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COLECAO O HOMEM E A HISTO no Me no Me Braudel, F, - O Expago ¢ a Histéi Braudel, F, — Os Homens ¢ a Her: Duby, G. — A Europa na Idade Média Wolff, P. Outono da Idade Média ou Primavera dos Tempos Medernos? A Historia Vigiada onomia ¢ Se ociedade Cavaleiresca Duby, G Finley, \ Braudel, F dtica das Civilizagdes Duby, G. 8 rdo ea Arte Cisterciense Le Goff, J. — A Historia Nova L Proximos langamentos Duby, G. — Senhores ¢ Camponeses Dalarun, J. — Amor e Celibato na Igreja Medieval ‘iedade na Grécia Anti et A Historia Nova Jacques Le Goff TRADUGAO EDUARDO BRANDAO Martins Fontes Titulo original: LA NOUVELLE HISTOIRE Copyright © RETZ CEPL, Paris, 1978 Copyright © Livraria Martins Fontes Editora para a presente traduedo 1 edi¢do brasileira: maio de 1990 Traducgdo: Eduardo Brandao Preparacéo do original: Vanda Frias Pinto Revisto tipogrdfica: Silvana Cobucci Leite José A. Cardoso Producito grdfica: Geraldo Alves Composi¢éo: Ademilde L. da Silva Oswaldo Voivodic Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes Realizacdo: Claudia Scatamacchia Arte-final: Moacit K. Matsusaki Dedor do Catalogacdo na Publicacée (CIP) Internacional (Chmara Brasllalta go Livro, SP, Brasil) A Wistérta nova / sob a dizeeae do J i covarde Grandi] cco0-907.2 0-090 “2018 Indices para catdogo sstemalica: 4. istéria + tetedologia 901.8 Todos os direitos para o Brasil reservados @ LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramatho, 330/340 — Tel.: 239-3677 01325 — Sio Paulo — SP — Brasil Indice Prefécio a nova edigao .... Uma ciéncia em marcha, uma ciéncia na infancia — apresentacao da edicao de 1978 ... JACQUES LE GOFF A HISTORIA NOVA O lugar original da historia .... Nascimento da historia nova: a Os pais da historia nova Uma histdria francesa? . A histéria nova hoje ... As tarefas da historia nove _ MICHEL VOVELLE . A HISTORIA E A LONGA DURACAO A vitéria do tempo longo: modificacéo do campo histérico A explicacao técnica: uma nova eouesneas das fontes ...... O tempo da longa duracao .. Uma nova dialética do tempo curto e do tempo ‘lo No fundo do problema: a concordancia dos tempos 68 76 80 85 91 KRZYSZTOF POMIAN A HISTORIA DAS ESTRUTURAS Um exemplo: as estruturas do Lacio medieval ........... Conjuntura e estrutura As caracteristicas da histéria estrutural ANDRE BURGUIERE A ANTROPOLOGIA HISTORICA Historia de um conceito . O procedimento da antropologia histérica . Perspectiva da antropologia histérica ..... PHILIPPE ARIES A HISTORIA DAS MENTALIDADES Nascimento ¢ desenvolvimento da historia das mentalidades O conceito de mentalidade O territério do historiador Por que uma historia das mentalidades __ JEAN-MARIE PESEZ HISTORIA DA CULTURA MATERIAL O que é a cultura material? Cultura material e historia Cultura material e historia econdmica e social . Cultura material e historia das técnicas A cultura material nos livros de histéria . Cultura material e arqueologia ........ JEAN LACOUTURE A HISTORIA IMEDIATA Os dominios da historia imediata A volta do acont Alguns modelos . 98 103 114 125 133 148 154 163 169 172 180 181 186 189 192 202 216 231 236 GUY BOIS MARXISMO E HISTORIA NOVA Que marxismo? .. Que historia nova? A influéncia do marxismo sobre a renovi io metoddgica . O marxismo diante da renovacio metodolégica . Em face dos novos campos histéricos Um desafio JEAN-CLAUDE SCHMITT A HISTORIA DOS MARGINAIS Uma nova face da historia As margens do mundo Um mundo paralelo . Valor e papel dos marginais EVELYNE PATLAGEAN A HISTORIA DO IMAGINARIO As primeiras pesquisas ........ A antigiiidade grega ¢ romana O estudo da Idade Média . A exploracdo da modernidade Conclusao: trés questées 242 243 245 252 255 257 261 265 280 284 292 294 297 300 309 Agradecimentos Agradeco a Roger Chartier e Jacques Revel, sem os quais a pri- meira edigdo de A histdria nova nao teria sido possivel, bem como aos autores dos nove ensaios principais por terem concordado com esta nova edicao. Jacques Le Goff JACQUES LE GOFF Prefacio 4 nova edicao A obra que vocé vai ler é uma nova edicdo da parte fundamen- tal da obra coletiva La nouvelle histoire, que publiquei ha dez anos, em 1978, em colaboracéo com Roger Chartier e Jacques Revel'. Essa obra compreendia dez ensaios, nove dos quais sobre do- minios ou conceitos-chave da nova histéria (longa duracao, estru- turas, antropologia historica, mentalidades, cultura material, mar- ginais, imagindrio) ou orientacdes da pesquisa histdrica em relacao as quais a historia nova precisou se definir (histéria imediata, mar- xismo). Escrevi um décimo ensaio apresentando a “‘historia nova’’ e sua historia. Esses dez ensaios formavam a estrutura da obra, que apresentava, além disso, 114 artigos mais curtos, de extensaéo de- sigual. Esta nova edicéio compreende, quanto ao essencial, os dez en- saios em que se exprime fundamentalmente a problematica da obra, excluindo os artigos mais breves. Estes ensaios permitem, a meu ver, que se conheca € se aprecie o que foi, ¢ o que ainda ¢, quanto a suas idéias principais, seus objetivos, seu territ6rio intelectual e cientifi- co, suas realizagdes, a histéria que foi chamada ‘‘nova”’ A bibliografia de cada ensaio foi atualizada. A meu texto so- bre ‘‘A nova histéria’’ acrescentei algumas ‘Notas complementa- res’’, que constituem uma precisdo tedrica e bibliografica concer- nente a alguns dos aspectos mais importantes abordados neste texto. Com a concordancia de André Versaille, diretor das Editions Complexe, a quem agradeco por ter acolhido esta obra em suas co- JACQUES LE GOFF legdes, também reeditamos a ‘‘Apresentacao”’ que eu havia escrito para o volume de 1978. Embora, de fato, também introduza os ar- tigos mais curtos que nao sao reeditados aqui, ela da uma visio do conjunto do empreendimento, visdo necessaria aos leitores desta nova obra para que eles pudessem apreender melhor a natureza desse em- preendimento ¢ situa-lo em sua perspectiva histdrica, dez anos depois. Nao vou fazer, aqui, o balanco detalhado do que se tornou a nova historia nesse perfodo, do que ela ¢ hoje e do que se pade con- ceber para ela amanha. Em primeiro lugar, quero deixar claro que nao sou o Ider de uma escola e que, mais ainda do que em 1978, falo aqui em meu proprio nome e ndo comprometo outro historiador além de mim. E verdade, porém, que meus vinculos com a revista Annales E.S.C. ecom a Ecole des Hauies Etudes en Sciences Sociales, a que devo uma parte importante da minha formacao, fazem de mim uma tes- temunha engajada, embora eu me esforce, tanto hoje como em 1978, antes de mais nada em dar informagées sobre a histéria nova. Se nao apresento esse balanco aqui, nao é porque a situacdo da histéria nova nao tenha evoluido. No decorrer dos dez tltimos anos, a histéria caminhou depressa. Nao sé a histéria que se faz no mundo, que os homens vivem, como também a histéria que os his- toriadores fazem. Por outro lado, fala-se muito hoje em dia de cri- se da historia em geral e de crise da escola dos Annales em particular. No entanto, o exame dessa histéria recente da situacdo atual e das polémicas que procuramos levantar merece um estudo e uma reflexao aprofundadas. Os Annales, por sua vez, iniciaram-nae vao convidar para ela nao s6 seus leitores como também 0 meio cientifi- co dos historiadores em seu conjunto ¢ em toda a sua diversidade. Sera lancado um questionario e, em 1989, ano do sexagésimo ani- versdrio da revista, nela serao publicadas as respostas dos historia. dores. O comité de direedo dos Annales exprimir-se-a sobre 0 pas- sado e 0 presente da ‘‘crise’’ e propora sugestdes para o futuro. Se ha crise no que diz respeito a histdria nova, podemos adian- tarem todo caso que ela decorre, antes de mais nada, de dois fené- menos gerais. O primeiro é seu proprio sucesso. E claro que, em muitos do- minios, a histéria econdmica e social, a historia nao eurocéntrica, a historia das estruturas, a historia da longa duracao, a histéria dos marginais, a historia do corpo e da sexualidade e, sobretudo, tal- vez, a historia das mentalidades se impuseram. Porém, assim como a verdadeira historia de uma invencdo compreende a da sua difu- s&o, a nova histéria continua com a extensao dos desbravamentos, a exploracao em profundidade dos terrenos conquistados, 0 esboco PREFACIO A NOVA EDICAO das comparacées, 0 aprofundamento da diversidade, etc, Passar de uma época de pioneiros a uma época de produtores nada tem de desonroso nem de frustrante. O termo epigonos nao é necessaria- mente pejorativo. Os epigonos fizeram o mundo helenistico tanto quanto Alexandre. E divertido ver que ndo raro os mesmos censo- res repreendem os historiadores dos Annales por nao serem mais do que os epigonos dos grandes ancestrais fundadores e, ao mesmo tem- po, por lhes serem inficis. O segundo fenédmeno que repercute sobre a situagdo da nova historia é uma incontestavel crise das ciéncias sociais e da propria nogao de social. Véem-se com nitidez algumas linhas de orga dessa crise. A primeira é a crise do progresso, percebida desde antes da ultima guerra mundial por espiritos clarividentes, dentre os quais Georges Friedman, que publicou seu livro intitulado precisamente La crise du progrés, em 1936. A segunda é 0 que se chamou, com excessiva precipitagao, de **a morte das ideologias'’. A crise do marxismo nao afetou profun- damente a nova historia na medida em que a ortodoxia marxista per- maneceu estranha a nova historia, embora alguns dos principais his- toriadores da escola dos Annales, como Fernand Braudel, tenham visto Marx como um dos principais criadores de modelos para as ciéncias sociais em geral e para a historia em particular. E possivel, contudo, que a concepgao de uma historia total ou global tenha ti- do um aspecto