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A tua ausência em mim

Sinfonia em sonho atonal


I
Lento, grave assai

Aqui fica quem eu fui, sou apenas um sorriso


diferente.
Espero que não seja a morte de tudo em que
acredito…
Seria um sonho? Sentir a tua nudez, a respiração
quente, calma no meu ombro, as tuas mãos à minha
procura.
Seria?
Voltas para me assombrar.
Não me preenche o que não possuo e continuo
acordado.
Não era sonho, não era porque dói.
Continuo acordado…
Ouço o relógio que nunca deixa de bater e provoca
esta isorritmia infinita do tempo contra o
pensamento.
Não aguento mais este calor, o lençol jaz agora no
chão, junto com os dias de espera.
Stentato, Alla breve

O tempo passa,
Devagar, cruel e sem sentido
Luto com cavaleiros e dragões
Na minha cabeça
Viajo por mil sonhos diferentes.

De que cor é este vento


Que mancha o meu rosto?
Apanha-me de surpresa
Tocando-me no ombro

Os olhos vão morrendo


E a luta mais intensa
Tenho jóias e o prazer
Castelos e todo o mistério

Só queria uma lágrima


Um momento que passou
II
Súbito, brillante
Tempo de blues

O estranho momento Ouve agora como se


de silêncio. rebelam
Olhas à volta, Um motim na
assustada, à procura. fervilhante avenida
É inútil. Agora destruída
Relaxa, E os cães ladram
A escuridão envolve. Rangem-nos os
dentes
No que pensas agora?
Ouves este som?
(Uma caravana de Calmo, suave e claro.
ciganos Longe.
Danças e cânticos Escuta
Uma orgia à volta da Relaxa
fogueira)
Deixa sonhar
-A velha toca com a Deixa…
bengala na perna dos
dançarinos... -Deixa-me sair daqui!
-"Mexam-se!" Que raiva…
No que ela pensa?
No que passou? Põe os óculos escuros
e toca qualquer coisa
Não, apenas quer para nós.
distracção – Toca os teus blues…
Diz-nos como
acordaste esta manhã,
e te sentias triste.
Introspectivo ma schietto

Na cara um sorriso
Os olhos sabem fingir
Um desejo
Mais, um trono.
No que me tornei?

Há alguém inocente aqui?

Um jogo de poder
III
Andante ma non troppo

O jogo que jogámos… consegues dar-lhe um


nome?
Foste embora.
Levas contigo uma brisa feita de vermelho e paixão
quente, de invocações e danças antigas. Deixas o
meu peito em explosões atonais e numa hora
ardente… morto.

Resta-me escrever um Requiem a nós, a um amor


demasiado vincado e espesso que pulsa e dói.

Continuo teu…

(Dolcemente)

Demasiado…
Tanto como a suavidade da chuva
Que cai em final de Outono.
Daquela que vemos
Apenas quando nos molha o casaco.
Daquela a que é impossível fingir indiferença
Quando o seu cheiro se espalha nas ruas.
Mas essa chuva não é de ninguém.
E eu…
Sou demasiado teu.
Decisamente, com fuoco

Adormeço e tenho-te novamente...

Dançar em cada curva tua


Quero o teu orgasmo
A iniciação ao prazer mais selvagem.
Qual a forma dos meus sentidos
Quando sinto a luxúria do teu corpo?

Agora, exaustos.
Tudo é diferente
Já não te abraço nem rimos bem baixo…

Volto-me e fumo um cigarro.


IV
Coda

Deixo agora a tua ausência em mim, já uma ressaca


de suores frios, uma tortura lenta.
É como ter um ácido que corrói e se entranha no
meu corpo e pouco a pouco já me satisfaz aquele
ardor.
Controlo a vontade de cortar e arranhar a pele até
deitar sangue vermelho e espesso, até que saias por
completo.
Sou outro.

(tacet)
Tiago da Neta
2006

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