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VVivemos num mundo em que os Estados ameasam com 0 terror, exercitam-no e as vezs o sofrem. E o mundo de quem Procura se apoderar das armas, venerivese potentes da religio, de quem empuna a religito como uma arma, Um mundo no ual gigantescos Leviaas se debatem convulsamente ou ficam de tocaa,esperando. Um mundo semelhante aque pensado ein- vestigado por Hobbes. ‘Mas alguém poderia sustentar que Hobbes nos juda a ima- _sinar no s6 0 presente, como também o futuro: um futuro remo- {o,ndoinevitvel,econtudo tlvez no impossvel Suponhamos ‘que a degradasio do ambiente aumente até alcangar niveis hoje impensiveis. A poluigio do ar, da gua e da tera acabaria por ameagar a sobrevivencia de muitas espécies animais, inclusive aqueta denominada Fomo sapiens sapiens. A essa altura, um con- ‘woe global, minucioso, sobre o mundo eseus habitantes se torna- ria inevitivel. A sobrevivéncia do genero humano imporia um ppacto semelhante aquele postulado por Hobbes: os individuos renunciariam is propriasliberdades em fivor de um super Estado ‘pressor, de um Leviatainfnitamente mais potente que os pass os. O grithio socal estreitaria 0s mortas num n6 férreo 4 mio contra “impia natureza’ como escrevia Leopardi em La Ginesra {A giesta}, mas em socorro a uma natureza fig, deteriorada, precia.” ‘Um futuro hipotético, que esperamos no se verfique jamais 2. David, Marat: Arte, politica, religido” Antes de mais nada, uma ustificativa; ou methor, das. Fala rei de um quadro muito famoso (ig 3: David, Marat), mesmo ‘nfo sendo historiador da arte. Mas espero poder mostrar que ainda hialgoa dizer sobre Marat em seu timo supine (ta 0 t tulo que Davi utiliza numa cata)? Durante minha exposiqdo,lembrarei fatos conhecidos por ‘todos nis também resultados de pesquisas conhecidas por todos ‘0s estudiosos de David. Dirijo-me a estes tims, mas nio s6 a ‘eles. O entrelagamento de arte, politica ereligit que et por tris | de Marat em seu dtimo suspiro lang luz, como tentareiexplicar -n conclusto, sobre questoes hoje inescapives. ‘Comego por um detalhea data do quad (ig. 4: David, Ma- ‘mt detahe). As palavras"an deus” foram escrtas em maitsculas sobre a cata de madeira na parte inferior diteita do quadso, sob a "Tadao de Feder Cart 4 Jacue-Louis David Marat em seu itn suspir, ded cionsro, jo inci simbelic coinciiacom o primeito dia da era ‘ea assinatura"d Mara, / David O calendirio rev republican, 22 desetembro de 179 ara ofcalmente em vigor substituindoocalendéro cristo, em 6 de outubro de 1793 der diss antes da expos ao pablico do Marat de David na Cour Carrée do Louvre? As palavras "Tan deux que hoje nos parecer um ee ‘mento essencial do quadro, foram provavelmenteacrescentadas no ‘imo instante, A data segundo o calendio tradicional — 1793 ainda & visvel, embora parcialmente encoberta pea co; depois de rever 0 quad algum tempo ats, rei que a hipotese de que ces data tens reaparecide aps uma restaurago deve ser excuida °: ificado do novo calendrio, do qual haviam desapare claro: com el, a Repiblica nascida da Revolusio anunciava 0 principio de uma nova era, Hoje ¢inevitivel perguntarmos até {que ponto nossa mancira de entender essa ruptura radical com o| passado (e também, indietamente, nossa mancira de entender 0 ‘quadro de David) foi alterada pelos acontecimentos do final do século pasado. Tem-seafirmado constantemente — com satsfi- ‘0 ou pesar — que o ciclo histrico iniciado em Paris em 1789 terminou exatos duzentos anos depois, em 1989, Segundo essa imerpretagao,a queda dos regimes comunistas no Leste Europe teria assinalado o fim da Era das Revolugoes, entendidas como rojeto radical e global. Mas os ponteirs do reldgio da