ideoldgico que sofreu o contragolpe da critica das ideologias. Todavia, acho que a historia viva e, em particular, a nova his- toria, na medida em que constitui nao um bloco, mas uma nebulosa cujo cerne histérico é a escola dos Annales, nao cessaram e nao de- vem cessar de ter como horizonte e ambicao uma historia que en- globe 0 conjunto da evolucgao de uma sociedade segundo modelos globalizantes. Creio, alids, que 0 que aconteceu ¢ o que acontece nos melhores casos € que os historiadores dessa tendéncia conserva- ram 0 mesmo objetivo, mas procuram atingi-lo por outros meios, por exemplo a partir de estudos de casos colocados como modelos. Assiste-se, por exemplo, a uma regeneracado, nessa perspectiva, de estudos de histdria local ou regional: Monvaillou, un village occitan (Emmanuel Le Roy Ladurie), Le Latium médiéval (Pierre Toubert), Le Maconnais (Georges Duby), Caen (Jean-Claude Perrot), Les tos- cans du Quatrocento (David Herlihy e Christiane Klapisch), La Nor- mandie orientale de la fin du Moyen Age (Guy Bois), etc.; ou a um desenvolvimento das histérias das representagdes (Le chasseur noir, de Pierre Vidal-Naquet; Le Purgatoire, de Jacques Le Goff; La peur, JACQUES LE GOFF de Jean Delumeau; Le miasme et la jonquille, de Alain Corbin; L’écriture (La Scrittura), de Armando Petrucci, etc.) Também neste ponto os criticos costumam reprochar aos his- toriadores da nova historia uma coisa e seu oposto, mais geralmen- te o fato de serem incapazes de sair do marasmo da tradi¢ao dos Annales ¢ de renega-la, trocando a histéria total por uma histéria “em migalhas’’ Essas criticas sao hipertrofiadas pela amplificacdo da midia. En- quanto com freqiiéncia a nova historia é acusada de se entregar 4 moda, ela se vé mais de uma vez tragada, contra a sua vontade, pe- la agitagdo barulhenta mas superficial do microcosmo da midia. A esse respeito, corre um mito: a nova historia ter-se-ia apoderado da midia e teria até obtido um quase monopdlio da vulgarizacao histd. rica no livro, nas revistas, no radio e na televiséo. Essa lenda nao resistiria a um estudo sério do mercado da historia. As posigdes ma- joritarias no dominio da vulgarizacao histérica continuam sendo mantidas pela historia tradicional e até mesmo arcaica. A nova his- toria, que revelou por estudos eruditos e precisos a presenca do po- der onde a histdria tradicional sequer pensava em procuré-lo (no sim- bélico e no imagindrio, por exemplo), vé-se quase condenada, eu diria, por sua problematica a ser transparente nesse dominio. Claro, a maioria dos historiadores dessa tendéncia, que sao mi- litantes de certa idéia da historia, procuram dar a conhecer sua vi- sao da historia e persuadir de seu interesse um meio mais vasto do que o dos especialistas, j4 que, precisamente, eles preconizam uma histria total desvendavel no conjunto da vida intelectual e social. Contudo, eles recusam em todos os planos 0 totalitarismo e 0 impe- rialismo. Formando um meio amplo e aberto, nao tendo sequer for- mado, no passado, uma verdadeira ‘‘escola’’ (é um espirito, uma orientagao, uma tendéncia), eles teriam grande dificuldade para se transformarem em lobby. Para s6 falar de mim — ja que estas linhas s6 comprometem a mim —, esforco-me em divulgar os trabalhos e as concepedes da historia nova? ¢ sou grato aos comunicadores de hoje por divulga- los, criticando-os, é claro, eventualmente. Entretanto, peco-lhes para fazé-lo com conhecimento de causa, isto é, depois de terem lido es- ses trabalhos, e nao em fungao da moda, em todo caso nao do pari- sianismo (alias, o estudo das modas intelectuais, o que é mais sério, é um belo tema de historia), mas da evolucdo da historiografia. Uma primeira observacao. Como ja disse, a historia das socie- dades evolui — ¢ isso é uma evidéncia. A maneira de pensar a hist6- ria também. Por que a nova histéria, por sua vez, nao deveria mu- dar? O imobilismo, o oposto da historia, nao é uma fidelidade, mas PREFACIO A NOVA EDICAO sim uma impoténcia. Havendo boa fé, sera facil reconhecer as fide- lidades profundas sob as mudangas de temas ou de enfoques. Que me seja permitido, também, desejar que os orquestrado- res da crise da historia, se forem do oficio, também sejam pratican- tes; se forem comunicadores, sejam conscienciosamente informados. Como dar importancia a esses médicos improvisados que acorrem a cabeceira da histdria nova para declara-la doente, a esses prodig: lizadores de ligSes que nao produziram um sé trabalho histérico, assentando a sua pedra no edificio que os historiadores de oficio, antigos ou novos, constroem pelo exercicio de métodos que nao se improvisam? Porque, se a historia ¢ em primeiro lugar 0 exercicio permanente de certo olhar, de certo espirito critico, de certo “‘fa- , também é em parte cumulativa. Alguns sem duvida me repreenderdo, mas, recusando uma fi- losofia da historia, tampouco sou um grande apreciador do tedri- co. Acho em contrapartida que, sendo um oficio, a histéria deve forjar ferramentas, isto ¢, métodos, ¢ submeté-los a reflexAo ¢ a dis- cussao. Com muita freqiiéncia, os historiadores fazem, inconscien- temente, sem saber, teoria ou ideologia em seu trabalho, e é preciso tomar consciéncia, ou fazer com que se tome consciéncia, desse la- tente tedrico. Todavia, parece-me lamentavel que alguns se erijam de inicio em juizes do método e, sem sequer terem uma formagao em epistemologia — que também se aprende —, fagam-se especia- listas de metodologia histérica sem se terem iniciado no exercicio erudito do oficio de historiador. A primeira edigdo de La nouvelle histoire, em 1978, suscitou muito interesse, por parte tanto dos his- toriadores quanto dos professores de historia, afastados da pesqui- sa pelas obrigacées profissionais, mas em geral dotados de um bom espirito critico concernente a matéria de seu ensino, bem como por parte de um vasto publico interessado pela histdria e suas renova- cdes. Também suscitou criticas. Algumas me pareceram justas — como 0 espaco demasiado modesto reservado a historia politica ou & histéria contemporanea, ainda que estas coloquem problemas di- ficeis —, outras pareceram-me francamente parciais. Essa hostili- dade em parte me alegrou, embora eu deplore que alguns tenham posto ma fé e quase calinia em certas criticas, porque ela provou que a nova historia é viva, que continua a incomodar os funciond- rios da histéria e os mercadores de uma sopa historica que, com um pouco mais de informagao ¢ de formacio por parte de seus consu- midores, seria reconhecida como insossa, azedada e pouco nutriti- va. Ao contrario do que alguns, de boa ou ma fé, pensam e as vezes dizem, ¢ até escrevem, a nova historia nao venceu definitivamente. De certa forma é melhor assim, se for para manter aberto um deba- JACQUES LE GOFF te de idéias; mas também é lamentavel, quando se vé que certas orien- tacdes da concep¢ao da histéria, a meu ver essenciais, nao penetra- ram de fato o territério da historia: a histéria-problema, a histéria aberta para as outras ciéncias sociais, a historia que nao se encerra na narrativa. O que esta em jogo me parece demasiado importante para que eu me resigne a essa situagao. Sim, Lucien Febvre conti- nua tendo razao, os ‘‘combates pela historia” prosseguem. Enfim, certas criticas tocaram-me. Algumas pessoas, de boa fé, encontra- ram em La nouvelle histoire um tom triunfalista, uma auto- suficiéncia e uma intolerancia subjacentes, excessiva agressividade. Quanto a este ultimo ponto, n&o acho que tenhamos ultrapassado os limites da necessdria combatividade que acabo de lembrar. Se ti- vermos, lamento. Nao era minha intencao, nem a de meus amigos. Para muitos, a simples expressdo ‘‘nova histéria’’ seria desdenho- sa, pois lancaria a “‘velha’’ historia nas trevas exteriores. E indiscu- tivel que ha uma renovacdo da histéria no século XX, cujos atores nao se reduzem nem a uma revista, nem a um grupusculo, nem a historiadores de uma s6 nacao, e muito devem a seus ancestrais, al- guns ilustres e inesperados, a quem fiz questo de homenagear, ou- tros mais obscuros, eruditos ¢ historiadores de diversas tendéncias, sem espirito particularmente inovador, que, por sua parte, construi- ram aqueles métodos, aquelas técnicas, aquelas bases da histéria, aquelas publicacées de textos, aqueles trabalhos, sem os quais nao teria sido possivel haver nova histéria, que ensinaram aos partidd- rios da nova histéria o solfejo que Ihes permitiu escrever sua musi- ca. Se é preciso chamar de novo 0 que é novo, 0 que posso fazer? De minha parte, nao tenho o menor desprezo pelo que nao o seria, mas que representaria, por outros caminhos, de outras formas, uma boa contribuicéo para a historia. Conheco inclusive grandes histo- riadores que nado sao absolutamente novos. Muitas vezes, ouvi Fer- nand Braudel, que no entanto insistia na existéncia de uma historia nova, dizer que, no fundo, s6 havia uma historia valida, a ‘‘correta’’. Ent&o, como travar ainda esse combate que acredito ser neces- sdrio e correto, se ele respeita as regras intelectuais e morais daque- le combate que também deve ser justo, 0 combate de idéias? Neste grande territério da historia que a nova histéria muito contribuiu para ampliar, sem perder de vista fronteiras que nao de- vem ser barreiras, mas interfaces com as outras ciéncias sociais, fron- teiras permedaveis, submetidas a fluxos ¢ refluxos, onde se elabora a boa terra de uma interdisciplinaridade verdadeira, tomarei como exemplo aqueles objetos da histéria que dao lugar, hoje, As chama- das ‘‘yoltas’’: a volta do acontecimento, a mais espetacular; a volta da historia-narrativa, a mais polémica; a volta da biografia, apa- PREFACIO A NOVA EDICAO rentemente a mais consensual; a volta da histdria politica, a mais