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n>. Trabalho e identidade: uma reflexao a luz do debate sobre a centralidade do trabalho na sociedade contemporanea (Work and identity — a light reflection of debate about the work centralization in contemporary society) Maria Elizabeth Antunes Lima’ © artigo trata das mudangas recentemente inttoduzidas nos contextos de trabalho © de suss ossiess repercussbes nas questbes relatvas aos processos de construc identaia. A partir o cebate sobre a cenvaldado do trabalho na sodedace contemporanea, a aulora alscute as ossibildades de a ativdade laboral continuar a oferecer as bases para a construgao ea Conscilagao das identidades individuals © coletvas Polayras- chave: Trabalho; Mentdade KeyWords: Work, Ident. 1 INTRODUCAO Para tratar do tema “trabalho e identidade”,creio ser necessirio refletir sobre as possibilidades de cons- dria nos atuais contexts produtivos, ten- oem vista as transformacoes drasticas pelas quais tem passado. Isto significa que, se ha algumas décadas, no havia muita diivida sobre o papel do trabalho nesse processo de construcio € de consolidacao das identi dades individuais e coletivas, hoje, esse tema tornou- se objeto de considerivel polémica Embora o debate seja recente, alguns dos ar- gumentos adotados pelos adeptos da perda da centralidade do trabalho, podem ser identificados nas teses defendidas por IT. Arendt, na sua conhecida obra ‘A condi¢io humana”, publicada em 1958. Os equivocos contidos nessas teses, foram devidamente explicitados e discutidos por Calvet (1985), mas gos- taria de ressaltar apenas aquele que, direta ou indire- tamente, influenciou o problema aqui tratado. Ou seja a partir do que Calvet qualifica como uma “deforma: ‘G20 dos textos de K. Marx, Arendt questiona a €poca moderna que atribuiu ao trabalho uma importancia exagerada, “[...] colocando-o acima da todas as ou- tras atividades [..|" (CALVET, 1985, p. 131) e promo- vendo-o, de forma stibita ¢ espetaculara mais estima- dla de todas as atividades human: Arendt colocou, portant, em questio, a €po- camoderna que glorificou 0 trabalho tornando-o fon- te de todos 0s valores (CAL ticas que dirigiu & centralidade do trabalho na socie- dade moderna, fundadas na “...] negacio da esfera da produgio material humana como aspecto decisivo do processo de formacio e determinacio do ser do ho- mem [...]" (FORTES, 2001, p. 177), embora facilmente refutéveis, ganharam forca, sobretudo, no decorrer das as Gitimas décadas, sendo retomadas por diversos autores e desencadeando um debate que nao pode ser desconsiderado em qualquer reflexio sobre o assunto, T, 1985, p. 137). As eri 2 BREVE CARACTERIZACAO DO DEBATE As mudangas dristicas introduzidas nos con textos de trabalho, sobretudo, nos tiltimos 30 anos, tém sido interpretadas por um grupo de te6ricos [Gorz (1982), Offe (1989), Habermas (1987,1988), Kurz (2002) e Meda (1995a, 1995b) | como indicios de que a atividade laboral perdeu sua centralidade na orga nizagio da sociabilidade e, portanto, deixou de ser percebida “[..] como atividade ordenadora e funda- dora das identidades coletivas [....", perdendo sua limensao subjetiva”, ls mad de ei, emir « penn i, de ta (ORGANIS | Peso aunt ca Faculece cFloatine Cie Haman, Departamento de Paclag dl Unie Fao cl Minas Gaia Aric Anti Cara 627 ‘aol Pana CE? 20318000 Blo Horan ecabid cn: 2011 12007: Ato a: 211007 Tire essas mudangis, duas merecem ser des tacadas, tendo em vista, as multiplas interpretagdes que suscitam: 0 incremento intensivo de tecnologia nos contextos produtivos e a consequiente reducio dos postos de trabalho regulamentados e regidos pelo assalariamento. Ou seja, com a introdugao maciga de gias nos contextos laborais, os postos de tr2- balho tém diminuido, gerando a reducio do operari ado industrial tradicional ¢ o aumento das atividades informais, além do