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or A invengao da representagao: breve reflexao sobre a nogao de representagao L_ BERNARDO Fonseca MACHADO resume A nocio de representacio é um tema caro 3 anttopologia, Pretendo contribuit, de ma neira singela, para a discussio sobre 0 assunto valendo-me de perspectivas oriundas de dreas di- versa, tentando estabelecer um dislogo entre as imesmas A teoria rata historiogafa hlénica e a antropologia contemporinca sio as grandes fre- as que servem de mote para a reflexio. Na teoria teattal contemporinea vemos um debate entte en- safstas que buscam pensar os espeticulos nfo mais como representasBes miméticas da realdade, mas como experiéncias eénieas. Valho-me de alguns historiadores, mais especifcamente dois helenis- tas, para refletr sobre os modos de representacio rio mundo grego e, a partir dees, compreender que esses modos dizem sobre nés Ocidentais. Por lilimo, lango mao da teoria de Roy Wagner para torcer 0s significados ¢ pensar a representagio sob palavras-chave Represencagio. Antropologia. ‘Teoria Teatrl. Histéria, Experincia Social Sete anos de azar? Suponhamos que um espelho se espatife no chao. Pensa-se logo, “sete anos de aza seguida, como se fosse uma reflexio esponti- nea, indaga-se “porque tal assertiva/maldic&o"? Diante dos cacos refletidos no chao pode-se perguntar: porque quebrar a imagem refletida, fragmencar a repeesentagio mimética, destruir a imagem do individuo diante de si pode “causat” sete anos de azar? E, desse modo, inicio meu pensamento, Nio se trata, agora, de uma compreensio histérica sobre 0 ditado “sete anos de azar", io seria capar de fazé-lo — e provavelmente al- guém muito melhor gabaricado, algum italiano cuidadoso ou francés dedicado jé 0 tena feito, isto 6 analisado a origem desta superstigéo 6 que busco nao é tampouco refletir — palavra com sentido diverso — sobre os variados signif- cados da tal expressio. Assim, pretendo apenas langé-la como mote, isto €, 0 que essa expressio pode concribuir para pensar como a nogio de nepresentagio pode sex abordada sob diferentes perspectivas. Nao busco dar conta de codas as vertentes mais uma vez, nio sou gabatitado para tal ~ apenas gostaria de langar a questio para certo autor da antropologia contemporanea, alguns cnsaistas que tratam da nogio de teatralidade € outros pesquisadores com énfase histética, de ‘modo a compreender como pensam as manciras de repretentagao entre aqueles que podem ser de- nominados como os euro-amerieanos (para ado- taro termo de Marilyn Serathern, 1987; 1992’) ‘Voltando ao espelho quebrado, na cosmolo- gia euro-americana tal objeto possui a “fungio” de “refletr” aquilo que esté diante de si, apre- sentando um simulacro da “realidade”. Por um lado, esse objeto reafirma a unicidade do indi- viduo — ao olhar-se diante de si mesmo tem-se a certeza de sua particularidade -, por outro, ‘ovaciona a possbilidade cognitiva de presenti- ficacio da “realidade” diante das olhos ~ reflete aquilo que “€" o “real” Desse modo, 0 espelho valoriza a personali- dade — para usar o termo no sentido dado por cadernos de campo, So Paulo, n. 20, p. 1-360, 2011 168 | Brasanoo Foxssca MAcHap0 Roy Wagner (2010) — destaca a representagio = tema caro aos pensadores contemporineos de teatto — além de ser objeto que presentifica a imitagio da aparéncia — no sentido que dé Vernant (2009). Portanto, parto dessa metéfo- rae tento compreender como fazer render essas diferentes abordagens sobre representagdo. Entre tedricos do teatro vemos a preocupagio em li- dar com espeticulos que procuram se afastar da representacio mimética da realidade, tentando criar no mais pecas teatrais, mas experiéncias cénicas. De outro lado, também é possivel fazer ‘uma breve incursio histérica para mapear quais foram os modos de organizacio da representaio no mundo grego (entre os séculos XII eIV a.C.) para compreender o que eles dizem sobre nés. Por tilimo, lango mao de Roy Wagner (2010) a fim de torcer a dita cosmologia euro-americana sobre como vemos a natureza e a cultura, apon- tando que aquilo que compreendemos como convengio nio deixa de ser uma invencio. Teatro, teatralidade e representagio Hé certo pressuposto quando se fala de tea- tro ¢ sua relacio com a repreientagto, Muitas ve~ 2s espera-se que 0 teatro seja um dos modos da arte que “reproduz a realidade” ou a “toma evi- dente". Essa percepeao esté associada Squilo que (0 tedricos teatras chamam de teatro dramitico realist’. Por exemplo, Peter Szondi, teérico de reconhecimento consagrado no campo da teoria sobre teatro’, aponta que a forma teatral do dra- ‘ma surgiu no Renascimento ¢ representava a “au dicia espiritual do homem que voltavaasi depois da ruina da visio de mundo medieval, a audicia de construir(.) a realidade da obra na qual quis se determinar e espelhaz” (Szondi, 2001, p.29). Outro tedrico teatral chamado Bernard Dort (1988, p.173) também aponta para certa tradi- sao de encarar 0 teatro como o espago da repre- sentacio pela realidade. © esearuto do teat se dé de forma contradité ria, E uma evidéncia que perdemos muitas vezes de visea. Fundado sobre a “mimesis, 0 teatro faz dda agio uma ilusio ¢ transforma, por veres, essa ilusio em ago (tradugio mina) Diante disso, nota-se que apenas sob certo paradigma —aquele que entende o teatro dramé- tico pés-renascimento como mote para pensar ~ compreende-se o teatro como “representacio da realidade”, As formas teatrais gregas, medie- vais e de origens diversas, como o teatro balinés, por exemplo, nfo tomam a representagéo como pressuposto para a produgio arcistica, buscam ‘outras formas de experiencia’, No entanto, parte da cosmologia eure-americana contemporinea acaba