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O DISCURSO DA HISTORIA A descrico formal dos conjuntos de palavras superiores & frase (a que se chamard, por comodidade, discurso) nao data de hoje: de Gérgias ao século XIX, foi objeto préprio da antiga retérica. Os desenvolvimentos recentes da ciéncia lingiiistica lhe dao, entretan- to, nova atualidade e novos meios: talvez uma lingiifstica do dis- curso seja doravante possfvel; em raz4o de suas incidéncias na and- lise literdria (cuja importancia no ensino é conhecida), ela cons- titui mesmo uma das principais tarefas da semiologia. Essa lingiifstica segunda, a0 mesmo tempo que deve buscar 0s universais do discurso (se ¢ que existem), sob forma de unidades e de regras gerais de combinaco, deve evidentemente decidir se a andlise estrutural permite conservar a antiga tipologia dos discursos, se ainda é legitimo opor o discurso poético ao discurso romanes- co, a narrativa de ficcdo & narrativa histérica. A respeito desse ul- timo ponto € que se gostaria de propor aqui algumas reflexdes: a nar- ragao dos acontecimentos passados, submetida comumente, em 163 | O rumor da lingua | nossa cultura, desde os gregos, 4 sangao da “ciéncia” histérica, co- locada sob a caucdo imperiosa do “real”, justificada por princfpios de exposigao “racional”, essa narragao difere realmente, por algum trago especifico, por uma pertinéncia indubitavel, da natragdo ima- gindria, tal como se pode encontrar na epopéia, no romance, no drama? E, se esse trago — ou essa pertinéncia — existir, em que lu- gar do sistema discursive, em que nivel da enunciagio deverd colo- car-se? Para tentar sugerir uma resposta a essa pergunta, observar- se-4 aqui, de maneira livre, nada exaustiva, 0 discurso de alguns grandes historiadores cléssicos, tais como Herédoto, Maquiavel, Bossuet e Michelet. 1. Enunciagao Em primeiro lugar, em que condigées 0 historiador cléssico é levado — ou autorizado — a designar, cle proprio, no seu discurso, © ato pelo qual o protere? Em outros termos, quais sao, no nivel do discurso — e n4o mais da lingua -, os shifters (no sentido que Jakobson dé ao termo!) que permitem a passagem do enunciado a enunciacio (ou inversamente)? Parece que 0 discurso histérico comporta dois tipos regulares de embreantes. Q primeira tipo retine o que se poderia chamar de embreantes de escuta. Essa categoria foi identificada, em nivel de lin- gua, por Jakobson, sob o nome de testimonial e sob a formula C:Ca'/Ca’: além do evento relatado (C’), 0 discurso menciona, ao mesmo tempo, o ato do informador (Ca') e a palavra do enun- ciante que a ele se refere (Ca’). Esse shifter designa, ento, toda 1. R. Jakobson, Eisais de linguistique générale, op. cit, cap. IX. 164 | Da histéria ao real | mencio das fontes, dos testemunhos, toda referéncia a uma escuta do historiador, recolhendo um albures do seu discurso ¢ dizendo-o. A escuta explicita € uma escolha, pois ¢ possfvel no se referir a ela; ela aproxima o historiador do etndlogo quando menciona o seu informante; encontra-se, pois, abundantemente esse shifier nos historiadores-etndlogos, como Herédoto. Suas formas sao variadas: vao das incisas do tipo como ouvi dizer, pelo que é do nosso conhe- cimento, ao presente do historiador, tempo que atesta a intervengao do enunciador, ¢ a toda mengao da experiéncia pessoal do histo- tiador; é 0 caso de Michelet que “escuta” a Histéria da Franca a partir de uma iluminagao subjetiva (a revolugao de julho de 1830) e menciona isso em seu discurso. O shifier da escuta nao é, eviden- temente, pertinente ao discurso histérico: encontramo-lo com freqiiéncia na conversagdo e em certos artificios de exposigéo do romance (casos contados segundo certos informantes ficticios de que se faz mengo). O segundo tipo de shifiers cobre todos os signos declarados pelos quais o enunciante, no caso o historiador, organiza o seu pré- prio discurso, retoma-o, modifica-o durante o percurso, enfim, dis- pée pontos explicitos de referéncia. E um shifier importante, ¢ os “organizadores” do discurso podem receber expressdes variadas; podem