consideravel. Essas voltas séo equivocos. Se cada uma delas pode ser aceita pela nova historia e se os partidarios da nova histéria nao raro de- las deram 0 exemplo, é porque cada um desses géneros histéricos (ou quase) volta com uma problematica profundamente renovada. Mas também é a volta, quase a desforra de historiadores tradicio- nais ou neotradicionais que parecem aqueles emigrados de apds a Revolucdo Francesa, que nado haviam ‘‘nada aprendido e nada es- quecido’’. Sdo frentes da histéria em que € preciso ser vigitantes e em que é preciso rechagar 0 ataque de historiadores, velhos ou jo- vens, simplesmente ‘‘reacionarios’’. A volta do acontecimento é mais surpreendente por se colocar num terreno em que Lucien Febvre e Marc Bloch haviam sido parti- cularmente militantes. A luta contra a histéria fatual*, superficial em todos 08 sentidos da palavra, que escapa a longa duragao, so- bretudo politica e desvinculada das estruturas, havia sido o alvo nu- mero um dos primeiros Annales. Sua volta esta ligada a transfor- maces profundas que restauram seu direito de cidadania no terr tdrio da historia. A primeira, bem analisada por Pierre Nora, é a criag&o do acontecimento pela midia, que lhe proporciona um esta- tuto privilegiado na historia contemporanea. A segunda ¢ a possib: lidade, doravante, de fazer do acontecimento a ponta do iceberg e estudd-lo como cristalizador e revelador das estruturas. A obra-prima dessa nova histéria fatual parece-me ser Le dimanche de Bouvines, de Georges Duby. Jacques Revel acrescenta que ‘‘o acontecimento agora permite ler o imaginario de uma sociedade para a qual ele de- sempenha, ao mesmo tempo, 0 papel de meméria e 0 de mito””. A volta da historia-narrativa, que encontrou um campeao de alta qua- lidade em Laurence Stone, provocou sem dtvida a polémica mais viva. Parece que houve um mal-entendido entre Stone e seus leito- res. Em todo caso, a histdria-narrativa é, a meu ver, um cadaver que nao se deve ressuscitar, porque seria preciso mata-lo outra vez. Essa historia-narrativa dissimula, inclusive de si mesma, op¢Ges ideo- légicas e procedimentos metodoldgicos que, pelo contrario, devem ser claramente enunciados. E preciso reduzir a histéria-narrativa a apenas um meio entre outros da pedagogia no ensino escolar e da divulgacao. A esse respeito, gostaria de lembrar o grave erro de com- preensao que levou certos funcionarios animados pelas melhores in- tencdes do mundo, principalmente na Franga e na Bélgica, na déca- * Assim traduzimos histoire événementielle, sendo événementielle o adjetivo correspondente a événement (acontecimento), sem equivalente em portugués. (N.T.) 8 JACQUES LE GOFF da de 70 ¢ no inicio da de 80, a quererem introduzir nos programas escolares o que eles acreditavam ser a nova historia. Essa historia é, com freqiiéncia, o produto de uma pesquisa de ponta que nao pode ser transferida ao ensino de imediato ¢ tal como é. Seja como for, se ¢ desejavel que o espirito da nova histdria possa se encontrar no ensino e na divulgagdo, ¢ preciso adapta-lo a seus destinatarios nao-especializados e carentes de conhecimentos. Um mal-entendido particularmente surpreendente produziu-se no dominio da cronolo- gia, onde a introducfo das novas concepgdes do tempo e da dura- cao em historia levou, as vezes, a uma quase liqiiidagado da cronolo- gia, aO passo que esta continua sendo um conjunto de referéncias que sem duivida deve ser enriquecido, flexibilizado, modernizado, mas que permanece fundamental para o proprio historiador, para os jovens e para o grande ptiblico. A volta da biografia parece provocar menos contestagdes. No entanto, o mercado do livro historico esta inundado de biografias, muitas das quais permanecem superficiais, anedéticas, por vezes ana- crénicas. A biografia histdérica nova, sem reduzir as grandes perso- nagens a uma explicacdo socioldgica, esclarece-as pelas estruturas e estuda-as através de suas fungdes e seus papéis. A volta mais importante ¢ a da historia politica. Aqui também, embora a escola dos Annales tenha tido razao em combater uma histéria politica superficial ¢ fatual de viséo curta, uma histéria da politica no sentido politiqueiro do termo, é preciso construir uma hist6ria do politico que seja uma histéria do poder sob todos os seus aspectos, nem todos politicos, uma historia que inclua notadamen- te o simbolico e o imaginario. Marc Bloch de Rois thaumaturges (1924) e Ernst Kantorowic de King’s two bodies (1957) foram os pio- neiros dessa hist6ria politica renovada para a qual propus a deno- minacao de antropologia politica histdrica, que permite vincula-la aos regimes e estruturas politicas similares estudadas pelos socidlo- gos e pelos etndlogos (ver Georges Balandier, Anthropologie polit que, Paris, PUF, 1978 e o artigo ‘‘Anthropologie politique” em La nouvelle histoire, op. cit., pp. 62-64). Que me seja permitido terminar com uma nota otimista — que no exclui a necessidade das autocriticas sem condescendéncia. Es- tamos diante de uma situacao paradoxal, creio eu. Por um lado, fala- se de crise da histéria; crise ha, mas creio que se trata sobretudo de uma crise das ci€ncias sociais, e se a nova histéria nela esta en- volvida é provavelmente porque foi a que mais se comprometeu com essas ciéncias. Isso merece um exame atento, e nao creio que a solu- ¢ao possa se encontrar num fechamento da historia em si mesma. PREFACIO A NOVA EDICAO 9 fi preciso redefinir 0 campo do social ¢ renegociar as rclacdes entre a historia e as ciéncias sociais. Por outro lado, nunca a pesquisa histérica — a primeira vista um pouco anarquica e um pouco dispersa — esteve to viva quanto hoje. Para mim, é 0 que conta. Por outro lado, a demanda intelec- tual e sociai de historia também me parece crescente. Os historiado- res nao podem esquivar-se deia. A nova histéria deve, mais do que nunca, justificar seu nome e, sem estardalhaco, com outros e as ve- zes contra eles, ir em frente. Jacques Le Goff 1, Na colegao “Les Encyclopédies du Savoir Moderne”, éditions Ret. 2. O titulo abreviado das obras citadas neste pardgrafo ndo é 0 verdadeiro titu- Jo que sera encontrado nas bibliografias. 3. Permitam-me dizer que, animando (junto com Pierre Sipriot, Denis Richet, Roger Chartier e Philippe Levillain) ha vinte anos um programa de radio, Les lundis de I’histoire, na France Culture, nao fiz dele uma tribuna da nova historia, ainda que alguns livros que apresentei talvez ndo tivessem muita oportunidade em outro programa sobre a historia Bibliografia TRABALHOS RECENTES SOBRE OS ““ANNALES” E A NOVA HISTORIA Aymard, M., “The ‘Annales’ and french historiography’’, in The Journal of Euro- pean Economic History, 1, 1972, pp. 491-511 Braudel, F., Une legon d’histoire de Fernand Braudel, Chateauvallon, Journées Fer nand Braudel, outubro de 1985, Paris, Arthaud-Flammarion, 1986. Braudel dans tous ses états, La vie quotidienne des sciences sociales sous l’empire de I’hisioire, mimero especial de Espaces Temps, n° 34/35. Burguitre, A., ‘Histoire d’une histoire: naissance des Annales’. Annales E.S.C., 1979. 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Descrevemos seus problemas e suas incertezas ao mesmo tempo que suas conquistas, e indicamos os caminhos a serem seguidos. Esta obra ¢, ao mesmo tempo, in- formativa e engajada. Para compreender a génese do movimento que renova a histé- ria de algumas décadas para ca — e que se acelerou nos vinte ulti- mos anos —, sugiro que 0 leitor leia o artigo ‘‘A historia nova”’, que escrevi para este “‘dicionario’’. Ele compreenderé melhor, as- sim espero, a estrutura e o contetido dessa corrente historica que subyerte nao s6 0 dominio tradicional da historia, mas também o das novas ciéncias humanas (ou sociais) ¢ inclusive, sem duivida, to- 16 JACQUES LE GOFF do o campo do saber, Porque repensar os acontecimentos e as cri- ses em funcéo dos movimentos lentos e profundos da histéria, interessar-se menos pelas individualidades de primeiro plano do que pelos homens e pelos grupos sociais que constituem a grande maio- ria dos atores menos exibidos, porém mais efetivos, da histéria, pre- ferir a historia das realidades concretas — materiais e mentais — da vida cotidiana aos fatos que se apossam das manchetes efémeras dos jornais, nao é apenas obrigar o historiador — e seu leitor — a olhar para o socidélogo, o etndlogo, 0 economista, 0 psicdlogo, etc., é também metamorfosear a memoria coletiva dos homens e obri- gar 0 conjunto das ciéncias e dos saberes a situar-se em outra dura- gao, conforme outra concepc¢do do mundo e de sua evolucao. Entre as conquistas que a histéria nova ainda precisa levar a cabo, ha a da divulgacao histérica. Esse empreendimento esta bem encaminhado. Primeiro porque, sensfveis ao papel da histéria nas preocupacées dos homens de hoje em dia, os historiadores da hist6- ria nova se preocupam com fazé-la cxtravasar do campo dos espe- cialistas. O estrepitoso e surpreendente sucesso de ‘‘Montaillou, al- deia da Occitania”’, de Emmanuel Le Roy Ladurie! é 0 sinal disso. Nada ha de espantoso, porque a histéria nova € tao capaz quanto a antiga de ser comunicada pelos canais pertinentes da narrativa, do estilo, da ressurreicdo do passado. Por acaso a histéria do ho- mem cotidiano também nao ¢ tao significativa e dramatica quanto a dos grandes homens? Por acaso o padre de Montaillou nao é tao interessante quanto Mazarin ou Talleyrand, e por acaso nao se apreende melhor, através dele, a histéria profunda dos homens? A historia das maneiras de se vestir, de comer, por acaso nao é tao sedutora quanto a das batalhas, das conferéncias internacionais ¢ das peripécias parlamentares ou eleitorais — escuma da historia, co- mo dizia Paul Valéry —, que sé merece ser legada A meméria