por compreender 0 teatro naquele recorce histérico, A experiéncia social relativamente re. cente, que parte do renascimento e segue até a virada do século XIX para o XX, atesta tal com- preensio. Roy Wagner & um autor que pressupée um certo teatro realista ~ preocupado com a repre- sentacio da tealidade ~ quando esti falando da percepcio da relatividade de um contexto” ¢ acaba por utilizar como exemplo uma situagio ceatral especifica Quaisquer que sejam a6 circunstincias de sua ocorrncia, a percepgio da rlavidade de um contexto de conteolecoeresponde a um “esmas- caramento” da invengio iminentee a um senti- mento de que “alg esti senda feit” aqueles que dea partcipam, Eee sentimento que dispar a reagio negatva, especialmente nos especadores cu naguces que participa a cens como ator. Els se sntem vulnenveis ese tornam defens- vos, desjam “combate ainfudnciaofesiva, eo aque defendem um certo modo convencional de percepsio e ago (Wagnes, 2010, p.101). No entanto, ha, como disse, outros modos de fazer teatro operantes, tanto 20 longo da caderos de campo, S80 Paulo, n. 20, p. 167-180, 2011 historia, ¢ so sobre grande im contempo vos paradi final do sé Berman (2002), Jo nandes (20 tages © teoricamen rncas esti rio € mait contritio, ¢ Martin oposigio er prS-teatrali ra adotada fandado so do real (0 reprodugio seria oagen lencia)se 3 lado, entre como poste real, quantc a natrativa Segunde tomia estive lisar a varied desenvolver de Platio, “arte do eng quanto & rep O quei apresenta 0 representagdo acordo com re foros de 1 de Silvia Fer rnismo, quan cademos de edos, pda pont histéria, como nos dias que correm. A discus- sio sobre representago esta presente e é tema de grande importancia entre os pensadores teatrais contemporaneos, preocupados em observar no- vos paradigmas ¢ estilos de produc teatral do final do século XX. Bemard Dort (1988), Martin Puchner (2002), Josette Féral (1985; 1988) e Silvia Fer- nnandes (2010) sio alguns autores que, sob orien: tagdes € perspectivas diferentes, tentam wacar teoricamente como as priicas teatrais contempo- Fineas esco produzindo espetsculas euja relagéo rio € mais de representagio da realidade, pelo contritio, tentam proceder de outras formas. Martin Puchner, por exemplo, estabelece a ‘oposigio entre o que chama de antiteatralidade e pré-teatralidade. A antiteatralidade seriaa postu- raadorada por autores que suspeitam do teatro Fandado sob trés paradigmas: 1- a representagio do real (0 teatro como representacio mimética ¢ reproducio da realidade); 2- a personagem (que setia 0 agente de reprodugio mimético por exce- lencia); €3-a construgio da narrativa, Por outro Jado, entre aqueles que assumem a teatralidade como postura artistica, os pré-teatralidade, ha- veria uma valorizagio tanto da reprodugio do real, quanto da figura da personagem, quanto da narrativa légica. Segundo Puchner, nao se trata de uma dico- tomia estavel, mas de uma ferramenta para ana- lisar a variedade de posig6es ¢ endmenos que se desenvolvem. A partir dos dislogos da Republica de Platio, o autor aponta a oposigdo frente & “arte do engano”, dando énfase ao fato de que mesmo na esfera grega havia uma certa suspeita quanto & representagao da realidade. © que importa destacar € como 0 autor apresenta o antagonismo entre os defensores da representagdo e aqueles que se opéem a ela. De acordo com Puchner, 0 antagonismo s6 adqui- re foros de luta estética (para utilizar a anélise de Silvia Femandes, 2010) a partir do moder- rnismo, quando a representagio da realidade ¢ cademos de campo, S80 Paulo, n, 20, p, 167-180, 2011 Awpncto pa Rapnasexracio | 169 sustentada pela cocréncia concomitante da per- sonagem com a fiogio dramética, Ha um ataque de autores antiteatrais, como Adorno, Benja- rin, Brecht e Beckett 8 representagio: O que eles fos ericosantiveatais] tendem a con- wrariar € uma forma particular de trabalhar com mimesis no teatro, a mimesis causada pela difcl posigo do teatro entre uma arte petformdtica e uma arte mimética. Como uma ate performs «a como a misica ou o ballet, 0 teatro depende da apts arte mimética, como a pintura e 0 cinema, por do performer no paleo. Como uma outro lado, ele precisa clzar essa performance humana como material significante em service de-um projeto mimésico. Uma ver que a natute- 17a da mimesi € submetida 20 controle ¢ ataca tl como no modemismo, a afiliacio dupla do teatro ela se toma um problema porque, 20 contritio da pintura edo cinema, 0 teatro continua atado 0s performers humanos, nio importa quio es ‘ranhas suas atuagées possum ser (Puchnes, 2002, 5, tradugio minha) ‘Desse modo, Puchner esti chamando a aten- «fo para certa “erise” do teatro modemno, que quer se afastar da representagio. mimética do ‘mundo, Deacordo com ele aquilo que denomina como “teatro moder” alteron sua relagéo com «este modo de produgio representacional a partir de novas concepgées sobre 0 texto dramético, a concepeio das personagens ¢ 0 trabalho do ator Exemplos desta busca pela mudanga sfo 0 ence- nador Edward Gordon Craig, ¢ os dramacurgos Bertold Brecht e Samuel Beckett. O.primeiro, inglés da virada do século XIX para o XX, estava empenhado em recusar a personificagéo do ator nas personagens, de modo a defender um teatro abstrato, realizado por androides e supermario- nites. Bertold Brecht, por sua vez, é considerado tum dos grandes dramaturgos da primeira metade do século XX justamente por apostar no distan- ciamento do ator em relagio ao seu papel —o ator 170 | Brnxanoo Foxseca Maciabo nao poderia, em suas pevas, se metamorfosear na personagem, mas deveria atuar sobre ela, com ‘uma opinio politica sobre aquilo que diz. Por liltimo, em Beckett, a partir dos anos 1950, as