reduzir-se todas, entretanto, & indicaco de um movimento do discurso com relagdo 4 sua matéria, ou, mais exatamente, ao longo dessa maréria, 11m ponco a moda dos déiticos temporais ou locativos eis aquileis af; teremos entao, com relacao ao fluxo da enunciagao: a imobilidade (como dissemos acima), a volta-acima (altius repetere, replicare da pit alto luogo), a volta-abaixo (ma ritor- nando all ordine nostro, dico come...), a parada (sobre ele, nada acres- centaremos), 0 anuincio (eis as outras acoes dignas de meméria que ele praticou durante o seu reinado). O shifter de organizagao coloca um problema importante, que nao podemos mais do que indicar 165 | O rumor da lingua | aqui: 0 que nasce da coexisténcia, ou melhor, do atrito de dois tempos — 0 tempo da enunciagao ¢ o tempo da materia enuncia- da. Esse atrito dé azo a importantes fatos de discurso; citaremos trés. O primeiro remete a todos os fendmenos de aceleragao da histéria; um mesmo ntimero de “pdginas” (se tal é a medida gros- seira do tempo da enunciag4o) cobre lapsos de tempo variados (tempo da matéria enunciada): na Histéria de Florenca, de Ma- quiavel, a mesma medida (um capitulo) cobre aqui varios séculos e acold uns vinte anos apenas; quanto mais nos aproximamos do tempo do historiador, mais forte se faz a presso da enunciagao, mais lentamente caminha a histéria; nao hd isocronia — 0 que é atacar implicitamente a linearidade do discurso e 0 que deixa transparecer um “paragramatismo” possfvel da palavra historica’, O segundo fato lembra também, a sua maneira, que o discurso, embora materialmente linear, confrontado com 0 tempo histéri- co, tem por encargo, parece, aprofundar esse tempo: trata-se do que se poderia chamar de histéria em ziguezague ou denteada: assim, para cada personagem que aparece nas suas Histérias, He- rédoto remonta aos ancestrais do recém-chegado, depois volta ao ponto de partida para continuar um pouco mais adiante — € re- comegar. Enfim, um terceiro fato de discurso, consideravel, ates- ta o papel destrutor dos shifters de organizacao com relacao ao tempo crénico da histéria: trata-se das inauguragées do discurso histérico, lugares onde se encontram 0 comeg¢o da matéria enun- ciada e 0 exérdio da enunciagao*. O discurso da histéria conhe- 2. Seguindo J. Kristeva (“Bakhtine, le mot, le dialogue et le roman”, Critique, n? 239, abril de 1967, pp. 438-465), designaremos sob o nome de paragramatismo (derivado dos Anagra- mas de Saussure) as escritas duiplices, que contém um diflogo do texto com outros textos, postulians unt uv Iogiva, 3. O exérdio (de todo discurso) coloca um dos problemas mais interessantes da retérica, na medida em que é codificagio das rupturas de siléncio e luta contra a afasia. 166 | Da historia ao real | ce, em geral, duas formas de inauguracao: primeiro, 0 que se po- deria chamar de abertura performativa, pois a palavra af é verda- deiramente um ato solene de fundacao; 0 seu modelo € poético, €0 eu canto dos poetas; assim, Joinville comega a sua histéria com um apelo religioso (“Em nome de Deus Todo-Poderoso, eu, Jehan, se- nhor de Joinville, fago escrever a vida de nosso Santo rei Luts”), e 0 proprio socialista Louis Blanc nao desdenha 0 intréito purifica- dor’, de tal modo o principio da fala mantém sempre algo de di- ficil — digamos de sagrado; em seguida, uma unidade muito mais corrente, o Prefacio, ato caracterizado de enunciagio, seja pros- pectiva quando anuncia o discurso a seguir, seja retrospectiva quan- do o julga (€ 0 caso do grande Prefécio com que Michelet coroou a sua Histoire de la France, wma ver que fora inteiramente termina- da e publicada). A retomada dessas poucas unidades visa a sugerit que a entrada da enunciag4o no enunciado histérico, através dos shifters organizadores, tem por finalidade nao tanto dar ao historia- dor possibilidade de exprimir a sua “subjetividade”, como geral- mente se diz, quanto “complicar” 0 tempo crénico da histéria con- frontando-o com outro tempo, que é 0 do préprio discurso, e que se poderia chamar, por condensagao, o tempo-papel; em suma, a presenga, na