Você está na página 1de 24
fdrrrns hh vn Sixtese Nova Fast. v. 25 w. 80 (1998): 19-42 PRESENCA DE TOMAS DE AQUINO NO HORIZONTE FILOSOFICO DO SECULO XXI (*) Henrique C. de Lima Vaz, 8. J. CES — BH Sumario: Toms de Aquino 10 horizante filosdfico do século XX1. _Q artigo reproduzo texto de uma conferéncia pronunciada por ocasido do X aniversario do Instituto Santo Tomés de Aquino de Belo Horizonte, MG (Out. 1997}. Uma breve Introdugio ocupa- se com a presenca da obra de Tomas de Aquino no pensamento filoséfico-tealégico dos iiltimos séculos. O tema principal ¢ tratado em trés tépicos: a, Tomas de Aquino Ro pensamento neo-escoléstico do século XX; b. Provavel configuragao do horizonte filoséfico nos comegos do século XXI; c. RazSes de uma possivel presenga de Tomas de Aquino naquele horizonte, A Conclusio ressaita a importincia do tema para a situagio atual da Teologia. Palavras-chave: Tomas de Aquino, Teologia, Filosofia Historia, Metafisica, Ciéncia. Abstract: Thomas Aquinas in the philosophical horizon of the XXIth century. The article contains the text of a lecture delivered at the Instituto Sato Tomds de Aquino , Belo Horizonte, MG (Oct. 1997), A brief Introduction deals with the place of the philosophical-theological thought of Thomas Aquinas in the last centuries. The main theme is dealt with under three viewpoints: a. Thomas Aquinas in the new- scholasticism of the XXth century; b. The most probably lines of the philosophical horizon in the beginnings of the XXIth century; c. Thomas Aquinas and the philosophical horizon of the coming XXIth century, The Conclusion points out to the importance of the theme for the situation of Theology today. Key -words: Thomas Aquinas, Theology, Philosophy, History, Metaphysics, Science * Texto lido por ocasiao das comemoracdes do décimo aniversdrio do Institute Santo ‘Tomas de Aquino de Belo Horizonte (Outubro de 1997), ‘Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 [19 I. Introdugao titulo da nossa exposi¢éo requer um esclarecimento preliminar le modo a ficar bem definida a perspectiva em que aqui nos situamos. Apenas pouco mais de dois anos nos separam do inicio do novo século e do novo milénio. Uma data como essa possui duas significagées: uma puramente cronoldgica em que ela é simples- mente uma data a mais no correr dos dias e dos anos. Provavelmente nenhuma mudanga sensivel poderd ser notada, nas pessoas, nas coisas ena cadeia dos acontecimentos no dia lo. de Janeiro de 2000, que seré apenas o amanha do dia 31 de Dezembro de 1999. A outra significagao forma-se dentro do imagindrio social ¢ essa, sim, é extremamente com- plexa, rica de temores, esperancas, prognésticos, profecias, anélises prospectivas, projetos, configurando para a humanidade a hora solene em que uma ordem dos séculos se encerra e outra comeca’. Um dos pontos mais sensiveis de condensagao do imagindrio social em face do novo tempo que se anuncia, e também de exercicio da inteligén- cia prospectiva, é aquele em que a humanidade se volta para o que foi, para a hist6ria até entao vivicla, e a examina a luz da esperanga do que serd, ou da nova histéria que se pretende viver. Nao se trata aqui da cultura material, impelida por um dinamismo de mudanga continua, mas sobretuclo da cultura sintbili das instituig6es, do direito, das normas, das crengas, dos valores, dos saberes nao ligados a designios técnicos imediatos, entre eles, eminentemente, a filosofia . OQ que sobre- viverd e teré vigéncia no préximo século desse acervo simbélico da nossa cultura em meio as fantasticas realizacdes que a técnica nos pro- mete, e o que serd recothido definitivamente aos arquivos da meméria histérica da humanidade? Pergunta de dificil e sempre arriscada res- posta. Mas essa é a pergunta que desejo colocar hoje a respeito de Tomas de Aquino fil6sofo, se nao para respondé-la cabalmente, o que seria da minha parte pretensio e temeridade imperdoaveis, ao menos para indicar alguns pontos que nos podem ajudar a refletir sobre uma questo que considero decisiva para o futuro do pensamento cristo. Sabemos que nas vicissitudes do mundo cultural cristéo, do século XII até hoje, a presenga de Tomas de Aquino, desenhada segundo os dife- rentes perfis que 0 espirito dos tempos Ihe impunha, foi sempre uma presenga maior. As razdes dessa preeminéncia do Mestre medieval ao longo desses sete séculos que dele nos separam, sio muitas mas, inde- pendentemente de fatores circunstanciais que para isso contribuiram, a razao principal reside sem diivida na sua prdpria obra, no valor intrin- seco do seu ensinamento. A situacdo histdrica e a situagéo tedrica* de "Ver H. C, Lima Vaz, Fim de Milénio, Sintese 87 (1986) 5-11. * H.C. Lima Vaz, Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura, S40 Paulo: Loyola, 1997, 283-305. 20} Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 CTE ES RS LEE RRS AEE A: PONE IRB Toméds de Aquino conjugaram-se para tornar possivel uma obra sob certos aspectos tinica na histéria do pensamento cristio. Que perspec- fivas se abrem para essa preeminéncia ¢, mesmo, para a sobrevivéncia, em termos de atualidade, ao pensamento do tedlogo do século XU num novo século que © nosso imaginario social jé antecipa de certo modo, como devendo ser um século que vera nascerem e desenvolverem-se novas ¢ inéditas formas de cultura e que assistiré, talvez, A aurora de uma nova civilizagio? A presenga de Tomds de Aquino na cultura cristi dos tiltimos tempos medievais e dos tempos moderos pode ser representada como uma presenga a trés dimensées. Elas tém uma origem comum que é a pré- pria personalidade espiritual e intelectual de Santo Tomds, ainda recen- temente estucada em obra de grande erudigéio e penetragao®. No plano vertical situam-se as dimensGes do miestre da vida espiritual edo tedlogo. No plano horizontal situa-se a dimensao do fildsofo.. Nesse triedro sim- bélico o que aparece em primeiro lugar & a unidade existencial das trés dimensdes. Em segundo lugar vé-se que as dimensdes espirittual e teo- 6gica repousam sobre um plano filosdfica que, delas formalmente distin- to quanto 4 natureza, ao contetido e a validez das razdes nele expostas, transmite-lhes, no entanto, os instrumentes concepiuais que tornam possivel, em termos de saber formalmente elaborado ou de ciéncia, a inteligibilidade humana e a coeréncia do seu discurso. Foi justamente 0 éxito excepcional alcangado pela intengiio tomdsica da fides quaerens intellectumt que Ihe conferiu essa preeminéncia quase paradigmatica na histéria moderna do pensamento cristio. Tomas de Aquino foi, antes de tudo, tedlogo. Essa a sua vocagiio, assu- mida com extraordindria Incidez e generosidade e a qual dedicou total mente a sua vidat. Foi como tedlogo, nao s6 especuiativo mas pratico @ agraciado com inegaveis dons misticos que, por outro lado, o santo dominicano descreveu os caminhos da vida espiritual ¢ por eles avan- sou no seu itinerério de santidade’, Nessa unidade teoldgico-espiritual da vida ¢ da doutrina de Tomds de Aquino a filosofia integra-se harmoniosamente. Ela é, sem perder a sua natureza especifica, uma componente organica do pensamento teolégi- co tomésico, podendo apresentar-se, desta sorte, como uma das formas embleméticas, talvez a mais bem sucedida, de filosofia crista. Ag.-P. Tonnes, Initiation & saint Thomas d’Aquin: sa personne et son oeuvre, Friburgo 8. / Paris: Hditions Universitaires / Cerf, 1993 (tradugao em preparacao nas Ed. Loyola, Sao Paulo}; [o., Saint Thomas d'Aquin, Maitre spirituel (Initiation 2), Friburgo 8. / Patis; Editions Universitaires / Cerf, 1996. “A esse propésito convém referir-se a Summa contra Gentiles, 1, ec. 1 a 8, Ver 0 ensaio classico de M.-D. Cuenu, Saint Thomas d’Aquin et la théologie (cal. Mattres Spirituels), Paris: Seuil, 1959, ¢ Ios Birr, Teologia, Storia e contemplazione in Tommaso d’Aquino, Milao: Jaca Book, 1995, 131-175. © Ver d.