coleti- va na medida em que revela ou afeta as estruturas profundas das sociedades e de sua evolucdo? A histéria nova mostra que esses “grandes acontecimentos” sdo, em geral, apenas a nuvem — mui- tas vezes sangrenta — levantada pelos verdadeiros acontecimentos sobrevindos antes deles, isto é, as mutacées profundas da histéria. N&o é a guerra de 1914-1918 que da a luz o século XX, mas aquela efervescéncia anterior tao mal denominada ‘‘Belle Epoque’*. Os modernos meios de comunicac4o — a midia, como se diz —, radio ou televiséio, até mesmo as histérias em quadrinhos, parecem abrir-se melhor a essa histéria nova (basta pensar na série de tevé ‘‘Mediterraneo’’, realizada com o estimulo de Fernand Braudel) do que a imprensa de grande tiragem. As revistas de divulgagao histé- rica, em que a pseudo-histéria dos “‘enigmas da histéria’”’, as diva- UMA CIENCIA EM MARCHA, UMA CIENCIA NA INFANCIA Le gacdes sobre a espionagem e a contra-espionagem (excelente, tema no dominio da ficc4o) ou os escndalos da vida privada dos ‘gran- des’? convivem com a histéria tradicional das batalhas, da diploma- cia (mas pode haver, comeca a haver uma historia nova do fendme- no militar e do fendmeno diplomatico), nao sao sequer orgaos da hist6ria de ontem ou de anteontem, sao objetos pré-hist6ricos. Pa- rece que essa situacdo esta as vésperas de se modificar A historia nova, que nao é sectdria, mas cujo rétulo nao poderia ser aplicado a qualquer producio histdrica, principalmente auma histéria tradi- cional malremendada sob pinceladas socioldgicas, politicolégicas, econdmicas, psicoldégicas ou outras, deveria vencer ai uma etapa ne- cessdria e benéfica. ; Em. 1974, Pierre Nora e eu publicamos, com 0 titulo tomado de empréstimo a Lucien Febvre ¢ Michel de Certeau, Faire de Vhis- toire (Fazer historia), uma coletanea de ensaios redigidos por diver- sos historiadores, muitos dos quais também sao autores de artigos deste “‘diciondrio”. Faire de histoire’ constituiu um conjunto de definicdes e de tomadas de posicao que divulgaram melhor, parece- me, as realidades ¢ os objetivos da histéria nova. Este “dicionario ‘ cujo carater é bem diferente de Faire de Vhistoire ¢ que é, em pri- meiro lugar, um instrumento de informacao e de trabalho, mantém, contudo, relacdes de complementaridade com os trés volumes pu- blicados em 1974. Ele pretende ser, na mesma linha, uma nova acdo, uma nova etapa para a defesa e a ilustracdo da historia nova, que esta se tornando um dos fenémenos importantes da vida cientifica e intelectual e da psicologia coletiva da segunda metade do século XX. Uma nova meméria coletiva se instala na ciéncia historica € no espirito das pessoas (Histoire des gens [Historia das pessoas] tam- bém foi, hé pouco, uma inovadora série de programas de Pierre Du- mayet, na televisio francesa). As escolhas do diciondrio Os verbetes do dicionario correspondem as nocoes, as ferramen- tas, aos campos e aos métodos por intermédio dos guais principal- mente a historia nova se define. Nele o leitor encontrar tanto de- nominagées tradicionais — mas em que a histéria nova opera a sua acdo de mutacao —, por exemplo: arte, arqueologia, técnicas, cién- cias, historia urbana, historia rural, etc., quanto nogoes que se tor- naram tradicionais mas que sao fundamentais na historia nova, co- mo demografia histérica, histdria social, historia econ6mica e sua nebulosa, conjuntura, estrutura, preco, crescimento, desenvolvimen- 18 JACQUES LE GOFF to, crise, ctc., ou, enfim, conceitos mais diretamente ligados a his- téria nova: computador, aculturacdo, aparelhagem mental [outil- lage mental], corpo, sexo, mito, imagem, etc. Os verbetes biograficos séo pouco numerosos, s6 tendo sido ar- rolados os historiadores ou estudiosos particularmente significati- vos para a historia nova: Herddoto, pai da historia, mas também da etno-histéria; os quatro grandes do século XIX, Tocqueville, Mi- chelet, Marx e Sombart; os pais da histéria nova, os historiadores Mare Bloch, Lucien Febyre, Henri Pirenne e Johan Huizinga; os fildsofos, socidlogos e antropdlogos Henri Berr, Emile Durkheim Max Weber e Marcel Mauss. Entre os desaparecidos de ontem, Jean Meuvret, que tanto fez progredir os métodos da historia econémi- ca, Erwin Panofsky e Pierre Francastel, que fizeram que a historia da arte se decidisse pela histéria nova. Entre os vivos‘, sé arrola- mos tr€s: Fernand Braudel, pai da longa duracdo, Ernest Labrous- se, pioneiro da histéria econémica e social moderna, Georges Du- mézil, que, no campo da historia das religides, proporcionou aos historiadores 0 modelo ideoldgico do trifuncionalismo indo-europeu e abriu 0 caminho para o comparatismo. Poderiamos ter acrescen- tado Claude Lévi-Strauss, cujo estruturalismo mantém com a his- toria telacoes ambiguas, mas que, conquanto tenha inspirado orien- tac6es nitidamente anti-histéricas ou a-histéricas, também legou aos historiadores do mito ¢ dos textos um método de andlise fecundo: Michel Foucault, enfim, cuja importancia para a renovacdo da his. toria ainda nao foi apreciada em seu justo valor, tanto do ponto de vista da metodologia’, quanto de sua propria contribuicéo de historiador®. Os artigos de fundo . Antes de apresentar os artigos de fundo que correspondem as orientagGes essenciais da histéria nova, gostaria de ressaltar um as- pecto — a meu ver, importante — da situacao atual dessa histéria. Os precursores, ¢ na primeira linha os fundadores da revista e do movimento dos Annales — Lucien Febvre ¢ Marc Bloch —, procla- maram a ambigdo de uma histéria ‘‘total” ou “‘global”’. Ea histé- tia nova conserva hoje essa proposta de uma ciéncia histérica que nao mutile a vida das sociedades ¢ que nAo eleve entre os diferentes pontos de vista sobre o devir dos homens as barreiras de subdisci- plinas i historia politica, histéria diplomatica, histéria militar, his- téria econdmica e, inclusive, a despeito de sua extensibilidade, his- toria social ou histéria cultural. Entretanto, essa nogao de historia UMA CIENCIA EM MARCHA, UMA CIENCIA NA INFANCIA 19 “global”? podia ser contaminada por subentendidos tradicionais e paralisadores: os de uma coeréncia e de uma continuidade que nado correspondem As descontinuidades que o historiador encontra em seu oficio e que — para utilizar as felizes expresses de Michel Fou- cault —levavam a “‘esse uso ideoldgico da historia pelo qual se ten- la restituir ao homem tudo o que, hd mais de um século, nao cessou de Ihe escapar (...). Da velha cidadela dessa histéria (...) os histo- riadores desertaram desde ha muito e partiram para trabalhar em outro lugar’’?. Michel Foucault conclui: ‘*O tema e a possibilidade de uma histdria global comegam a dissipar-se € vemos esbogar-se, bastante diferente, o delineamento do que poderia ser chamado de historia geral.’”® Claro, nao acredito que, se houver uma “‘fragmentaco da his- toria’’, como cré Pierre Nora, esta seja reduzida a uma “‘historia em migalhas”’, tal como Georges Friedmann falou de “trabalho em migalhas’’. As historias plurais situam-se dentro de um dominio his- t6rico cujo horizonte continua sendo o da globalidade. Esta nao é mais buscada principalmente na sintese, mas em objetos globalizan- tes, por um lado, e, por outro, capazes de propiciar a realizacdo de uma verdadeira interdisciplinaridade 4 margem. Quando Natan Wachtel propde A visdo dos vencidos?, nao é uma historia global das relagdes entre espanhdis e indios da América do Sul pd colombiana que ele escreve, mas 0 enfoque dessas relagées através de um estudo da mentalidade india, que associa intimamente 0 ponto de vista do historiador com o do antropdlogo. Quando Pierre Tour- bet explica As estruturas do Ldcio medieval", nao é a histéria to- tal do Lacio dos séculos X-XIII que ele faz, mas sim, através do fenémeno “globalizante’’ da constituicao de aldeias senhoriais — 0 incastellamento —, um estudo que combina a ecologia, a demo- grafia, a economia, a sociologia, no 4mbito de um procedimento histérico que transgride as fronteiras das disciplinas. Embora a his- toria global seja a meta, no essencial ela ainda esta por ser feit A realidade pioneira da pesquisa!! histérica hoje é 0 Beauvaisis, Montaillou, a morte, o medo, a alfabetizagao dos franceses, etc objetos de uma histéria-problema que forga a historia a sair de sua velha cidadela, para fazer minha a expressao de Michel Foucault. Os artigos de fundo comecam naturalmente pelos conceitos fun- damentais de ‘longa duracao”’ e de ‘‘estrutura’’, em que Michel Vo- velle e Krzysztof Pomian ressaltam o carater geral dessas nogdes, que valem tanto para a historia econdmica ¢ social como para a his- toria das representacdes e das mentalidades no prolongamento da histéria antifatual dos Annales de 1929, e que permitem situar a his- toria na problematica geral das ciéncias humanas, uma vez que a JACQUES LE GOFt longa duragao da hist6ria ndo é a-crénica, fora do tempo, e que as estruturas identificadas pelos historiadores incluem, por sua natu- reza, a transformacao e a mudanca. Nessa perspectiva do longo prazo, sabe-se que a historia, nes- tes ultimos anos, estreitou vinculos sobretudo com a antropologia € que um novo campo geral — se ndo uma nova ciéncia — se desen- yolve no dmago da histéria nova: a ‘‘antropologia historica”. An- dré Burguiére, ‘‘historiador novo’’ da demografia e da familia, por um lado, etno-historiador de Bretdes de Plozével!?, por outro, apre- senta esse novo dominio, Como que respondendo ao centendrio apelo de Michelet em fa- vor de uma historia mais ‘“‘espiritual’’, por um lado, ¢ mais ‘‘mate- rial’’, por outro, duas diregdes tiveram um sucesso particular nes- sas perspectivas. Uma ¢ a historia conquistadora — mas ambigua — das ‘‘mentalidades’’, e é o grande pioneiro do género, Philippe Ariés, que recorda aqui seu itinerdrio. A outra, em que arqueolo- gia, etnologia e historia se unem, é a histéria da ‘“‘cultura material’’, definida por Jean-Marie Pesez, um dos primciros a deslocar o tra- balho do arquedlogo-historiador dos lugares célebres para os luga- res cotidianos, da cidade e do palacio para a aldeia e a casa, do ob- jeto de arte para a ferramenta ¢ o objeto comum. A historia do presente coloca para a historia em geral e para a historia nova em particular problemas importantes. Nao foi um historiador de oficio, mas um grande jornalista, que afirmou que, nesse dominio, os melhores também sao os verdadeiros historiado- res do presente, percebendo principalmente a necessdria reconside- racaéo do acontecimento — um acontecimento, alids, metamorfo- seado pelos modernos meios de comunicacao: Jean Lacouture fala aqui, com sua experiéncia e sua cultura, da “‘historia imediata’’, ti- tulo que ele deu ha alguns anos a uma colecao de obras que dirige, Como 0 tnico debate tedrico importante que a nova histéria susci- tou foi o que se travou com os historiadores marxistas € entre os historiadores marxistas, convinha apresentar esse debate esclarece- dor. Guy Bois, autor de uma tese recente!