histria (para recorrer a essa imagem batida) nto podem volta tris. 0 calendiio descristianizado durou poucos anos, porém as reper- cussbes de longo prazo da Revolucio ainda se fazem muito vis vei, Como todos sabem,airrupgio de grupos soca desfavorec- dos na cena politica ea abolcto dos pivilégos de bergo mudaram irreversivelmente a historia da Franga, da Europa, do mundo, CContinuidade e descontinuidade, proximidade e distancia se en trelagam, como veremos também no quadto de David. Entre 1792 ¢ 1798 houve uma repentinaaceleragio no pro- cesso que se iniciara em 1789. Aos massacres de setembro segu- se 0 processo contra o soberano, com sua condenasi0 4 morte, A Convencao aprovoua sentenga com maioria de um voto, Dentre ‘0s deputados estava David, No momento da votago, ele se apro- ximou da tribuna e pronunciou dus palavras: "La mor? David também esteve entre os que se pronunciaram contra a suspensio da sentenca (dessa ver,a maioria foi mais expresiva). Em 21 de janeiro de 1793, 0 ex-rei foi conduside guilhotina Em 20 de janeiro, ou sea, no dia anterior a execuso, Michel Le Pelletier de Saint-Fargea, um a 2 Revolucio, fi procurado por um homem que Ihe perguntou se acrata que se alinhara com, “ 5. Pierre-Alexandre Tardieu Le Pelletier de Sint Fargeau, votara a favor da morte do re, Le Pelletier respondeu afirmativa: mente comegou a explcar a razio; foi apunhalado até a morte. David concordou em retratar Le Pelletier de Saint-Fargeau, pri- ‘meiro martirda Republica. O quadro, como expicarei mais dian te, existe mas. Gragasaalgumascépias a raft eao fragmen- to de uma gravura de Tardieu baseada no quadro de David, poddemos ter uma ideia da obra perdida: uma imagem heroica, auster,inspirada num modelo antigo (ig. 5: Tardieu, gravura baseada em David, Le Pelletier de Saint-Fargea). ra exatamente iso que a Convengio eo publico em geal es- peravamn de David. Os revolucionrios,embriagados por Pltarco © Rousseau, viam a Antiguidade, Roma e Atenas, como modelos de civismo ede virtudes heroias.Em 0 juramento des Honcis pnt do cinco anos antes da Tomada da Bastlha (1784) (g. 6), David anteciparao thos epublicano; poucos anos mas tarde, contribu 6. Jacques Lous David, Ojuramento dos Horicos, 1784 ‘muito para The dar forma. Depois de ecodir a Revolugs, Davidse encontou no centro do panorama atstioe politico, Seuprestigioe influgncia eram enormes.Tornov-se sectetrio ¢ depois presidente da Convengio. Duranteo Terror ocupou: es do tribunal revolucionsrio, Maso engaamento politico nto di- ‘minuiu suas milla tvidades artistas. David pastou a ser uma spied cendgrafo politico: preparou minuciosumente fests pol edretamente daativida tase funerais; desenhou sels, moedas ecariaturas politica, criow roupas adequadas & nova sociedade nascida da Revoluo (Sig. 7) e retratos de mirtires epublicanos como Le Peltier ¢ Marat Tudo iss faz parte da imagem tradicional eaté mesmo, diga ‘mos esteretipada de Davi. Porématum exame mais minucioso, clase mostra mais complexa 7. qu os Davi 1 devestimenta dos eiadors, » © main de Mart. Am dp espero un pro- fan come’ Nod sis, 4 de jlo de 1780 depts Gua omo srs dant Comey “Daa ee Dar pro pic rte or un pa fhe ‘ot str Did ee oa pr (Donde es Dar Devt inane ae Eas age Dia uc" Sun om Marat polis peso im aide 19, undo Mara acon somes Divi dfendom am crgen utente Ei 16 eb Ma ts prot Haim pas tts David qu cas dona do nr ‘aenciregpsetambtn ds cpuion pinnae ons do Love dos dis qui otmemorand te Peter e Ma, Maistre ses fra friar a os Tern sd ‘omental permancra ao slo pr por gine sme im 795 dra Distr Dai cma eens pos canbes Cts sper que Dai qu Pacer dt ado de uma ponte dete o ue peers ‘agsmisgitente des pnd police dra ose elem met Pr dca ltr