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© Francisco Mendonga € Salete Kozel (Orgs.) Elementos de Epistemologia da Geografia Contemporanea Coordenagio editorial: Marildes Rocio Artigas Santos Revisio de texto: Maria José Maio Fernandes Naime Revisdo final: dos Organizadores Projeto grafico ¢ editoragao eletrénica: Jomar D. Ribas Capa: Cecilia Yojo Série Pesquisa, n. 69 Coordenagéo de Processos Técnicos. Sistema de Bibliotecas, UFPR “Elementos de epistemologia da _geografia contemporanea/ E38 Francisco Mendonga, Salete Kozel, organizadores;[revisio de texto Maria José Maio Fernandes Naime].-[Curitiba] :Ed. da UFPR, 2002. Reimpressio 2004, 270p. : il. (Pesquisa; n.69) Inchsi bibliografia © notas bibliogréficas 1. Geografia humana. 2. Geografia. 3. Epistemologia social. 4, Sociologia do conhecimento. 1. Mendonga, Francisco. Il. Kozel, Salete. IIL Naime, Maria José Maio Fernandes. CDD 20.ed. 910.01 CDU 1976 910.1 ‘Samira Elias Simées CRE-9/755 ISBN 85-7335-092-X Ref. 323 Editora UFPR Centro Politécnico - Jardim das Américas Caixa Postal 19.029 Tel./fax: (41) 361-3380 / 361-3381 81531-980 - Curitiba - Parand - Brasil 2004 AINDA SOBRE PERCEPCAQ, COGNIGAO E REPRESENTACAO EM GEOGRAFIA Livia de Oliveira Neste infcio de século, senao de milénio, ainda é oportuno e necessario refletir sobre percepgao, cognicdo e representagao geografi- cas. E oportuno porque esté em moda pensar nos sujeitos de pesquisas como pessoas, quer como individuos, quer como grupos. Nos tiltimos anos pulularam trabalhos e estudos sobre percepgao geografica. Desde a década de 80, apés a tradugao € publicagao da Topofilia e do Espaco e lugar, os geégrafos brasileiros se voltaram para a natureza, nao mais dicotomicamente, separada da sociedade, mas com uma visao holistica, como um todo: natureza/sociedade. Daf ser necessdrio implementar- se investigagGes com estas abordagens humanisticas; organizar um coléquio nacional com esta tematica e reunir geégrafos com pontos de vistas convergentes e ao mesmo tempo divergentes. Pois € da con- vergéncia e da divergéncia que brotam novos enfoques, novos interes- ses, novas reflexdes e novas conquistas para a ciéncia geografica. Ainda sobre percepcio A percepgo geografica est atrelada ao conceito de ativida- de perceptiva, como preconiza Piaget. Atividade esta que é multifacetada, excluindo uma interagdo imediata, mas necessitando de outras agées, tais como: exploracao, transposi¢ao espago-tempo- ral, ou puramente temporal, transporte, coordenacao, esquematizacao, estruturagao e outras. Estas atividades aumentam com a idade em importancia e em ntimero de variedades diferenciadas. we Francisco Mendonca ¢ Salete Kozel (Orgs.) Para a geografia h4 um valor epistemoldégico, comparado com o de outras formas de conhecimento. A questo ser4 compreen- der porque a percepc4o nao nos conduz de maneira segura na famili- aridade do objeto e quais os elementos subjetivos de transposicz0 ou de deformagao foram obstdculos a esta leitura, em aparéncia imediata das propriedades do meio externo, em nosso caso, da natureza/socie- dade. Convém lembrar que quando uma reacio permanece rigorosa- mente a mesma em todas as idades, é, pois, provavel que a percep¢’0 dependa, pelo menos em parte, de algum mecanismo fisiolégico ina- to. Pode-se citar as percepgées ligadas aos aparelhos sensoriais: tona- lidade de cores, de sons, acuidades olfativas, gustativas ou tateis. No nosso caso geogrdfico, trabalhamos quase que inteiramente com a percepcao visual. Estao ai os intimeros estudos e pesquisas, principal- mente com a paisagem. A precaugao essencial € nao utilizar, para analisar os fené- menos perceptivos, senao uma linguagem e uma conceitualizag4o que permanecam puramente relacionais. Isto é, que nao fagam apelo a nenhum fator, nao mais que as préprias relacées e suas interligacées. Estas relagGes serao métricas, todas as vezes que for poss{vel, e coorde- nardo diretamente as medidas tomadas nas pesquisas. Em outros ca- sos, clas serao espaciais no seu sentido topoldgico, ou ainda, probabilistico. Quando nao for possivel contar com uma expressio matemitica, serve-se de simbolos ldgicos. Isto permite, para poder con- ferir um certo grau de explicagao, a construgao a partir