situagbes absurdas em que coloca as personagens, com didlogos entrecortados e esparsos, apresenta io uma representagio mimética da realidade, ‘mas elementos dilaceradas e difusos — exemplo claro disso €a pega Experando Godot. Bernard Dore (1988), por sua vez, estd pre= ‘ocupado em apontar que a mimesis € a repre= sentago teatral a0 longo do século XIX e XX estariam em declinio, abrindo espaco para no- vas formas de teatralidade. Ele entende que ha uma tendéncia contemporanea no fazer teatral que aposta em uma “representagio emancipa- da’, distante tanto do texto quanto da mimesis. Silvia Fernandes (2010, p.120), lendo Dore, destaca: Anova concepsio de representagio, especialmen- te dominante no teatro dos anos 70 ¢ 80 do sécu- Jo passado, nio postula a unio das ares visando um efeita comum, como na gecamebustwerk ‘wagneriana, mas defende a relativa independén- cia das vitias fontes de enunclagio do teatro, que se deslocam ¢ se confiontam”. Fernandes também aponta a importancia de encenadores, como Robert Wilson, no fx zet teatral contemporaneo. Nas encenacbes de Wilson valoriza-se a expansio do tempo, com falas répidas ou dilatadas, a grande utili zacio de luzes variadas e gestos distintos. Por cxcmplo, na pega Quartett de Heiner Miller, apresentada entre 12 ¢ 16 de setembro de 2009 no SESC Pinheiros em Séo Paulo, Bob Wil son utilizava um objeto cénico ondulado, do tamanho de uma mulher, que se remetia a um sofii andante no qual a personagem de Isabel- le Hupert sentavacse e discorria um texto em grande velocidade e com grande variagio tonal, enquanto um grande circulo 20 girava no cen- tro do palco, iluminado por uma luz entrecor- ‘ada, O proprio Heiner Miiller, no programa da pega, diz: © ponto central do teatro do Bob é a igualdade dos elementos texto, uz, som, objetos de cena, arores. Isso & agradével, porque néo ataca de ne- hum jeito 0 texto: ele fica tratado do mesmo jeito como objeto e fto como 0 paleo © como 0 rmobiliétio. Assim os textos flcam transparentes por todos os lados (Programa... 2005). Assim, chamo a atengio para a valorizayio, no teatro € na teoria contemporinea que trata sobre o teatro, da experigncia ou da “teatralida- de” cénica e nio mais da representagio mimé- tica, Josette Féral é uma das teéricas que pode contribuir para essa reflexio. Utlizo-me de dois textos da autora para apresentar sua perspectiva sobre teatralidade e performance. No primeito, de 1985", inticulado “Performance et theatra- lité, le sujer desmistife”, a autora opse os dois conceitos. Segundo ela, a performance se distin: gue da teatralidade porque se constitui como evento nao repetivel, apresentado no momento presente em um espaco indissoluvelmente liga- do A proposta de criagao. Tia <0 que procura evitar a ilustraglo, indicacéo ou simbolizacio. Em um segundo texto, de 1988", chamado ““Theatricality: On the Specificity of Theatrical Language’, Féral atenua a oposi¢io anterior- mente tragada e aponta que a performatividade & um dos elementos presentes na teatralidade. Para ela o teatro contemporineo beneficiou- -se amplamente de algumas conquistas da arte da performance, pois as priticas performativas teriam redefinido os parimetros para pensat a arte, Voltando & Silvia Fernandes (2010, p.126), responsével por tragar uma grande sintese das xe de uma cria~ teorias teatrais contemporineas que discutem teatralidade e performance: cademos de campo, So Paulo, n. 20, p. 167-180, 2014 Sem duct exigt form jan merp order perfe Dest chaman caja enc teatral”, o surgin lorizam rativa. 7 fazer tea modo re Evident: dos, por 10 camp Bourdie fala e in: (para us configu: euro-am Com pauta, ir produre que artic Ao que vai podemo se pode social qu caderor r1recor~ rograma gesaklade rs de ne- Serentes pcizacio, pox trata acralida- pe pode r de dois famado beatrical eividade plidade, mticiou- ta arte pmativas pensar a ,p.126), po. 2011 Sem divida, as operagbes performativas de pro: cdugio ¢ transformagio efnica de stuagies so as maiores responséveis pelo desvio paulatino das cexigincias da representagio enquante processo centrado na iusto no tragado fccional, em pro veito da acto eénica real edo acontecimento ins- ranting e néo repetivel. Esse desvio decermina outro tipo de enderosamento ao receptor, trans formando o apelo puramente especular em enco- rajamento de percepg6es sensorais, por meio do mergulho em experitncias imersivas proprias 3s novas tecnologias. Segundo Féral, essa mutagio ctnica define uma rupeura episeemoldgica de tal ‘ordem que é necessrio adotar expresso teatro performative para qualific-la, Deste modo, aponto que estes tebricos estio chamando a atengi cuja encenacio no busca a representa (para espetéculos teatrais mética da realidade, mas sim uma “experiéncia teatral”. Por outro lado, também apontam para © surgimento de novas priticas cénicas que va~ lorizam a performance em lugar da historia nar- sativa, Tiata-se de uma nova configuragio do farer teatral que tenta afastar-se ao méximo do modo represencacional de produsir espersculos Evidente que isso pode ser lido de diversos mo- dos, por um lado, é uma forma de diferenciagéo no campo teatnal (sob a dtica de autores como Bourdieu, 2005), por outro lado, isso também fala informa sobre uma nova experiéncia social (para usar os termos de Baxandall, 1991) que se configurou e ainda se configura na cosmologia Com a representagio mimética nao mais em ‘pau, interessa observar como os novos agentes produzem espeticulos ou mesmo performances que articulam com a experiéncia?, AAo observar esse modelo de representagio que vai sendo cunhado pelas préticas teatrais podemos tracar reflexes acerca do modo como se pode entender a representagéo na expetiéncia