-P. Torrett, Saint Thomas d’Aquin, Maitre spirituel, 495-516. ‘Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 [_21 E sabido, no entanto, que a clara visio da unidade com que Toms de Aquino praticava a filosofia no exercicio do seu mister teolégico e que podemos legitimamente atribuir-Ihe a partir do estudo das suas obras, acabou por perder, aos olhos dos discipulos e comentadores, 0s tragos nitidos da sua forma primeira. Desse obscurecimento da unidade original procede a ampia literatura de controvérsia sobre a verdadeira imagem de Tomas de Aquino filésofo e sobre a verdadeira significado da filosofia na sua obra. Duas posigées carateristicas, adotadas por dois dos maiores historiadores da filosofia medieval no nosso século, permitem-nos circunscrever claramente os termos des- sa questo. Para 0 mestre incontestado da histéria do pensamento medieval que foi Etienne Gilson a filosofia de Tomas de Aquino é uma fifosofia cristé na medida em que, conservando a sua autonomia de saber da razio. demonstrativa, recebe do ordo theologicus ou da sacra doctrina a sua prdpria orden de razdes e, por conseguinte, a co- eréncia final do seu discurso. Gilson oferece-nos uma brilhante prova da sua tese, expondo a filosofia tomdsica na sua célebre obra Le thomisme “segundo a estrutura da Ta. e Ha. partes da Siva Teoldgica: Deus, a Criagio, a vida moral. J4 o grande medievaiista de Louvain, Fernand van Steenberghen, opée-se a Gilson reivindicando para a filosofia de Tomas de Aquino uma autonomia bem mais rigorosa ea exigéncia metodolégica de uma ordem de razées independente da ordem teoldgica’. Nao nos demoraremos aqui nos aspectos tedricos dessa pendéncia entre os dois grandes mestres. Desejamos apenas realgar o fato histérico incontestavel, sabre o qual se apoia Gilson, de que 0 exercicio do pensamento filosdfico a que se dedicou Tomas de Aquino se deu, se assim podemos falar, em pleno coragio do exer- cficio da sabedoria teologal, numa sinergia de fé e razio cujas condi- g6es existenciais € tedricas de possibilidade talvez tenham perdido para os epigonos o segredo da realizagio privilegiada que encontra- ram no grande tedlogo medieval. Como quer que seja, é importante lembrar que a vida filoséfica na Idade Média a partir da segunda metade do século XHI manifestou- se sob duas formas’. A primeira tinha lugar exatamente no proprio campo do trabalho teoldgico, ou institucionalmente, nas Facuidades de Teologia, que recebiam das Faculdades de Artes os instrumentos conceptuais necessdrios para a construgao intelectual do edificio te- oldgico. Tinha lugar, assim, a organizagao, em termos de sistematica do ensino universitério, da tradigio do pensamento cristio que vi- nha desde Clemente de Alexandria ¢ que Santo Agostinho recebera ¢ transmitira 4 cultura medieval. Nessa tradigao situa-se Tomds de Aquino, que nao foi professor de Filosofia mas, exatamente enquan- * Ga. ed. Pari 7B. van Sree: 71991. “Ver Escritos de Filosofia Ill: Filosofia e Cultura, 293-298. Vrin, 1989. vencilix, La Philosophie au XIHeme si¢cle, Louvain-Paris: Peeters, 4 5 Slice Naess Base, Rut WHO cn BO FOS to tedloge , foi fildsofo cristio no mais alto e pleno sentido do termo. A segunda forma de presenca da vida filoséfica, fadada a tornar-se, através de varias vicissitudes, a forma dominante da pratica do fi- losofar nos tempos modernos, tinha origem igualmente nas Faculda- des de Artes mas era herdeira de uma tradi¢io mais antiga, a tra- digo classica, retomada por Ibn-Roschd no mundo drabe, e que propugnava a total autarquia do pensamento filos6fico, apice do edifi- cio do saber e, enquanto sebedorit, forte para o fildsofo do mais alto prazer ¢ felicidade, tal como Aristételes a celebrara no décimo livro da Etica de Nicénaco. E sabido que Tomas de Aquino manifestou-se com veeméncia contra algumas teses desse chamado averrotsno latino incom- pativeis com afirmagées fundamentais da revelacdo crista. Na verdade, tratava-se aqui do primeiro episédio do que serd a acidentada histéria do pensamento filosdfico de inspiragao crist& nos tempos modernos. Os atores dessa historia j4 aparecem entao perfei- tamente caracterizados: uma filosofia organicamente integrada a sa- bedoria teoldgica ¢, entao, filosofia crista de jure, ¢ uma filosofia plenamente auténoma, hoje diriamos uma filosofia laica e secular, que 0 filsofo cristio se propde praticar ¢ deia fazer uma filosofia crista de facto. Esses dois atores encontraram-se na célebre querela sobre a filosofia crist# que agitou os meios filoséficos franceses nos fins da década de 20 @ inicios da década de 30°. Com a grande variedade de correntes filos6ficas e de estilos de filo- sofar que hoje se difundem na nossa cultura e que, de resto, encon- tram acothida e receptividade nas instituigdes catdlicas de ensino, a questio da especificidade crista da filosofia de Tomas de Aquino se repde nesse novo contexto e nele adquire essa dimensao prospectiva que nos leva a interrogacao sobre a possibilidade da sua presenga no horizonte filosdfico do século XXI. Poderiamos talvez formular essa questio a partir da hipdtese de uma filosofia tomasica autonoma de jure e apenas de facto considera- da apta a prestar seus servicos ancilares @ teologia. Ela se alinharia entéo ao lado de outras propostas filosdficas, auténomas por origem, deliberada inteng&o e construgio conceptual como o kantismo, 0 hegelianismo, 0 marxismo, as filosofias fenomenoldgicas e hermenéuticas, todas oferecidas 4 op¢ao do tedlogo como instrumen- tos para o seu mister reflexivo sobre os dados da Revelagao. Tal parece ser, de resto, a forma assumida pela relagio filosofia-teologia Ver Yves Froucn?, Pour une philosophie chrétienne: éléments d'un débat fondamental, Paris: Téqui, 1983. Ver, a propésito, os textos hicidos ¢ profundos de Josrrn Preven no THE, volume das suas Obras Completas sab o titulo Schriften eum Philosophiebegriff (Werke 1H, Hamburgo: Meiner, 1995}, em particular “O que significa filosofar 1V?" {pp. 57-70), "Sobre o dilema de uma filosofia ndo-crista" (pp. 300-307) e “O posstvel futuro da Filosofia” (pp. 315-324). Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 [23 no seio do pensamento cristéo em tempos recentes. Colocado, no entan- to, nesses termos o problema de um amanha para a filosofia de Tomas de Aquino no possivel mundo da cultura teoldgica cristé no século XXI lorna-se rigorosamente sem sentido e a sua propria formulagao j& nos aparece insensata pelo simples fato de que nao existe, nunca existiu e nao pode existir nem mesmo como hipétese de trabalho, uma filosofia tomésica auténoma no sentido moderno do termo, Resta-nos, pois, tentar pensar a possivel presenga da filosofia de ‘Tomds de Aquino no horizon- te filos6fico do século XXI a partir da sua natureza intrinseca de filesofia crist@. Em outras palavras: 6 como componente organica de uma cultura cristd que a filosofia tomasica poder sobreviver no século que est pata iniciar-se. Sao destinos soliddrios ¢ Procede dai a importancia do tema que escolhemos para esta palestra pois nele esté implicada uma inter- rogag#o bem mais ampla e mais profunda: que futuro espera o Cri anismo no apenas como tradigao religiosa vivida mas como tradigao pensada, ou seja, como inspiradora de praticas culturais e dvilizatérias Ro novo mundo — e na nova civilizagio — que esperam a humanidade nesse fim do século XX? No intento de trazer alguma pequena contribuigio a esas graves ques- t6es, dividiremos nossa palestra em trés t6picos, que passamos a expor de modo bem sintético: 1. Caminhos da filosofia de Tomas de Aquino no mundo da cultura cristé do século XX. 2. Tentativa de esbogo do horizonte fitosdfico na aurora do século XXI. 3. Um lugar possivel para Tomas de Aquino no horizonte filoséfico que se anuncia. Uma breve Conclusio deverd encerrar essas nogsas consideracdes. 1. Caminhos da filosofia de Tomas de Aquino no mundo da cultura crista do século XX. E importante ter presente, nas suas grandes linhas, 0s caminhos percor- tidos pela filosofia de Tomas de Aquino na cultura ctisti e na cultura secular do século XX porque é sem duivida meditando sobre 0 que foram esses cazninhos que poderemos pensar a presenga do pensamen- to tomdsico no j4 emergente horizonte filoséfico do século XXI. Nao obstante a preeminéncia, como foi assinalado, de Tomas de Aquino na histéria moderna do pensamento cristo, realgada sobretudo com a 24 | Sintese Nova Fase, Belw Horizonte, u. 25, n. 80. 