narragao histérica, de signos explicitos de enuncia- cdo visaria a “descronologizar” 0 “fio” histérico e a reconstituir, mesmo a titulo de mera reminiscéncia ou nostalgia, um tempo complexo, paramétrico, de modo algum linear, cujo espago pro- fundo lembraria 0 tempo mitico das antigas cosmogonias, tam- bém ele ligado por esséncia a palavra do poeta ou do adivinho; os 4, “Antes de tomar da pena, interroguei-me severamente e, como nao encontrasse em mim nem afeigdes interessadas nem édios implacéveis, pensei que poderia julgar os homens ¢ as coisas sem faltar com a justiga e sem trair a verdade” (L. Blanc, Histotre de dix ans, Pax ris, Pagnerre, 1842, 6 vols.). 167 | Orumor da lingua | shifters de organizacao atestam, com efeito — mesmo por certas di- gressées de aparéncia racional —, a fungao preditiva do historiador: é na medida em que ele sabe 0 que ainda nao foi contado que o historiador, tal qual o agente do mito, tem necessidade de dupli- car 0 escoamento crénico dos acontecimentos por referéncias ao tempo préprio de sua palavra. Os signos (ou shifters) de que se acabou de falar apenas di- zem respeito ao préprio processo de enunciagao. Ha outros que ja. nao mencionam 0 ato de enunciagao, mas, na terminologia de Jakobson, os seus protagonistas (T°), destinatério ou enunciador. E fato notdvel ¢ bastante enigmatico nao comportar o discurso li- terdrio, sendo muito raramente, signos do “leitor”; pode-se até dizer que aquilo que o especifica é ser — aparentemente — um discurso sem tu, embora na realidade toda a estrutura desse discurso im- plique um “sujeito” da leitura. No discurso histérico, os signos de destinacdo estéo geralmente ausentes: apenas serao encontrados quando a Histéria se d4 como uma li¢do; ¢ 0 caso da Histéria uni- versal, de Bossuet. discurso enderegado nomeadamente pelo pre- ceptor ao principe, seu aluno; mesmo assim, esse esquema sé é possivel, de certo modo, na medida em que o discurso de Bossuet se considera como reproduzindo homologicamente o discurso que o préprio Deus mantém com os homens, precisamente sob forma da Histéria que lhes dé: € porque a Histéria dos homens é a Es- critura de Deus que Bossuet, mediador dessa escritura, pode es- tabelecer uma relacao de destinacao entre 0 jovem principe e ele. Os signos do enunciador (ou destinador) sao evidentemente muito mais freqiientes; devemos arrolar, nesse caso, todos os frag- mentos de discurso em que o historiador, sujeito vazio da enun- ciagfo, vai-se pouco a pouco enchendo de predicados variados des- tinados a fund4-lo como uma pessoa, provida de uma plenitude 168 | Da historia ao real | psicoldgica, ou ainda (0 termo é preciosamente repleto de ima- gens) de uma canrinéncia. Assinalar-se-4 aqui uma forma particular desse “preenchimento”, que diz respeito mais diretamente a critica literdria. Trata-se do caso em que o enunciador entende “ausen- tar-se” do seu discurso e em que ha, conseqiientemente, caréncia sistematica de qualquer signo que remeta ao emissor da mensagem histérica: a histéria parece contar-se sozinha. Esse acidente tem uma carreira considerdvel, pois que corresponde de fato ao dis- curso histérico dito “objetivo” (em que o historiador jamais inter- vém). Na realidade, nesse caso, o enunciador anula a sua pessoa pas- sional, mas a substitui por outra pessoa, a pessoa “objetiva”: 0 su- jeito subsiste em sua plenitude, mas como sujeito objetivo; & 0 que Fustel de Coulanges chamava significativamente (e com bas- tante singeleza) de “castidade da Histéria”. Em nivel de discurso, a objetividade — ou caréncia dos signos do enunciante — aparece as- sim como uma forma particular de imagindrio, o produto do que se poderia chamar de ilusao referencial, visto que o historiador pretende deixar o referente falar por si s6. Essa ilusio nao é exclusi- va do discurso histérico: quantos romancistas — na época realista — imaginam ser “objetivos” porque suprimem no discurso os sig- nos do eu! A lingiiistica e a psicandlise conjugadas deixam-nos hoje muito mais hicidos com relagao a uma enunciagao privativa: sabemos que as