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Revita Critza de Clic Secale Junho 1981 OCTAVIO IANNI Universidade Estadual de Campinas A Crise de Paradigmas na Sociologia Assiste-se, no presenie, a um ques- ionamento da. problematica socio- I6gica, & afirmagio de que o objeto da socoiogia mudou e ao apareci- mento de ‘novos paradigmas. Numa rellexdo larga sobre a ciica ea crise actual dos paradigmas na Sociologia, abordam-se algumas das singularidades desta ciéncia social: uma ciéncia que se_pensa criticamenta; um objeto em continua translormagio que envolve 0. pré- prio sujeito; uma_relacao_indisso- cidvel entre teoria @ pratica; um pensamento embebido nas ' con- digdes de existéncia social: um sujeito do. con! "No a0 mesmo tempo individual @ coletivo, 195 crise da sociologia pode ser real ou imaginaria, mas n&o ha duvida de que tem sido proclamada por mui- tos. Em diversas escolas de pensamento, em diferentes paises, uns e outros colocam-se o problema da crise de teorias, modelos ou paradigmas. Desde o término da segunda guerra mundial, e em escala crescente nas déca- das posteriores, esse 6 um problema cada vez mais cen- tral nos debates. Além dos éxitos reais ou aparentes, das modas que se sucedem, dos desenvolvimentos efetivos do ensino e pesquisa, da produgao de ensaios e monografias, manuais e tratados, subsiste a controvérsia sobre a crise da explicagao na sociologia. Fala-se na decomposicao dos modelos classicos e na obsolescéncia de nogSes como as de sociedade, comu- nidade, capitalismo, divisAo do trabalho social, consciéncia coletiva, classe social, consciéncia de classe, nag&o, re- volugo. Critica-se a abordagem histérica, globalizante ou holistica e preconiza-se a sistémica, estrutural, neo- -funcionalista, fenomenoldgica, etnometodolégica, herme- néutica, do individualismo metodolégico e outras. Consi- 1. Problemas de explicagéo 196 Octavio lanni dera-se que os conceitos formulados pelos classicos ja nao respondem as novas realidades. Agora, 0 objeto da sociologia deveria ser 0 individuo, ator social, ago social, movimento social, identidade, diferenga, quotidiano, es- colha racional. Em 1946, na aula inaugural pronunciada na London School of Economics and Political Sciences, T. H. Marshall se mostrou preocupado com a ‘encruzilhada” na qual se encontrava a sociologia. As tarefas praticas eram urgentes e os recursos tedricos pareciam inadequados. As interpre- tagdes herdadas dos classicos seriam insuficientes para fazer face as urgéncias da reconstrugao social. Em lugar das teorias globalizantes, caberia formular pontos de apdio intermediario», de modo a atender aos desafios imediatos, localizados, setoriais, quotidianos, de normalizago e orde- namento dos problemas sociais. “Os socidlogos nao de- viam despender todas as suas energias na procura de generalizagoes amplas, leis universais e uma compreen- $40 total da sociedade humana como tal. Talvez cheguem 1 mais se souberem esperar. Nem recomendo o caminho arenoso das profundezas do turbilhao dos fatos, que enchem os olhos e ouvidos até que nada possa ser visto ou ouvido claramente. Mas acredito que haja um meio- ctermo que se localiza em chao firme. Conduz a uma regio cujas caracteristicas nao s4o nem gargantuanas nem liliputianas, onde a sociologia pode escolher unidades de estudo de um escopo manejavel, nao a sociedade, pro- gresso, moral e civilizagao, mas estruturas sociais especifi- cas nas quais as fungdes @ processos bésicos tém signifi- cados determinados” (Marshall, 1967:32). Seja em termos de “pontos de apoio intermediario” con- forme Marshall, de “principia media” segundo Mannheim, ou ‘teorias de alcance médio” na versao de Merton, 0 que esta em curso 6 o debate sobre a insuficiéncia ou obso- lescéncia das teorias classicas (Merton, 1951 e 1967: cap. Il; Mannheim, 1949: Il, cap V e VI; Marshall, 1967: cap |). Debate no qual aos poucos se propdem outros temas e metodologias. A problematica socioldgica é posta em causa por representantes de diferentes escolas de pen- samento, em diversos paises. Essa controvérsia prossegue e generaliza-se. Torna-se uma onda. Em 1975, Bourticaud critica o “socialismo”, o “hiperfuncionalismo” e © “realismo totalitario”. Afirma, entre outras observagdes semelhantes, que ‘o realismo totali- A Crise de Paradigmas tario continua a constituir 0 modo de interpretagao ao qual, expontanea e implicitamente, recorre a maioria dos so- cidlogos radicais” (Bourricaud, 1975:584). Para superar essas limitagdes, proconiza a recriagao do “individualismo atomistico” herdeiro do |iberalismo e do marginalismo, con- forme as contribuigSes de Mancur Olson, Albert Hirschman e outros. PropSe o conceito de “neo-individualismo”, no qual se admite a existéncia de “grupos”, “classes” e *sociedades", entre aspas. Esté a caminho das teorias do “individualismo metodoldgico” e “escolha racional”, vistas como aspectos basicos de um novo paradigma sociolégico, posto sobre os escombros dos classicos. Em 1984 Touraine da continuidade & critica dos “mode- los classicos". Alega que se acham em ‘decomposigao”, j4 que se baseiam em conceitos insatistatérios, tais como “funcionalismo”, “modernizacéo”, “sociedade” e outros. “Na tealidade, 0 que esta sociologia denomina sociedade nao @ sen&o a confus&o de uma atividade social, definivel em termos gerais—como a produgdo industrial ou o mer- cado —e de um Estado nacional. A unidade da sociedade & aquela que Ihe da e impde um poder legitimo. Suas fron- teiras nao sao tedricas, mas reais: as dos postos de aduana. A sociedade