1998 consagra¢ao das suas doutrinas teolégicas no Concilio de Trento e com a sua proclamagao como Doutor de Igreja por Sao Pio V em 1567, podemos dizer que a obra filoséfico-teolégica do Mestre medieval pas- sa a conhecer, ao longo do século XX, uma forma de presenga qualita~ tivamente nova, aquela com a qual se procurou assegurar a sua atua- lidade no campo filos6fico-teolégico e na cultura em geral desses ilti- mos cem anos, Esse novo estilo de presenca nasce no seio de wma conjuntura singular na vida da Igreja na segunda metade do século XIX. Depois do duro confronta com a cultura moderna que se trava ao longo do pontificado de Pio IX e & relangado pelas correntes teolégicas domi- nantes no Concilio Vaticano I, o pontificado de Leao XII foi assinalado, desde os seus inicios, por uma sensfvel mudanca de estratégia em que a condenacfio inapeldvel sucedem os ainda timidos ensaios de didlogo e, sobretudo, a proposigéo de modelos alternativos nos campos intelec- tual, social ¢ politico fundados na tradig&o crista, e que se apresenta- vam como capazes de acolher e retificar as conquistas legitimas da modernidade. £ nessa nova conjuntura que o pensamento filoséfico- teolégico, e mesmo social e politico de Tomas de Aquino adquire a feig&o carateristica com que se apresentard na cultura do século XX. A data inaugural desse novo ciclo da presenca de Santo Tomds é assina- lada, no plano intelectual, pela enciclica Acterni Patris (1879) que iria balizar, de certa maneira, 0 curso do pensamento filoséfico-teoldgico catélico até 0 Concflio Vaticano I. Foi, sem dtvida, obedecendo as diretrizes dessa célebre Enciclica ¢ ao sew intento programético que se formou e fortaleceu na Igreja 0 movimento de idéias e de ensinamento conhecido como Neo-Escoldstica, Nao 6 0 caso de se evocar aqui o que foia Neo-Escoliéstica na vida intelectual da Igreja na primeira metade do século, nem Jembrar a sua vigorosa sobrevivéncia pelo menos até o ultimo Concilio. Interessa-nos sobretudo assinalar que foi no seio da Neo-Escoldstica que se formou o chamado tomtisima_na sua versio moder- na", e foi sob sua égide que, ao ser erigida como referéncia normativa do tontisnto, a obra filos6fico-teolégica de Tomas de Aquino compareceu na cultura do século XX. Obedecendo ao espirito da Neo-Escoldstica eda prépria Enciclica Aeterni Patris, 0 tontisnio nao foi, primeiramente, um programa de investigacio histérica ou de grandes comentarios, como na escola tomista classica, destinado a fazer reviver, no seu teor literal, o pensamento de Tomas de Aquino, ¢ isso nao obstante as grandes contribuigdes que trouxe aos estudos histéricos sobre o século XIII ¢ sobre 0 pensamento medieval. Com efeito, a consigna de Le&o XIH havia sido vetera novis augere et perficere (aumentar e enriquecer 6 que é antigo com o que é novo) e a0 novo fomismo cumpria em primeiro lugar, em forca da sua prépria razio de ser, apresentar-se como uma filosofia viva e com todos os 1 Até essa data eram considerados Doutores da Igreja apenas alguns Santos Padres. 1 A propésito ver G. Prouvosr, Thomas d’Aquin et les thomismes (Cogitatio Fidei, 195), Paris: Cerf. 1996, Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 [_ 25 titulos de legitimidade exigidos pela cultura moderna. O pensamento de Toms de Aquino repensado no século XX e, como ial, reivindicando uma atualidade reconhecida e acolhida pela cultura secular: essa a ambisio e esse 0 progtama do tomisnto neo-escoldstico E necessirio reconhecer que esse programa foi executado com grandeza © que essa ambigdo produziu frutos notaveis no campo da filosofia. Embora 0 establisnient filos6fico nos principais paises ndo tenha conce- dido as grandes obras de inspitagio fomista senaio uma importancia marginal, apenas assinalada nas histérias da filosofia contemporanea, a justiga intelectual impde que se atribua a elas uma densidade e uma profundidade de pensamento que nem sempre se encontram nos corifeus da moda filoséfica. No entanto, ao contrario da escola tomista Classica, na tarda Idade Média ou na Segunda Escolastica do século XVI, 0 fomismo do século XX viu-se confrontado com um pensamento filosé- fico jf plenamente amadurecido no clima intelectual da modernidade, Tico de mvdltiplas correntes, fundado sobre pressupostos metodolégicos, gnoseoldgicos, criticos e metafisicos firmemente estabelecidos fora do espago conceptual no qual se edificaram a filosofia antiga e seus prolon- gamentos cristios. Em face ou dentro desse universo intelectual que a lradigio do tomismo original nto conhecera, como se comportaria 0 fomisnio renovado do século XX? Na histéria do denominamos o fomiismo neo-escoldstico tornaranse logo visiveis trés lendéncias ou trés modelos propondo-se defini um hagar para a filosofia de Tomas de Aquino no espaco filoséfico da moderniclade, Sao trés, assim, 08 pertis filosdficos de Santo Tomés que 0 século XX ira conhecer. A primeira tendéncia parte da convicgao de que 0 predicado da verdade inerenle ao pensamento tomasico restituido ao seu teor original ¢ orga- nizado segundo a ordem sistemdtica postulada pela razio moderna, assegura-ihe a tinica forma de presenga compativel com a sua dignida. de filoséfiea: a presenga trans-histérica de uma verdade clevada acima das vicissitudes dos tempos. Essa tendéncia consagrou, de certo modo, a imagem de Tomas de Aquino filésofo e tedlogo que predominou sobretudo no jmagindrio eclesial: o Mestre de cujo ensinamento proce- dem as verdades normativas em tltima instancia para 0 exercicio, em clima cristo, da reflexao filoséfica © teolégica"®, No seu terreno vicejou uma abundante literatura manualistica de desigual valor, mas elas deu- nos igualmente obras notéveis, bastando lembrar as de R. Garrigou- Lagrange e de Joseph de Tonquedéc. i, A expressiio mais autorizada dessa tendéncia foi, sem diivida, a eélebre Revue Thomiste, publicada pelos Dominicanos da Provincia de Toulouse. Ver 0 volume comemorativo do centendrio da revista (1893-1993) Sence T. Bosino (dir), Saint Thomas au XXvme siecie Actes du Colloque commémoratif du centenaire de la Revue Thomiste), Paris: Saint Paul, 1994. Ver nossa recensio em Sintese 13 (1968) 279-28 1. 26 | Sintese Novu Fase, Belo Herizonte, 0, 25, n. 80, 1998 ‘A segunda tendéncia caracteriza-se por um senso mais agudo da his- t6ria e pela consciéncia de que a verdade do ensinamento tomdsico, que nao € posta em discussdo, deve, no entanto, comprovar os seus titlos de validez no confronto vivo com as idéias filosdficas modernas. De acordo com essa segunda tendéncia Tomas de Aquino aparece como uma personagem rediviva na liga filoséfica do nosso fempo e, como tal, participante ativo da nossa vida intelectual ¢ da discussio dos nossos problemas filosdficos mais atuais. Nessa segunda tendéncia manifes- tam-se, por sua vez, duas linhas que se complementamy na prossecugio do propésito de tornar © fomisnio uma presenga viva no campo da cultura contemporanea. A primeira linha acentua o perfil tedrico do pensamento de Tomas de Aquino transmitido pela suas obras ¢ pela tradic&o dos grandes comentadores, como aquele que poderd legitima- mente reivindicar um lugar no mundo filosdfico do século XX. A se- gunda confia no pressuposte de que a rigorosa reconstituigao histdrica do pensamento original de Tomas de Aquino, freqiientemente obscure- cido pela tradigia, ao mesmo tempo em que permitird definir sua situ- acdo eminente na historia da filosofia, ira mostrar a perfeita atualidade e a fecundidade das grandes teses filosdficas genuinamente toméasicas. Dois nomes tutelares do tomisnto clo século XX poderao, talvez, simbo- lizar essa segunda tendéncia e as suas duas linhas: Jacques Maritain a linha tedrica ¢ Etienne Gilson a linha sristérica . A esses dois notaveis pensadores, aos quais convém acrescentar 0 nome de Joseph Pieper na Alemanha, deve-se em grande parte a presenga de Tomds de Aquino para além do ambito da cultura propriamente eclesidstica ¢ 0 reconhe- cimento da importéncia do seu pensamento na tradigao filoséfica oci- dental. Foi, alids, sob o influxo dessa segunda tendéncia que se estabe- leceu a disting’o, hoje corrente, entre 0 “pensamento tomdsico” (homanisches Denken ) que se pode historicamente atribuir a Tomas de Aquino, eo “pensamento tomista” (fhomistischtes Denker) representado pelas diversas variantes da escola tomista ao longo do tempo. Uma terceira tendéncia deve ser finalmente mencionada, talvez a mais representativa em {ermos de senstbilidade para com os problemas da cultura pos-medieval, ¢ cujo propésito declarado é 0 de tracar o perfil filoséfico de Tomas de Aquino dentro das coordenadas tedricas do pensamento moderne, traduzindo-se no intento de mostrar nas grandes opgbes tomasicas no campo da filosofia indicagdes ou antecipagdes em ordem & solugio de problemas Jevantados a partir da instauracio cartesiana de um novo ciclo histérico do filosofar. Essa a tendéncia mais audaz e também a mais cheia de riscos, devendo fazer face ao enorme desafio teérico de repensar doutrinas e conceitos pensados e formula- dos num mundo cultural jé pertencente ao passado, cujos pressupostos: e cuja evolucao intelectual se encontram