caréncias dos signos sao também significantes. Para terminar rapidamente com a enunciacao, temos de men- cionar o caso particular ~ previsto por Jakobson, em nivel de lin- gua, na tabela de seus shiffers — em que o enunciador do discurso € ao mesmo tempo participante do processo enunciado, em que © protagonista do enunciado ¢ o mesmo protagonista da enuncia- géo (T/T), em que o historiados, ator quando do evento, dele se torna o narrador: é 0 caso de Xenofonte, participante da retirada 169 | O rumor da lingua | dos Dez Mil e dela se tornando depois 0 historiador. O exemplo mais ilustre dessa conjungao do ew enunciado com o ew enun- ciante é, sem dtivida, o ele de César. Esse célebre ele pertence ao enunciado; quando César se torna explicitamente enunciante, passa ao nds (ut supra demonstravimus). O ele cesariano mostra-se, a pri- meira vista, mergulhado em meio aos outros participantes do pro- cesso enunciado e, por causa disso, viu-se nele o signo supremo da objetividade; parece, entretanto, poder-se diferencid-lo formal- mente. Como? Observando que os seus predicados sao constan- temente selecionados: o ele cesariano sé suporta certos sintagmas que poderfamos chamar de sintagmas do chefe (dar ordens, reunir e presidir assembléias, visitar, mandar fazer, felicitar, explicar, pen- sar), muito préximos, de fato, de certos performativos cm que a palavra se confunde com 0 ato. Ha outros exemplos deste ede, ator passado e narrador presente (particularmente em Clausewitz): mos- tram que a escolha do pronome apessoal nao passa de um dlibi re- térico ¢ que a verdadeira situagao do enunciante se manifesta na escolha dos sintagmas com que cerca os seus atos passados. 2. Enunciado O enunciado histérico deve prestar-se a um recorte destina- do a produzir unidades do contetido, que se poderé classificar em seguida. Essas unidades do contetido representam aquilo de que fala a histéria; como significados, nao séo nem o referente puro nem o discurso completo: 0 conjunto delas é constituido pelo referen- te delineado, nomeado, jé inteligfvel, mas ainda nao submetido a uma sintaxe. Nao se empreenderd aqui a tarefa de aprofundar essas classes de unidades, o trabalho seria prematuro; limitar-nos-emos a algumas observagées prévias. 170 | Da histéria ao real | O enunciado histérico, assim como o enunciado frdsico, com- porta “existentes” e “ocorrentes”, seres, entidades e seus predicados. Ora, um primeiro exame deixa prever que uns e outros (separa- damente) podem constituir listas relativamente fechadas, por conse- guinte passfveis de dominar, em suma, colegdes, cujas unidades aca- bam por repetir-se mediante combinagoes evidentemente vari veis; assim, em Herdédoto, os existentes reduzem-se a dinastias, principes, generais, soldados, povos ¢ lugares; e os ocorrentes, a agées tais como devastar, submeter, aliar-se, fazer uma expedicao, reinar, langar mao de um estratagema, consultar o ordculo, etc. Sendo essas colegdes (relativamente) fechadas, devem oferecer-se accertas regras de substituicao ¢ de transformacao, e deve ser pos- sfvel estruturd-las — tarefa de maior ou menor dificuldade, eviden- temente, conforme os historiadores; as unidades herodotianas, por exemplo, dependem, em linhas gerais, de um tinico léxico, 0 da guerra; seria uma questao de saber se, para os historiadores mo- dernos, devem-se esperar associag6es mais complexas de léxicos di- ferentes € se, mesmo nesse caso, 0 discurso histérico nao é sem- pre fundamentado, finalmente, em colegdes fortes (é melhor fa- lar de colegdes, nao de léxicos, pois ficamos aqui apenas no plano do contetido). Maquiavel parece ter tido a intuigao dessa estrutu- ta: no inicio de sua Histéria de Florenca, ele apresenta a sua “cole- 40”, isto é, a lista dos objetos juridicos, politicos, étnicos, que se- r4o a seguir mobilizados e combinados na sua narracao. No caso de colegdes mais fluidas (em historiadores menos arcaicos do que Herédoto), as unidades do contetido podem, to- davia, receber uma estruturagao forte nao do léxico, mas da tema- tica pessoal do autor; tais objetos tematicos (recorrentes) s4o nume- rosos num historiador romantico como Michelet; mas podemos perfeitamente encontré-los em autores tidos como intelectuais: 171 | O ramor da lingua | em Tacito, a fama é uma unidade pessoal, e Maquiavel assenta a sua histéria em uma oposicgao tematica, a do mantenere (verbo que remete a energia fundamental do homem de governo) ao ruinare (que, ao contrario, implica uma légica da decadéncia das coisas)’. Escusado dizer que, através dessas unidades tematicas, 0 mais das vezes prisioneiras de uma palavra, reencontramos unida- des do discurso (e nao mais apenas do contetido); atingimos as- sim o problema da denominagao dos objetos histéricos: a palavra pode economizar uma situacdo ou uma seqiiéncia de ages; ela fa- vorece a estruturacao na medida em que, projetada em contetido, ela propria é uma pequena estrutura; assim Maquiavel se serve da conjuragdo para economizar a explicagao de um dado complexo, designando a tinica possibilidade de luta que subsiste quando um governo é¢ vitorioso de todas as inimizades declaradas abertamen- te. A denominagao, ao permitir uma articulagao forte do discur- so, reforca-lhe a estrutura; as histérias fortemente estruturadas sao histérias substantivas: Bossuet, para quem a histéria dos ho- mens é estruturada por Dens, usa ahundantemente das seqiién- cias de condensados substantivos’. Essas observagées dizem respeito tanto aos ocorrentes quan- to aos existentes. Os préprios processos histéricos (seja qual for o seu desenvolvimento terminoldgico) levantam — entre outros — um problema interessante: o de seu estatuto. O estatuto de um pro- cesso pode ser assertivo, negativo, interrogativo. Ora, o estatuto do discurso histérico é uniformemente assertivo, constativo; 0 5. Cf. E, Raimondi, Opere di Niccolo Macchiavelli, Miléo, Ugo Mursia, 1966. 6. Exemplo: “Nisto se vé, antes de tudo, a inocéncia ¢ a sabedoria do jovem José...; seus sonhos misteriosos...; seus irmios enciumados...; a venda desse grande homem...; a fidelidade que ele muntém para win o seu an... ua Castidade wdsnitével a9 perseguigGes que ela lhe atrai sua prisio e sua constancia...” (Bossuet, Discours sur [Histoire universelle, in Oeuvres, Paris, Gallimard, “Bibl. de La Pléiade”, 1961, p. 674). 172 | Da historia ao real | fato histérico est ligado lingiiisticamente a um privilégio de ser: conta-se 0 que foi, nfo 0 que nao foi ou o que foi duvidoso. En- fim, o discurso histérico desconhece a negagao (ou conhece rara- mente, de maneira excéntrica). Esse fato pode ser curiosamente — mas significativamente — posto em confronto com a disposi¢ao que se encontra num enunciante bem diferente do historiador, que € 0 psicético, incapaz de aplicar a um enunciado uma transfor- magao negativa’; pode-se dizer que, em certo sentido, o discurso “objetivo” (é 0 caso da histéria positivista) alcanga a situacdo do discurso esquizofrénico; num caso como no outro, hd censura ra- dical da enunciagao (cujo sentimento, ¢ sé ele, permite a trans- formacio negativa), refluxo macigo do discurso para o enunciado € mesmo (no caso do historiador) para o referente: ninguém esta presente para assumir o enunciado. : Para abordar um outro aspecto, essencial, do enunciado his- t6rico, hé que se dizer uma palavra sobre as classes de unidade do contetido, e sua sucessao. Essas classes s40, a0 que indica uma pri- meira sondagem, as mesmas que se acreditou poder descobrir na narrativa de ficc4o*. A primeira classe cobre todos os segmentos do discurso que remetem a um significado implicito, segundo um processo metaféric dos trajes, a alteracéo dos brasées ¢ a mistura dos estilos arquite- ; assim, Michelet descreve 0 multicolorido ténicos, no come¢o do século XV, como significantes de um sig- nificado unico: a divisio moral da Idade Média que esta termi- nando; essa classe é, entdo, a dos indices, ou, mais exatamente, dos signos (é uma classe muito abundante no romance cldssico). A se- L. Irigaray, “Négation et transformation négative dans le langage des schizophrénes’, Langages, n® 8, marco de 1967, pp. 84-98. 