é 0 pseudonimo da patria” (Touraine, 1984:22). Os conceitos elaborados pelos classicos pare- cem nao deixar espaco para os individuos, os atores sociais. “Um dos aspectos mais importantes da sociologia classica 6 que, ao criar grandes conjuntos histéricos porta- dores de sentidos em si mesmos, reduzem a analise da agao social & pesquisa da posigéo do ator no sistema’ (ibid.:35). Cabe eleger como objeto da sociologia a acao social, o ator social, 0 movimento social. E abandonar o sistema, os grandes conjuntos, os conceitos abrangentes, a visao macro da sociedade. Mesmo porque essas nogdes corresponderiam a uma realidade social passada, supe- tada, que ja nao mais se constitui como objeto da sociolo- gia. “A sociologia da ado recusa esta explicagéo do ator pelo sistema. Ao contrario, vé em toda a situagao o resul- tado das relagdes entre atores, definidos tanto por suas orientagdes culturais como por seus conflitos sociais” (ibid.:35-36) Nesses termos 6 que Touraine desenvolve a idéia de que a “decomposigao” do pensamento sociolégico herdado do passado parece irreversivel. Trata-se da “crise de um modelo classico de representagdo da vida social”, acompanhada da “formagéo de um novo modelo, a partir na Sociologia 197 198 Octavio anni do qual pode desenvoiver-se uma orientagao sociolégica mais especifica e mais coerente” (Touraine, 1985:16). Entre os criticos que estao propondo novos modelos, teorias ou paradigmas, 6 frequente a insisténcia na idéia de que o objeto da sociologia mudou. Os classicos esta- tiam apoiados em nogées que, se foram cabiveis no pas- sado, ja nao atendem as peculiaridades do século 20. Ao criticar as nogdes de capitalismo e industrialismo, que seriam importantes nas sociologias de Marx e Weber, Giddens sublinha a “informagdo»”, o “poder administrativo’, © “poder militar’ a “guerra”, a ‘racionalizagao” e outras, como aspectos basicos da “modernidade” do século 20. Portanto, no se trata mais, como se fazia anteriormente, de continuar a explicar a realidade social em termos de industrialismo e capitalismo. “A dissolugao do mundo tradi- cional, sob o impacto da modernidade, nao é 0 resultado do capitalismo, do industrialismo, ou mesmo da concen- tragao dos instrumentos administrativos pelos Estados modernos. E 0 resultado de tudo isso, em combinagao com os meios modernos de uso da forga militar e de fazer a guerra” (Giddens, 1988-28). A modernidade é muito mais complexa e fundamental do que sugerem as nogdes de capitalismo e industrialismo. Cabe acrescentar outros “parametros de modernidade’, dentre os quais se destaca a parafernalia da informatica, “um dos mais caracteristicos tragos da época moderna. Os Estados modernos, e o sis- tema mundial moderno como um todo, envolvem uma tre- menda aceleragao na produgéo e organizago de infor- magao. Embora seja habitualmente suposto que apenas agora, no final do século 20, estamos entrando na era da informagéo, as sociedades modernas tém sido socieda- des de informacdo desde os seus inicios” (ibid.:27). Em sintese, trata-se de superar a “teoria da sociedade indus- trial”, um residuo do século 19, um “mito” ultrapassado. E “reconciliar uma epistemologia da ciéncia social, revista, com novos esquemas para a anélise do desenvolvimento das sociedades avangadas” (Giddens, 1976:703). Uma parte importante dessa historia esta sinteti- zada em livros e artigos de T. H. Marshall, Merton, Mannheim, Florestan Fernandes, Gurvitch, Sorokin, Cuvil- lier, C. W. Mills, Barrington Moore Jr., Gouldner, Giddens, Collins, Bourricaud, Bourdieu, Touraine, Piaget, Lukacs, Goldmann, Horkheimer, Adorno, Habermas, Gadamer, Ri- coeur, Morin, Elster e outros. Uns se colocam radicalmente A Crise de Paradigmas em favor de novos paradigmas. Outros propdem reno- vagdes ou desenvolvimentos dos classicos, incorporan- do-se ai contribuigdes contemporaneas. E ha os que reconhecem que a criagao de novos paradigmas nao implica necessariamente na desqualificagéo dos outros. Mesmo porque, na histéria do pensamento sociolégico, ao lado das oposigdes e rupturas, registram-se também convergéncias e continuidades. No conjunto, discutem-se problemas relacionados tanto ao método como ao objeto da sociologia. Discutem-se prioridades, ou acomodagées, quanto & indugao quantitativa e qualitativa, a andlise sin- cronica e diacrénica, ao contraponto das partes e 0 todo, @ dinamica e @ estabilidade sociais, ao individuo e socie- dade, ao objetivo e subjetivo. Aos poucos, formulam-se novas teorias sociolégicas, tais como estruturalismo(s), neo-funcionalismo, estrutural-funcionalismo, fenomenolo- gia, etnometodologia, hermeneutica, sociologia da ago ou acionalismo, individualismo metodolégico e outras. Formu- lam-se outros temas e outros métodos de explicagao ou compreensao, ao mesmo tempo que se inauguram outras linguagens. Ha algo de imaginario no debate sobre a crise da socio- logia. Se 6 verdade que ha impasses reais no pre- sente, também é verdade que as controvérsias sobre o seu objeto séo mais ou menos permanentes. Dizem respeito as exigéncias da produgao intelectual. Com a singulari- dade de que a sociologia @ uma ciéncia que sempre se pensa, a0 mesmo tempo que se realiza, desenvolve, enfrenta impasses, reorienta. Talvez mais do que outras ciéncias sociais, ela se pensa de modo continuo, criti- camente. Hé uma espécie de sociologia da sociologia em toda a produgo sociolégica de maior envergadura. Entretanto, algumas vezes colocam-se problemas reais. Gurvitch perguntou certa vez se a sociologia fez outra coisa se nao passar