* que fez época — como exemplo, ainda que nao como modelo de nova hisiéria marxista — € suscitou aprovacoes ¢ reservas tanto de um lado como de outro, da aqui sua visdo do debate. Enfim, pareceu-nos necessdrio fazer um balanco de dois domi. nios da historia nova: um que, apesar de seu carater A primeira vis. ta particular, assumiu paradoxalmente — por se tratar dos ‘“‘margi- nais’* — uma importancia capital no campo da historia nova; 0 ou- tro, ainda impreciso, mas que busca e repensa na historia literaria, na historia da arte, na psicandlise, na psico-histéria, na antropolo- WA CIENCIA EM MARCHA, UMA CIENCIA NA INFANCIA i cultural o que permita abrir a historia nova uma nova frente pio- fieira prenhe de promessas: a historia do “‘imaginario’’. Jean-Claude Schmitt, um dos jovens historiadores que melhor se Imps em sua andlise das atitudes da cultura oficial ou dominan- {e diante dos comportamentos anémicos (beguinas ¢ beguinos para- Heréticos da Idade Média!5) e da cultura popular, fala aqui do lu- war e da contribuicao da histéria dos marginais. | Evelyne Patlagean, que, dada a sua familiaridade com a hagio- grafia bizantina, adquiriu uma grande perspicacia na exploragao do imagindrio, delineia os contornos € os esbogos existentes desse no- vo campo, define sua posic¢ado na historia vivida ¢ suas perspectivas fa historia a ser estudada e escrita. O leitor percebera, enfim, que os autores deste “‘dicionario’” filo possuem denominador ideoldgico comum, embora todos eles partilhem — com outros, cada vez mais numerosos — a mesma preo- @upagdo de fazer a historia avancar por novos caminhos. Com ef ci- 10, embora postule a necessidade de uma teflexao tedrica, a historia nova nao depende de nenhuma ortodoxia ideoldgica. Ao contrario, ela afirma a fecundidade das multiplas contribuig6es, a pluralidade dios sistemas de explicacdo para além da unidade da problematica!®. Bla pretende ser uma histéria escrita por homens livres ou em busca de liberdade, a servico dos homens em sociedade. Ela se inscreve também na longa duracao — longe das modas ou das novidades efé- meras de circunstancia. Gostaria de deixar, enfim, num tom de oti- mismo e modéstia, a ultima palavra a Marc Bloch: “A historia filo é apenas uma ciéncia em marcha. Também é uma ciéncia na inffncia.”” Jacques Le Goff Notas 1. E. Le Roy Ladurie, Montaillou, un village occitan de 1294 i 1324 (Paris, Gallimard, 1975), 130.000 exemplares vendidos de novembro de 1975 a abril de 1978 2. Desde maio de 1978 ¢ editada uma excelente revista mensal de divulgagao le ato nivel, L’Histoire (publicada pelas Editions le Seuil — La Recherche), que, sem ser propriamente um 6rgao de difusao da historia nova, da-lhe bastante espa¢o. Surgiram revistas do mesmo genero, sobretudo em certos paises europeus. Na Fran- (i, lo dominio da histdria religiosa entendida em sentido amplo, podemos assinalar Notre Histoire 3. J. Le Goff e P. Nora, orgs., Faire de Vhistoire (Paris, Gallimard, 1974). 4, Femand Braudel faleceu em 1985; Georges Dumézil, em 1986. 5, M. Foucault, Les mots e les choses, une archéologie des sciences humaines (Paris, Gallimard, 1966) [Ed. bras: As palavras e as coisas, Martins Fontes}; L’ar- (/ologie du savoir (Paris, Gallimard, 1969). Michel Foucault morreu em 1984. JACQUES LE GOFF 6. M. Foucault, Histoire de la folie a Vage classique (Patis, Plon, 1961); Nais- sance de la clinique, une archéologie du regard médical (Paris, PUF, 1963); Survei ler et punir, naissance de la prison (Paris, Gallimard, 1975); Histoire de la sexualité, t. 1, La volonté de savoir (Paris, Gallimard, 1976), 7..M, Foucault, L'archéologie du savoir (Paris, Gallimard, 1969), p. 24. 8. Ibid., p. 9. Ver N. Wachtel, La vision des vaincus (Paris, Gallimard, 1971). 10. Ver P. Toubert, Les structures du Latium médiéval (Roma, Ecole Frangai se de Rome, 1973). R. Fossier (Enfance de I’Europe, X®-XF° sidcles, 2 vol., Paris, PUP, 1982) propés que se generalizasse a nogGo de incastellamento na nosao de en cellulement [encelamento, enclausuramento], que considera o feudalismo o interna- mento da sociedade cm unidades, em celas, a mais caracteristica das quais € a senhoria. 11, Ver P. Goubert, Cent mille provinciaux au X VIF siecle. Beuvais et le Beau- vaisis de 1600 @ 1730 (Paris, Flammarion, 1968); E. Le Roy Ladurie, Montaillou, un village oceitan de 1294 a 1324 (op. cit.); P. Ariés, L'homme devant la mort (Pa- ris, Le Seuil, 1977); J. Delumeau, La peur aux XIV® et XV* siécles (Paris, Fayard, 1978); F. Furet ¢ J. Ozouf, Lire et écrire. L’alphabétisation des Francais de Calvin 4 Jules Ferry, 2 vol. (Paris, éd. Minuit, 1977); J. Delumeau, Le péché et la peur — La culpabilisation en Occident — XII*-X VIF sidcles (Paris, Payard, 1983). 12. A. Burguiére, Bretons de Plozévet (Paris, Flammarion, 1975, nova ed., 1978). A. Burguiére atualizou sua cxposigao no verbete “Anthropologie historique’, em seu Dictionnaire des Sciences Historiques, 1986, pp. 52-60. 13. “L’histoire immeédiate’’, colecdo dirigida por J. Lacouture para Editions du Seuil. 14. G, Bois, Crise du féodalisme, économie rurale et démographique en Nor- mandie orientale du début du XIV° siécle au milieu du XVI siecle (Paris, Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, éditions de E.H.E.S.S., 1976). 1S. J.-C. Schmitt, Mort d'une hérésie. LEglise et les clercs face aux béguines et aux béghards du Rhin supérieur du XIV? au XV* siecle (Paris, Haia, Nova York, Mouton-E.H.E.S.S., 1978). 16. Nao estou de acordo, por exemplo, com 0 que Michel Vovelle chama de “‘mutagao brusca’’, que eu ndo observo na histéria e que, para mim, nao se confun- de com 0 acontecimento, o qual, a0 contrario, permanece (ou volta) como interro- gagdo colocada ao historiador. Leituras O leitor desejoso de completar seu conhecimento da histéria nova poderé con- sultar: Trabathos de natureza metodologica e teérica na perspectiva da histéria nova F, Simiand, “Méthode historique et Science sociale”, in Revue de synthése histori- que, 1963, republicado em Annales F.S.C., 1969, pp. 83-119. H. Berr, La synthése en histoire (Paris, 1911, nova ed., Albin Michel, 1953), M. Bloch, Apologie pour I’histoire ou Métier d'historien (Paris, A. Colin, 1% ed., 1949). L. Febyre, Combais pour I’histoire (Paris, A. Colin, 1953). [A CIENCIA EM MARCHA, UMA CIENCIA NA INFANCIA MM. Houcault, Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines (Paris, Gallimard, 1966). ¥ Wraudel, crits sur l'histoire (Paris, Flammarion, 1967). © Duby, Des sociétés médiévales, aula inaugural no Collége de France (4 de dezem- tro de 1970) [Paris, Gallimard, 1971] ¥. Muret e J. Le Goff, “‘L’homme sauvage et "homme quotidien’’, in Mélanges en Vhonneur de Fernand Braudel, Toulouse, Privat, 1973, pp. 227-244. ¥. Le Roy Ladurie, Le territoire de Vhistorien, t. 1 (Paris, Gallimard, 1973), t. IL (Waris, Gallimard, 1978). J, Le Goff ¢ P. Nora, Faire de l'histoire, 3 vol. (Paris, Gallimard, 1974). Prabalhos que permite situar a histéria nova no conjunto da producdo histé flea dos ultimos cingienta anos Hnquete da Nouvelle Critique dirigida por F. Hincker e A. Casanova: Aujourd’hui histoire (Paris, Editions Sociales). Ver também a obra coletiva Ethnologie et histoire (Paris, Editions Sociales, 1975). J, Whrard e G. Palmade, L histoire (Paris, A. Colin, 1964). J, Glenisson, Vingt-cing ans de recherche historique en France (1940-1965), 2 vol. (Paris, 1965). New Trends in History (Coléquio de Princeton, Estados Unidos, 1968). M, Ballard, New Movements in the Study and Teaching of History (Londres, M. Temple Smith, 1970). Hi, Gilbert ¢ S. R. Graubard, Historical Studies Today (Nova York, W. W. Norton, 1972) 1, Allegra e A. Torre, La nascita della storia soziale in Francia della Comune alle “Annales” (Turim, Einaudi, 1977). Deve-se consagrar um lugar @ parte a duas obras néo-conformistas bastante di- Jerentes J, Chesneaux, Du passé faisons table rase? (Paris, F. Maspero, 1976). Nesse livro, 0 autor contesta a justo titulo a recusa da historia, por parte de iguns, em nome de uma ideologia libertaria que coloca o peso do passado entre os {nstrumentos do poder das classes dominantes. Ele sublinha a necessidade de colocar Gorretamente os problemas gracas ao conhecimento do pasado, mas convoca para Wma pratica revoluciondria da histéria que arruina toda e qualquer visio cientifica desta, confunde histéria vivida e histéria pensada e estabelece entre os historiadores @ 08 povos em luta relagdes na verdade ambiguas, pois a rentincia do historiador a 24 