incremento do setor de servigos € ral ‘Alem disso, dle acordo com alguns «lesses teo ricos, 0.uso intensivo de tecnologia na maioria dos setores produtivos estaria tornando 0 homem cada vex mais desnecessirio nos processos de trabalho. Ou seja, 0 trabalho vivo estaria sendo substituido, em ritmo acelerado, pelo trabalho morto, levando as empresas a prescindir, progressivamente, das ha- bilidades humanas, tornando-as, em grande medi da, supérfluas’ “Tais mudangas, portanto, tém sido interpreta- das por diversos autores, como o fim do poder aglutinador do trabalho, colocando em xeque, inclu- sive, “[...| sua forca enquanto categoria analitica do mundo social”. Ou dito em outros termos, estar mos, segundo eles, “|. vivendo numa sociedade pés- trabalho”. (ORGANISTA, id. p. 10). Embora os teéricos do “fim do trabalho” apre- sentem algumas diferengas nas suas teses centrais, nio ha divergencias fundamentais naquilo que concerne ao identificarem duas Categorias voralmente distintas, eles deixam de perceber que a primeira é “ineliminavel da existéncia humana’, enquanto a segunda, “€ uma construgio hist6rica.” (ORGANISTA, id. p. 10) Fo que € mais importante: a0 preconizarem 0 fim do trabalho, eles destituem essa atividade do seu papel central na constitui¢io e consolidagao das iden- tidades individuais e coletivas, questo que nos ocu- a neste artigo € que, portanto, necessita ser mais aprofundada, ‘3 TRABALHO E IDENTIDADE A perspectiva aberta pelo pensamento marxiano foi aquela que, no meu entender, permitiu uma me- Ihor compreensio das possiveis relagdes entre traba- Iho e identidade. Ao propor na Ideologia Alema que ‘© homem € 0 que faz e como o faz", Marx e Engels, centendimento. Desde entio, el clucidar os processos de individuacao, a partir das formas de sociabilidade, passando-se a compreender a individualidade como “[..[ a sintese maxima da existéncia social, ou seja, [-] da produgio social”. (CHASIN, 2001), ‘A partir da propositura marxiana de que “a es- séncia humana € 0 conjunto das relagdes sociais” (VI se Ad-Feuerbach), e da compreensao de que o tra batho € uma categoria central e fundante nessa trama complexa que constitu cada forma de sociabilidade, abriu-se 0 caminho para a compreensio da identida- de como o resultado da agio do homem no mundo, Ou nos termos do proprio Marx, nos Manuscritos Econdmicos € Filosoficos de 1844: EE pramene wate de abraro meade elie ue 6 amar comega se fer um ser gen, Esse pra is prada a mata pare ome sta sre ¢ vemplandse em x08 Indo qe ole ra cin [.) (MARX pnd CHASIN, 2001, p. 56) Portanto, embora a agao humana nao se Te trinja ao trabalho, este passou a ser coneebido, a par- TTR PETSPECTNT ABET POF MAIR COMO METTATOT por exceléncia entre o homeme a natuseza, mas tam- bém como protoforma de todas as atividades huma- nas. Como tal, trata-se de uma atividade ineliminavel ja que seu desaparecimento implicaria na destruicio das bases que permitem a propria sobrevivencia hu- mana. (LUKACS, 1990). Ora, esta éa direcio oposta tomada pelosadep- tos das teses sobre o fim do trabalho, que negam sua centralidade nas atuais formas de sociabilidade e, conseqtientemente, seu papel nos processos de cons trugio e consolidacao das identidades. 4A GUISA DE CONCLUSAO Nao resta divida de que a posigio adotada por nds diante dese debate seré determinante para os rumos tomados pelo tema central deste artigo. Ou seja, se trabalho perdeu sua centralidade, se as ha- bilidades humanas sao cada vez mais supérfluas nos ° Exes guint oi se oe cde cum, cman, separates mes ce canard «regulon tance pa certo demu tomo coset autetzco, Eecaitespaecen io pat (olatato, ocueé, econ dedectioca ahead ura. (CL CLOT, 1005) ue oconsvapersura nears es coweces qe apatoran osseratecncocaTo ahem Paaarpols ce cesojanr aphid racamprentso dass: equioce Sa allade ANTUNES A005, 2000, alémc ota jit ORGANSTA