de estruturas espaciais ou probabilfsticas, comportando a necessidade Iégico-mate- mitica, como por exemplo, construir as estruturas de grupo ou de redes, de fluxos ou de movimento. Ora, esta abordagem relacional no estudo da percepgio geo- grafica pode conduzir, nao somente a enunciar corretamente os dados geograficos, mas também para auxiliar a construir modelos susceti- veis de conferir uma necessidade e um interesse que levam A propria explicagdo. Esta posigao relacional deve substituir as implicacdes im- precisas e incompletas da realidade; por um sistema de implicagdes l6gico-mateméticos que vem a construir um saber, um conhecimento coerente e adequado aos dados da experiéncia. Assim, fazemos a indagacao: que é, com efeito, perceber? Em que difere de inferir, englobar em graus diversos? Corresponde, @ 190 Elementos de Epistemologia da Geografia Contemporanea portanto, a sistemas relacionais, nos quais € possivel caracterizar as estruturas, no por decisdes arbitrarias, mas procurando traduzir pas- 80-a-passo em expressées precisas as condutas dos sujeitos, das pesso- as. Deste modo, é impossivel atribuir a todas as percepedes uma estru- tura Gnica, porém nos defrontamos de uma parte, de um todo, um conjunto de estruturas perceptiveis de uma complexidade crescente, de outra parte, de uma gama de pré-inferéncias. Lembramos aqui que as estruturas perceptiveis nao se apresentam como aditivas, mas sim irreversiveis. E oportuno, também, nao confundir percepgio com sen- sagao, apesar de se apresentarem intimamente ligadas na apreensao da realidade, A sensagao € a condigao basica da condigio sensorial da percep¢ao, necessitando um érgio corporal para se realizar. E poderi- amos dizer que a percepgao é a apreensao de uma qualidade sensfvel, acrescida de uma significagao, como uma qualidade essencial, ¢ nao apenas um acréscimo. Para continuar as nossas reflexdes, precisamos langar mao das nogées sobre inteligéncia. Ainda sobre cogni¢Z0 Epistemologicamente, aqui assumimos que a inteligéncia pre- cede a percepcio, nao aceitamos que as operagées sejam abstrafdas das percepcées. Ha diferencas entre a inteligéncia e a percepgao. Esta esté subordinada a presenca do objeto, que nos fornece um conheci- mento imediato. Enquanto a inteligéncia pode evocar os objetos em sua auséncia mediante a via simbélica, imagindria ou conotagao ver- bal e, mesmo em sua presenca, pode ser interpretada pelas ligacdes mediatas, elaboradas gracas aos quadros conceituais. Por outro lado, a percepgao est4 subordinada as condigées limitativas de proximida- de no espaco e no tempo. Como exemplo: ao olhar a lua cheia nao se pode perceber ao mesmo tempo a lua minguante, apesar de evocada pela meméria. Ao passo que a inteligéncia pode aproximar, nao im- porta qual elemento de outro, independente das distancias espaco- 191 _6 Francisco Mendonga e Salete Kozel (Orgs.) temporais; pode igualmente dissociar, através do pensamento, os ob- jetos vizinhos e raciocinar sobre eles em completa independéncia. A percepcio é essencialmente egocéntrica e ligada a uma cer- ta posigao do sujeito percebedor em relacao ao objeto, ao percepto, sendo estritamente individual e incomunicdvel (senao através da lin- guagem ou do desenho). De outro lado, a constituigio do conheci- mento intelectual independe do eu, sendo assim, comunicavel. Neste contato com o objeto presente, a inteligéncia ultrapassa, sem cessar 0 dado, no sentido de uma reconstrugio interpretativa. Outro aspecto importante € que o dado perceptivo comporta uma significancia, sem sair das fronteiras do percepto, tendo os significantes e significados nao ultrapassado os quadros dos indices, em oposigao aos simbolos e sinais que s4o significantes diferenciais de seus significados e podem representar um objeto ausente; um signo é cada vez mais diferenciado de seus significados. Ao contrério da percepgdo, a inteligéncia escolhe os dados, aquilo que lhe é necessdrio para resolver o problema, ultra- passando, assim, o préprio dado, atingindo a construgdo dedutiva ea abstracao solidariamente. Pode-se afirmar que as atividades intelectu- ais sio operatérias, portanto apresentam em suas estruturas mobili- dade, reversibilidade, associatividade, transitividade. Em