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_VENALIDADE E HEREDITARIEDADE DOS OF{CIOS PUBLICOS EM PORTUGAL NOS SECULOS XVI E XVII. ALGUNS ASPECTOS* Por Franelsco Ribeiro da Silva INTRODUCGAO E sabido que na Europa da época moderna, néo sendo clara a distingdo entre © que pertencia ao sector privade ¢ o que competia 20 dominio puiblico, os oficios do Estado e da Administracao foram objecto de compra ¢ venda e funcionaram como parte integrante dos bens Patrimoniais transmissiveis por heranga ou por doacao. No entanto, segundo R. Mousnier! apenas na Franca, mediante as «survivances» no séc. XVI e a «paulette» no séc, XVII, 0 fenémeno se tornou num «sistema completo, oficial ¢ legalizado». Mas outros paises tais como a Espanha, os territérios italianos, a Prussia, a Inglaterra conheceram a venalidade, cuja pratica foi, alias, fomentada pelos respectivos reis ¢ principes. Outro tanto aconteceu nas colénias amer ccanas bem como nas sociedades turea ¢ chinesa?, As consequéncias sociais e politico-institucionais desta realidade tém sido objecto de discussdo entre os historiadores parecendo adqui- rido que, sob 0 ponto de vista social, a venalidade favoreceu a mobilidade, abrindo possibilidades de promocio aos que, embora nao nascidos nobremente, possuiam dinheiro e instrucio%. Pela via do > 0 presente text fof apresentado, em versio mais breve, 20 11 Encontro de Historadores partuguesese sovticos, realizado em Leninegreda de 13 15 de Junho de 1988, ' MOUSNIER, Roland, La monarquta absolute en Ewopa del siglo Va nuestros dias, Madrid, 1986, p. 164 2 SWART, Koenrrad V., Sales ofoflss nthe seventeenth century, La Haya, 1949 3 MARAVALL, José Antonio, Estado maderno'y mertaldad social silos XV XVID, vol, Madrid, 1972, p. 485. 203 desempenho de oficios, a burguesia subiu na hierarquia social‘ ainda que tal tenba dado azo a uma nova casta de privilegiados:. Sob © ponto de vista politico, alguns véem na venalidade um proceso de deformacéo ou enfraquecimemto do Fstado mas outros consideram que o acesso de novos elementos as funcdes piblicas insuflou ventos de modernidade nesse mesmo Estado. Mas a minha comunicacio nao visa naturalmente repetir nem sequer sumariar os caminhos jé percorrides por historiadores ocidentais de grande mérito mas tao somente contribuir, ao menos come sugestéo, para o preenchimento de uma lacuna da historia politico-institucional de Portugal. De facto, tanto quanto sabemos, nao ha, no nosso Pais, ‘qualquer estudo que tenha encarado, no todo ou em parte, os diversos. vectores sob os quais 0 problema da venalidade deve ser perspectivado, Talvez por isso seja justo lembrar aqui a breve mas sugestiva abor- dagem de Antonio Manuel Hespanha*. 2— Mas tera existide venalidade em Portugal? Antes de mais, necessitamos de precisar 0 contetdo do termo, Segundo R. Mousnier existiu venalidade publica sempre que o Rei vendeu um oficio ou quando, por razdes de pentiria do Tesouro, em vez de dinheiro, pensio, gratificagio ou indemnizacao, deu a 3 guém um posto piblico na pressuposigo de que este o pudesse vender a um terceiro, Houve venalidade privada quando 0 proprietirio de um oficio recebeu uma quantia em dinheiro ou um objecto de valor equivalente para se demitir em favor de quem Ihe deu 0 dinheiro ou 0 objecto. ‘Ou entio quando alguém, nao sendo embora detentor de um oficio, teve valimento para o conseguir para outrem, mediante alguma paga’ ‘A resposta & questo enunciada (se houve ou nao venalidade em Portugal) deve partir de uma triplice analise: da legislacao promulgada, do direito costumeiro e da realidade efectiva. (MOUSNIER, Reland, La vonalité des offices sous Hes IV et Louls XI, Pass, 1971, p77 5 BRAUDEL, Ferman, E/Maditersco ye mundo madiersinao ena pcs de Felipe I, 2 ed, Ivo, Madi, 1978, . 