freqiientemente em franca oposico ao primeiro. Na verdade, os representantes dessa terceira tendéncia levaram a cabo um empreendimento de grande aleance filo- s6fico e sua obra merece um lugar de relevo na histéria da filosofia contemporinea. Seria excessivo, no entanto, querer atribuir-lhes um Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 [_27 Exito completo no seu intento de mostrar-nos um Tomas de Aquino pensador da modernidade. Mas 6, sem divida, o perfil do Mestre medieval no seu diélogo com os grandes nomes do calendétrio filosdfico moderno aquele que conserva para nés a atualidade mais viva e que nos convida a antecipar, de aiguma maneira, a sua presenca no hori- zonte filossfico do século XXI. Com efeito, os tomistas que empreende- tam essa como que migrago para as novas terras filosdficas tiveram como meta fundamental repensar a heranga doutrinal tomdsica inserin- do-a, de alguma maneira, na légica das grandes intuigSes geratrizes do universo filosdfico da modernidade. Tal foi o sentido da teleitura das teses filossficas mais representativas do pensamento de Tomas de Aquino de acordo com o cédigo hermenéutico estabelecico por aqueles que se podem considerar os artifices maiores da filosofia moderna: Descartes, Kant e Hegel. Lembramos aqui apenas que a teoria tomésica da reflexdo foi confrontada com o Cogito cartesiano entre outtos por Joseph de Finance". O programa crilico de Kant inspirou uma nova e original versdo da fundamentagao tomdsica da Metafisica, por obra de Joseph Maréchal e seus discipulos". O desafio maior foi representado por Hegel, Cujo pensamento articulava organicamente, com profunda originalida- de, Histéria e Sistema. O didlogo com Hegel foi o mais tardio e também © mais arduo para os tomistas ou para os pensadores catdlicos em geral. Mas ndo podemos dizer que foi infrutuoso pois estio af para comprova-lo obras notdveis como as de Gustav Siewerth", de Gaston Fessard'*, de Bernhard Lakebrink" e de outros. Aos daqueles trés gran- des Iuminares da filosofia moderna convém acrescentar 0 nome de Martin Heiddege:, cuja influéncia difusa em toda a filosofia contempo- ranea fez-se sentir igualmente entre os pensadores cristios tanto no campo teoldgico quanto no filoséfico. Seja mencionada aqui apenas a comparagio minuciosa e cuidacosamente documentada entre o pensa- mento de Heidegger ¢ o de Tomas de Aquino proposta por J. B. Lotz". Tal 0 Tomés de Aquino fildsofo nas suas miiltiplas faces que o século XX conheceu. Poderd a sua presenga prolongar-se e mesmo receber Novos contornos no horizonte filossfico do século XXI? A essa interro- Bacio talvez possamos responder se conseguirmos antecipar, ao menos como esboco conjectural, aigumas das linhas daquele horizonte que 4 Nd. pe Fusance, Cogito cartésien et réflexion thomiste, Paris: Beauchesne, 1946. Hg. Manicuat, Le point de départ de la Métaphysique, cahier V, Paris-Lowvain: LEdition Universelle, #1949, 2G. Stewentit, Der Thomismus als Identitétissystem, Frankfurt a. M.: Knecht, 1961, & G. Fessano, De VActualité Historique, 2 vels., Patis: Desclée, 1959 E os textos reunidos em Le Mystére de la Société, com intr. de G. Sales, Namut: Culture et Verité, 1996, * B, Lacconisk, Hegels dialektische Ontologie und die thomistische Analektik, Colb- nia: J. P, Bachem, 1955, 5 B. Lore, Martin Heidegger et Saint Thomas d’Aquin (tr. fr.), col. Théologiques, Paris: PUF, 1988. 28} Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 comega a formar-se diante de nés. Eis 0 que tentaremos fazer breve- mente no segundo t6pico da nossa palestra. 2. Tentativa de esbogo do horizonte filoséfico na aurora do século XXI. Seria um exercicio de profecia ou de adivinhagao, vedado ao fildésofo, prever a configuracao provavel com que o horizonte filosdfico do sécu- lo XXI se apresentaria, pelo menos inicialmente, aos nossos olhtos, se 0 novo século estivesse ainda longe de nés. Mas o século XX] jé bate 4 nossa porta ej nos preparamos para celebrar © seu inicio. Torna-se possivel, pois, antecipar na figura evanescente do século que esté para terminar muitos dos tragos que comporio a figura do novo século. Tal antecipacio vale particularmente para a filosofia porque serio sem diivida os temas que atualmente emergem no carnpo da reflexao filo- séfica a tornar-se temas dominantes e matrizes de problemas atuais no pensamento filoséfico do incipiente século XXI. Com efeito, uma das certezas que nos deixa o nosso século prestes a expirar 6 a de que o ciclo das revolugées iniciado no século XVIL sejam elas sociais, poli cas, cientificas, técnicas ou mesmo filosdficas chegou a seu termo. A répida aceleracio da histéria e a sucessdo quase vertiginosa dos even- tos, das idéias, das invengGes técnicas, das modas, bem como a sua disseminagio imediata no tecido mundial das comunicagées, nao dao lugar A expectativa de rupturas profundas e revoluciondrias. © solo da histéria, salvo inesperadas catéstrofes, parece definitivamente estabili- zado e fitmado para suportar 0 fluxo enorme e continuo da producéo simbdlica e material da nossa civilizagdo tecnicizada. Em particular no campo da filosofia no ha que esperar novas revolugdes andlogas as revolugées cartesiana e kantiana ou mesmo as revolugdes menores da fenomenologia e da linguagem no século XX. Assim sendo, serio pro- vavelmente os temas mais significativos ¢ empenhativos do pensamen- to filosdfico atual a permitir-nos tragar as linhas provaveis do horizonte filosdfico do século XXI dentro do qual poderemos, num exercicio conjectural da razdo prospectiva, encontrar um lugar para a heranca doutrinal de Tomas de Aquino. Segundo 0 propésito que aqui temos em vista, vamos considerar dois desses temas que nos parecem funda- mentais. 1. Se refletirmos sobre as condigdes atuais da pesquisa e da reflexdo no campo das disciplinas filosdficas podemos antecipar com razodvel se- guranga que a linha de fundo do horizonte filosdfico do século XXI acompanharé o relevo dessa atividade fundamental do filosofar qual sejaa rememoragio (traduzindo o termo hegeliano Erinnerung ) histOrica , tendo por objeto a propria possibilidade e legitimidade do exercicio do pensamento filosdfico ao longo do tenrpo. Essa rememoragio , que se Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 [28 mostra elemento constitutivo da pratica do filosofar, tornando a hist6- tia da filosofia um conhecimento genuinamente filosdfico” nao é, como sabemos, apenas uma tarefa de erudigao, de reconstituigao critica de fontes, de andlise textual, mas é sobretudo uma releitura do desdobra- mento no tempo, sujeito as suas condigées e vicissitudes, da original iniciativa de cultura que inaugurou entre os Gregos o exercicio do filosofar, rica de todas as virtualidades na ordem teérica e na ordem pratica que irdo sendo explicitadas e pensadas no correr da histéria. O atual crescimento quantitativo e qualitative da pesquisa histérica na atividade filosdfica”e os miltiplos paradigmas que sio propostos para uma renovada hermenéutica dos grandes pensadores e das grandes Gpocas da histéria da fllosofia atestam a importancia e a eminente sig- nificagio da rememoragio _histérica na pratica da reflexio filosdfica, e s40 uma prova incontestavel da necessidade * da filosofia numa cultura como a nossa que avancou téo longe na rota da raz4o. Portanto, se levarmos em conta a enorme soma de informagées posta a disposicéo da pesquisa histérica atual, a multiplicagio dos modelos interpretativos ¢ seu constante aperfeigoamento critico, ¢ a propria ri- queza da produgéo historiogrdfica no campo dos estudos filoséficos, poderemos prever que o horizonte filoséfico do século XX! seré tragado a partir do exercicio de renemorago _cuja intengo fundamental é pensar a histéria da filosofia como elemento intrinseco da esiruitura teorica do filosofar. Nao se trataré pois, apenas, da historia da filosofia como disciplina usual co programa didatico do ensino filosdfico. A pratica da reflexio filosofica depois de Hegel integrou definitivamente essa di- mensio histérica, nela descobrindo uma espécie de retorno reflexive da filosofia sobre si mesma na sua realizacio no tempo, que jé ultrapassa dois milénios e meio, e nela reconhecendo os momentos singulares e privilegiados em que, no trabalhoso caminho histérico do conceito, a intuigio de um grande pensador descobre uma directo nova ou se eleva a uma altitude de onde se descobre uma nova regio de proble- mas e de idéias. Ai poderemos, sem diivida, antever uma primeira manifestagio da presenga de Tomas de Aquino no horizonte filos6fico do século XI. 2. Um extraordindrio fenémeno de cultura e mesmo de civilizagao de abrangéncia mundial se desenrola aos nossos olhos ou, mais exatamen- te, nos envolve ¢ nos arrasta na sua aparentemente inresistivel expan- sio. Sua origem remonta a mudanga profunda nas estruturas da relacao do ser humano com o mundo, ou nas estruturas da chamada categoria de objetividade ™, que teve lugar no sécuto XVII com o advento da nova » Ver Eseritos de Filosofia IH: Filosofia e Cultura, 285-288. ® Observemos que os estudos histéricos constituem a parte preponderante da lite- ratura filosdfica contempordnea. 