geografia importa tanto a percepgio como a cognicao. Mas pode-se dizer que a cognicéo fundamenta toda a pesquisa geo- grafica a partir da percepg4o que cada um de nés constréi da realida- de € a meta que perseguimos ou tentamos atingir. Aceita-se que o verbo de cognigao é conhecer. Conhecer consiste em construir ou re- construir 0 objeto do conhecimento, de maneira a apreender o meca- nismo desta construgio. Convém lembrar que para Piaget o pensa- mento se confunde com a inteligéncia, mas nao com a imagem. Esta nao € um elemento do pensamento propriamente dito, nem continu- agao direta da percepgao, mas sim o simbolo do objeto, podendo ser concebida como uma imitagio interiorizada. Por exemplo: a imagem sonora € apenas a imitac4o interior do som correspondente e a ima- gem visual € o produto da imitagéo do objeto e da pessoa, quer 0 corpo inteiro, quer seus movimentos. Nao se deve esquecer que a percepgio e a cogni¢ao estao atreladas a representacao, ¢ tratar de representac4o € tocar em cheio no problema bdsico da geografia — os mapas. eae Weemseeenve Elementos de Epistemologia da Geografia Contemporanea Ainda sobre representacao Quando se trata da representacdo, juntamente com a per- cepgao e a cogni¢&o, naturalmente se volta para a elaboragao ¢ cons- trugao do espaco, que por sua vez sao essencialmente devidas 4 coor- denagao de movimentos que so solidarios entre si. Lembramos que nao existe um espago, mas vdrios espacgos, € aqui vamos nos preocu- Par com o espago representativo, que por sua vez € geométrico, topoldgico, projetivo, psicolégico etc. Quanto A natureza, 0 espaco pode ser: ontoldgico, quando é um ser, um objeto, uma coisa; epistemolégico, quando é um contetido e possui propriedades prépri- as; psicolégico, quando é uma construg4o, um processo com partici- pacio efetiva do sujeito, e Iégico, quando é uma relac4o, um sistema de referéncias ou sistema sociocultural. A nog4o de espaco implica um elemento teérico e um pratico. Quando diz respeito a conceituagao, pode ser como um conceito (tedrico) entendido como substancia (ser independente), propriedade (estados ¢ alteragdes), relagdes (entre os objetos), e representac&o (das relagdes). Quando diz respeito a vivéncia (pratico) pode ser um espaco vivido de sobrevivéncia, relacionamen- to, atividades, movimentagao, apreciacdo cultural ou organizagao. As maneiras de se refletir o espaco podem ser: absoluta (quando a coisa é em si mesma, tem existéncia independente da matéria); relativa (quan- do se estabelece relagao entre objetos e depende da matéria) e relacional (como estando contido em objetos, isto é, um objeto existe na medida em que contém e representa dentro de si as relages com outros obje- tos). Lembramos sempre que o espaco nao é absoluto, nem relativo ou relacional em si mesmo, mas pode se transformar em um ou em ou- tro, dependendo do interesse ou necessidade circunstanciais. Enquan- to representativo, o espaco € simbdlico e geométrico, precisando ser mapeado e mensurado, pois 0 representamos como processo, recons- trug4o, e mais ainda, como representag4o mental e grafico, trabalhan- do também com a imagem mental. No caso da gografia, o espaco usado é 0 geométrico, medi- ante varias geometrias, constituindo uma verdadeira linguagem espa- cial geogrdfica. Ao mesmo tempo, a génese do espaco representativo é topolégico antes de vir a ser projetivo e depois euclidiano. Neste espa- wi Francisco Mendonca e Salete Kozel (Orgs.) ¢o topolégico sé as relagdes de vizinhanga, de ordem, de contorno e de continuidade se conservam, sendo estabelecidas por aproximagées entre as partes de um objeto, isto é, os elementos de uma configura- ¢4o. Trés fatores influenciam a construgdo do espago: a maturag4o organica, os encontros ativos entre os sujeitos e seu ambiente ¢ a pres- sio da sociedade. Quanto a este ultimo fator, queremos lembrar o papel que os estudantes so ¢ estéo constantemente submetidos aos moldes da escola. Retomando o titulo desta Mesa Redonda 3, com o tema Percepcdo, Representagdo e Religido no Geogréfico, nao podemos dei- xar de usar as palavcas e as idéias de Dardel quando reconhece, além de um espaco material (dos oceanos e das terras), um espaco teltirico que permeia o geogr4fico