50. ©" HESPANHIA, Anténio Man dena, Coimbra, 1972 7 MOUSNIER, R. La velit, p13, | Wistiria das Instidedes. Epoces mudieval ¢ mo 204 Se basedssemos a resposta na leitura ligeira da lei seriamos inclinados a pensar que a venalidade, a ter existido, era invencivelmente legal. De facto, as Ordenacdes Manuelinas e as Filipinas parece conterem disposicées que proibiam terminantemente a transaccao de oficios publicos. “Assim, 0 tit, 46 do Livro 2." das Ordenagdes Filipinas (e o titulo 41 do Livro 4.° das Manuelinas) vedava totalmente aos senhores de terras que tivessem peder para nomear pessoas para cargos piiblices, a possibilidade de vender ou receber dinheiro por cargos determinados a saber: juiz dos Orfios, escrivio des Orfios, escrivao da Camara, escrivao da Almotacaria e outras fungdes municipais. A infraccao desta norma, nao criando prescrico com o decorrer do tempo, punia severamente ambas as partes: o vendedor era privado para sempre do direito de dar 0 oficio; ao comprador era-lhe retirado 0 cargo adquirido confiscados os seus bens. Por sua vez, o Livro 1.%, it. 96 das mesmas Ordenagées proibe a certos detentores de oficios (tabelides, escrivaes € outros) a venda de seus cargos, sob pena de dupla perda do dinheiro recebido e do oficio. E ‘mesmo quanto & renincia em favor de outrem, essa lei condicionava-a 8 obtencao prévia de licenca régia. ‘Mas uma leitura mais atenta da legislagio nao deixa de encontrar ambiguidades e possibilidades de ladear a proibiedo. Assim o § 2 do mesmo tit. 96 das Ordenacdes Filipinas deixa subentendida a liceidade da venda do oficio desde que para tal se obtivesse autorizacéo prévia do rei, Vejamos os termes da lei: eoutrossi néo podera renunciar nem vender, posto que para isso tenha nossa auctoridade, quando nelle tiver feito alguns erros por que o deva perder» ‘Ou seja, 0 que este parigrafo proibe é a venda ou renincia no caso de o titular ter cometido erros que impliquem a perda do oficio. Ou por outras palavras, o titular ndo 0 podia vender, mesmo que tivesse obtido autorizacio régia, porque 0 oficio deixou de Ihe pertencer a partir do momento em que praticou irregularidades graves. Mas se nao tivesse cometido 0s tais erros ¢ se tivesse obtide licenca do Rei, poderia vender. © § 3 do mesmo titulo vai mais longe pois di-nos a entender que havia Julgadores que obrigavam os Oficiais incompetentes a vender ou a renunciar a seus oficios. Nao € menos surpreendente o § 1: se 0 proprietario de um oficio fosse atingido por uma doenca grave e quisesse renunciar em favor de outrem, a resignagio s6 seria valida se ele sobrevivesse 30 dias, no minimo, & rentincie formal. Se morresse repentinamente sem ter 205 atempadamente formalizado a resignacio, o oficio revertia para o Ret que o daria a quem Ihe aprouvesse. Esta cléusula restritiva impée a comparacéo com as condigées de resignagdo que a lei de Franca exigia: ai, antes do decreto de Paulet (1604), a rentincia s6 teria validade se fosse feita, pelo menos 40 dias antes da morte do oficial’. No fundo, o que a Lei portuguesa pretende acautelar é 0 controlo absoluto do Rei nesta matéria—o qual, em linhas gerais, foi efectiva- mente conseguido. Na verdade, conhecemos casos de venalidade pura (q1e abaixo descreveremos) mas em nenhum se deixou de solicitar prévia autorizagio 40 Monarca—a qual, alias, nem sempre era concedida. Em 1605, Francisco da Mota Rebelo, cidadao do Porto e cristdo-novo comprara 0 oficio de Escrivéo das guias dos portos secos daquela cidade, Os Vereadores (magistrados municipais superiores) embargaram a. sua tomada de posse precisamente porque, diziam, «neste Reyne he muito defezo que nenhtia pesoa venda nem compre officio nenhum por dinheiro sem provisio... que eu (Rei) néo costumava dar’..» A conviegao generalizada de que a venalidade seria caminho aberto Para a incompeténcia ¢ para toda a espécie de abusos dificultou a proliferacao do sistema em Portugal. Depois da promulgacao das Ordenagées Filipinas (1603), varios decretos retomaram a sua doutrina. Por exemplo, uma provisio de 1616 