social que se configura e esté configurada, Nao A vngio pa Repaasesrago | 171 mais o espelho como modo por exceléncia de pensar o mundo, O que isso quer dizer de nosso modo de compreensio? Nao quero, com essa pergunta ou com as reflexses oriundas do pensamento teérico sobre 6 teatro, recair naquilo que Marilyn Strathern (1987) chama de confuséo entre reflexividade e autovonsciéncia quando se faz.a antropologia de nds mesmos", © que me interessa é produzir uma reflexio a partir do choque de argumentos oriundos de diferentes éreas do conhecimento, talvez assim possa produzir um distanciamento relevante. De acordo com Eduardo Viveiros de Castro (2002, p.114 e p.119, respectivamente): (.) Ainda quando © antropélogo « native com parttham a mesma cultura, a relagio de sentido centre os dois discursos diferencia tal eomunidade: a relagio do antropélogo com sua cultura ¢ a do nativo com a dele néo & exatamente a mesma. O aque faz do nativo um native 6a pressuposiio, por parte do antropélogo, de que a relagso do primei- ro com sua cultura é natural, ito é ineinseca © espontinea, ¢, © possivel, néo reflexivas melhor ainda se for inconsciente. © nativo exprime sua cultura em seu discurso; © antropélogo também, mas, se cle pretende ser outra coisa que um nati- vo, deve poder exprimir sua cultura cuturalmente, {sto 6 reflexiva, condicional econsciente (0 problema € que o nativo certamente pen- sa, como 0 antropélogo; mas, muito provavel- mente, ele nfo pensa como o antropélogo. (.) AAboa diferenga, ou diferenga teal, € entre 0 que ppensa (ou faz) 0 nativo e © que 0 ancropélogo pensa que (¢ faz com 0 qui) 0 nativo pensa, © so esses dois pensamentos (ou fizeres) que se confrontam, estes termos, Viveiros de Castro auxilia na exposigio que procuro dar. Ao longo da pes- quisa € do texto esforgo-me por pensar e refle- tir sobre como os agentes pensam e como nds, cademos de campo, Sto Paulo, n. 20, p. 167-180, 2011 172 | Basso Fostca Macao euroamericanos, pensamos. Teata-se, como diz Strathern (1987), de conhecer nés_mesmos tanto como objeto de estudo quanto como su- jeitos que fazem o estudo ~ embora essas duas categorias estejam fundidas na mesma premissa cultural de que 0 conhecimento é uma espécie de autoconhecimento, A nogao de autoconheci- ‘mento s6 pode vir de uma formula circular, isto 6, a autoantropologia provém de uma culeura/ sociedade que detém em si 0 conceito de cultu- ralsociedade e na qual hé a convengio de que € possivel captar a cultura porque algo genuina- mente esté estitico, hd um ponto estavel para a andlise, hd uma convengio estabelecida no qual © resto € tido como representagio. Adiante, Roy Wagner (2010) torcerd essas mesmas premisas. Entretanto, cabe, antes, uma pequena digressio sobre o mundo grego. Histérias e mais histéria A fim de refletir sobre a representacio e a per- formance no mundo contemporineo, fago uma breve digresséo sobre a experiéncia social grega, de modo a, quem sabe, fuer falar a historia e seus ciclos de longa duragéo sobre nosso modo de compreender o “teal” Jean-Pierre Vernant no livro Entre Mito ¢ Politica (2009) escreve 0 artigo inticulado “Da presentificagio do invisivel 3 imitagio da apa- réncia”, nele esboca uma teoria sobre os modos de representagio" constituidos no mundo he- lenico. De acordo com 0 autor, a nogio de re- presentacio figurada — isto é a imagem como ponto por exceléncia de condensagio daquilo ‘que é representado ~ nao pode ser tomada como Sbvia ow evidente, mas sim percebida como ca- tegoria histotica, construcio claborada por vias variadas nas diversas civilizagbes. Na virada dos séeulos Ve IV a.C. a teoria da mimesis, da imi- tagio, esbocada por Xenofonte ¢ elaborada por Platéo, marca 0 momento em que, na cultura greya, 0 modelo de representacio se altera, pas- sa-se da presentificagio do invisfvel para a imita- fo da aparéncia ‘Aos gregos preocupava fazer ver o invistvel e designar um lugar em nosso mundo as entida- des do além, os deuses e os mortos. Pretendia-se inscrever a auséncia em uma presenga e 0 ob- jeto escolhido para tal operacio era 0 idolo (0 talisma). No entanto, eal estatuéria nfo remetia a uma imagem fisica e mimética de um deus cou de um morto, o fdolo no era feito para ser visto, era feito para ser ritualizado, inseparivel das operagbes rituais que eram exercidas sobre cle, Trata-se de uma figura que necessta do rito para representar a poténcia ¢ a agio divinas. Mas © simbolo nao representa o deus, no procura instruir-nos sobre sua natureza, pelo contritio, cexpressa a poténcia divina enquanto manejada utilizada por determinados individuos, como inscrumento de prestigio, meio de dominio e de aio. Portamto, tratava-se de um modo de lidar com a representacio na chave de presentificar 0 invisivel, os deuses e mortos, em simbolos no figurados, mas ricuais. No entanto, com o surgimento das cidades _grepas a experitncia social se altera e é no adven- to destes nicleos que surge a nogio de imagem como simulacro. O templo & consagrado 20s deuses para ser sua residéncia e, nesse sentido, um caréter de publicidade se inscreve no fazer representacional. A estétua que surge & “repre- sentagio” em um sentido novo, Livre do ritual € colocado sob o olhar impessoal da cidade, 0 simbolo divino transformou-se em “imagem” do deus. A nogio de mimesis e simulacto ganha aqui genuino poder. ‘A primeita légica operante é a légica das imagens rituais, ha objetos de valor simbéli- co que néo necessariamente figuram, mas que sio sagrados porque investidos de valor sagra- do, so idolos e talismis que contém a divin- dade, © idolo porta o divino de modo que sua relagio € metonimica, o objeto contém 0 que cademos de campo, $40 Paulo, n, 20, p. 167-180, 