como resposta A realidade que nos rodeia, como um encontro de vivéncia criativa, uma estética das formas dos sdlidos ¢ dos liquidos e de uma certa forma da vontade ou do sonho. A geografia se defronta com espaco construfdo, um espago que é obra do préprio homem. Os rosdrios e redes de vilas e povoados, estradas e caminhos, cidades ¢ arranha-céus, contudo, espelham a preocupagio geografica procurando seus movimentos e fluxos e constituindo as redes de antes ¢ de agora. Nao vamos aqui nos demorar na paisagem geogrdfica porque corremos 0 perigo de nos enveredar em todas dire- ges que podem nos levar a outros espacos. Por conseguinte, queremos lembrar aqui da geografia mitica ¢ herdica, tio menosprezada e agora colocada junto as demais, até com a prépria cient{fica. Durante séculos e ainda entre as sociedades primitivas, as explicag6es geogrdficas eram colocadas em cosmogonias fabulosas, mais com a légica do conhecimento que dispunham. As representagdes mitoldgicas classicas e de agora eram grafadas em cs- pagos topoldgicos, buscando uma legitimidade e a universalidade sem- pre com fundamento religioso. Estas relagées espaciais guardavam as manifestagées culturais com o sagrado e 0 terreno: com montanhas, pedras, 4rvores, rios, animais, constituindo um quadro de referéncias para a vida e para a morte. Estas relag6es se intensificam diante de detalhes topograficos valorizados pelo mito, pelo simbolismo, consti- tuindo essa geografia mitica, que ainda precisamos estudar e conside- rar em nossas investigagoes. Nesta geografia mi{tica, a relacdo funda- mental é a do grupo social com sua geografia, com sua proximidade, 194 Elementos de Epistemologia da Geografia Contemporanea com suas formas particulares fortificadas pelas celebragées, festas, ce- riménias. Isto facilitava a compreensao, através de agées sagradas, dos seus espagos € de seus lugares, de suas naturezas e de seus clas, confirmados por contos e misicas. i Para completar todo esse quadro, 0 espaco geografico neces- sita, ainda, de uma outra explicagdo que € a geografia heréica. Ela é humana, pois se constitui de personagens heréicas, fabulosas, histéri- cas, lendérias, criando a lenda e as virtudes corajosas dos conquista- dores, sempre atrelada 4 geografia mitica, coletiva ¢ tradicional. Sao intimeras as narrativas histéricas, em diversas civilizagdes. Entre nés, as mais famosas e conhecidas podemos citar: Odisséia, Iliada, Eneida, El Cid, as sagas escandinavas, os parafsos terrestres, as ilhas magicas, as viagens de Marco Polo, as Mil e Uma Noites, e muitas e muitas mais. Revelam uma geografia, nao de gabincte, mas de contato direto com a natureza e com os homens, de descobrimentos de terras e de oceanos, e agora dos espagos siderais, 4 procura de novos planetas, outras galaxias. Claro que entre os geégrafos h4 sempre uma preocupagio cientifica, pragmatica, laboratorial, desde o aparecimento da geogra- fia com a ciéncia moderna. Essa sempre perduraré e serd necessdria. As atitudes ¢ os valores sempre vo atribuir importancia aos estudos quan- titativos, 4s mensuragées, ao uso dos computadores, ao mapeamento digital. Mas devem ser acrescentados aos estudos qualificativos, a aten- ao as respostas individuais ¢ grupais das pessoas, os levantamentos para se conhecer a percep¢4o e a cognicfo de moradores e usudrios de lugares. Talvez o mais relevante € considerar a afetividade humana Para com a natureza e a sociedade; considerar a ética, os direitos na- turais ¢ humanos e quig4 aceitar as diversidades geograficas, que no fundo é que dao cores, odores, sabores e maciez ou aspereza a toda a nossa paisagem. Francisco Mendonca ¢ Salete Kozel (Orgs.) Referéncias BANG, V. et al. Lépistemologie de espace. Patis: PUF, 1964. DARDEL, E. Lhomme et la terre. Paris: PUF, 1952. DEL RIO, Vs OLIVEIRA, L. Percepgdo ambiental, a experitncia brasileira. Sio Paulo: Studio Nobel, 1999. OLIVEIRA, L. Que ¢ geografia. Sociedade e natureza, Uberlandia, ano 11, n. 21-22, p. 89- 95, jan./dez.1999. PIAGET, J. Les mecanismes perceptifs. Paris: PUF, 1961. __. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense, 1973. TUAN, Y-F. Espaco e lugar. So Paulo: Difel, 1983. 196

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