por crises. E disse que algumas delas colocaram quest6es basicas. “Crise das relagdes entre filosofia da histéria @ sociologia, crise da procura do ‘fator predominante”, crise do evolucionismo, crise do raciona- lismo social, crise da “compreenséo” que rejeita a expli- cago, ctise do formalismo, crise do psicologismo a Pareto, a Freud e, mais recentemente, 4 Moreno, crise da relacao entre a teoria sociolégica e a investigacéo empirica em sociologia, avivando-se, segundo as caracteristicas espi- na Sociologia 2. Classicos @ contem- poraneos 199 200 Octavio lanni ituais de Sorokin, em testomania e quantofrenia.... Impor- tante sobretudo aqui insistir no fato de todas as crises em sociologia, independentemente da sua correspondéncia com as crises sociais, as quais serviam de réplicas, sempre terem estado ligadas ao problema da explicacao. Ou que se tenha pretendido explicar demasiado, ou que se tenha dado explicagdes falsas; reduzisse-se em de- masia a explicagao a favor de uma simples constatagao, ou, enfim—como nas investigagdes empiricas de hoje, sobretudo nos Estados Unidos e entre os imitadores fran- ceses dos americanos—tenha renunciado quase por completo a explicagéo, transformando, no melhor dos casos, a sociologia em sociografia” (Gurvitch, 1986, II: 525-526). Alias, conforme lembra Merton, cada geragéo de so- cidlogos tende “a identificar a sua epoca como um mo- mento decisivo no desenvolvimento da disciplina, para melhor ou para pior” (Merton, 1979:149). Em certos casos, no entanto, a crise pode ser real, relativa a problemas de explicagéo, impasses tedricos. Inspirado nas reflexdes de Kuhn, sobre “ciéncia normal” e “revolugdes cientificas”, Merton chama a atencdo dos socidlogos para problemas de cunho epistemoldgico. “Os aspectos da sociologia que supostamente fornecem os sinais @ sintomas da crise sao de natureza familiar—uma mudanga e choque da doutrina acompanhadas de uma tensdo aprofundada, e algumas vezes conflito exaltado, entre os praticantes do oficio. O choque implica a forte reivindicagao de que os paradig- mas existentes so incapazes de resolver os proble- mas que deveriam, em principio, ser capazes de resolver” (ibid.:1.49) (1) A controvérsia sobre os classicos e os contempora- neos, em certos casos, envolve a tese de que a sociologia € uma ciéncia pouco amadurecida. A importancia dos tex- tos classicos e a frequente volta a eles seriam indicios de imaturidade, ciéncia em formacao, ainda nao constituida, pre-paradigmatica. Dada essa imaturidade e, portanto, a reduzida incorporago daqueles textos a0 corpus tedrico da sociologia, os socidlogos contemporaneos s4o obriga- dos a voltar continuamente a eles. Por isso, diz Merton, a sociologia reluta em abandona-los. Todo socidlogo precisa demonstrar um conhecimento de primeira mao daqueles (*) Note-se que algumas reflexdes de Merton sobre paradigmas na sociologia esttio inspiradas em Kuhn (1962) A Crise de Paradigmas que deixaram a sua marca na sociologia. “Embora 0 fisico, enquanto fisico, nao precisa apoiar-se no Principia de Newton, ou o bidlogo, enquanto tal, a ler e reler A Origem das Espécies de Darwin, 0 socidlogo, enquanto socidlogo antes do que historiador da sociologia, tem ampla razdo para estudar as obras de Weber, Durkheim e Simmel e, pelo mesmo motivo, a voltar ocasionalmente as obras de Hobbes, Rousseau, Condorcet ou Saint-Simon... Os dados mostram que a fisica e a biologia tem em geral sido mais bem sucedidos do que as ciéncias sociais em recuperar 0 conhecimento acumulado e relevante do passado @ incor- pora-lo nas formulagdes subsequentes. Este processo de enriquecimento pela absorgdo é ainda raro na sociologia. Como resultado, informagSes que n&o foram previamente recuperadas estao ainda l4, pata serem empregadas de forma adequada, como novos pontos de partida” (ibid.: 34-35). © argumento parece forte, mas sustenta-se pouco. Primeiro, esté baseado na idéia de que a sociologia deveria pautar-se pelo modelo “paradigmatico” das cién- cias naturais. Um argumento de origem positivista, reno- vado com o neo-positivismo. Supée que a légica do conhe- cimento cientifico 6 unica. E que dada ciéncia social se constitui e amadurece na medida em que atinge os niveis aleangados pelas mais desenvolvidas, no caso as naturais, ou a fisica, a biologia. Essa é apenas uma posigao, no Ambito das reflexes sobre epistemologia. Ha outras e bastante elaboradas. As conquistas cientificas realizadas por Weber e Simmel, Marx, Lukacs e Gramsci, Horkheimer, Adorno e Marcuse, Habermas e Gadamer, além de outros, abrem diferentes horizontes para a epistemologia das ciéncias sociais, e ndo apenas para a sociologia. As dife- rengas entre ciéncia natural e ciéncia social sao essenciais e itreversiveis. Salvo © positivismo que informa algumas tendéncias do funcionalismo, estrutural-funcionalismo e estruturalismo, a dialéctica hegeliana e marxista, bem como as diversas orientagdes de fenomenologia, esta- belecem nitidas diferengas entre ciéncia da natureza e ciéncia social. Em termos epistemolégicos, a sociologia, e as outras ciéncias sociais, nao podem prescindir da compreensdo, da explicagao compreensiva. As possibi- lidades da pesquisa, experimentagdo, descrigao e expli- cacéo, abertas pela ciéncia da natureza, pouco servem para o estudo da realidade social. O conceito, categoria, na Sociologia 201 202 Octavio lanni lei de causa e efeito, lei de tendéncia, condigéo de possi- bilidade ou previsao, somente se constituem na medida em que apanham, codificam, taquigrafam, as singularidades