JHC. (208) ue Teno, Bee Moron 12 Eaucagio & Tecnologia. @ atuais processos produtivos, se a condicio de desem- pregado ou de subempregado tornou-se quase banal €, portanto, nao necessariamente portadora de an- gistia, entio, a atividade laboral perdeu sua forca, estando, portanto, destituida do seu papel central nos processos de construgio identiciria No entanto, ao leitor atento das obras dos te- 6ricos da perda da centralidade do trabalho, nao es- ‘capa um fato essencial: eles apresentam poucas evi- déncias empiricas para sustentar suas teses € as re- duzidas evidencias que trazem si0, em geral, muito frigeis. Ou seja, a0 que parece, eles tentam sustenté- las mais pelo poder da argumentacdo (ou da perst- asio) do que através da empiria, no meu entender, cessencial quando se trata de embasar cientificamen- te qualquer tese Ao contrario, quando nos dirigimos para os autores que refutam 0 grupo anterior, as eviciéncias sio numerosas e revelam, de forma contundente, permanéncia do trabalho como uma categoria central ©, portanto, essencial na compreensao dos processos de construcio identitiria do homem contemporiineo, ‘Vejamos alguns desses resultados a) Muitas pesquisas revelam que o trabalho continua sendo visto pela maioria das pes- soas como a base essencial para a cons- trucdo da identidade, para integracio social e para a realizag2o pessoal. Robert E. Lane, por exemplo, apoiado por um vasto conjunto de dados, “rompe com- pletamente”, de acordo com Perret (1997), com a visio sacrificial do traba Iho veiculada pelo pensamento econdmi- co (0 trabalho como um tempo sacrifica do em vista de uma realizacio pessoal na esfera do lazer); b) Recentemente, Organista, J.H.C (2006, op.cit., p. 20) divulgou os fesultados de ‘uma pesquisa realizada com camelés, cons- tatando que, embora fagam parte de um grupo desfavorecido submetido a condi laborais extremamente precarias, es- ses individuos nao percebem 0 trabalho apenas como fonte de subsisténcia, mas como “um modelo de reconhecimento miituo, ou seja, € também pelo trabalho que [...] se reconhecem como agentes sociais moralmente aceitaveis.” E mais do que isso: a pesquisa revelou que “[...] é forte e presente, especificamente junto aos camelds, a idéia de que o trabalho, ainda que precario, ocupa posicao central e estruturante em suas vidas.” (id. p. 21) Ow seja, embora exercam uma atividade que, no limite, “[...] 0s excluem da cidadania regulada pelo carteira de trabalho assina + Os mata cat etucdo fran esunidera Folate Sia Pala 9002002 da, os camelos constroem suas represen- tagbes como trabalhadores ¢ véem suas atividades para além da satisfacio de ne- cessicades imediatas”. (id. p.21) O autor coneluiu que , “[...] na auséncia de uma insercio formal, de perspectivas de car reira e de aposentadoria, o trabalho pre- Cério e informal, mesmo com todas as di ficuldades, consolida a condicao de ser trabalhador. F ser trabalhador € construir sonhos, desejos e perspectivas de futuro que se fundam no trabalho, mas que se remetem para alem dele, fatores que se em quando se € ho ale gum.” (id. p. 24); ©) E interessante ressaltar que todos esses re- sultados revelam também que as atividades no remuneradas nao suprem esse papel, ‘mesmo quando estas podem ser vistas como trabalho, nao do as pessoas © mesmo sen: so de realizacio, além de fazé-las sentir-se A margem dos acontecimentos; ) Outros estudos revelam que o afastamen- to do trabalho, seja por doenca, aciden. te, desemprego ou mesmo aposentado- ria, continua a ser fonte de grande softi mento € de vazio existencial, agravando os quadros de adoecimento ji existentes ou criando outros. Isto ocorre mesmo nos paises em que os desempregados contam com protecio material. Uma evidencia re- cente disto veio de uma pesquisa reali zada em 17 paises, por um psicdlogo francés, Dominique Clavier, constatando que 0 