2 Ver Eseritos de Filosofia Ill: Filosofia e Cultura, 89. * H.C. Lima Vaz, Antropologia Filoséfica I, Sa0 Paul Loyola, #1992, 9-48, Sintece cigncia galileiana da natureza . Ela consagra em tiltima andlise, 0 triunfo da forma poictica do conhecimento que constréi nossas relagGes cognoscitivas e produtivas com o mundo segundo modelos operatives tanto fedricos quanto tvenicos ¢ tem como telos sempre reproposto da sua incessante e onipresente alividade, a perfeita homologia na ordem do conhtecer ®e do fazer entre o ser humano eo mundo por ele transforma- do. E esse © programa grandioso da chamada fecno-ciéncia que hoje deixou de ser um instrumento setorial do saber e da producgo para fornar-se a forma determinante do estilo de civilizacio que se impoe a n6s nesse final do século XX, e que verd sem diivida, no préximo século, seu triunfo definitivo. Ora, 0 efeito imediato e tangivel, por nds continuamente experimenta- do, clessa aco da tecno-ciéncia sobre o Prdprio mundo da vida onde se movem os individuos da nossa civilizagao, é a progressiva invasio do nosso espaco vital pelo fluxo incessante de novos abjetos produzidos pela tecno-ciéncia. Séo objetos tedricos oferecidos a imensa rede de vulgarizacao do saber cientifico e, sobretudo, objetos técnicos destinados a atender as novas necessidades criadas exatamente pela progressiva orientagaio do nosso conhecer, agir e fazer para esse horizonte de obje- tividade técnica que passa a ser o envolvente primeiro do nosso estar-no- mundo, Sabemos, no entanto, que é na objetividade mundana que se dé 0 nosso ptimeiro encontro com o ser e tem lugar a experiéncia decisiva da nossa finitude que circunscreve nossa pontual situagio no espace, o breve intervalo da nossa vida no tempo e, sobretudo, a limitago propriamen- teontoligica que nos estabelece como ser entre os seves. Ea nossa finitude que nos impele necessariamente na diregio do outro e primeiramente do muido , em cuja objetividede langamos a ancora da nossa fragil subje- tividade para nos constituirmos ontologicamente como seres-no-mundo . Uma transformagio profunda da objetividade-mundana traz consigo uma mutagao nao menos profunda do estatuto natural ou dutico do nosso ser-no-mundo e, portanto, da sta inteligibilidade onlolégica . Dessa mutagdo somos nés mesmos os artifices, na medida em que estamos empenhados incessantemente na nossa tarefa histérica essencial que é tefazer em nds e em torno de nés a nefureza dando-lhe a forma da cultura. Com efeito, a cultura mostrou-se ao longo da histéria o abrigo no seio da natureza cuja construgao © ser humano prossegue sem ces- sar. Mas nao se trata de uma tarefa inocente porque ao intervir na natureza por uma acio transformadora, 0 homem intervém na sua Prdpria condicao natural e se transforma a si mesmo. f verdade que, aparentemente, a espécie humana representa, do ponto de vista biolé- gico, o termo da evolugso de um dos ramos da arvore da vida, nio se % Esse foi o ideal persoguido pelo jovem L. Wittaexstri no seu Tractatus Logico- Philosophicus, % Escritos de Filosofia 17: Filosofia e Cultura, 88:97; 101-118. Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v, 25, n. 80, 1998 [3i devendo provavelmente esperar mutagées nesse nivel que facam surgir uma nova espécie inteligente. No entanto, do ponto de vista cultura a espécie humana evolui e vem se transformando com surpreendente rapidez nos tltimos séculos. Com 0 advento e o predominio da tecno- ciéncia, a transformacao cultural do ser humano passa a apresentar uma assimetria crescente entre os dois termos do proceso, a natureza ea cultura. Assistimos, com efeito, a uma ruptura que se aprofunda, do equilfbrio até entéo trabalhosamente mantido pela humanidade entre o natural e o cultural, e que tem subsistido nao obstante o processo histé- rico continuo que vai ampliando o dominio da cultura sobre a esfera da naturent. Tal ruptura representa um evento de civilizacao cujo imenso alcance apenas comegamos a medir e que seré sem divida olhado um dia como o evento inaugural de uma modalidade do existir histérico tadicalmente nova, a ser vivida por aquele que seré conhecide como sendo propriamente o honem maderno Qual o perfil antropolégico com que se apresentaré, no préximo século, esse hontem moderna? Nao se trata aqui de desenhar projecdes futuristas nem de ecupar-se com a ficgao de um pds-moderno que vem alimentan- do uma certa moda filosdfica. A formagio histérica da chamada modernidade esta provavelmente chegando ao seu fim. O que vird de- pois no serd uma qualquer pés-modernidade mas a passagem da modernidade como prograna de civilizago para a modernidade como forma definitiva de uma nova civilizagao. Essa forma j& opera e jé remo- dela nosso niundo ¢ nosso ser, sem que talvez sua presenga seja expe- timentada em todos os efeilos da sua agio transformadora. E a forma do existir sob a norma da tecuo-ciéneia , regendo todos os campos da nossa atividade: 0 conhecimento, o agir ético, 0 agir politico, a criacao artistica, 0 trabalho. A interrogagao que aqui levantamos diz respeito a aptidaio dessa forma de existir segundo a norma rectrix da tecno-ciéncia para unificar e dar satisfaco a todas aquelas exigéncias e tendéncias que se manifestaram historicamente e se justificaram reflexivamente como constitutivas de uma auténtica existéncia humana. Poderd, por exemplo, a tecno-ciéncia acolher e explicar a intencionalidade profunda da experiéncia religiosa e dar-Ihe satisfagio? Poderd transpor inteiramente para a sua esfera conceptual a vertente ética da vida humana e dar razio plena do imen- so fenémeno da experiéncia moral da humanidade? A responder tais questées e outras andlogas aplicam-se ha dois séculos as chamadas ciéncias humanas, que se situam justamente no universo epistemolégico da tecno-ciéncia. Nao obstante seu incontestavel &xito em investigar determinadas repides do complexo objeto que é 0 ser humano (cuja “morte” alias, sob os rigores do duro clima das ciéncias humanas, foi solenemente anunciada), é permitide pensar que, mesmo sob a deter- minagao da nova forma de existir segundo a norma da tecno-ciéncia, permanece a interrogagao em torno das regies mais profundas do nosso ser, onde as limitagSes epistemoldgicas e metodolégicas das cién- 32 | Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v.25, n. 80, 1998 cias humanas as impedem de chegar. Nessas regides nasce e aflora no solo da nossa consciéncia a questio eminentemente metafisica sobre 0 proprio sentido da vida, sobre as razées de viver, enfim sobre aquelas que Ortega y Gasset denominou as uitimidades da existéncia. Nao obstante a suspeita langada sobre o termo metafisica na linguagem filoséfica con- temporanea, sua longa histéria temdtica e seméntica na heranga intelec- tual do Ocidente e sua prépria estrutura significante o tornam inevité- vel e plenamente justificavel na designacao do problema que temos em vista. Com efeito se, por definigéo, a tecno-ciéncia e as ciéncias huma- nas que se situam no seu Ambito nao ultrapassam, em virtude da sua estrutura epistemoldgica e das suas regras metodoldgicas 0 dominio da physis ou 0 mundo dos fendmenos , como poderao elas alcangar pelo conhecimento cientifico as regiées do nosso ser da qual procedem ques- tes que nio podem ser cabalmente respondidas com procedimentos de observagio e de medida ou com a simulacio de modelos que reproduzam, nesse campo das questées tiltimas, tendéncias e compor- tamentos do ser humano? Lembremos que uma interrogagio andloga ja se fez presente nos tempos socratico-platénicos, na aurora da Filosofia quando, em face do problema do Bem supremo, duas solugdes foram propostas, destinadas a tornar-se paradigmas incontorndveis na histdria da reflexdo ético-antropolégica: ou a dissolugdo dialética da questio por obra dos Sofistas, ou a descoberta, por Platéo, de