JACQUES LE GOFF seu oficio pode levar a pior utilizagdo ideoldgica da histéria. No entanto, ele tem © mérito de colocar o problema da relagdo entre a producdo histérica ¢ a sociedade em que é produzida. P. Veyne, Comment on écrit I’histoire, Essai d’épistémologie (Paris, Le Seuil, 1971). Livro incémodo, de uma cultura desalentadora, e que brilha de inteligéncia e formulas. Ele confere a seu autor um lugar a parte e atesta relacdes complexas com 2 histéria nova. Se a rejei¢do dos dogmatismos (sobretudo marxistas) e dos determi- nismos vulgares, e a defesa de uma histéria que absorva a sociologia e a antropolo- gia vao no sentido de tendéncias profundas da histéria nova, em compensagio a no- sao ambigua de intriga, a predilerao pela explicagao de tipo psicolégico, 0 recurso privilegiado as nogdes e a0 vocabulirio filos6ficos, uma fobia do econdmico enquanto tal, evocam um discurso subjacente de tipo tradicional. Nao obstante, esta obra im- p6s Paul Veyne como um dos raros historiadores epistemélogos Leitura suplementar (1988) Paul Veyne precisou sua concepgao da histéria, préxima dos Annales ¢ da histéria-problema, mas orientada, como a de Frangois Furet, para uma histdria con- ceitual em L"inventaire des différences, Paris, Le Seuil, 1975. Nos tiltimos dez anos, 0 socidlogo alemao Norbert Elias, nascido em 1897, au- tor de uma obra editada em 1939 (Uber den Prozess der Zivilisation) e traduzida pa- ra o francés apenas em 1973 (t. 1, La civilisation des moeurs, Calmann-Lévy) e em 1975 (t. 2, La dynamique de ’Occident, Calmann-Lévy) exerceu uma grande sedu- Gio sobre os historiadores franceses préximos da nova histéria. Ver R. Chartier, “Nor- bert Elias, interpréte de histoire occidentale”, em Le Débat, outubro de 1980, ¢ A. Burguitre, verbete “Elias”, em Dictionnaire des Sciences Historiques, pp. 239-242. Ha uma dezena de anos, um grupo de jovens historiadores italianos langou a concepeao de uma “historia com lupa”’, proxima da antropologia, como a nova his- toria, e que se interessa mais particularmente pelos “temas da vida privada, do pes- soal edo vivido, aqueles que o movimento feminista privilegia com tanta forca’? — © que nao é uma coincidéncia, ‘‘j4 que as mulheres constituem, sem diivida nenhu- ma, 0 grupo que pagou o tributo mais pesado pelo desenvolvimento da histéria dos homens””, sendo um de seus temas favoritos o “excepcional normal”. E a microsto- ria, micro-histdria. Minha citagéo foi extraida do artigo de Carlo Ginzburg ¢ Carlo Poni, “La micro-histoire’””, em Le Débat, 17, dezembro de 1981, pp. 113-136, tradu- ao parcial do texto italiano publicado em Quaderni Storici, 40, janeiro-abril de 1979, RP. 181-190, jovem revista que explora, como os Annales e a nova historia, novos caminhos da pesquisa hist6rica. JACQUES LE GOFF A historia nova } Assiste-se, nos ultimos vinte anos, a uma profunda renovagéo io dominio cientifico. Nao sé amaioria das ciéncias manifestaaquela “Weeleracdo da histéria, que se tornou comum constatar, como tam- ‘iim a divisdo do saber evolui rapidamente. A reflexao epistemold- lea — a propria moda do termo “‘epistemologia’’ é significativa ~ desenvolve-se em extensdo e profundidade. Essa comogao atin- #@, em particular, um conjunto de ciéncias cujo reconhecimento co- (0 entidade cientifica j4 é uma novidade consideravel: as ciéncias. Hiimanas, como se costuma dizer na Franca, conforme a terminolo- it Universitaria consagrada em 1957 (faculdades de letras e cién- wits humanas), ou as ciéncias sociais, segundo o uso anglo-saxao. Tis fendmenos assinalam essa emergéncia de um novo campo do wiber: 1, a afirmacao de ciéncias, seja francamente novas, seja surgi- is ha varias décadas, mas que atravessam entdo o limiar da divul- flo universitdria: sociologia, demografia, antropologia (que subs- litul a etnologia), etologia, ecologia, semiologia, futurologia, etc.; 2, a renovac&o, seja em nivel da problematica, seja em nivel do ensino — ou dos dois — de ciéncias tradicionais, mutagao essa lie Se manifesta, em geral, pela adjuncdo do epiteto ‘‘novo’”’ ou "imoderno’’: lingiiistica moderna, new economichistory, sendo que o ekemplo mais relevante, o da matematica moderna, situa-se fora do ~ dominio das ciéncias humanas; 26 JACQUES LE GOFF 3. a interdisciplinaridade, que se traduz no surgimento de cién- cias compésitas que unem duas ciéncias num substantivo e num epi- teto: histéria sociolégica, demografia histérica, antropologia hist6- ica; ou criam um neologismo hibrido: psicolingiiistica, etn toria, etc. Essa interdisciplinaridade chegou a dar nascimento a cién- cias que transgridem as fronteiras entre ciéncias humanas e ciéncias da natureza ou biolégicas; matematica social, psicofisiologia, etno- — psiquiatria, sociobiologia, etc. O LUGAR ORIGINAL DA HISTORIA Nesse campo renovado, uma ciéncia ocupa uma posi¢ao origi- nal: a histéria. Ha uma histdria nova, e um de seus pioneiros, Hen- ri Berr, j4 empregava o termo em 1930!. A histéria deve esse lugar original a duas caracteristicas essenciais: sua renovacdo integral e oarraigamento de sua mutago em tradi¢Ses antigas e sdlidas. Mui- tas cigncias modernizaram-se num setor particular de seu dominio, sem que por isso todo 0 seu campo fosse modificado. Assim, a geo- grafia foi uma das primeiras ciéncias humanas a se renovar gracas ao desenvolvimento da geografia humana. Depois de Vidal de la Bla- che, Jean Brunhes (1869-1930), Albert Demangeon (1872-1940) e Ju- les Sion (1878-1940) foram os promotores de uma geografia ciéncia humana, ciéncia dos homens, tal como a historia nova se afirma des- de seu inicio. A influéncia desses gedgrafos sobre os mestres da his- téria nova, Lucien Febyre, Marc Bloch e Fernand Braudel (cuja “‘direcdo de estudos” na VI secao da Ecole Pratique des Hautes Btudes se intitulava, desde a sua criacao em 1947, “histéria geogra- fica’), foi tal, que esse precedente precisava ser citado aqui. Lucien Febvre nao cessou de ressaltar essa alianca entre a geografia huma- na ea historia nova, por exemplo na nota necrolégica consagrada a Jules Sion e a Albert Demangeon?, onde lembra a frase de Jules Sion exigindo que 0 gedgrafo ‘‘saiba o oficio de historiador”’ e afir- mando que ‘‘ele precisa pensar como historiador tanto quanto como gedgrafo’’, ou na comemoracao de Marc Bloch, a proposito de quem declara: ‘‘... como muitos dentre nds, coetdneos seus ou mais velhos, ele sofrera fortemente a influéncia dessa geografia que um mestre poderoso e engenhoso..., Vidal dela Blache, acabava de promoyer a disciplina nutriz’3. Lucien Febvre que, em “A Terra © a evolucdo humana, introducdo geogrdfica a histéria’’4, abre a historia nova a busca simultanea do espaco e do tempo, que um Maurice Lombard, por exemplo, introduzird na histéria do mundo muculmano’. Dal a importancia da cartografia para a histéria nova, grande ijora ¢ consumidora de mapas, nao de simples mapas de orien- i) Ou de ilustracdéo, mas de mapas de pesquisa e de explicacdo, «los pelo desejo de longa duracdo inscrita no espago, de filifieagao (encarnada nas localizacdes) ¢ de hipéteses explicati- eridas pelas correlacGes entre fenGmenos nas dreas confun- }ou discordantes. Mas trata-se de um questionamento pela his- de uma geografia despojada de todo e qualquer determinis- “As caracteristicas originais da historia rural francesa’’®, Moch sempre mostrou a historia em aco na modelagem das ns e dos sistemas de cultura. O bocage* nao é produto do ‘mas criagdo dos homens. forma de histéria nova é uma tentativa de histéria total Tntretanto, a hist6ria nao se contentou com abrir aqui ali no- hhorizontes, novos setores para si. Claro, um Pierre Goubert para a historia nova o campo da demografia histdrica, 0 enfo- desde o nascimento até a morte, de todos os individuos, de 48 familias de uma regido durante um século’, gracas a inves- dos registros paroquiais. Claro, um Natan Wachtel, com ““A. 6 dos vencidos”’’, modelo e obra-prima da histéria nova, dila- historia as dimensGes sem fronteiras da etno-histéria. Con- |, t historia nova nao se contenta com esses avancos. Ela se afir- eomo histéria global, total, e reivindica a renovagao de todo o 0 da historia. Alias, de uma maneira ou de outra, as obras pio- num setor da histéria nova afirmam sua ambi¢do para além oda e qualquer especializagao. Elas sio — o “‘Beauvaisis’’ de wt a ‘Vision des vaincus’’ de Wachtel constituem bons exem- ros de historia total em que a totalidade de uma sociedade lac e apresentada. Desse ponto de vista, o ‘‘Montaillou, al- da Occitania, de 1294 a 1324”’, de Emmanuel Le Roy Ladurie?, prima da antropologia historica, manifesta patentemente 0 de- totalizador da histéria nova, que o termo de antropologia his- , Substituto dilatado da historia, sem duvida exprime melhor. forma de histéria nova — ou que se faz passar por nova — se coloca sob a bandeira de uma etiqueta aparentemente par- il Ou setorial, quer se trate da histéria socioldgica de Paul * Tipo de paisagem do Oeste da Franca, em que os campos de cultura e os pra- Wy allo cereados por sebes ou arvoredos e as fazendas, dispersas. (N.T.) 28 JACQUES LE GOFF Veyne!9, quer da historia psicanalitica de Alain Besangon!!, é, na verdade, uma tentativa de histéria total, hipotese global de explica- ¢ao das sociedades grega e romana da Antiguidade, ou da Russia do século XIX e mesmo do século XX. Ja a propésito do titulo dos ‘Annales d’histoire économique et sociale’’ [Anais de histéria econémica e social], fundados em 1929, Lucien Febvre deveria dizer que os dois epitetos, notadamente o de “social’’, tinham sido escolhidos por Marc Bloch e por ele proprio em razdo de seu carater vago que englobava toda a histdria: “‘Sabe- mos muito bem que ‘social’, em particular, é um desses adjetivos a que se fizeram dizer muitas coisas no decorrer do tempo, a tal ponto que por fim jd nao quer dizer quase nada [...]