desemprego, quando persiste por muito tempo, pode ocasionar distirbios como doencas cardio-vasculares, proble- mas neurolégicos, insOnia e dificuldades sexuais. O estudo concluiu que a perda do trabalho provoca rupturas na identi- dade e auséncia de referéncia, além de pequenos ou grandes traumas com diver sas implicacOes: baixa auto-estima, res. sentimento, sensacio de abandono, de in: competéncia, de frustracio e culpa: ins: abilidade emocional, caracterizada por inseguranca, ansiedade, angiistia, estresse € depressio; abuso de drogas € de Alco: ol; sentimento de exclusio social, abalo das relagdes familiares e sociais; mudan- cas no poder aquisitivo; deteriora satide fisica; tentativas de sui (RAMTIN, apud ANTUNES, 2000, p. 133) fala também do estranhamento daqueles que estio “[...] permanentemente desem- pregados ou desempregiveis", dizendo que a realidade de sua alienacio “[...] significa ndo somente a extensao da im- poténcia ao limite, mas uma ainda maior intensificacio da desumanizacio fisica € espiritual”. Muitas outras pesquisas con- firmam esses resultados € colocam em xeque a conclusio de Offe (1989) sobre ‘© enfraquecimento do estigma do desem- prego e sobre a tendéncia a quase nor- malidade da condigao do desempregado nos paises mais ricos.* Enfim, conforme ja disse em imimeras oca- sides, 0 reconhecimento de que o mundo do traba- Tho tem passado por transformacdes importantes, que as tecnologias estio desempregando, que se produz muito mais atualmente, com um contingen- te muito menor de empregados, ndo implica, abso- lutamente, na conclusio de que 0 trabalho perdeu sua centralidade ou 0 seu valor na constituigio das identidades, que 0 desemprego tornou-se algo nor- mal, que as pessoas estio prontas para redirecionar seus anseios para outros campos. Diante dos resul- tados acima reportados, é impossivel deixar le lem- brar da fina ironia de Negri e Hardt, quando con. cluiram que existem aqueles que conseguem “|...] excluir o trabalho da esfera teérica, mas nao po: dem, em todo caso, excluilo da realidade.” (apud ANTUNES, 2000, p. 130) 5 ABSTRACT ‘This article is about the recently introduced changes in the laboral context and their possible repercussions in questions related to building identity process. Starting from the debate about the work centrality in contemporaneous society, the author discuss the possibilities of this activity continue to Offer the bases for the construction and consolidation of individuals and collectives identities. 6 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses ¢ a centralidade do mundo do trabalho. Sio Paulo: Cortez, 1995. Faucagio & Tecnologia ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho — ensaio sobre 4 afirmagio e a negacio do trabalho. 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Pamagucles ce sites pos esutcs deta cesses pens gins tun de SLA 10041007) ¢BOAGES (200), sito etic walndo omafabactie retainer cubmet dasa ces ce nga cig ba" slate gue contra ier squatconconace poke pesucaeaci, VectareamiA 2 BOAGES(02| Unrdegraio eu eos trav onnno ce faacates asso’ prebias cece, ba gaae eres Se, ‘eilachranerte oapravenera ce raredos uadozepscodesanera Tudo ncaave, mesma aM cases cana aoe, dng quatoo Fabaha aoa seas Mindecamaarpcrecmartosico aio ieardveasertnern deinaedoe doves aiSera ue Teno, Bee Moron 12 Eaucagio & Tecnologia. @ have da Sociologia? io Paulo, COFFE, C. Trabalho: categoria Revista Brasileira de Ciéncias Soci: 1. 10, v.14, jun. 1989. ORGANISTA, J. H.C. O debate sobre a centralidade do trabalho. Sio Paulo: Ed. Expres- so Popular, 2006, PERRET, B, Lavenir du travail: des tendances contradictoires. In: BOISARD, P et al. Le travail ~ quelle avenir? Paris: Editions Gallimard, 1997. SILVA, S. E. Desgaste mental no trabatho domina- do. Sio Paulo: Cortez, 1994. 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