determinava que os Oficiais de Fustiga fossem providos segundo critérios de mérito profissional e aptidao e nao por mera sucessio ou compra € que 05 servicos prestados ao Rei deviam ser compensados de outra forma que nao a dadiva cega de cargos piiblicos'® Devem entender-se na mesina linha de preocupacdo as sucessivas insisténcias legais para que todos os oficios piblicos fossem desempe- nhados pelos seus titulares. Ja as Ordenagées Filipinas, na secuéncia de doutrina contida nas Manuelinas, proibem que os Oficiais de Justica € da Fazenda arrendassem seus cargos ou neles se fizessem substituir, cominando com penas severas os infractores. Tais penas, em viltima analise, compreendiam a perda pura ¢ simples do cargo bem como a responsabilizacao civil pelos danos causados a terceiros por substitutos incompetentes. © dem, tide, p, 226 Arquivo Histiri Municipal do Porto, Sentencas, Livro 5, Ns 9.9 10 SILVA, Jose Justino de Andrade e, Collie Chronologica da Legilaio Por tuguesa, 1613-1619; Lisboa, 1884, p. 211, 206 20 apenas em casos de forca maior admitia serventias ou substituicdes — sempre submetidas ¢ dependentes da autorizasio régia—e na condigéo de 0 substituto ser examinado e aprovado" Sabemos que a lei nem sempre era acatada. Talver por isso, de tempos a tempos, tais principios eram retomados em legislagio avulsa Um alvara de 1612 determinava que os proprietérios de todos 0s Oficios dda Justica de todos os Juizos e Tribunais do Porto e Lisboa das Comarcas do Reino, comparecessem, no prazo de um més, a servir pessoalmente nos seus lugares. No caso de néo cumprirem ou ndo apresentarem impedimento capaz, 0 oficio seria declarado vago ¢ 0 proprietario privado do direito a qualquer indemnizagio¥, Logo 0 Consetho da Fazenda apoiou tal determinacio & propés 20 Rei que as suas disposicoes se aplicassem aos oficios da sua jurisdigdo". Desconhecemos se a sugestéo fi ou néo posta em pritica, O facto de uma carta régia de 1614 confirmar esta matéria apenas no tocante a oficios da Justica poderia inclinar-nos para a negativa. Mas outros textos de 1633 aplicam a doutrina a todos 0s oficios sem distingao" Que as objeccoes a venalidade tinham a ver com o receio de incompeténcia ¢ de exploracéo por parte dos compradores vémo-lo claramente em 1629 quando uma Junta criada ¢ reunida em Madrid para sugerir meios para obter receitas em Portugal, rejeitou alvitres que apontavam para a venda de certos cargos da Justiga e da Fazenda porque desse modo, dizia, se fecharia a porta aos bons e aptos que no tivessem dinheiro e se abriria aos ricos ¢ inaptos com grande prejuizo para 0 povo! Sabemos que as objecgdes tinham uma fundamentacéo real. De facto, muitos pedidos de rentincia escondiam interesses ocultos © dinheiros que corriam por baixo de mao. Di-lo claramente uma carta régia de 1603 a propésito da resignacéo solicitada do cargo de tabelio do Concelho de Penafiel: «sou informado que as renunciagies que se fazem de semelhantes officios so paleadas»'*. Por outro lado, ti obstante as repetidamente proclamadas exigéncias de aptidao e capa- cidade, as vezes os oficiais eram primariamente incompetentes. Mos- TT Ordenacses Filipinas Livro 1, titulo 97, Lishoa, 1S (ed, facsimilada a parte da e 1870) 12 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lis, L. 28, ft 2107-211, 1B Archivo General de Simancas, Ssoretarias Provinciaes, Livty 1472, fl 13, 4 SILVA, J.J. de Andrade, ac, vl. IV, p. 98. 