e universalidades envolvidas nas configuragSes e nos movi- mentos da realidade social. Segundo, ha 0 oposto propriamente ontolégico da questdo. O objeto da sociologia, bem como das outras ciéncias sociais, envolve o individuo e a colectividade, as relagdes de coexisténcia e sequéncia, diversidades e antagonismos. Diz respeito a seres dotados de vontade, querer, devir, ideais, ilusdes, consciéncia, inconsciente, racionalidade, irracionalidade. Os fatos e acontecimentos sociais s4o sempre materiais e espirituais, envolvendo relagées, processos e estruturas de dominagao, ou poder, apropriagéo, ou distribuigao. Implicam em. individuos, familias, grupos, classes, movimentos, instituigdes, pa- drées e comportamento, valores, fantasias. Esse 6 0 mundo da liberdade e igualdade, trabalho e alienagao, sofrimento e resignacao, ideologia e utopia. Terceiro, a sociedade burguesa, industrial, capitalista, moderna ou informatica, moditica-se ao longo do tempo. Mas guarda algumas caracteristicas essenciais. E diferente @ mesma. No comego, falava-se no “individualismo posses- sivo", descoberto pela economia classica e os primeiros pensadores sociais interessados em explicar a emergéncia 2 0 tecido da sociedade civil. Em fins do século 20, fala-se no “individualismo metodoldgico’, acompanhado da “es- colha racional’, duas descobertas das ciéncias sociais nos tempos da modernidade, compreendendo o margina- lismo hedonista, 0 neo-liberalismo e o marxismo analitico. O dilema individuo e sociedade continua a ser essencial, se queremos entender a trama das relagdes sociais, os es- pagos da liberdade, as condigdes da opressao. O mundo formado com a sociedade moderna, industrial, capitalista, nao € o mesmo no século 19 e no 20. Modificou-se subs- tancialmente, esta informatizado. Os meios de comuni- cago, em sentido amplo, revolucionaram as condigdes de produgo, distribuigéo, trocas e consumo, em termos mate- riais e espirituais. As burocracias pUblicas e privadas ampliaram muito 0 seu raio de acao, influéncia, indugao. Tudo mudou. Mas muita coisa subsiste, ainda que re- criada, necessariamente recriada. Em esséncia, a socie- A Crise de Paradigmas dade moderna, burguesa, informatica, baseia-se em alguns principios que se reiteram no largo da historia. Nem a ciéncia nem a técnica, ou informatica, alteraram a natureza essencial das relages, processos e estruturas de apro- priagdo, ou distribuic&o, e dominag&o, ou poder. No limiar do século 21, guardam-se aspectos essenciais do 19: liberdade e igualdade, trabalho e alienagao, sofrimento e resignagao, ideologia e utopia. “A auséncia de espirito, caracteristica da modernidade racionalizada, nado @ apenas refletida nas paginas finais de A Etica Protestante de Weber; é criada por ele, Para entender a modernidade racionalizada, néo se pode apenas observarla: precisa-se voltar ao trabalho pioneiro de Weber, a fim de aprecia-lo e experiencia-lo outra vez. Semelhantemente, 0 que é@ opres- sivo e sufocante na modernidade nao sera nunca suficien- temente formulado como em O Homem Unidimensional de Marcuse” (Alexander, 1987). Ocorre que alguns classicos tevelam de forma particularmente exemplar, privilegiada, visionaria, nao sé 0 que viram, mas também o que vemos. Em seu tempo, Weber dizia que “o mundo em que espiri- tualmente existimos é¢ um mundo assinalado, em grande parte, pelas marcas de Marx e Nietzsche” (*). Ocorre que © mundo que Weber conheceu ainda tinha muito daquele que Marx e Nietzsche haviam conhecido. Da mesma ma- neira que a modernidade racionalizada, revelada por Weber, tem muito da modernidade opressiva e sufocante tevelada por Marcuse. Ha momentos légicos da reflexdo sociolégica sem os quais 0 ensino e a pesquisa contemporaneos dificilmente poderiam desenvolver-se. Estes sao alguns desses mo- mentos: aparéncia e esséncia, parte e todo, singular e uni- versal, sincrénico e diacrdnico, histérico e ldgico, passado e presente, sujeito e objeto, teoria @ pratica. E claro que a teflexao cientifica pode basear-se maiormente em alguns, deixando outros em segundo plano, Nem sempre a mono- grafia e o ensaio mobilizam todos. Entretanto, necessa- tiamente mobilizam alguns. Dizem respeito a razao cien- tifica. Caso contrario, 0 produto da atividade intelectual corre o risco de ficar no meio do caminho, realizar-se apenas como descriga0, foclorizagao, ideologizagao. Ou apresentar-se como sucedaneo da ficgo, nem sempre com talento artistico. @) Weber, citado por Josyr-Kowalski (1971264) na Soci 3. Teoria e paradigma logia 203 204 Octavio lanni Um dos requisitos légicos fundamentais da interpre- tac&o na sociologia diz respeito a historicidade do social. O contraponto passado e presente é essencial, se se trala de explicar ou compreender a realidade social. Toda inter- Pretagao que perde, minimiza ou empobrece 0 momento do real, sacrifica uma dimensao basica desse mesmo real. Esta 6 uma conquista importante do pensamento socio- légico e das outras ciéncias sociais. A realidade social é um objeto em movimento, As suas configuragdes estaveis, normais, estaticas, sincrénicas, representam momentos, sistemas, estruturas da mudanga, dinamica, modificagao, transformacao, historicidade, devir. Precisamente ai esta uma das limitagées de algumas teorias sociolégicas contemporaneas. Nao levam em conta essa conquista do pensamento sociolégico. Em busca de novas linguagens e da redefinigao do objeto da sociologia, sactificam as tensGes diacrénicas do real. Imaginam que as configuragGes resolvem a diacronia, captando 0 mo- mento do