Marre ‘aminusieso pal E esti de 82h Goes Dif em Bras nfrman- eqn gr dh um em cpa de Mara sven aga ses cers porum ila die proe ota 4 © espago co: museu é por definigo abstrato, muito diferente do local a que se destinavam os quadros ou esttuas. No cso de ° “Marat em se timo sspro, hoje exposto no Museu de Belas- Artes ‘de Brunclas, a climinagdo de seu contexto original omega peo de- “saparecimento do quad que o acompanhava. A filha de Le Pelle tier Suzanne, depois de suprimir os detalhes mais embaragosos do ‘etrato, que adquirraem 1826, teria acabado por destru-l.* ‘evident, pelo que dissemosatéagora, que Marate Le Pelle- tier foram concebids (eentendidos) como quadros intimamente Tigados entre si. Segundo uma testemunha ocular, ambos tinkam ‘as mesmas dimensdes." A semelhanga entre os dois quadros, 0 ‘existente eo perdido, & clara. Mas uma andlise mais cuidadosa ‘mostra algumas dvergéncias: 1. Enquanto Le Pelletier aparece morto, Marat €representadoers seu timo suspro":« mao ainda segura a pena em seu rosto para um vago soriso. 'b.Um desenho de um aluno de David, baseado na pintura perdi- ‘da, mostra (fig. 8) que no corpo inlinado de Le Pelletier pendia ‘uma espada atravessindo uma folha de papel, na qual seliam as palayras"Je vote la mort du tyra” [voto pela mort do trano}. ‘Como o proprio Davi explicara na Convenso,aespada reme ‘tina um epis6dio narrado por Clcero (Tas 561-62) Dionisio, tirano de Siracusa, obrigou Dimocls (que fara dele em tom invejoso) a ocupar sew assento num lauto banguete sob uma cspada que Ihe pendia acima da cabesa,suspensa por um fio. 0 significado do quadro era claro: 0s revlucionsios, como 0 ranos, vive numa situagdo de perigo constant. Iualmente clara, embora formulas numa linguagem alep6rica, era liga «go entre 0 voto de Le Pelletier eo gesto que pusera fim sua vida. No retato de Marat, porém, ndo hi alegorias. Tudo élite- tal ato ukimo detahe: a banheiraotinteio, a tabua de ma~ ‘deirausada como mesa assinaturaaposta numa carta endere- Gada a uma pobre viva, mae de cinco criangas." A assassina, Anatole Devoge Le Pelletier deSont-Fargeaem seu eito de mote, sd. invsivel,¢invocada por meio da carta aberta diante do especta- ‘dor: um pedido de ajuda a Marat que Charlotte Corday trouxe- rapessoalmente, Em vez da espada adornada que pende sobre cabega de Le Pelletier ha uma humilde facade cozinha mancha- dade sangue. A carte facaevocam acena do crime que David cevitara representa ‘¢ Em 1826, quando retrato de Le Pelletier ainda mio fora destrl- do, ocritico Pirre-Alexandre Coupin viu e comparou os dois ‘quadtos.*Louvou David porter ressaltado as diferengas entre os dois personagens, principalmente do ponto de vista da origem social: aristcrata Le Pelletier fora pintado "com gracaedelca- ders’, a0 passo que Marat, “que apesar da educagio recebida ‘mantivera um comportamentoplebew demonstrava "uma nat- ‘ea desagradve egrosseira” Na verdade,viiosretratos da épo- ‘ea mostram que David embelezou os tragos de Marat. Mas a ‘comparagiotrasad por Coupin, paraalém da hosilidade (entdo previsivel) em relagio a Marat, tocava num ponto importante. Os dois quadrospareiam utilizar uma linguagem semelhanteinspi- ‘ada na Antiguidade clisica, Um eaderno de notas de David re {erente aosanos que pasou em Roma, trazuma anotasio baseada ‘num sarcfago com o poema fnebre a Meleagr (fig. 9, gina ‘do caderno de notas romano de David). David retlizu esse {ema primi em Andrémacachorando Heitor, de 1783 (ig. 10) depois no quadro perdido representando Le Pelletier no leito de ‘morte ¢, por fim, em Marat em seu dtimo suspir (fg. 3). Mas ness timo quadro ab lembrangas clssicizantesestavam mes-

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