2011 quer repre representa bilidade ~ rer relagbe e pleno, é simulacro, Estamc darepreser do invisive sivel. Ao fi uma das fo servasio de ¢ vindas bi so eratada de uma épe representag Portant: presentagéo produzir a representac sis, a image de outto, t 50 genuino’ que se prod tem-se uma Vernane, as demos obje experiéncia Diante (© sob our (1999), out ver”, Interes de viagem 4 detida sobr presenta u so como u Observa gas 0 aucor sobre a cons sida como ¢ cademos de ame io a0 p fiver “repre: )rcual lide, 0 ganha a das mbsli- as que sagra- divin- ue sua fo que 0.2011 quer representar, No entanto, as cidades surgem como 0 espaco que tem lugar novas formas de representacio, so 0 local dos templos piblicos as novas moradas dos deuses, espago para visi- bilidade ~ portanto imagem e templo precisam ter relages proximas. © compo grego, perfeito pleno, ¢ aquele que poders representar, como simulaero, a imagem dos deuses. Estamos diante de duas formas, ou funcées, da representagio, a primeira como representagio do invisivel ¢ a segunda como simulacro do vi- sivel. Ao final do artigo, Vernant deixa claro que no se trata de uma logica evolucionista em que ‘uma das formas sucede a outra, mas sim da ob- servagio de que ambas convivem, possuem idas vindas historicas, variando a énfase com que slo tratadas. Dependendo da experiéncia social de uma época ha prefertncia por um modo de representagio em detrimento de outro. Portanto, penso, sio duas modalidades de re- presentagio que operam ainda hoje no modo de produzir arte. De um lado, tem-se o dito “teatro representacional” no qual o simulacto, 2 miéme- sis, a imagem reprodurida, marca as priticas e, de outro, tem-se a performance, como 0 “espa- go genuino” para a “experigncia verdadeira’, em que se produz uma representacao do invisfvel ¢ tem-se uma dimensio ritual. A reprerentago, em Vernant, assume dimensio histérica, compreen- demos objetos e relagées miméticas a partir da experiéncia social grega. Diante disso, pode-se torcer 0 argumen- to sob outra ética. Segundo Frangois Hartog (1999), outro helenista, “descrever é vere fazer ver", Interessado em mostrar como as narrativas de viagem gregas permitiam uma consideragio detida sobre a retérica da alteridade, Hartog apresenta um argumento que valoriza a descri- fo como um modo de “fazer ver" 0 mundo. Observando as descrigées das epopeias gre- 28 0 autor indica o privilégio que o olho tem sobre a constituigio do conhecimento. A visio € tida como 0 sentido que produz.o conhecimen- Amwgto pa Renseseyragio | 173 10 mais preciso, mais distinto, seria, portant, © sentido que Faria melhor ver as diferengas. Ver constitui o saber. Para fazer 0 outro ver aquilo que 0 sueito vin & preciso descrever. Esta seria a heranca que comungamos com os gregos. Hartog (1999, p.263) recorre a descrighes elaboradas por Herdtodo, o dito primeito histo- riador grego' para tratat de tal questao: Nem Herérodo nem Léry sio escrtores natu ralsts, mas é inegivel que, num e noutro, as dlescrigbes tem a ver com a taxionomia. Pode-se centiotrar a primeira conclusio disso: a descr vere faner ver, mas, desde o momento ém que sc articular espago e saber, em que ela ¢expaciae lizagéo de um saber, em resumo, um quadro ~ a descrigio vem a ser também saber e fazer saber Hartog continua apresentando Her6rodo como aquele no qual no existe nenhuma dis- tancia entre dizer e ver, ver e dizer, visivel e di- zivel comunicam-se plenamente ou, sobretudo, io séo constituidos como esferas separadas. Desse modo, 0 que se diz daquilo que se viu pa- rece representacio direta, real objetiva. Interes- sante pensar que 0 dito “primeiro historiador” ocidental pauta suas narrativas em descrigoes cujo fundamento é 0 “eu vi". Embora ao longo de quase vinte séculos diversas criticas tenham sido elaboradas contra Herdtodo ¢ seu modo de descrigio ~ chamam-no mentiroso ¢ fiecional -, no século XVI hé a retomada de sua producio, deixando de ser encarada como mentira. Impor- ta pensar que as formas de narrativa, pautadas pela descrigo, nao deisam de ser 0 modo genut- ino de producio da histéria ¢, portanto, modos de representagio de seu contexto, ou maneira de representacio do outro O que éa antropologja senso uma descrigéo, ‘ow uma representagio sobre 0 outro?!” Repre- sentar, dese modo, assume duas caracteristicas: primeito, a epresentagio como modo de obje- cademos de campo, So Paulo, n. 20, p. 167-180, 2011 174 Bexsaroo Fossrca Macrtabo tiffcagao da figura de um deus, tal como alerta- va Vernant ~ desse estilo deriva a representacio mimética que pauta o teatro dramitico realis- ta pésrenascimento; segundo, representacéo como modo de descrigio do mundo, maneira elaborada de organizar aquilo que se vé ¢ artegi mentar em uma histéra, tal como aponta Har- tog. Nés, os dios euronamericanas, estariamos imbuidos de ambos os modelos de representagdo ‘em nossas priticas, cabe agora, a Roy Wagner, a analise sobre esse modo particular de invengio. Invengio, convengao ¢ representagio Roy Wagner € 0 autor que torce os signifi- cados € 0s modelos de abordagem da antropo- logia de modo especifico, trazendo & baila da discussio uma composigao complexa e peculiar de encarar as diferentes culturas, Seu argumento est centrado na discussio entre o reino daquilo que setia considerado inato, ou “dado”, €0 reino daquilo que os seres humanos consideram poder assumir controle ou responsabilidade. Esses dois reinos, afirma Wagner, néo sio necessariamen- te os mesmos de uma cultura para outra ¢ seu inceresse reside justamente em apresentar a con- figuragio desses reinos em diferentes culturas. Importa refletir as manciras como so represen- tados eas maneiras pelas quais sio transcendidos ou