15 AGS, SP, L.1982, 4112, 16 AGS, SP, L. 1487, 30 207 tra-o a declaragdo apresentada para justficar a atribuigdo da serventia do cargo de Escrivao da Provedoria do Porto em 1629: «o titular fazia letra t20 ma que nio se conseguia ler Apesar das reservas ¢ das desconfiancas, constatamos a existéncia de casos de venalidade pura. Quais? ‘Neste momento nio dispomos de dados para uma enumeracio exaustiva, Diremos, no entanto, que todos os oficios da Fazenda da cidade do Porto foram tocados pela venaiidade nos meados do séeulo XVI ‘Assim, Jodo Rodrigues de Sa sucedera no cargo de Vedor da Fazenda a0 seu pai, (Garcia de $8) 0 qual, por sua vez, 0 comprara em 1551 a Francisco de Sampaio por 2500 eruzados. Pelo mesmo processo haviam sido adquiridos 0s oficios de Con. tador da Fazenda, de Escrivio dos Contos, de Escrivao da sisa das Herdades. E um tal Ferndo Dias fora obrigado a pér a venda os cargos de Escrivéo da sisa do pescado e de recebedor da sisa dos vinhos para poder pagar as suas dividas Por rentincia dos proprietarios em favor de pessoas determinadas havia sido transferida a propriedade de outros oficios tais camo o de Escrivio do ver do peso, o de recebedor da sisa dos panos, 0 de requeredor da sisa do pescado e da hortalica, 0 de escrivio do Almoxarifado e até 0 de porteiro dos contos. Foi também objecto de transaccdo 0 cargo de corretor de merca- dorias da cidade do Porto, em 1588" e posteriormente em 1627 Nao foram apenas os cargos da Fazenda que foram expostos a operacées de compra e venda. Oficjos burocraticos de provimento das Camaras municipais conheceram igual tratamento. Assim em 1576, Francisco Baio de Magalhacs obteve por essa via o lugar de Eserivao da imara do Porto, junto do Rei, nao obstante o ofico ser de nomeacio ‘municipal?!. Mas quando, em 1587, depois de ter caido em desgraga politica por ter pertencido ao partido do Prior do Crato, quis renunciar a troco de dinheiro, Filipe Indo Iho consentiu2 Nao se havia seguido igual eritério em 1584, quando um tal ‘AGS, SP, L. 1475, 1.174 8 AHMP, Aimosarfado 1566, fs. 19 © 24.25 19 AHMP,L. de Vereacées, 28, i, 55v-€ 65 2 SILVA, Francisco Ribeiro da, O Porto ¢ ose Tenmo (1580-1640), Os omens at Insttipoes @ 0 Poder, vol, Porto, 1988, p. 685. 31" DIAS, Licenciade Francisco, Memes quinhontistas du Proctrador del Ret oro, prefagio e notas de A, Mapalhies Basto, Porto, 1937. p. 64 2 AHMP, LV n° 27, 293 208 Henrique Vaz renunciou ao cargo de Escrivao da Almotacaria em favor de Francisco da Mota Rebelo mediante a oferta de 150 cruzados”. Mas nio foi apenas na cidade do Porto e exclusivamente no decorrer do século XVI que tais ocorréncias se verificaram. Blas poderao comprovar-se um pouco por todo o Reino e continuaram pelos séculos seguintes até & sua proibigso definitiva em 1770. Assim, por exemplo, concedia a cidade de Elvas a faculdade de colocar a venda os ofieios de Escrivio da Camara e de Escrivao de Almotacaria para, dessa forma, aliviar um pouco o peso da derrama langada sobre 0 povo para o servico da vinda do Rei a Portugal”. Nem os oficios da burocracia eclesidstica escaparam & pratica vvenal: nos anos sessenta do século XVI, Bartolomeu de Araijo vendcu o seu lugar de Escrivio dante 0 Vigério episcopal do Porto®. A venalidade nio se esgotava na venda directa e aberta dos oficios. Como dissemos, ela abrangia também resignagdes em favor de terceiros: em 1614 Joao Rombo pediu autorizacéo para renunciar ao oficio de tabeliio de notas do Porto em favor de Luts Pinto. 0 negécio foi conduzido pela mediacao do Vedor D. Jorge de Mascarenhas. Embora nada no documento nos autorize a falar de transacedo pecuniéria e triangular, ela parece estar subentendida. De resto, a interferéncia de altas personalidades nestes processos & relativamente frequente ¢ nem sempre desinteressada Por vezes, 0 proprietario do cargo limita-se a resignar nas mos do Rei, sem mais. Tal aconteceu, por exemplo, com Domingos Alvares que, fem 1598, devolveu o offcio de escrivio’ das sisas do Concelho de Penafiel2". Mas 0 mesmo registo que noticia a remtincia nomeia 0 ssubstituto, alids seu conterraneo—o que leva a pensar que a entrega no foi gratuita. Nao raro a renincia é manifestamente venal: Joana Correia que professara nur convento é autorizada pela Camara de Lisboa, em 1610, 4 renunciar 20 oficio de cirurgiao da cidade que herdara do pai, desde aque o sucessor, além de cristo-velho fosse competente para bem servir o cargo". 