real, perdendo 0 movimento do real. Uma parte da controvérsia sobre paradigmas classicos e contemporaneos passa pelo problema da historicidade da realidade social. Entre os contemporaneos s40 frequen- tes as propostas tedricas que simplesmente abandonam ou empobrecem a perspectiva histérica. Como se fosse pos- sivel eliminar das relag6es, processos e estruturas, de dominagéo e apropriacdo, os seus movimentos e as suas tensdes. Como se a tealidade social pudesse sempre resolver as suas diversidades, desigualdades e antagonis- mos no Ambito das configuragdes sincrénicas. Como se © real nao estivesse essencialmente atravessado pela relagéo de negatividade. Dai a imagem abstrata, rarefeita, cerebrina, que transparece em estudos como os do estru- tural-funcionalismo de Parsons. “A idéia-chave dessa teo- ria, como o leitor deve estar lembrado, 6 0 ponto de vista de que para toda sociedade existe certo numero limi- tado de atividades necessarias, ou “fungdes”, tais como a obtengao de alimento, 0 adestramento da préxima gerago etc. e um numero igualmente limitado de “estruturas”, ou maneiras pelas quais a sociedade pode ser organizada para realizar essas fung6es. Em esséncia, a teoria estru- turo-funcionalista busca os elementos basicos da socie- dade humana, abstraida de tempo e lugar, junto com as regras de combinaggo desses elementos. Dé a impressdo de procurar algo na sociedade humana correspondente A Crise de Paradigmas tébua periddica dos elementos na quimica” (Moore, 1962:125-126) (3). Esse é um ponto essencial no debate sobre aspectos ontolégicos e epistemolégicos da sociologia. Trata-se de aperfeigoar e desenvolver a teoria sociolégica, sem perder a dimensao histérica da realidade social. A influéncia de paradigmas emprestados das ciéncias fisicas e naturais tem levado certos socidlogos a uma espécie de pasteu- rizagao da realidade social, 0 que evidentemente so expressa no conceito, na interpretagao. “No presente a sociologia esté dominada por uma espécie de abstraccdo, dando a impresséio de que lida com objectos isolados, em estado de repouso. Mesmo o conceito de mudanga social 6 frequentemente usado como se referido a um estado fixo. Pode-se dizer que se 6 forgado a ver o estado de repouso como normal; e o movimento como um caso especial” (Elias, 1978:115). O declinio da perspectiva histérica 6 algo relativamente generalizado na sociologia e no pensamento social con- temporaneo. Um processo que ja se havia manifestado incipiente no positivismo de Comte, bem como na econo- mia politica vulgar, acentua-se posteriormente e parece expandir-se bastante nos tempos atuais. “Um crescente ‘cansago da historia’ caracteriza, ao menos no Ocidente, a segunda metade do século 20. As técnicas de pesquisa da ciéncia social atual, extremamente tefinadas, e orientadas em um sentido quantitative, deslocam cada vez mais o pensamento histdrico do lugar que ocupava no ambito da llustragao e do idealismo alemao, em Dilthey, nas tradi- cionais ciéncias do espirito, na filosofia da vida e também na filosofia da existéncia” (Schmidt, 1973:13). Acs poucos, as tecnologias da pesquisa, matematicas informaticas, invadem o objeto e 0 método da sociologia. A modernizagéo da atividade cientifica, com base na insti- tucionalizagao, burocratizagao, industrializagao, formagao de equipes numerosas de seniors e juniors, trabalhando com equipamentos electrénicos, informaticos, matema- ticos, provoca alteragdes na definigao do objeto e das con- digdes légicas © tedricas da intorprotagao. “A desintegra- ao das ciéncias humanas tem a sua origem, no fundo, em uma iluséo perseguida com metédica obsess4o, que con- siste em crer na possibilidade de fugit, do contexto cons- (©) Consuitar também C. Wright Mills (1959) na Soci logia 205 206 Octavio lanni ciente da histdria humana e das suas sempre renovadas decisées valorativas e de poder, para a ahistoricidade das formulas matematicas” (‘). Aqui cabe lembrar 0 que j4 havia sido posto por Hegel @ retomado varias vezes posteriormente, nas controvérsias sobre quantidade e qualidade. A inducdo quantitativa nao participa do objeto, ndo faz parte dele, 6 exterior. Apanha estruturas externas ao ser social. "Em outras palavras, a verdade acerca de objetos matematicos existe fora deles, No sujeito do conhecimento. Esses objetos, portanto, sao, em sentido estrito, ndo-verdadeiros, entidades inessenciais externas” (Marcuse, 1960:98) (5). Sao varios os problemas epistemolégicos que precisa- riam ser melhor examinados, se quisessemos esclarecer mais a controvérsia sobre a crise de paradigmas na socio- logia. Além dos ja analisados, em forma breve, cabe lem- brar o da relagao sujeito-objeto do conhecimento. Na so- ciologia, essa 6 sempre uma relagdo complexa, com sérias implicagSes quanto ao objeto e método. As diversas per- spectivas tedricas mostram que a relagdo sujeito-objeto nem sempre se resolve numa tranquila relagao de exte- rioridade, como se o real e oO pensado se mantivessem incdlumes. Essa 6 uma hipétese do positivismo e esta presente no funcionalismo, estruturalismo, estrutural-fun- cionalismo © outras teorias. Mas a sociologia inspirada na fenomenologia sempre carrega a hipdtese da cumpli- cidade. A redugéo fenomenolégica e a hermenéutica ten- dem a tornar ambos cumplices do conhecimento, objeto e sujeito. As passo que a sociologia de inspiragao dialética, se pensamos em Marx, Lukacs, Gramsci e alguns outros, leva A hipdtese de dependéncia mitua, da reciprocidade. © sujeito © 0 objeto constituem-se simultanea, recipro- camente. A reflexao cientifica pode corresponder a um momento fundamental da constituigao do real. Enquanto nao se constitui como categoria, concreto pensado, plano de determinagdes, o real esta no limbo. Sao varios os momentos légicos da reflexéo socio- \égica, se pensamos em termos de aparéncia e esséncia, parte e todo, singular © universal, qualidade e quantidade, sincrénico e diacrénico, histérico e ldgico, passado e pre- sente, sujeito e objeto, teoria e pratica. Mas as teorias nao (() Herbert Luthy, conforme citagéo de Schmidt () Consultar também: Mannheim (1953), cap. logy», e Blumer (1956). 