subvertides ~ é isto que o autor denomina ‘como “invengio da cultura’. Segundo tal perspectiva, os fendmenos so- ciais ou culturais podem ser vistos como uma série de interacées dialéticas entre a “convengio” ©. “invengio” ~ cuja relagao se dé em séries de reversoes entre figura/fundo, isto é, a convengio € 2 invengio alteram-se no préprio ato de ob- servagio do sujeito que observa ~ € necessivia a “restigio da visio, concentrando a percepga0 conscience e a intengio do ator em um dos mo- dos e em seu efeito.” (Wagner, Op. cit, p.86). © que ha de convencao s6 pode ser visto em contraste com aquilo que é invengi 40 s6 pode ser vislumbrada em contraste com aquilo que convengio. Sob a égide desse projeto da “invengio da cultura", Wagner traca uma discussio acerca dos modos de representacio e simbolizagio de sua sociedade © suscita questées interessantes para pensar 0 assunto, A tese central do argumento encontra-se no capitulo trés do livro A invengéo da Cultura (2010), intitulado “O poder da in- vengio”, Nele a nogio de contexto ¢ dos me- canismos de producio simbilica da convencio € da invengio sio detalhadamente trabalhados. ‘Wagner aposta no carder simbélico de pro- dugio de significados em todas as culturas, no entanto, esclarece que “nao aspiro (a nao ser conceitualmente talvez) a uma ‘linguagem’ que falaria sobre simbolos (..)” (Wagner, Op. cit, p.23). Descarta, nesse sentido, a possibilidade de tuma ‘ciéncia dos simbolos” justamente porque entende que simbolos e pessoas existem em uma relagio de mediagio miicua, uma compondo a utra, produto e produtoras simultincas', Em seus termos, 0 que se tem & um conjunto de or- denamentos e articulagies que a ago representa para nds em termos absolutos: inato ¢ artificial, convencional € no convencionalizado, Isto & simbolos que variam entre invengio e conven- cao. Portanto, descarta a existéncia de algum “mecanismo” fixo no interior da mente humana ow algum tipo de “estrutura” superorginica im- posta 20 homem (afasta-se simultaneamente de Lévi-Scrauss e Durkheim) ‘A fim de compreender a dimenséo que Wag- ner postula para a simbolizacio ~ e a partir dela poder analisar como ele colabora para pensar a nogao de representagio— € preciso fazer uma bre- ve reconstrugio da nogéo de contexto em sua obra Um contexto, segundo o autor, é uma parte da experiéncia, como também algo que nossa propria experiéncia constrdi, isto é, trata-se de ‘um ambiente no intetior do qual elementos sim- cademos de campo, Sao Paulo, n. 20, p. 167-180, 2011 beilice dipd dese tais eh doses Ne tithads signifi: nicaga relacio caga0« En 0s perc cias en so. inc De de ums nificati pagio c context licos 0 deixa d Porcane “realida com es bélicos modo a dentro de noss Enu operagé articula chama De acos mais é cadero Kx no aio ser mci que De. cit, Kade de jporqoe em uma ado + Em p de or- penta rrificial, . Isto é, pa parte case de cos sim- 50, 2011 - bélicos se relacionam entre sie cuja formagio se i pelo préprio ato de relacions-los. Compreen de-se que os contextos so ambientes nos quais tais elementos simbélicos podem estar envolvi- dos ¢ relacionados. [esses termos, hd certas associagées compar- tilhadas que servem para relacionar as quatidades significativas da expressio (no sentido de comu- nicagio) com as ovientagées dos atores que se co- municam. Trata-se de um arcabougo simbdlico relacional no qual as possibilidades de comuni- cago entre os humanos se tornam possiveis. Entretanto, esses mesmos contextos podem ser mais ou menos convencionais ~ os contextos mais convencionais parecem tao familiares que 6s percebemos como todos, coisas ou experién- cias em si mesmos ~ entreranto, tais contextos nunca sio absolutamente convencionalizados, io incompletamente compartihados © estio «em constante processo de mudanca. De acordo com Wagner, 0s vitios contextos de uma culeura obtém suas caracteristicas sig- nifcativas uns dos outros, por meio da par pagio de elementos simbélicos em mais de um contexto. Bles so inventados uns a partir dos outros e a ideia de que certos elementos simbé- licos ou mesmo contextos inteiros so “inatos” cou “essenciais” é uma iluséo cultural ~ que néo deixa de ser necesséria e faz. parte do modo de viver em uma cultura e de inventé-la de dentro. Poreanto, 2 nossa nogio de “natureza inata" ou “realidade apreensivel” esta pautada de acordo com essa nossa invengio. Os elementos sim- bolicos de nossa cultura arregimentaram-se de modo a constituir esta ilusio peculiar — presente dentio desse ambiente simbélico nosso, dentro de nosso context. Enurementes, 0 autor apresenta uma outra operasio fundamental para a compreensio da articulacio dos contextos, trata-se daquilo que chama como “mascaramento convencional”. De acordo com Wagner, o mascaramento nada mais € do que 0 condicionamento de nossa cademos de campo, S80 Paulo, n. 20, p. 167-180, Assmgio oa Rapnssesagto | 175 percepcio consciente pela propriedade de au- toabstragio dos simbolos convencionais, Nossa cultura, nesse sentido, mascara a invengio de toma natureza inata, de uma realidade exterior. Tal mascaramento convencional ¢ sempre ¢s- tendido e recriado como parte da operagio da propria invengio, esté implicito, nos termos de ‘Wagner, nos préprios contextos convencionais, nna medida em que eles so inventados ou contra inventados. Retomnando ao argumento central, invengio € convengio sao de importincia crucial para a apreensio da agio e do mundo da agéo. Sem invenséo, © mundo da convengie, com sua edo importance distingio interpretativa en. ‘reo ‘inate’ ¢ o ‘artificial’, no poder ser levado adiante, Mas sem as distingées convencionals, que orienta o ator em seu mundo, que Ihe di- ‘em quem ele & 0 que pode faer