2B ANMP, LV 1° 26, 1 201 2 SILVA, J.J. de Andrade , 0.0, 1613-1619, p. 80, 2 DIAS, Licenclaao Francisto, 0. . 6 % AGS, SP, L 1511, 1.97 27 ANT, Chenecaria de Filipe 1, 2, M228 24 OLIVEIRA, Eduardo Freite do, Elemantos para a Histdria do Municipio de Lisa, 1 tomo, Lisboa, 1887, p. 234 209 Amiudadas vezes se nos deparam casos de arrendamento de oficios, (0s quais, de mancira geral, no eram bem vistos pelo Poder central Todavia, conhecemos situagdes em que o arrendamento era facilmente tolerado: se o proprietario apresentava justa causa para o impedimento; ‘se 0 proprietario era menor; se o proprietario era uma mulher solteira ou vitiva. Devemos acrescentar, no entanto que: 1° — muitas veves se fez pressio para que as mulheres naquelas condigSes se casassem ou se casassem de novo™; 2° —os menores de 25 anos pediam pedir suprimento de idade*; 3° —o Rei, pelo menos a partir de 1620, condicionou as serventias por impedimento do proprietario & informagio prévia sobre as causas do impedimento e sobre o rendimento do oficio® 3—A hereditariedade dos oficios Se 0 poder real, certos moralistas e a tradicdo lusitana puseram entraves livre compra e venda de oficios piblices, julgamos que 0 ‘mesmo nio se poder afirmar quanto a hereditariedade das mesmos. Com efeito, a sta transmissio por heranga, como se tratasse de bens atrimoniais, desenvolveu-se no século XVI, conhecendo grende incre- mento no seguinte, como o atestam abundantemente os arquivos das chancelarias régias. No entanto, a hereditariedade no era automitica. Antes tinha que ser concedida caso a caso, sendo normalmente solicitada ert. vida pelo proprictirio, Pelo menos a partir de 1636, o Rei exige que o pedido de rentincia em favor de filho ou filha seja acompanhado da informaco sobre quanto tempo o proprietario solicitante exerceu o cargo, E encontramos exemplos em que a concessio, embora despachada favoravelmente, é limitada pela cléusula de que 0 oficio se extinguisse apés a morte do tiltimo beneficidrio. Tal sucedeu com um dos postos de tabelido da cidade do Porto cujo mimero o rei pretendeu reduzir™. Por sistema 0 Rei condiciona a hereditariedade a0 exame prévio sobre a idoneidade do sucessor. 1m, tbidom, AL em, biden, p. 284 285. AGS, SP, L 1522, 1.47, SILVA 5.1. de Andrade , 0.6, 1620-1627, p. 9 39 em, siden, vol Ip 105, eeee 210 Ha ainda que estabelecer distingdo entre a hereditariedade nos grandes oficios pablicos da Corte ¢ da Administracdo Central, por um lado, e a hereditariedade nos oficios burocraticos ligados & Adminis- trago, & Fazenda e a Justiga locais, por outro. A raiz venal da dltima era, a nosso ver, muito mais evidente que a primeira. E & essa que primordialmente aqui consideramos. ‘0s casos mais numerosos de hereditariediade dos oficios respeitarm & sucessio directa de pai para filho ou filha; mas depararam-se-nos transmissées de irméo para irmao™, de irmao para irma® e até de irma para irma* e de tio para sobrinha®, ‘Se as mulheres nio podiam exercer por si préprias qualquer oficio, por que é que os puderam herdar? Certamente porque se entendia que a propriedade de um oficio se ‘equiparava a um bem patrimonial, sendo por isso transmissivel, Fosse ‘come fosse, a transmissibilidade dos oficios as mulheres desempenhou um papel social muito importante. —primeiro porque 0 oficio constituiu dote de casamento suficien- temente motivador para muitos matriménios. Sem tal estimulo, quantos casamentos ficariam eternamente adiados? —segundo, porque por essa via a funeao piblica foi permanen- ‘temente renovada com novos elementos; — terceiro, porque estimulando casamentos, ooficio abriu as portas do mundo burocratico a muitos e, dessa forma, funcionou como meio de ascensio social, Mas... que offcios funcionaram como dote de casamento? Mais uma vez, a sua enumeragio exaustiva esta fora das nossas possibilidades. Diremos apenas que genericamente se tratava de cargos burocraticas née muito importantes sob 0 ponto de vista hierérquico ‘mas que proporcionavam contactos frequentes com a populacao a qual nao podia prescindir dos seus servigos. Bis alguns cuja documentacéo nos passou pelas mios: — Juiz dos érfiios de varias localidades (Miranda do Douro, Lafées, Vila Verde, Maxico na Ilha da Madeira, etc.); escrivaes das mais diversas, TANT, Chancelaria de Filipe 1,12, 1.388 35 AGS, SP, L 1529, 1.37 36. ANTT, Chancelaria de Filipe 17, L. 21 132 81 ANT, Chancelara de Filipe 1, L371. 