. Concordavamos em pensar que, precisamente, uma palavra t4o vaga quanto ‘social’ pa- recia ter sido criada e posta no mundo por um decreto nominativo da Providéncia histérica para servir de emblema a uma revista que pretendia nao se rodear de muralhas... Nao ha historia econdmica e social. Ha a historia pura e simples em sua unidade. A histéria que é toda social, por definicdo,’’!? A histéria nova ampliou o campo do documento histérico A segunda originalidade da histéria nova estd, de fato, em se basear numa longa ¢ sélida tradi¢ao. A histéria nova nasceu em gran- de parte de uma revolta contra a histéria positivista do século XIX, tal como havia sido definida por algumas obras metodolégi- cas por volta de 190015. No entanto, uma parte das conquistas téc- nicas do método positivista na histéria permanece valida. Foi Marc Bloch quem escreveu, ndo sem algum exagero, a Pproposito de Don Mabillon, pai da historia erudita que ia triunfar no século XIX com a Ecole des chartes [Escola de paleografia], durante muito tempo um bastido, no século XX, da histéria tradicional: “‘Naquele ano — 1681, ano da publicacao do ‘De Re Diplomatica’, na verdade uma grande data na histéria do espirito humano —, a critica dos docu- mentos de arquivos foi definitivamente fundada.’’'4 A historia no- va ampliou o campo do documento histérico; ela substituiu a histé- tia de Langlois e Seignobos, fundada essencialmente nos textos, no documento escrito, por uma histéria baseada numa multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos, documentos figurados, produtos de escavacées arqucoldgicas, documentos orais, etc. Uma estatistica, uma curva de precos, uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um pdlen fossil, uma ferramenta, um ex-voto sao, para a historia nova, documentos de primeira A HISTORIA NOVA 29 ordem!5, Entretanto, os métodos de critica desses documentos no- vos calcaram-se mais ou menos nos métodos aperfeicoados pela eru- digéio dos séculos XVI, XVIII e XIX. Recentemente, uma obra so- bre A histéria e seus métodos, dirigida por um dos mestres forma- dos pela Ecole des chartes, Charles Samaran'®, justapunha sem con- flitos exposicdes sobre os métodos tradicionais da histéria e ensaios sobre algumas orientagdes novas da historia’’. A histéria vive hoje uma ‘‘revolucdo documental’’ que man- tém com a historia nova relagdes ambiguas, de que tornarei a falar. Uma nova concepcio do documento e da critica que dele deve ser feita est4 apenas esbocada, como tentei fazer na “Enciclopedia Einaudi’’'§, . | A histéria desfruta tanto dessa conquista metodoldégica como de sua base universitaria. Melhor que as outras ciéncias humanas — entre as humanidades que ndo conseguem se renovar ¢ as cién- cias novas que encontram dificilmente a sua identidade —, a histd- ria, cujos profissionais dispdem de uma bagagem solida ¢ de uma formagao que, muito embora seja pouco penetrada pelo espirito da historia nova e nao favorega o exercicio da inteligéncia (por exem- plo, o concurso para professor do secundario), proporciona uma base institucional firme e pode, apoiando-se em sua longa tradicao, voltar-se para novos horizontes, tendo, se ouso dizer, sua retaguar- da bem protegida. Em sua célebre conferéncia de Manchester em 1961, 0 grande etndlogo inglés Evans-Pritchard pedia aos antropdlogos que apren- dessem com os historiadores, em particular por causa da experién- cia destes na critica dos documentos ¢ na percep¢do do tempo e da mudanca!9, NASCIMENTO DA HISTORIA NOVA: A “ESCOLA DOS ANNALES” Sobretudo, a historia nova jd tem uma tradigao propria, a dos fundadores da revista ‘Annales d’histoire économique et sociale”’. Quando Lucien Febvre e Marc Bloch lancaram em Estrasburgo, em 1929, uma revista que retomava, modificado, um velho projeto de Lucien Febvre de uma revista internacional de historia econdmica que abortara, suas motivacdes eram de varias ordens. . Antes de tudo, tirar a histéria do marasmo da rotina, em pri- meiro lugar de seu confinamento em barreiras estritamente discipli- nares, era 0 que Lucien Febvre chamava, em 1932, de ‘‘derrubar = JACQUES LE GOFI as velhas paredes antiquadas, os amontoados babilénicos de pre conceitos, rotinas, erros de concepcao e de compreensao’’20, Depois, o desejo de afirmar duas diregdes inovadoras, expres: sas pelos dois epitetos do titulo da revista: historia “econ a” “‘social’’. Com o econémico, tratava-se de promover um dominio quase completamente abandonado pela histéria tradicional, em que ingleses ¢ alemaes haviam passado a frente dos franceses e cuja im- portancia na vida das nacGes e dos povos se acentuava cada dia mais, q Nao é por acaso que os “Annales”? nascem em 1929, o ano da grande crise. O historiador vive que Lucien Febvre e Marc Bloch sem divida mais admiravam era Henri Pirenne, a quem Lucien Febvre pensara confiar a direcdo da revista internacional e a cuja memoria Marc Bloch dedicara, em 1940, um projeto logo abando- nado de ‘‘Histéria da sociedade francesa no ambito da civilizagéo européia’’. Assim agindo, é verdade, Marc Bloch movia-se tanto pe- las circunstancias quanto pela admiracao que tinha por Pirenne. De fato, este havia composto na prisdo, durante a guerra de 1914-1918, uma ‘‘Histéria da Europa’’?!, enquanto, durante a drole de guer- re, Marc Bloch se entediava. Como nao pensar em Fernand Braudel que ia elaborar, entre 1940 e 1944, num campo de prisioneiros ale- mao, “‘O Mediterraneo e o mundo mediterranico na época de Filipe 11”??? Na revista alema “‘Vierteljahreschrift fiir Sozial- und Wirts- chaftsgeschichte’’ (“Revista trimestral de histdria social e econémi- ca’), os fundadores dos “Annales” encontravam nao apenas 0 acen- to posto no econdmico, como também no social, aquele social que 0s seduzira por seu carater vago que permitia falar de tudo. Porque se tratava de saltar os muros, derrubar as divisoes que separavam a historia das ciéncias vizinhas, especialmente da sociologia. Sob a eti- queta de social, Lucien Febvre e Marc Bloch encontrayama inspira- cao sem fronteiras da Revue de synthése historique e do direto1 desta, seu amigo Henri Berr, que publicara em 1921 A historia tradi- cional e a sintese histdrica’s, bem como a perspectiva comparatista, admirando a maneira como Henri Pirenne dela falara, em sua comu- nicacao sobre “‘O método comparativo em histori apresentada na secao de abertura do V Congresso Internacional de Ciéncias Histéri- cas, em 9 de abril de 1923. Comoescreverd Marc Bloch em sua ““Apo- logia da historia ou Oficio de historiador’’: ‘A tinica historia verda- deira, que s6 pode ser feita por ajuda mtitua, éa historia universal.’"24 Uma luta contra a histéria politica De 1924 a 1939, qual foi o combate dos ‘‘Annales’257 Primeiro, a luta contra a histria politica, a pedra no sapato de Lucien Febvre ¢ Mare Bloch, sobretudo sob sua forma diploma- ORIA NOVA 31 jo modelo magante era, para eles, 0 “Manual de politica es- a"’, de Emile Bourgeois (1892). Essa histéria politica que é, Jado, uma historia-narrativae, por outro, uma histéria de acon- wilos, uma histéria fatual, teatro de aparéncias que mas- ) verdadciro jogo da histéria, que se desenrola nos bastidores -estruturas ocultas em que é preciso ir detecta-lo, analisa-lo, Wilo, Em 1931, na ‘Revue de synthése’’, paraa qual continua orando paralelamente aos “‘Annales”’, Lucien Hepene {/Oyando-se sob 0 titulo “Historia ou politica?”’ sobre ° valor de “Histéria diplomatica da Europa’ recentemente publicada, Te- 41 busca dos ‘‘motivos reais, profundos e miltiplos dos gran- oyimentos de massa’’ no humor, na psicologia nos caprichos duis dos “‘grandes’’ ou no ‘jogo, contraditério de diplomacias '*, Os verdadeiros motivos, ‘thé motivos geograficos; ha mor ‘ondmicos, sociais também, e intelectuais, religiosos € psico- 1926 Quinze anos mais tarde, Lucien Febvre, retomando 0 mesmo ihuie, resenha nos ‘‘Annales’” outra obra, “A paz armada 1.1914)"’e pesca esta frase: “Os partidarios do materialismo hi sempre procuram aumentar o papel dos fatores econdmicos nos iNlilos internacionais em detrimento dos fatores politicos e morais. comenta, com sua pugnacidade habitual: “Deus do céu! Que vem sf Aqui o ‘materialismo histérico’? (...)O mundo émundo. Dizem- untes da guerra de 1914, ele ja nao era exatamente 0 que se tor- 4) de 1920 a 1940. Mas de 1871 a 1914 ele jA nao era 0 que fora de AM a 1870. Por qué? Por razées politicas? Ou ec Absoluta- ie! Por razes econdmicas. Isso salta aos olhos. No mesmo estudo, fazendo alusdo ao livro péstumo de Marc Bloch, ‘A estranha derrota’’, ele faz este diagnostico: “A derrota da Franga |, Wntes de mais nada, uma derrota da inteligéncia e do carater. A posicao e a agao dos “Annales”, com sua fecundidade e seus ites, pode ser apreendida nessas citacdes. Recusar a historia su- cial e simplista que se detém na superficie dos acontecimentos este tudo num fator. E também, parece-me, a fraqueza de uma Wilise demasiado eclética, que podese perder na “‘multiplicidade dos otivos’’, que nao distingue entre motivo e causa. O essencial, noen- 1, é esse apelo a uma historia profunda e total. Primeiro hae historia pobre, solidificada, com a aparéncia enganadora de udo-historia, ‘Alma critica da nogao de fato histérico E também o momento em que os “Annales”? fazem a critica im- Placdvel da nocao de fato histérico. Nao ha realidade historica ae JACQUES LE GOFF acabada, que se entregaria por si propria ao historiador. Como todo homem de ciéncia, este, conforme a expressdo de Marc Bloch, deve, “‘diante da imensa e confusa realidade”’, fazer a “‘sua opcao”? — o que, evidentemente, nao significa nem arbitrariedade, nem simples coleta, mas sim construcao cientifica do documento cuja andlise deve possibilitar a reconstituicao ou a explicagdo do passado. Lucien Feb- vre, em sua aula inaugural no Collége de France (1 933), dd um exem- plo: ‘‘(...) porque onde pegariamos 0 fatoem si, este pretenso Atomo. da historia? O assassinato de Henrique IV por Ravaillac, um fato? Se o analisarmos, se o decompusermos em seus elementos, uns mate- riais, outros espirituais, resultado combinado de leis gerais, de cir- cunstncias particulares de tempo e lugar, enfim, de circunstancias proprias a cada individuo, conhecidos ou ignorados, que represen- tam um papel na tragédia, quao rapido veremos dividir-se, decompor- se, dissociar-se um complexo emaranhado. Algo dado? Nao, algo criado pelo historiador, quantas vezes? Algo inventado e construido, com ajuda de hipoteses e conjeturas, por um trabalho delicadoe apai- xonante,"*8 Os Anais. Economias. Sociedades. Civilizacdes Depois da Segunda Guerra Mundial, os “Annales” e os histo- tiadores que gravitam em torno deles continuam, depois reavivam e fazem a historia nova progredir de novo. A revista, que precisou mu- dar varias vezes de nome por causa das condicdes da guerra e da ocu- pacao alema, tema partir de 1946 um novo titulo, que assinala aam- pliacdo de seus horizontes. E, desde entao, “Annales. Economies, So- ciétés. Civilisations’’ [‘Anais. Economias. Sociedades. Civiliza- g6es.””]