e desse modo cconferem a seus atos tum mascaramento conven- ional e uma motivagio convencional, a invengio seria impossivel (Wagner, Op. cit, p95). Por um lado, a convensio integra um ato na coletividade € serve a0 propésito de tracar distingées coletivas entre 0 inato € 0 reino da acéo humana, por outro lado, a invengio tem 0 feito de continuamente diferenciar ator e even- tos daquilo que é convencional, especificando delineando individualidades. Uma simbolizagio convencional objetifica seu contexto dispar 20 conferit-Ihe ordem e inte- gragio racional; uma simbolizagio diferenciante specifica e concretiza 0 mundo convencional a0 ceacar distingbes radicals e linea suas individu- alidades (Wegner, Op. cit, p80) A dialésica cultural, por tltimo, indui am- bas as operagéecs, €0 universo em que distingbes sao integradas (invengées tornam-se conven- ‘Gbes) ¢ integragbes sio distinguidas (convengbes , 2011 176 | BrmanDo Foxsica Macnano tornam-se invengbes), reine e distingue pessoas, combina contextos inatos ¢ artificiais de manei- ras originais e altamente especificas”. Nesses termos, fica claro por que Wagner determina tum subtitulo sob o nome de “A Necessidade da Invengao”, € evidente que sua aposta se dé no cariter generalizado desse procedimento de in- vengio © convengio entre todas as culeuras hue ‘manas existentes. No entanto, nés Ocidentais possuimos cerca peculiaridade. Segundo Wagner, como as énfases entre con- vengio ¢ invengio se alteram e apresentam um mundo no qual hi variacio entre aquilo que € inato ¢ o que ¢ artificial, nao ha, em tlkima instincia, uma “realidade” exterior a ser caprada e representada. A propria nogio de “representa 40” apareceria reformulada haja vista que todas as formas de capitulagio humana derivariam desse procedimento de ordenagées carticulagbes io simbdlica, a propria nogio daquilo que é inato € derivagio desses procedimentos. O inato € constituido © o artificial também, o que varia seriam as escolhas daquilo que é convengéo e 0 que é invencio em cada constituigio cultural. dea © que hé é um certo “mascaramento con- vencional”, nos termos de Wagner, sobre aquilo ‘que é produrido como convengio. Nossa articu- lagio consciente acaba por mascarar a invengéo de uma nacureza inata e motivadora, uma reali dade exterior e maior. A nogio de represensagio estaria,e aqui a afirmago é minha, impregnada esse mascaramento, seria ela propria uima das suas formas de opera. Dizer que representa- ‘mos a natureza ou a realidade é uma das formas de teiterar nossa autoimagem de que néo produ- Zimos a nacureza como inaca, mas que cla existe ‘perse para além de nossos dominios, Nossa pré- pria nogio de representagio reitera e supde 0 ina- to a ser representado, de forma que a operagio dif andida de representacio é mecanismo opera- dor do priprio mascaramento convencional. Ao contrastar esse nosso modo de ordenagio com outros povos tribais — tal como o faz Wagner — pode-se gen cedimento de atuagio de modo a coloci-to sob outra perspectiva, apresentando-o como uma das possibilidades de arranjo entre a convengio ea invencio. E aqui aprofandamos os argumentos lanca- dos anteriormente. Também faz parte de nossa invengio cultural convencionalizar e coletiviza Entendendo a convengio como elemento cons- 10 € um dado ~ todos 0s individuos sio entendidos como seres umente apreender nosso pro- truido, para nds a diferenci diferentes, 0 que precisa sce construido 6 0 cole- tivo, a convengio ~ ao passo que entre os Dari- bi (este é o exemplo de Wagner) ha a cendéncia pela diferenciagio, ela precisa ser constituida 2 todo momento, a0 passo que 2 convengio é tida como algo inato. Nbs, 0s euro-americans, estamos a todo instante querendo objetiicar, construir sobre o que hi de inato, as diferr presentes devem sor coletivizadas, “a realidade” precisaria se atregimentar, queremos criar enti- dades homogéneas. Uma representagio reat calcada na “realidade” seria uma forma de pro duzir uma entidade homoggnea. Entretanto, e agora comeso a misturar tudo, vemos que a experiéncia social aparentemente se alterou e hoje se indica, no fuzer teatral, néo ‘mais a busca por uma objetifcacao, ou coletivi zagio da realidade em uma obra tinica e absolu- ta, Interessa, pelo contrétio, uma obra singular, baseada em diferencas, em incongruéncias, em fluxos. Nio estou dizendo que deixamos de co- letivizar, mas chamo a atengio para um aspecto de nossa cosmologia no qual a diferenciagio co- mega a tomar novas proporges. Escamos diante de duas camadas de abserva- fo. No primeito plano nés, do dito Ocidente modemo, continuamos a pensar a convencio como algo construdo, é nossa intengio coletivi- zat e ctiarregras, 0 individuo ainda é tido como inato, possui a sua subjetividade dada, somos diferentes naturalmente, No segundo plano, 0 teatro contemporineo, com sua busca pela per- cadernos de campo, So Paulo, n, 20, p. 167-180, 2011 form aind, se bi ado exp toon quel amo as dif dus que ep pres alge Co; p.128) queas ada e deixou ha, cor que pe tum suy pela di duo qu cadern: Boss0 pro- beci-lo sob emo uma convencio mos lanca. de nossa coletivizar. e210 cons- > dado ~ como seres bo é0 cole. r= 05 Dari- endéncia sevencio & pmericanos, cdjetifica, earar tudo, acemente eatral, no m: coletivi- ac absoli- = singular, ros de co- cn aspecto aso co- observa ) Ocidente convensio bo coletivi- tido como fa, somos » plano, 0 = pela per 180, 2011 formance, reitera o primeiro plano ~ 0 individuo ainda é 0 fruto natural da diferenga ~ mas no se busca mais uma representagio que coletivize tudo, © que interessa sio os dios “hibridos”, a “experigncia em fluxo”. Trata-se de um momen- to em que a experiéncia social deixa vistvel algo que Roy