uma realidade inteligivel trans-fisica que viré a constituir propriamente 0 dominio ob- jetivo da Metafisica®. Vemos, desta sorte, que o advento vitorioso e dominador da tecno- ciéncia na teoria ¢ pritica culturais do nosso fim de século, repropde imperiosamente, ainda que paradoxalmente, problemas de natureza metafisica . Dizemos paradoxalmente jé que a tecno-ciéncia foi apresen- tada exatamente como a comprovacdo decisiva e final do fim da Metajisicn : ow porque, segundo a versio heideggeriana, ela é a sucedanea legitima de uma Metafisica que esgotou seu ciclo histérico, ou porque, segundo a versio neo-positivista, ela proporciona a prova do sem-sentido, da Sinntosigkeit do modo de pensar metafisico. Ora, vimos que problemas de natureza evidentemente metafisica permanecem em regides profun- das do ser humano nio atingidas pela tecno-ciéncia e resistem a toda tentativa de dissolugao critica ou de invalidagao histérica. Podemos mesmo razoavelmente interpretar a vaga anti-metafisica que se espraia na filosofia contemporanea como uma estratégia ideoldgica, talvez nio consciente na maioria dos seus atores, para assegurar o dominio cada vez maior da tecno-ciéncia com as conseqiiéncias de natureza ética, politica, cultural e econémica que dai advém. Falando mais claramente, trata-se, de uma estratégia, consciente ou nao, tendo em vista a consolidagio da hegemonia dos centros de poder que detém o Ver H.C. Lina Vaz, Platiio revisitado; ‘Sintese 61 (1993) 181-197. ica e Metafisica nas origens platénicas, Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 33 Predominio absoluto do knowhow técnico-cientifico. Tal parece ser, por exemplo, a explicagao mais ébvia para certas opinides recentes do HIG. sofo americano Richard Rorty*, Seja como for, ao contrario da opiniao predominante na literatura filo- séfica contemporanea, as questoes metafisicas irao, sem ddvida, figurar entre os tragos mais visiveis do horizonte filosfico do século XXI desde que, sob o nome de filosofia, sobreviva o estilo de Perisamento presente ha vinte e seis séculos na cultura ocidental ¢ nela atuante sob o signo de uma dialética do paradoxo e da necessidade ”. Nesse caso, seré do proprio amago do universo da tecno-ciencia, ao constituit-se como foe, ma determinante e envolvente da cultura nesse ocaso do século XX, que as questées metafisicas ressurgirdo, a atestar a Permanéncia, na sua profundidade nao alcangavel pelo pensamento cientifico ou pelos pro- cedimentos técnicos, da interzogacao humana sobre o ser @ sobre o sentido . 3. Um lugar possivel para Tomas de Aquino no horizonte filoséfico que se anuncia Ao tentar uma antecipagao conjectural mas razoaveimente fundada do horizonte filoséfico do século XXI, fomos levados a Prever que nele estarao presentes como linhas de fundo do seu relevo a Histéria e a Metafisica, Talvez soja ocasiéo de alguma surpresa o fato de nao men- cionarmos explicitamente também a Etica, pois a pratica da reflexio filos6fica nesse fim do século XX hes mostra um incontestavel predo- minio dos problemas éticos nas preocupasiies dos fildsofos, A tics estard sem diivida, pocdemos antecipar, entre os tragos mais salientes do horizonte filoséfico que tentamos descrever. No entanto, a consideragao ex projesso dos temas éticos prolongaria demasiadamente esse lores texto. Além disso, hé uma razio mais profunda pela qual, sem tratar, mos explicitamente da Etica, podemos assegurar-nos da sua presenga seja no campo da rememoragio histérica seja, sobretudo, no campo dos problemas mictafisicos . Essa razio nos aponta, por um lado, para as implicagées éticas evidentes no intento de recuperar filosoficamente a Propria hisidria “da filosofia tendo em vista legitimar a sua Ptatica ea Sua responsabilidade social na cultura contemporanea. Por outro lado, € possivel observar em algumas das tendéncias mais significativas do Pensamento ético recente uma ditegio vollada para a unidade entre * Ver P, Vatapier, La fausse innocence du relativisme culturel, Brudes, Aout 1997, 47-56, ” Eseritos de Filosofia IIT: Filosofia e Cultura, 5-16. ne ag Sintese Nova Fuse, Bels Far Etica e Metafisica, caratetistica do pensamento classico. No primeiro caso leva-se em consideracao a evidéncia de que foi exatamente no terreno do nascente pensamento filoséfico que a Btica fez sua aparigio historica®, e nele vicejou até tempos recentes, nele cumprindo igual- mente a tarefa de legitimar o proprio exercicio do pensamento filoséfico como intento de abertura do horizonte universal do Ser e do Bem. No segundo caso, e analogamente, é um procedimento teérico de natureza inequivocamente metefisica que permite 4 Etica pressupor os fundamen- tos do seu objelo na esfera transcendental do Bem. Filosofia como Histéria de Filosofia Metafisica : sera permitido antever, de alguma maneira, um lugar para Tomas de Aquino filésofo num horizonte de idéias onde dominem os temas e problemas daquelas duss disciplinas filosoficas? Se nos representarmos Tomas de Aquino como praticante de um modo de filosofar organicamente articulado 4 reflexdo teoldgica, serd possivel justificar sua presenga intelectual num século que se anuncia como cendrio das mais espetaculares transformagées nas idéias e na vida dos homens, e que assistiré & provavel consagracao definitiva de uma civi- lizagdo néo-teligiosa? Bis af uma interrogagéo inevitavel e que atinge o prdptio destino do pensamento cristto no milénio que esté por come- car. Com efeito, a crise recente do pensamento teoldgico e a sua rapida desagregagio ac impacto sobretudo das ciéncias humanas, devem ser teconduzidas, como a uma das suas causas mais incontestdveis, ao progressivo desinteresse da teologia em fazer uso da conceptualidade filoséfica forjada no intenso didlogo entre Fé e Razio ao longo da tra- digo do pensamento cristdo, desinteresse alimentado sem diivida pelo declinio e virtual desaparecimento da Neo-Escolastica. As ciéncias hu- manas ou sociais nao conseguiram, por razdes inerentes sua propria natureza epistemoldgica, restituir a teologia nem a sua dignidade de ciéncia e sabedoria, nem alcangar-lhe a legitimidade pretendida no campo do saber moderno”. Como, pois, pensar para Tomas de Aquino, indivisivelmente fedlogo_¢ fildsofo , uma atualidade que o futuro incerto da teologia torna grandemente problemitica? Tentar responder a essa pergunta 6 justamente o alvo que temos em vista nessa palestra. Ja perto de alcangé-lo devemos admitir que é ape- nas um timido ensaio de resposta que pretendemos propor, nem de longe apresentando-a como resposta cabal ¢ definitiva. 1. Em primeiro lugar cabe-nos refletir sobre a relagio de Tomds de Aquino com a histéria da filosofia . Como sabemos, nao de trata aqui de * Ver H.C. Lima Vaz, Escritos de Filosofia If: Etica e Cultura, Sao Paulo: Loyola, 71993, 36-78. ® Ver Jou Minaan, Theology and Social Theory: beyond secular reason, Oxford, Blackwell, 1990 (tr. br. Teologia e Teoria Social, S80 Paulo: Loyola, 1995). Ver ‘Sintese 53 (1991) 241-254. ‘Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 [_35 estabelecer essa relagio de um Ponto de vista puramente historiogrdfico mas propriamente filosdfico , pois é a historia dla filosofia na sua telagio intrinseca com o exercicio do modo de pensar filosdfico, que se apre- penis como uma das linhas fundamentais a compar provavelmenre o horizonte filosdtico do século XI. Por outro lado, é evidentemente a partir do perfil historiografico de determinado pensador, reconstituds segundo os critérios ¢ os resultados de rigorosa pesquisa histérica, que a sua significagao filosdfica no curso do acontecer histérico da filosofia, pode ser avaliada e pensada. A rememoracto como constitutiva do ato de pensar filoséfico deve exercer-se, como Hegel mostrou nas suas Ligées sobre a Histéria da Filosofia, sobre o terreno objetivo dos sistemas e das idéias, tais como a pesquisa historiogrifica intenta Testitutlos ao seu teor original, Ora, uma das épocas mais investigadas no atual surto dos estudos histéricos no campo da filosofia é justamente a época em que a filosofia medieval atinge seu pleno amacurecimento no século Xill se prolonga em multiplas tendéncias na tarda Idade Média. Além do interesse que esses estudos apresentam em si mesmos, podemos sem divida atribuir © seu florescimento atual ao fato de que, a0 contrario da interpretagao divulgada pela historiografia de inspiragao hegeliana, torna-se cada vez mais evidente a continuidade profunda, tematica e textual, entre a nascente filosofia