1973:13-14). /, «American Socio- A Crise de Paradigmas ©s mobilizam sempre nos mesmos termos, de modo sin- gular, homogéneo. Alias, as teorias distinguem-se, entre Outros aspectos, precisamente porque conferem entase diversa aos momentos ldgicos da reflexao. Ha conceitos sociolégicos que s8o comuns a varias teorias. As vezes o ‘objeto 6 concebido de maneira semelhante. Mas a inter- pretagéo pode nao ser precisamente a mesma. E quando a interpretagao se revela diversa, logo se constata que a importéncia relativa dos momentos légicos da reflexdo nao 6 exatamente a mesma. Nesse sentido 6 que as teorias podem ser mais ou menos distintas, distantes ou opostas. Entretanto, a multiplicidade das teorias nao implica, necessariamente, na multiplicidade de epistemologias. E possivel supor que dada epistemologia pode fundamen- tar diferentes propostas tedricas. Aliés, quando buscamos os principios epistemolégicos em que se fundam as teorias, verificamos que dada epistemologia parece fun- damentar diversas teorias. Nesse sentido 6 que Elster Sugere que existem basicamente ‘tras tipos principais de explicagao cientifica: a causal, a funcionalista e a inten- cional" (Elster, 1989:181). S80 os paradigmas, ou prin- cipios, que sintetizam as possibilidades de explicagao cientifica. Afirma que a abordagem causal é comum a todas as ciéncias, naturais e sociais. Mas diz que a expli- cagao funcionalista néo tem cabimento nas ciéncias sociais. Baseia-se em uma analogia equivoca, retirada da biologia. E acrescenta que nas ciéncias sociais as expli- cagées podem ser baseadas na ‘causalidade intencional”, com variagdes, conforme se trate de processos internos aos individuos ou processos relativos a interagdo entre individuos. “As ciéncias sociais usam extensamente a analise intencional, no nivel das ag6es individuais. A anélise funcionalista, entretanto, nao tem lugar nas ciancias sociais porque nao existe analogia sociolégica a teoria da selegao natural. O paradigma adequado para as ciéncias sociais é uma explicagéo causal-intencional mista —compreensao intencional das agGes individuais e expli- cago causal de suas interagdes *(ibid.: 181) (*). Podemos discordar de alguns aspectos da “lilosofia da ciéncia’, ou “paradigma”, que Elster esta propondo para as ciéncias sociais. Mas nao ha divida de que ele pde o () © mesmo problema estd oxaminado em Elster (1979). na Sociologia 4. Principios explicativos 207 208 Octavio lanni problema basico: alguns paradigmas fundamentam multi- plas teorias. As teorias sociologicas do passado e presente orga- nizam-se, em Ultima instancia, com base em principios explicativos fundamentais. E verdade que ha variagoes, convergéncias, nuangas, divergéncias. Mas predominam alguns principio, constituindo os fundamentos dos para- digmas conhecidos na_ sociologia. Uma relagao das teorias sociolégicas, passadas e pre- sentes, naturalmente incluiria evolucionismo, positivismo, funcionalismo, marxismo, compreensivo ou tipico ideal, hiper-empirismo dialético, neo-funcionalismo, estrutura- lismo, estrutural-funcionalismo, teoria da troca, teoria do conflito, interacionismo simbdlico, fenomenologia, etnome- todologia, hermenéutica, sociologia da aco social ou acio- nalista, teoria do campo sociolégico, teoria da estrutu- ragao, sociologia sistémica, individualismo metodoldgico, teoria critica da sociedade e outras. Sao teorias distintas ‘ou aparentadas. Dialogam entre si, mas também se opdem e contrapdem. Implicam em diferentes nogdes do objeto, apesar do acordo mais ou menos geral sobre o que é 0 social. Baseiam-se em diferentes métodos de interpre- taco, envolvendo a explicagdo, a compreensdo, a expli- cagéo compreensiva. Lidam com os momentos légicos da reflexdo de forma peculiar, priorizando uns em lugar de outros. Certas teorias possuem cunho histérico, ao passo que outras focalizam a realidade em termos supra-histo- ricos. E ha as que se mostram simplesmente ahistéricas. Também a relacéo sujeito-objeto é diferenciada, polari- zando-se em trés modalidades principais: exterioridade, cumplicidade e reciprocidade. Mas 6 possivel dizer que as teorias sociolégicas do passado e presente organizam-se, em ultima instancia, com base em principios explicativos tais como os seguin- tes: evolugdo, acusacao funcional, estrutura significativa, redugao fenomenoldgica, conexao de sentido e contra- digo. Neste ponto é que a controvérsia sobre os paradi mas precisaria demorar-se mais. Ai o debate sobre a crise de paradigmas na sociologia tem muito a realizar, se quer elucidar os fundamentos da questao. Note-se que a nogdo de paradigma compreende uma teoria basica, uma formula epistemolégica geral, um modo coerente de interpretar ou um principio explicativo funda- mental. Envolve requisitos epistemoldgicos e ontolégicos, A Crise de Paradigmas caracterizando uma perspectiva interpretativa, explicativa ou compreensiva, articulada, internamente consistente. Na linguagem da