Wagner anunciava: quanto mais apon- tamos categorizagbes, objetificagdes, mais vemos as diferencas, mais reinventamos. Ultimas reflexes E do estatuto da representagio nessa situagdo de turbuléncia expressva, Pois parece claro que um. incvitavel especular sobre a possivel diluigio teatro de vivéncias e situagdes piblcas no pre- tende apenas representar alguma coisa que no ‘staal, A impressio que se tem é de uma ten- tativa de escapar do teritrio espectfico da repro- dugio da realidade para tentar a anexagéo dela, ‘ou melhor, ensaar sua presentagda, se possivel sem mediagies. Nesse movimento, 0 que parece evidente 6a dificuldade de dar forma estética a uma realidade traumética, a um estado piblico {que esti além das possbilidades de representago, € por isso, entra em cena como residuo, como presenca performative na teatraidade, indicando algo que nio pode sr totalmente recuperado pela simbolizagéo. Com esse trecho de Silvia Fernandes (2010, p.128) levanto duas quest6es. Primeiro, parece que a suposigso de uma realidade a ser represen tada e convencionalizada, construida em cena, deixou de fazer sentido para certos produtores tecatrais contempariincos. Segundo, ainda assim hd, como suposto, a presenga de uma realidade que pode ser apreendida sem mediagio, como tum suporte que pode ser experimentado, mas nfo mais pela dimensio da objetificacéo, mas pela diferenciagio. © performer é aquele indivi- duo que diferencia — a partir de seu eu inato — A nwvexgio na Rapnesneracio | 177 mas que no convencionalia, deixa a experién- cia como fluxo diante da plateia — nosso proces- 30 de coletivizacio continua sendo construido, ‘mas deixa de ser o objetivo primordial do traba- Iho estético teatral. Trata-se de mudanga peque- na, mas que pode assumir caréter interessante na andlise. O estudo ou representagio de uma outra cultura ro consiste numa mera “descrigao” do objeto, do mesmo modo que a pintura néo meramente “descreve”aquilo que figura. Em ambos os casos bhé uma simbolizagio que esti conectada com intengio inicil do antropélogo ou do artista de representar 0 seu objet. (.) O que o pesquisa- dor de campo inventa, portanco, & sou proprio entendimento: as analogias que ele cra sio ex tenses cas suas proprias nogbes daguelas de sua cultura transformadas por suas experiéncas da situagio de campo, (.) O efeto desainvengio & to profundo quanta inconsclente;crtse 0 ob jexo no ato de tentar representi-lo mais objetva- mente ¢a0 mesmo tempo se erlam (por meio de extensio analégica) a8 ideas ¢ formas por meio das quais ce & inventado. O “controle, sea 0 modelo do arts ou a cultura etudads, forga 0 representador a comesponder as impresses que tem sobre cle, eno enanto essas impresses se ale teram & medida que ele sevé mais ¢ mais absorto em sua rarefa (Wagner, 2010, p 40-41) Como separamos os simbolos das coisas imaginamos um mundo distante, isolado, que podemos apreender pela representagio. Roy ‘Wagner teoe um diagnéstico: vivemos em. uma esquizoftenia continua, separamos em demasia o reino do inato. natureza —do reino do cons- ‘ruido —a cultura —quanto mais quisermos con- vencionalizar 0 que é diferenciante criamos uma cultura incerpretativa que relativiea tudo, A mim parece que no reino do inato alocamos a dita “realidade” e no reino do construido chamamos de “representagio”. Se as produgies teatraisesti- caderos de campo, S80 Paulo, n. 20, p. 167-180, 2011 178 | Branasno Fovessea Macao verem tratando de algo interesante vemos que essa separasio to explicita deixa de fazer senti- do, Ha uma experiencia social distinta se con- figurando, ao menos essa € minha aposca, uma expetiéncia proxima & representagio dos idolos que Vernant chamava atengéo, uma sepresenta- fo na qual a “exper € necessiria (0s hibridas estéo pulando, como diria Latour, 2009), Pode ser apenas impressio equivocada, mas esté a leicura que proponho. Se Roy Wagner esti preocupado em tracar uma observagéo que verse sobre as formas de invengio da sociedade Ocidental (ou euro-ame- ricand), 0s bistoriadores como Verant e Hartog pretencem cragar uma histéra de longa duragso sobre os modos de representagio que atravessa- ram.as diferentes experiéncias sociais do que pode se entender como Ocidente ¢, por skimo, auto- es como Martin Puchnes, Bernard Dort, Joset te Feral e Silvia Fernandes, na Area teatral, estio interessados em ver como a representagio deixa cde fazer sentido em certas direas da estética¢ valo- rizam o fazer performiético ou teatalizado de arte, Diante de tudo 0 que foi apresentado, reitero que as formas de representagio euro-americanas tiveram certa organizagSo registrada na Grécia antiga © comesaram a set pautadas pela relacio centre figura esimulacro. Ao longo da histéria do teatro podemos vishumbrar esse recurso operan~ te, a “representagio da realidade” como modelo de produgio artistica ede “uadugio” do mundo, Entreranto, outras modas de conceber © teatro € a representagio vém sendo arregimentados, pautados na experitneia € no fluxo individual, trata-se de um certo retorno a0 modo ritualistico — esbogado por Vernant ~ presente entre 0s gre g0s, antes do surgimento das cidades, Diante disso, moto que um dos nossos mo: dos de mascaramento convencionalizado sobre rosa invengio do mundo estava justamente paurado pela propria nogio de representagio (dizer que se representa algo é supor que algo inato a ser representado — pressuposto de um cia” faz-se mais presente mundo dado). Contudo, perante as formas de producio de teatro, aposto em uma experién- cia social que indica a presenca de um modo de encarar a arte, néo mais pelo mascaramento ou pela convengio, mas sim pela propria diferet

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