moderna e a declinante filosofia medieval. O lugar eminente e mesmo singular de Tomés de Aquino no pensamen- to medieval nao sofre discussio. A originalidade da sua sintese filos6- fico-teolégica manifesta-se com evidéncia cada ver mate nitida, A medi- da em que progridem os estudos sobre a estrutura e as idéias diretrizes das suas grandes obras de sintese como a Sunima contra Gentiles ea Sunimia Theologiae ®. Por outro lado, a filosofia e teologia pds-tomasicas na tarda Idade Média, de Duns Escoto e a escola escotista a G. de Ockham ¢ a escola nominalista, podem ser reconstituidas através do Se Permanente confronto com as grandes opcdes doutrinais de Tomde de Aquino. Desta sorte cabe-nos Teconhecer que a presenga do Mestre do século XIII se estende em alto relevo pelos séculos seguintes, e embora conhega um certo retraimento nos primeiros tempos modernos, ressurge, como vimos, a partir de Ledo XIII nos fins do século XIX e nos Obriga a interrogar-nos hoje sobre o seu destino no préximo século. No entanto, voltamos a repeti-lo, ndo é apenas a uma presenga nos xios ¢ manuais de Hist6ria da Filosofia que aqui desejamos now rete, rir. A presenga que temos em vista é aquela que permite uma fumorigio, como elemento constitutivo da reflexdo filosofica, da ex. frutura da filosofia como obra de cultura e da sua necesedr presenga no uunivetso hist6rico da razao, Essa rememorngio & propiciada justamente & Ixos Brest, Teologia, Storia e Contemplazione in San Tommaso d’Aquino, 129-175; 225.312. 38_] Stntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998 por aqueles pensadores poderosamente originais ¢ criadores que deixa- ram depositadas em sua obra as razGes seminais das idéias que iriam tornar-se idéias diretrizes no caminho histérico da filosofia. Sem a re- feréncia a esses marcos miliares do pensamento a rememorag&io nao seria posstvel ea filosofia perderia uma das suas atribuigdes essenciais, qual a de ser menioria spirilus, a meméria do espirito no tempo. Para todos os estudiosos dos problemas filosdficos é evidente que nem mesmo se alcangaria uma formulacdo adequada de tais problemas se nao fosse levada em conta a tradi¢ao conceptual nascida dessas fontes primeiras que sio 0 platonismo ¢ o aristotelismo e, mais perto de nds, recebendo das suas Aguas, o cartesianismo, o kantismo e 0 hegelianismo, todas elas trazidas até o presente da nossa reflexao pela pratica da rememoragio. Da nossa parte ousamos afirmar que nessa seqiiéncia hist6rica de fontes originais do pensamento filosdfico deve ser enumerado o pensamento tomdsico, ¢ é esse um dos titulos entre os que asseguram a sua presenca no horizonte filoséfico do século XXI. Seria demasiado longo justificar aqui pormenorizadamente essa afirmacao. Mas podemos pelo menos lembrar algumas posigSes douttinais que atestam a originalidade cria- dora do pensamento de Tomas de Aquino fildsofo. a. Em primeiro lugar a sintese genial entre o religioso e o racional ou, em categorias cristas, entre a fé e a razdo, problema que remonta as origens gregas da filosofia ¢ que conhece dramético aprofundamento no encontro entre filosofia grega e antincio cristao, passando a constituir desde entio e até tempos recentes ou, pelo menos, até Hegel, um dos fopoi_clissicos da tradigao intelectual e da reflexdo filoséfica no Ocidente™. b. Em segundo lugar a sintese, de decisiva significagdo na histéria posterior das idéias, entre a gnoseologia platonica herdada e repen- sada por Santo Agostinho e a gnoseologia aristotélica, estabelecendo a Teoria do Conhecimento sobre um fundamento metafisico cujo alcance e significago tem sido objeto de importantes pesquisas re- centes®, c. Em terceiro ugar a concepgiio da historia a partir dos fundamen- tos metafisicos da existéncia humana, numa visio poderosa e origi- nal que sé encontra paralelo na articulacao entre hist6ria ¢ Sistema em Hegel”. 5 Ler, a propésito, as paginas sempre atuais e profundas de E. Grisow sobre “o espfrito do tomismo”, ap. Le Thomisme: introduction a la philosophie de Saint Thomas WAquin, 438-459; 5. Preven, Schriften 2um Philosophicbegriff, 51-59. % Ver, a respeito, ANpré pe Murat, L'Enjew de la philosophic médiévale, Leiden: Brill, 1991, 48-63, ¢ Jaw Aentsen, Nature and Creature: Thomas Aquina’s Way of Thought, Leiden: Brill, 1988. ® Sobre a concepeio tomdsica da histéria ver a obra fundamental de Max Secure, Das Heil in der Geschichte: Geschichtstheologisches Denken bei Thomas von Aquin, Munique: Kosel Verlag, 1964 (tr. fr, Le salut dans Uhistoire, Paris: Cerf, 1967). ‘Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 26, n. 80, 1998 [_37 d. Finalmente, a obra imensa, cuja significagao para a histéria espi- ritual do Ocidente é universalmente reconhecida, na qual Tomds de Aquino empreende a integracio organica da Etica classica, recebida sobretudo na sua conceptualizagio aristotélica, na tradigdo da Etica crista. Essa obra é levada a cabo sobretudo na monumental Ia. parte da Summa Theologiae, tornando-a uma das referéncias essenciais do pensamento ético na cultura ocidental™. 2. Se a presenca de Tomes de Aquino parece assim assegurada na vertente histérica do horizonte filos6fico que se anuncia no alvorecer do século XXI, resta mostrar como a vertente metafisica deverd igualmente acother essa presenga, dela recebendo algumas das idéias mais estine. lantes de um provavel renascimento da Metafisica. Em texto recente”, cujo propésito foi buscar em Tomas de Aquino inspiragao ¢ idéias para pensar a Metafisica na aurora do préximo sécu. lo, procuramos investigar onde reside a otiginalidade e a possivel fecundidade do Pensamento metafisico tomdsico. Lembramos aqui bre- vemente, sem nos determos na demonstrago oferecida no texto citado, as duas teses cuja jungio opera, a nosso ver, a unidade estrutural de imetafisica de Tomas de Aquino e a eleva como um dos cimos mais altos na cadeia histérica da Metafisica ocidental. A primeira dessas teses, cuja discussio ocupa uma parte considerével da bibliografia tomdsica contemporanea, afirma com irradiante clareza, por exemplo nas célebres questées V e VI do Comentario ao De Trinitate de Boécio®, a inteligibilidade intringeca do existir (esse ) na sua natureza de ato primeiro e constitutivo da realidade ent-si do ser e como o objeto Proprio da Metafisica enquanto cigncia. Preparada pela hermenéutica Palristica tradicional do Ego sum qui sum do Exodo (3, 14) por antece. dentes neo-platénicos, essa tese tomidsica apresenta-se como um hapax, um evento especulativo singular na histéria da Metafisica cuja signifi- Casto apenas recentemente tem sido posta em plena luz, por obra, entre outros, de Etienne Gilson. A afirmacao da primazia do existir na ordem da inteligibilidade do ser permite a Tomas de Aquino encontrar 0 fun- damento conceptual, posto ja desde 0 inicio do sew filosofar no opts culo programatico De Extte et Essentia, para as teses que irfo constituir como que as colunas mestras de todo o edificio da sua reflexao filosé- fica: a transcendéncia absoluta de Deus como Existir subsistente Cpsunit Esse subsistens ) na perfeita identidade de esséncia _e existéucia , arelagio de criaturalidade como relagao real de dependéncia na ordem da existén- cla e da esséncia, principios realmente distintos na constituigao ontolégica & Uma exposigio penetrante ¢ documentada da ética das virtudes em Tomas de Aquino é a de E. Scuoexenuorr, Bonu Hominis: die anthropologischen und theologischen Grundlagen der Tugendethik les Thomas von Aguin, Mainz: Mathias Granewald, 1987. & Eseritos de Filosofia Il: Filosofia ¢ Cultura, 283-342. * Ibid., 318-320, HIE | Sintese Nowa Fase, Belo Horizonte, 25, n. 80 1998 do ser finito ¢, em conseqiiéncia, a unidade de ordem — no universo. E sobre esse fundamento que Tomas de Aquino assenta a sua concepgio da sabedoria , na qual tem lugar a sintese exemplar entre a sabedoria da tradigio metafisica @ a sabedoria da tradligao teolégica”. A segunda tese estabelece-se no campo hoje conhecido como metaffsica do conkecimento. Trata-se, em suma, de determinar no curso da ativida- de intelectual 0 ato especifico pelo qual a nossa inteligéncia afirma a inteligibilidade intrinseca do existir. Com toda a énfase, sobretudo na citada passagem do comentario ao De Trinitate de Boécio®, Santo To- mas aponta na sintese judicativa e na afirmagio do esse (existir) no juizo, o lugar inteligivel do encontro entre a inteligéucia eo ser na sua plenitude existencial, de tal sorte que esse encontro venha a operar