BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O governo Kubitschek: de- senvolvimento e estabilidade politica. 3. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. LAFER, Celso. The planning process and the political system in Brasil. PhD. ‘Thesis. Comell University, 1970. BARBOSA, Franciscode Assis, Juscelino Kubitschek: uma revisiona politica brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1988 (e entrevista & autora). 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Ancorados em supostos ideolégicos aparentemente irreconciliaveis, EUA e URSS constituiam entio dois poderes que se confrontavam em termes politi- co-estratégicos e ideolégicos e se afirmavam como centro e lideranca de dois blocos antagénicos que porfiavam pela adesio e lealdade do restante da humanidade. De fato, sio notdveis na década de 50 a guerra de propaganda, a corrida armamentista, assim como as doutrinas estratégicas que tornavam roxima a possibilidade de um conflito nuclear de cardter apocaliptico — tudo procurando reduzir a complexidade do sistema internacional a uma ordem bipolar simples, a qual deveriam amoldar-se os demais estados nacionais. No entanto, na segunda metade dos anos 50, nem os blocos que se antago- nizavam eram perfeitamente coesos no seu interior e nem o restante da humanidade se dispunha a aderir completamente a lideranga das superpotén- cias, Esses elementos perturbadores da ordem bipolar, embora no fossem suficientes para demolir os alicerces da guerra fria, constitulam contudo “sinais dos tempos” para estadistas mais atentos e que buscavam uma adequa- da insergo de seus paises na ordem internacional. _Firmemente atado ao sistema de poder notte-americano, desde que se consolidara a alianga com os EUA no decorrer da Il Guerra Mundial, o Brasil parecia destinado ao alinhamento automitico na sua politica exterior. Posigio ‘inteiramente assumida entre 1945-50 por identidade ideoldgica (governo ‘DsDotra)e parcialmente renegada entre 1950-54 por um pragmatismo impossivel (Governo Vargas), o alinhamento automitico parecia entio se inscrever na légica da situagio geopolitica brasileira, assim como parecia set 0 ponto de partida da politica exterior de JK. De acordo com o secretirio de Estado notte-americano, em comunicado a0 presidente Eisenhower, o presidente leito Kubitschek revelara-lhe a aspiragéo de mirar-se no exemplo e ganhar © respeito do povo americano, dizendo-Ihe as seguintes palavras: “Sou um ‘conservador; e quero renovar nossa amizade” (com 0 povo americano).! ‘geralmente em termos de alinhamento aos EUA que se tem analisado politica exterior do governo JK. Desse ponto de vista, as eventuais discrepii juscelinistas a0 modelo do “alinhamento” constituiriam incidentes de menor ‘monta ou até mesmo excegdes que confirmariam a regra. Dace re) . + Pesquisador do CPDOC e autor, entre outras obras, de Autonomia na dependéncia (Rio Ue Janeiro, Nova Fronteirs, 1980), Tlo Sam chega ao Brasil (S%0 Paulo, Brasiliense, 1984) «Estados Unidos e América Latina (Sio Paulo, Contexto, 1990). 23,

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