8. CF. "Introduction & I'analyse structurarle du récie’, Communications, n? 8, novembro de 1966. (Retomado na col. “Points Essais” Ed. du Seuil, 1981.) 173 | Orumor da lingua | gunda classe de unidades é constitufda pelos fragmentos do dis- curso de natureza arrazoadora, silogistica, ou, mais exatamente, entimemitica, pois que se trata quase sempre de silogismos imper- feitos, aproximativos’. Os entimemas nao so propriedade do dis- curso histérico; sao freqiientes no romance, onde as bifurcagées do entrecho sao, em geral, justificadas aos olhos do leitor por pseudo- arrazoados de tipo silogistico. O entimema dispde no discurso histérico um inteligfvel nao simbdlico, ¢ € nisso que ¢ interessan- te: subsiste ele nas histérias recentes, cujo discurso tenta romper com o modelo cldssico, aristotélico? Enfim, uma terceira classe de unidades — e n4o a menor — recebe aquilo a que se chama, desde Propp, as “fungoes” da narrativa, ou pontos cardeais de onde o en- redo pode tomar um andamento diferente; essas fung6es agrupam- se sintagmaticamente em segmentos fechados, logicamente satu- rados, ou seqiiéncias; assim, em Herédoto, encontra-se, repetidas vezes, uma seqiiéncia Ordculo, composta de trés termos, dos quais cada um é alternativo (consultar ou nio, responder ou nfo, seguir ou nfo), € que podem ser separados uns dos outros por outras unidades estranhas & seqiiéncia: essas unidades ou sao termos de outra seqiiéncia, e o esquema é entao de imbricagao, ou sao ex- pans6es menores (informagoes, indices), e o esquema é entéo o de uma catdlise que preenche os intersticios dos niicleos. Generalizando — talvez abusivamente — essas poucas observa- 6es sobre a estrutura do enunciado, pode-se sugerir que o discur- so histérico oscila entre dois pdlos, segundo a densidade respectiva de seus indices e fungdes. Quando as unidades indiciais, num his- toriador, predominam (remetendo a cada instante a um significa- 9. Eis 0 esquema silogistico de uma passagem de Michelet (Histoire du Moyen Age, t. IIL liv. VI, cap. II): 1) Para desviar 0 povo da revolta, é preciso ocupé-lo. 2) Ora, o melhor meio é langar-lhe um homem. 3) Portanto, os principes escolheram o velho Aubriot, etc 174 | Da historia ao real | do implicito), a Histéria é levada para uma forma metaférica ¢ se avizinha do lirico ¢ do simbélico: ¢ 0 caso, por exemplo, de Miche- let. Quando, pelo contrdrio, sao as unidades funcionais as predo- minantes, a Histéria toma uma forma metonimica, aparenta-se & epopéia: poder-se-ia dar como exemplo puro dessa tendéncia a hist6ria narrativa de Augustin Thierry. Existe, para dizer a verdade, uma terceira Histéria: aquela que, pela estrutura do discurso, ten- ta reproduzir a estrutura das escolhas vividas pelos protagonistas do processo relatado; nela predominam os raciocfnios; é uma his- t6ria reflexiva, a que se pode chamar ainda histéria estratégica, e Maquiavel seria o seu melhor exemplo. 3. Significagao Para que a Histéria néo signifique, é necessério que o discurso se limite a uma pura série inestruturada de anotagGes: ¢ 0 caso das cronologias e dos anais (no sentido puro do termo). No discurso histérico constitufdo (“forrado”, poderfamos dizer), os fatos rela- tados funcionam irresistivelmente quer como {ndices, quer como nticleos cuja seqiiéncia mesma tem valor indicial; e, mesmo quan- do os fatos fossem apresentados de maneira anarquica, eles signifi- cariam pelo menos a anarquia e remeteriam a certa idéia negativa da histéria humana. Os significados do discurso histérico podem ocupar pelo me- nos dois niveis diferentes. Hé primeiro um nivel imanente 4 maté- ria enunciada; esse nivel detém todos os sentidos que o historia- dor dé voluntariamente aos fatos que relata (0 multicolorido dos trajes do século XV para Michelet, a importancia de certos con- flitos para Tuctdides, etc.); dessa espécie podem ser as “ligdes”, ou 175, | O rumor da lingua | morais ou polfticas, que o narrador tira de certos episédios (Ma- quiavel, Bossuet). Se a “licéo” é continua, atinge-se um segundo nivel, o de um significado que transcende a todo o discurso his- t6rico, transmitido