sociologia, um paradigma compreende a articulagao dos momentos légicos essenciais da reflexao: aparéncia e esséncia, parte e todo, singular e universal, sincrénico e diacrénico, quantidade e qualidade, historico @ Iégico, passado e presente, sujeito e objeto, teoria e pratica, Momentos ldgicos esses que se traduzem interpre- tativamente em evolugo, causaggo funcional, estrutura significativa, redugéo fenomenolégica, conexao de sentido e contradigao. E claro que essa nogdo de paradigma deixa de lado a acepgao sociolégica, ou melhor, sociologistica, que privile- gia © conjunto de habitos comuns aos que se dedicam ao ensino e pesquisa, as codificagdes estabelecidas em manuais, 0 lagos institucionais e 0 jargao proprio de cada grupo de socidlogos reunidos em centros, institutos, depar- tamentos ou outros lugares. Naturalmente esta acepgdo apresenta algum interesse, se queremos conhecer as condigdes sociais, politicas, ideolégicas, institucionais, materiais e técnicas de produg&o e reprodugdo do conhe- cimento cientifico. Mas nao 6 suficiente, se queremos elucidar questées relativas ao objeto da sociologia (Mas- terman, 1979; Barnes, 1986; Santos, 1977; Boudon, 1977, esp. cap.Vil, intitulado “Déterminismes Sociaux et Liberté Individuelle”). Vejamos alguns exemplos, nos quais se podem cla- rificar um pouco mais as relagdes entre teoria e paradigma. Merton dedica-se bastante ao funcionalismo e pode ser considerado o principal tedrico do que poderiamos denominar neo-funcionalismo. Esta preocupado com o paradigma, enquanto codificacao da teoria, dos requisitos fundamentais da explicagdo sociolégica. Propée “um para- digma para a analise funcional na sociologia” (Merton, 1951, esp. cap. Il; e 1967, esp. cap. Il). Essa é uma con- tribuigéo importante, na qual conceitos e procedimentos légicos s40 precisados, aprimorados. E inegavel a con- tribuigao de Merton para a teoria. Entretanto, cabe pergun- tar se a sua teoria funcionalista inaugura propriamente um paradigma, ou apenas dA continuidade e inova outro ja disponivel. Haveria diferengas essenciais entre os paradig- mas de Merton e Durkheim ou seriam complementares? Em outros termos, ha principalmente continuidades entre As Regras do Método Sociolégico de Durkheim e “FungSes na Sociologia 209 210 Cetavio lanni Manifestas e Latentes” do livro Teoria Social e Estrutura Social de Merton. S40 muito fortes as evidéncias de que Merton efetivamente repde, retoma e desenvolve, em outra linguagem, o paradigma formulado por Durkheim. Se falar- mos em teorias, supondo que Merton e Durkheim sao autores de duas teorias sociolégicas, podemos admitir que ambas inspiram-se no mesmo principio explicativo, de causagao funcional. A despeito do seu empenho em formalizar um paradigma neo-funcionalista, parece evi- dente que reitera o principio de causagao funcional codi- ficado por Durkheim. Principio esse que ja havia sido retomado por Malinowski, Radcliffe-Brown e outros. Na- turalmente realiza contribuigoes da maior importancia, quando elabora as nogdes de fungSo manifesta e fungao latente; quando se empenha em demonstrar que o funcio- nalismo nao implica, necessariamente, em uma visao con- servadora da realidade social. Mas nem muda nem corrige, apenas aperfeigoa, o paradigma codificado anteriormente por Durkheim em seus estudos metodolégicos e em suas monografias. Um paradigma com muita influéncia no pen- samento sociolgico, presente em varias teorias sociolé- gicas contemporaneas (Fernandes, 1959, esp. parte Ill; Gouldner, 1970). Um raciocinio semelhante pode ser feito a propdsito de Gramsci, no contraponto com Marx. E claro que ai tam- bém ha invengdes a considerar. A linguagem de Gramsci é outra. Contem menos economia politica, outra histéria. Gramsci elabora as categorias de hegemonia, bloco de poder, intelectual organico e outras. E o autor de uma teoria razoavelmente articulada, consistente, compreen- dendo também classes subalternas, guerra de posicao e guerra de movimento, Ocidente e Oriente. Em uma com- paracéo com a de Marx, fica logo evidente que s4o duas, com semelhangas e diferengas. Entretanto, 0 paradigma & em essencia 0 mesmo. Ambas as teorias apoiam-se no principio da contradigao, que funda um paradigma (Cou- tinho, 1981; Macciocchi, 1976). Alias, cabe reconhecer que ha dialogos, implicitos e explicitos, entre representantes de diferentes paradigmas. Indicam problemas metodolégicos merecedores de aten- a0. Permitiriam ilag6es. Ao analisar a divisao do trabalho social, como um processo relativo 20 conjunto da socie- dade, compreendendo aspectos sociais, economicos, politicos ¢ culturais, Durkheim leva a nogao de anomia A Crise de Paradigmas bastante préxima da de alienagao, formulada por Marx. O proprio conceito durkheimiano de divisio do trabalho, por suas especificidades © abrangéncias, lida com proble- mas que também haviam atraido a atengéo de Marx, quando se referia as dimensdes singulares, particulares e gerais desse processo social abrangente, do alcance historico. Também Weber e Marx encontram-se algumas vezes. Conforme sugere 0 prdprio Weber, “todas as leis e construgSes do desenvolvimento histérico especiticamente marxistas possuem um caracter de tipo ideal, na medida em que sejam teoricamente corretas” (Weber, 1979:118). © didlogo continua. Na sociologia contemporanea, os mes- mos Weber e Marx, passando por Lukacs, sao indis- pensaveis, se queremos compreender algumas das teses basicas da teoria critica da sociedade, formuladas por Horkheimer, Adorno e Marcuse. O problema pode ser colocado