330. ail rTeparticdes ¢ servigos (da rendigao dos captivos, do Porto, da cestaria de Lisboa, da almotacaria de S. Jodo da Foz, do civel da Relagac do Porto, das sisas do concelho de Bem Viver, dos feitos do mar da alfandega do Porto, da correicao do Porto, das apelacdes da Relagio do Porto, da provedoria do Porto); tabelido do judicial e de notas de varias loca- lidades; caminheiro ¢ requeredor das Tercas do Reino; guarda da ‘Camara do Porto; meirinho da Relagio do Porto, etc CONCLUSAO Do exposto podemos concluir que, embora os textos legais ¢ a ‘mentalidade ndo favorecessem a venalidade nem por isso ela deixou de ser tolerada e praticada ao longo dos séculos XVI e XVII. Quanto & hereditariedade dos oficios, deparou com muito menos objeccdes. Pensamos, no entanto, que: 1.2 —0 Rei nao permitiu que o processo escapasse ao seu controlo; 2.9—~a venalidade nao atingiu os mais altos postos da Adminis- tragao e da Justica. E verdade que muitos oficios notaveis se manti- veram na posse da mesma familia ao longo de varias geragées. Mas, de maneira geral, tais doades procederam mais da liberalidade régia do que de qualquer intencao interesseira e lucrativa, Isto ndo quer dizer que nao se conhegam casos de venalidade pura ao nivel de offcios importantes. F. sabido que 0 cargo de Correio-Mor de Portugal foi vendido por Filipe Il, em 1607, a Luis Gomes da Mota por 70.000 cruzados*. Mas ndo cremos que tais situagées se tivessem multiplicado, Quando, em 1630, um tal Jodo Rebelo de Lima quis comprar um oficio de Secretario de Estado, a Junta de Madrid atras referida, emitiu Parecer negativo devido acs inconvenientes da venda deste oficio™, 3.°—A venalidade verificou-se sobretudo ao nivel municipal ¢ local, sem contudo atingir os mais altos lugares da Administracdo concelhia, nem mesmo durante o periodo da unido das Coroas portuguesa ¢ espanhola. Enquanto, nessa altura, em Espanha, grande parte dos oficios de regedor foi obtida por compra, tal nao sucedeu em Portugal ‘SERRAO, Scel, Comeias ¢ Pastis in Diciondro de Historia de Portgal, vol. Lishog. 1971, p. 706. 33 AGS, 5P, L_1582, 8.116 4© DOMINGUEZ ORTIZ, Antonio, EI Antigo Ripiman: ios Reyes Catslicos y los Austrias, 5 ed, Made, 1978, p. 197 212 com 0 correspondente oficio de vereador, ainda que alguns conse Iheiros castelhanos o tivessem pretendido*! 42— Julgamos dever colocar algumas reservas & afirmagao vei culada pela chamada Literatura Autonomista de que a venalidade se desenvolveu enormemente durante o periodo filipino®. A sua pratica ‘em Portugal é-the seguramente anterior, tendo conhecido grande desen- volvimento jé nos meados do século XVI. E podemos até afirmar que alguns textos legais promulgados durante aquele tempo the tentaram por cobro, Filipe III e Filipe IV fizeram publicar portarias e cartas régi em que proibiam as rentincias que nao fossem de pais para filhos*. 5°—A pratica da venalidade pela condi¢ao social dos que ven- deram come dos que compraram oficios e ainda a hereditariedade em favor de mulheres, permitiram ¢ favoreceram uma certa mobilidade social AGS, SP, 1.2634, Ns. a 2 Farce evo desta corsente Joie Pinto Ribeiro na sua obra Uzupepio, Reencdo «¢ Restaurapo de Portugal cit. por HESPANHA, Antonio Manvel, 0.0. 392, ‘8 SILVA, J. 1. de Andrade ¢, 0c, 1613-7619, p. 80 € IM, pp. 37 © 16. 213

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