pela temética do historiador, que se tem direi- to de identificar 4 forma do significado; assim, a imperfeicao mesma da estrutura narrativa em Herédoto (nascida de certas sé ries de favos sem fechamento) remete finalmente a certa filosofia da Histéria, que é a disponibilidade do mundo dos homens sob a lei dos deuses; assim também, em Michelet, a estruturagao fortis- sima dos significados particulares, articulados em oposigées (an- titeses no nivel do significante), tem como sentido final uma fi- losofia maniqueista da vida e da morte. No discurso histérico da nossa civilizag4o, 0 processo de significacao visa sempre a “preen- cher” o sentido da Histéria: o historiador é aquele que retine me- nos fatos do que significantes e os relata, quer dizer, organiza-os com a finalidade de estabelecer um sentido positivo e de preen- cher 0 vazio da série pura. Como se vé, por sua propria estrutura e sem que haja neces- sidade de recorrer 4 substancia do contetido, o discurso histérico é essencialmente elaboracao ideoldgica, ou, para ser mais preciso, imagindrio, se é verdade que o imagindrio é a linguagem pela qual o enunciante de um discurso (entidade puramente lingii(stica) “preenche” o sujeito da enunciagao (entidade psicoldgica ou ideo- ldgica). Compreende-se daf que a nogao de “fato” histérico tenha muitas vezes suscitado, aqui ¢ ali, certa desconfianga. Jé dizia Nietz- sche: “Nao existe fato em si. E sempre preciso comecar por intro- duzir um sentido para que haja um fato.” A partir do momento em que a linguagem intervém (e quando nao interviria?), 0 fato s6 pode ser definido de maneira tautoldgica: o notado procede do 176 | Da historia ao real | notdvel, mas o notavel nao é — desde Herddoto, quando a palavra perdeu a sua acepcdo mitica — sendo aquilo que é digno de me- méria, isto é, digno de ser notado. Chega-se assim a esse paradoxo que pauta toda a pertinéncia do discurso hist6rico (com relagéo a outros tipos de discurso): o fato nunca tem mais do que uma exis- téncia lingiifstica (como termo de um discurso), ¢, no entanto, tudo se passa como se essa existéncia ndo fosse sendo a “cépia” pura e simples de uma outra existéncia, situada num campo ex- tra-estrutural, o “real”. Esse discurso é, sem duvida, 0 unico em que o referente é visado como exterior ao discurso, sem que nun- ca seja, entretanto, possivel atingi-lo de fora do discurso. Faz-se, pois, necessdrio indagar com mais precisdo qual o lugar do “real” na estrutura discursiva. O discurso histérico supée, se assim se pode dizer, uma du- pla operacio, bastante arrevesada. Num primeiro momento (essa de- composigao nao é, evidentemente, mais que metaférica), 0 refe- rente é destacado do discurso, fica-lhe exterior, fundador, é con- siderado como seu regulador: é 0 tempo das res gestae, e 0 discutso se dd simplesmente como histéria rerum gestarum; mas, num segun- do momento, é 0 préprio significado que é rechacado, confundido no referente; o referente entra em relagao direta com o significan- te e o discurso, encarregado apenas de exprimir o real, acredita fa- zer a economia do termo fundamental das estruturas imagindrias, que € 0 significado. Como todo discurso de pretensfo “realista”, o da hist6ria acredita conhecer apenas um esquema semantico de dois termos, o referente ¢ o significante; a confusio (iluséria) do referente com o significado define, como se sabe, os discursos sui- referenciais, como o discurso performative; pode-se dizer que 0 discurso histérico é um discurso performativo com trucagem, em 177 | O rumor da lingua | que o constativo (0 descritivo) aparente nao é de fato mais do que 0 significante do ato de palavra como ato de autoridade"®. Em outros termos, na histéria “objetiva’, o “real” nunca é mais do que um significado nao formulado, abrigado atrés da onipoténcia aparente do referente. Essa situaco define 0 que se poderia chamar de efeito do real. A climinagao do significado pa- ra fora do discursu “objetivo”, deixande confiontat-se aparen- temente o “real” com sua expressao, nao deixa de produzir um novo sentido, tanto é