a identidade ,na ordem intencional , entre o sujeito cognoscente eo objeto real conhecido. A afirmagio dessa identidade, recebida da tradigao platéni- co-aristotélica, constitui, de fato, um dos assertos fundamentais da metafisica do conhecimento e um marco decisivo na histéria da gnoseologia. No entanto, a teoria tomdsica do juizo no seu alcance plenamente metafisico somente adquite o significado mais completo e profundo se a interpretarmos a luz da concepgao do conhecimento intelectual que Tomés de Aquino deixou-nos nos seus escrilos mas que, assim como a doutrina do esse, apenas em tempos recentes foi sistematicamente reconstituida e colocada no centro de uma releitura da metaffsica tomdsica. Queremos referir-nos a teoria do dinamismo intelectual no conhecimento objetivo, estudada nos textos de Tomas de Aquino por Joseph Maréchal e seus discipulos®. Nao obstante corredes ¢ comple- mentos a que possa dar margem, essa teoria oferece-nos a possibilidade de articularmos intrinsecamente a tese da primazia do existir e suas conseqiiéncias metafisicas ¢ a prépria metafisica do conhecimento. Com efeito, a afirmagao do esse (existir) no juizo vai além necessariamente, no seu dinamismo intencional, da limitagao eidética * dos objetos finitos a que se aplica e, em virtude da ilinitagto tética do proprio ato de afirmagao pac inelutavelmente, como horizonte tiltimo, no contempla- do mas dialeticamente implicado", o Existir subsistente infinito na sua absoluta transcendéncia, ¢uja existéncia, no ambito da inteligibilidade analdgica, seré formalmente demonstrada nas provas classicas da exis- téncia de Deus”. * Sumina contra Gentiles, I, c. 1, @ 0 Proemium ao Comentério & Metafisica de Aristételes, sobre 0 qual ver Escritos de Filosofia II: Filosofia e Cultura, 313-315. %8 Escritos de Filosofia ill: Filosofia e Cultura, 160. * Ibid., 321-326, © Sobre os conceitos de limitagio eidética e ilimitagao tética ver H.C. Lina Vaz, Antropologia Filosdfica I, Sao Paulo: Loyola, #1993, 167. “ Ou seja, cuja negagéo poderd ser refutada por um argumento de retorsdo. * Summa Theologiae, 1, q. 2, a. 3; Contra Gentiles, I, ¢. 13. Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, ». 25, n. 80, 1998 [_39] Primazia do existir na ordem da inteligibilidade metatisica e dinamismo da afirmagio judicatioa orientado para o Existir absoluto eis, portanto, as teses fundamentais com que a metafisica tomasica se apresenta no limi= ar do novo século. 4. Concluséo As conclusdes que nos parecem resultar dessa nossa exposigio concen- tram-se, segundo pensamos, em torno de trés quest6es principais: 1. Em primeiro lugar no devemos considerar a interrogacio sobre a presenca de Tomas de Aquino no horizonte filosdfico do século XXI apenas como um problema tépico em torno dos futuros programas escolares de Histéria da Filosofia. ‘Trata-se, na verdade, de um enjeu decisivo do pensamento cristo e mesmo da cultura crista nas suas alternativas de vitalidade e talvez até de sobrevivéncia. Essa afirmagio pode surpreender e mesmo ser considerada temerdria. No entanto, se refletirmos sobre a situagao da Teologia nesse final de século ou de milénio que estamos vivendo, a surpresa talvez seja menor. Expressio mais auténtica ¢ fruto mais amadurecido da cultura cristd ao longo da historia, a Teologia conhece hoje uma das suas horas de crise mais profunda. Tendo abandonado os instrumentos da conceptualidade filo- Séfica herdados da tradigio, ela tentou instalar-se primeiramente no terreno das ciéncias humanas. Ao tornar-se patente o malogro dessa espécie de migragio epistemolégica no restou senao empreender o Tetorno as terras da filosofia. No entanto, foi aos paradigmaas filoséficos da modernidade mais avangada que a Teologia, em grande parte das Suas expressdes atuais e mais visiveis, acabou por recorrer. Ora, tal operasao demonstrou-se altamente problemitica. Através dela abria-se uma crise ainda mais profunda nos fundamentos epistemolégicos da Teflexdo teologica. Com efeito, os paradigms filosoficos que passaram a ser utilizados acabaram mostrando, ao fim e ao cabo, seus pressupos- tos estruturalmente imanentistas, radicalmente incompativeis com a intengao primeira ¢ constitutiva do pensamento teoldgico. Parece, pois, nao restar 4 Teologia outro caminho pata o reencontzo consigo mesma na sua auténtica figura histérica, senao o de repensar e refazer, dentro do novo universo cultural em que passa a ser praticada, a relacao multi-secular com a filosofia classica que encontrou uma expressao emblemdtica no pensamento e na obra de Tomas de Aquino. 2. Se admitirmos que A filosofia do préximo século caberd realgar com particular énfase esse cardter essencial da reflexao filosdtica que € a rememoragio ou o tornar presente no proprio ato de filosofar a memdria do espirito no tempo, poderemos, com razodvel certeza, concluir que, nesse espaco da rememoragio, Tomas de Aquino seré [40] sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v, 25, n. 80, 1998 uma referéncia essencial. A essa certeza nos conduzem o desenvolvi- mento atual da pesquisa em Histéria da Filosofia, o relevo historiogréfico cada vez maior que adquire a filosofia medieval, ¢ a propria significagéo para o nosso tempo das teses fundamentais da heranga filosdfica tomasica. H4, por outro lado, uma notavel analo- gia, que requer maior aprofundamento, entre a reniemoragio _filoséfica ea remenoracao essencial e constitutiva da fé cristé e, por conseguinte, do pensamento teoldgico: aquela sendo a rememorag@o. das idéias que asseguram a unidade espiritual de uma cultura no tempo, essa sendo a remetnoragiio eficaz de uma preseiga sempre mistcriosamente presente ao longo do tempo e que da unidade, diregio e sentido a historia. Nessa anatogia reside, talvez, a razio profunda que moveu as opgdes filoséficas dos sistemas teolégicos cléssicos, ¢ ela pode explicar igual- mente a perene atualidade da sintese tomdsica. 3. Finalmente, encontramo-nos em face do dilema de irrecusdvel al- cance metafisico que jé se delineia diante de nés, e adquiriré sem davida dramaticidade intensa na cultura do século XXI. Tal dilema iré provocar um novo surto do pensamento metafisico dando, assim cremos, as teses fundamentais de Tomas de Aquino no dominio da Metafisica, que acima brevemente evocamos, uma surpreendente atualidade. Referimo-nos a um dilema nao apenas fedrico mas emi- nentemente pritico , na medida em que se manifesta no préprio terre- no das praticas sociais e culturais, e que se arma em torno da manei- ta de viver e interpretar a relagéo do ser humano com o dominio da realidade objetiva, dita relagto de objetividade, @ que estrutura 0 seu estar-no-mundo. Na relago de objetividade que prevalece na nossa cultura a realidade do mundo passa a oscilar cada vez mais entre a objetividade produzida pela atividade técnica e materializada nos obje- ios da produgao técnico-industrial de um lado e, de outro, a objetivi- dade dada ao ser humano na sua experiéncia original e fundante — experiéncia metafisica por definig&éo — da transcendéncia do Ser so- brea finitude dos seres. Ora, essa experiéncia propriamente metafisica implica, em tiltima anélise, em virtude do dinamismo da afirmagao, a posiggo de um Absoluto na ordem da existéncia. Que forma do existir ird saciar a fome do ser que se eleva das cama- das mais profundas do espirito humano, no seu élan incoercivel para as expressdes mais altas da inteligéncia e do amor? Nossos seme- Ihantes no século XXI viverdo talvez mais dramaticamente do que nés essa interrogastio, na medida em que seu universo humano sera cada vez mais ocupado pelos objeios téciicos em incessante producio. IA a objetividede técnica oferecer-se, finalmente, como tnico alimento a caréncia metafisica do nosso espirito? Ao contrério, tudo nos leva a crer que, em meio 4 abundancia sem fim dos objetos técnicos, mais © Prati, Fedro, 247 d 3-4, ‘Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n, 80, 1998 [_4i aguda se fard no ser inteligente e livre a fome de um alimento mais substancial para o espitito, Onde buscé-lo senao na tradigio teolégi- ©0- religiosa e na tradigéo metafisica? Seré justamente na encruzilha- da desses dois milenares caminhos espirituais que, na aurora do ter- ceiro milénio, se elevardo uma vex mais a figura exemplar de Tomds de Aquino e sua obra imensa. Endereso do Autor: Av. Cristiano Guimaraes, 2127, 31720-300 Belo Horizonte — MG Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 1998

Você também pode gostar