assim: as teorias socio- légicas contemporaneas lidam com alguns principios exp! cativos fundamentais, comuns. Estes tém sido elaborados por socidlogos, cientistas sociais e filésofos, na época dos classicos, na transigao do século e contemporanea- mente. As teorias multiplicam-se. H& continuas orienta- g6es, quanto ao objeto e método, conceitos e interpre- tagdes, temas e linguagens. Em certos casos ocorre a teiteragSo de principios explicativos, aperieicoados ou nao; ao passo que em outros verifica-se algo de novo, a inven- ¢a0_ paradigmatica. Vista assim, em alguns dos seus aspectos relevantes, a controvérsia sobre paradigmas, bem como teorias e paradigmas, ajuda a explicitar determinadas singularidades da sociologia, como ciéncia social. Sao singularidades do maior interesse, por suas implicagdes epistemolégicas @ ontolégicas, Vejamos quais sao, em modo breve. Primeiro, a sociologia pode ser considerada uma cién- cia que se pense criticamente, todo o tempo. O socidlogo tanto produz interpretagdes substantivas como assume e desenvolve as suas contribuigdes, duvidas, polémicas. HA um debate metodolégico frequente nao sé nas entre- linhas @ notas, mas também em escritos basicos de socid- logos das mais diversas tendéncias, passados e contem- pordneos. Em boa medida, as polémicas sustentadas por Marx, Durkheim, Weber, Lukacs, Gramsci, Wright Mills, Gouldner, Barrington Moore Jr., Gurvitch, Merton, Adorno, Popper, Habermas e outros tém algo ou muito a ver com na Sociclogia 211 212 Octavio lanni o marxismo. E retomam ou iniciam discuss6es da maior imporiancia sobre o objeto e o método da sociologia. Segundo, cabe reconhecer que o objeto da sociologia @ a realidade social em movimento, formacgao e trans- formagao. Essa realidade 6 alheia e interna a reflexao. © objeto © 0 sujeito do conhecimento distinguem-se @ con- fundem-se. Ha todo um complexo exorcismo em toda inter- pretacao, explicagao ou compreensdo dessa realidade. Ela & um ser do qual o sujeito participa, em alguma medida, pelo universo de praticas, valores, ideais, fantasias. Simul- taneamente, @ um ser em movimento, modificagao, devir, revolugao. Desafia todo o tempo o pensamento, como algo conhecido @ incognito, transparente e opaco. Estava no passado e estd no presente, mesmo e diferente. Terceiro, a sociologia € uma forma de auto-consciéncia cientifica da realidade social. Tem raizes nos impasses, problemas, lutas e ilusdes que desafiam os individuos, grupos, classes, movimentos, partidos, setores, regiées e a sociedade como um todo. E claro que as formulas dos socidlogos s4o individuais. HA aqueles que reconhecem alguma, ou muita, relagao entre as suas reflexdes ¢ 0 jogo das forgas sociais, grupos, classes etc. Toda pro- dugao sociolégica aparece identificada com um nome, autor, escola, instituigdo, centro, instituto. Mas a sociologia do conhecimento j& avangou o suficiente para revelar, a uns e outros, que o pensamento sociologico guarda uma telagao complexa e essencial com as condigGes de exis- téncia social, ou configuracdes sociais de vida, de setores, grupos, classes ou a sociedade como um todo. E quando se torna possivel reunir produgdes sociolégicas de orien- tagao tedrica semelhante, logo resulta a idéia de estilo de pensamento, ou visio do mundo. Quarto, o desafio permanente e reiterado diz respeito a telagéo entre ciéncia e arte, teoria e técnica, conhecimento e@ poder ou teoria e pratica. O pensamento socioldgico classico, da passagem do século e contemporéneo, sem- pre tem algo a ver com a pratica, tanto em sua origem como em seu destino. Dai o longo debate sobre a busca da iseng&o, neutralidade, distanciamento ou vocagéo da sociologia. Esse 6 um desafio permanente na histéria do pensamento sociolégico. Esta no centro da polémica con- temporanea simbolizada nos escritos de Adorno e Popper. “A controvérsia que divide hoje positivistas e dialéticos refere-se, sobretudo em seu niicleo, as finalidades prati- A Crise de Paradigmas cas do estudo, a seus respectivos interesses em modificar a realidade social, que é 0 que orienta os seus trabalhos tedricos e 0 que determina, no fundo, as suas metodolo- gias diferentes” (Baier, 1969:12) Quinto, na sociologia o sujeito do conhecimento é indi- vidual e coletivo. O socidlogo naturalmente disp6e de todas as condicées para astabelecer 0 seu objecto de estudo. E evidente 0 estilo pessoal do autor do escrito, na interpretagdo. Mas uma leitura mais atenta logo indicard © dialogo, o engajamento, a reciprocidade, implicita ou explicitamente, do autor com este ou aquele setor social, grupo, instituigéo, classe, movimento, partido, corrente de opiniao publica, sociedade. Sao frequentes as obras de sociologia que expressam um autor e uma configuragao, um eu e um nds, um sujeito simultaneamente individual @ coletivo do conhecimento. E dai que nasce o pathos de algumas obras fundamentais da sociologia. . na Sociologia 213 214 Octavio lanni Referéncias Bibliograficas Alexander, vettrey C. Baier, Horst Barnes, Barry Blumer, Herbert Boudon, Raymond Bourricaud, Frangois Coutinho, Carlos Nelson Elias, Norbert Elster, Jon Elster, Jon Fernandes, Florestan Giddens, Anthony Giddens, Anthony Gouldner, Alvin W. Gurvitch, Georges Josyr-Kowalski, Stanislaw 1987 1969 1986 1956 1977 1975 1981 1978 1979 1989 1959 1976 1988 1970 1986 1971 “The Centrality of the Classics’. in Anthony Giddens e Jonathan Turner (Editors), Social Theory Today. Cambridge: Polity Press. “Tecnologia Social o Liberacion Social? 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