verdade, uma vez mais, que, num sistema, toda caréncia de elemento ¢ ela prépria significante. Esse novo sentido — extensivo a todo o discurso histérico e que finalmen- te define a sna perrinéncia — é 9 proprio real, transformado sub- repticiamente em significado vergonhoso: o discurso histérico nao acompanha o real, nao faz mais do que signific4-lo, repetin- do continuamente aconteceu, sem que essa asser¢ao possa ser ja- mais outra coisa que nao o reverso significado de toda a nar- ragao histérica. O prestigio do aconteceu tem uma importancia ¢ uma ampli- tude verdadeiramente histéricas. HA um gosto de toda a nossa civi lizagao pelo efeito de real, atestado pelo desenvolvimento de géne- ros especificos como 0 romance realista, 0 didrio intimo, a litera- tura de documento, o fait divers, o museu histérico, a exposigo de objetos antigos, e principalmente o desenvolvimento macigo da fotografia, cujo tinico trago pertinente (comparada ao dese- nho) ¢ precisamente significar que 0 evento representado rea/- 10. Thiers exprimiu com muita pureza e singeleza essa ilusd0 referencial, ou essa confusio do referente com o significado, fixando assim o ideal do historiador: “Ser simplesmen- te verdadeiro, ser 0 que so as préprias coisas, nfo ser nada mais do que elas, nada ser se- no por elas, como elas, ranto quanto elas.” (Citado por C. Jullian, Historiens francais du XIX sitcle, Paris, Hachette, s.d., p. LXIII.) 178 | Da historia ao real | mente se deu’. Secularizada, a relfquia nada mais detém de sagra- do, a nfo scr esse sagrado mesmo que est ligado ao enigma da quilo que foi, que ja nao é e que se da, no entanto, a ler como sig- no presente de uma coisa morta. Inversamente, a profanacao das reliquias é de fato destruigao do préprio real, a partir dessa intui- sao de que o real nunca € mais do que um sentido, revogavel quan- do a histéria o exige e pede uma verdadeira subversao dos prdprios fandamentos da civilizagio”. Por recusar assumir 0 real como significado (ou ainda destacar o referente de sua simples asserg4o), compreende-se que a histéria tenha chegado, no momento privilegiado em que tentou consti- tuir-se em género, isto é, no século XIX, a ver na relagdo “pura e simples” dos fatos a melhor prova desses fatos, ¢ instituir a narra- co como significante privilegiado do real. Augustin Thierry fez- se tedrico dessa histéria narrativa, que busca a sua “verdade” no cuidado mesmo com a narra¢do, na arquitetura de suas articula- ges e na abundancia de suas expansdes (chamadas, no caso, de “pormenores concretos”*. Fecha-se, assim, 0 circulo paradoxal: a estrutura narrativa, elaborada no cadinho das ficgdes (através dos mitos e das primeiras epopéias), torna-se, a uma sé vez, signo ¢ prova da realidade. Assim, compreende-se que 0 apagamento (se 11. CE. “La thétorique de l'image”, Communications, n? 4, novembro de 1964. (Retomado em LObvie et 'Obtus, 1982. Cf. também La chambre claire, 1980. [Nota do editor francés.) 12, Eo sentido que se deve dar, sem divida, além de qualquer subversdo propriamente re- ligiosa, 20 gesto dos Guardas Vermelhos ao profanarem o templo do lugar onde nasceu Conficio (janeiro de 1967); lembremos que a expressio “revolugéo cultural” traduz, muito mal, “destruicao dos fundamentos da civilizacao”. 13. “Foi dito que 0 objetivo do historiador era contar, no provar; nao sei, mas estou certo de que em histéria o melhor género de prova, 0 mais capaz de tocar e de convencer os espiritos, 0 que permire 0 menor gran de deseonfianga ¢ deixa menos chividas, é a nar- ragdo completa...” (A. Thierry, Récit des temps mérovingiens, vol. II, Paris, Furne, 1851, p. 227.) 179 | Orumor da lingua | nao o desaparecimento) da narracao na ciéncia histérica atual, que procura falar das estruturas mais do que das cronologias, implica muito mais do que uma simples mudanca de escola: uma verdadei- ra transformagao ideoldgica; a narragao histérica morre porque o signo da Histéria ¢ doravante menos 0 real do que o inteligfvel. 1967, Informagén sabre as ciéncias saciais 180

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