. Primeiro, o plural: ‘‘os homens, nao o Homem’? — essa abs- tragdo, sempre repetiram Lucien Febvre ¢ Mare Bloch. Depois, ao la- do das economias e das sociedades que recordam os epitetos dos anti- gos “Annales”, o aparecimento do termo “civilizagdes’’, cujo cara- teramplo, unindo o material ao espiritual, Lucien Febvre e Marc Bloch (que morreu em 1944, fuzilado pelos alemaes, mas continua presente em espirito) sempre apreciaram. E Marc Bloch em seu testa- mento metodoldgico, recordando Guizot, justifica de antemao esse emprego — no plural — de civilizacdes: ‘‘Reconhecemos que, numa sociedade, qualquer que seja, tudo se liga e se comanda mutuamente: aestrutura politica e social, a economia, as crencas, as manifestagdes mais elementares ¢ mais sutis da mentalidade,'""2 HISTORIA NOVA escola dos ‘‘Annales’’ e a concepcao de Toynbee Permitam-me, a propésito de civilizagao, uma suméaria precisao ‘sobre o emprego deste termo pelos mestres dos “Annales -A pala- yra Ihes agrada, como acabamos de ver. Contudo, eles nao cane Jam os perigos que ela contém. Fazem QUESHO, em particul an = demarca-la da concepgao de Arnold Toynbee”, que distingue desde 0 inicio da humanidade 21 civilizagées, vé todas elas passarem por trés fases sucessivas, de génese, maturidade edeclinio, de acordo com uma lei de ‘challenge and response’, capacidade de responder aos estimulos externos e internos. Vocabulario ¢ pensamento vagos que assimilam abusivamente ‘‘sociedade”’ (nem todas, ¢ claro, pois Toyn- bee conta 650 sociedades primitivas que nao atingiram o nivel de ci- vilizagdo’’) a “‘civilizacao’’, emprego sem discernimento de um mé- todo comparativo grosseiro, baseado eminumeros anacronismos, re- cursos a metdaforas e a um pensamento “‘vitalista’’, que data ‘de on- tem, sendo deanteontem’’, arbitrariedade de uma diviséo de civiliza- ges “em ntimero definido”’ e, por fim, duas criticas maiores: deum lado, uma historia ilusionista, de prestidigitador, que fazas civiliza- Ges desfilarem ‘‘como os quadros de um melodrama’; de outro, uma filosofia da histéria, nao uma histéria cientifica. . Lucien Febvre conclui, um pouco malvadamente, que a histo- ria, de acordo com Toynbee, pode ser resumida pela formula do ve- lho bibliotecdrio que responde a um x4 agonizante que queria conhe- cer toda a histéria no ultimo minuto da sua vida: ‘“‘Meu principe’’, diz-lhe 0 sdbio anciao, “‘meu principe, os homens nascem, amam e sa seset me estendi um pouco demoradamente sobre essa polémica é porque ela me permite situarcertas posicdes essenciais da historia no- va. Todos os historiadores que preconizam-na parecem-me estar de acordo, com mais ou menos nuangas, com Lucien Febvre. A historia & Toynbee, apesar de suas sedugGes, sua vista larga, seu desejo de to- talidade, essa histéria confusa, feita — obrigatoriamente — de ter- ceira mao em grande parte e que filosofa barato nao ¢ a nossa. Uma histéria problematica, e nao automatica Eis, pois, os ‘Annales’ com um novo titulo, soba diregao tinica de Lucien Febvre. Mais do que nunca, os ‘‘Annales” querem fazer entender. Colo- car os problemas da histéria: ‘‘proporcionar uma Historia nao auto- matica, mas problematica.””3? E, mais do que nunca, os problemas at JACQUES LE GOFF de uma histéria para o tempo presente, para nos permitir vere compreender “‘num mundo em estado de instabilidade definiti- va”. Donde, em primeiro lugar, nesta revista, que desde 0 inicio pre- tendeu ser internacional, mas que foi sobretudo ocidental, e inclusive européia, 0 desejo de se abrir mais amplamente, fora e contra qual- quer eurocentrismo, para o mundo inteiro, em particular Para o que vai ser chamado de terceiro mundo. No limiar dessa nova fase, aparecem duas obras “‘programati- cas’ dos fundadores, que publicaram no inicio da guerra suas obras- primas: “A sociedade feudal’’, de Marc Bloch, modelo de uma historia-problema, sintéticae comparatista sem extravagancia, aber- ta para “as manciras de ver e de pensar”, ultrapassando a historia juridica das institui¢es, no sentido de uma histéria social das classes ede uma histéria do poder e dos poderes: ¢ “O problema da descren- ga no século XVI: a religido de Rabelais”, em que Lucien Febvre*4 reencontra a historia profunda ‘‘no amago religioso do século XVI” a longa duracdo das idéias, dos sentimentos e das crengas, ¢ destréi 0 mito anacrénico de um Rabelais livre-pensador. De Marc Bloch um livro poOstumo, inacabado, nao revisto, mas que vai divulgar a his- toria nova fora da Franca, desde a sua tradugdo, rapidissima, para ° inglés (Manchester e Nova York, 1954), até as recentes tradugdes nas linguas dos paises da Europa do Leste, especialmente em russo (Moscou, 1973): ‘‘Apologia da historia ou Oficio de historiador’’35 que, segundo Lucien Febvre, nao é nem “um método da histéria””, nem “consideragdes pseudofiloséficas sobre a historia’’, mas “uma revista critica das mas maneiras de pensar e praticar a historia’. Re- cordarei dele apenas duas preocupacGes, bastante caracteristicas da historia nova. De um lado, recusar 0 ‘‘idolo das origens’’, porque, de acordo com um provérbio arabe, ‘‘os homens se parecem mais com seu tem- po do que com seus pais’’. De outro, estar atento as relagdes entre presente € passado, isto é, ““compreender o presente pelo passado”’ mas também “‘compreender o passado pelo presente’? — donde a ne- cessidade de um método “‘prudentemente regressivo’’ (p. 15). Combates por uma nova histéria Alguns anos mais tarde, Lucien Febvre reunia uma parte impor- tante de seus artigos metodoldgicos em ‘*Combates pela historia’, Encontram-seai “‘profissées de fé iniciais’’, de que forneci varios ex- tratos significativos, os artigos de combate contra a histéria politica e diplomatica, a histéria-quadro, a historia-manual, a histéria filo- A HISTORIA NOVA 35 s6fica e 0 que ele chama de hist6ria historicizante, a base de histdria fatual, passiva diante dos fatos, sem problemas, encerrada na rumi- nacdo dos textos, comparavel ao que hoje se chama em politica de “politique politicienne” [‘‘politica politiqueira’’]. Em contrapartida, combate por uma ‘“‘histdria dirigida’’ — ex- presséio que talvez soe mal hoje em dia, mas que designa a historia feita a partir de enquetes coletivas, ‘‘porvir da histéria’’ de que os “Annales” desde 0 inicio deram o exemplo, lancando enquetes sobre © cadastro, os planos parcelares, a técnica agricola e suas repercus- ses sobrea historia dos homens, as nobrezas. Caminho fecundo, que trilhou, a partir de 1948, 0 Centro de Pesquisas Historicas da VI se- ao da Ecole Pratique des Hautes Etudes, apoiada — se nos limitar- mos & Franca — pelo Centre National de la Recherche Scientifique, € que conquistou pouco a pouco, sobretudo depois de 1968, varios departamentos de histéria das universidades. Depois, ¢ 0 olhar para o vizinho, com a esperanca de fazer que dialoguem os “‘irmAos que se ignoram’’, levando quase sempre a decepcdes, certo fracasso da lingiiistica’”, a qual, nao obstante, per- mite que os historiadores ‘‘descubram um canto do passado sem tex- tos por uma indugdo limitada, talvez, mas forte, sdlida, baseada nu- ma experiéncia inatacavel”’ (p. 163), a psicologia*®, aparentemente incapaz de entabular por si s6 0 didlogo com os historiadores, que de- vem “proporcionar aos psicélogos uma psicologia histérica valida” (p. 219) e, depois, esse conjunto de horizontes fechados em si pro- prios pela falta de especialistas sem horizontes e sem problemas, que mantém longe da fome dos historiadores da histéria nova campos es- senciais: a literatura, a filosofia, a arte, as ciéncias. A VI secéo da Ecole Pratique des Hautes Etudes Entretanto, logo depois da guerra, o essencial no espago dos “‘Analles” 6, de um lado, a fundacdo da VI secdo da Ecole Prati- que des Hautes Etudes, de outro, a renovagao, em torno de Lucien Febvre, do grupo dirigente dos ‘‘Annales’’. O primeiro acontecimen- to 6a realizac&o de um projeto de Victor Duruy, demasiado avanca- do em relagdo a realidade para ter aparecido antes. Quando fundou, fora da velha Sorbonne e mais ou menos contra seu ensino magistral, um erisino baseado na pesquisa, na pratica erudita ou experimental, no sistema germAnico do semindrio, a ser ministrado no Ambito da Ecole Pratique des Hautes Etudes (1868), ele previu uma VI se¢ao, a das ciéncias econémicas e sociais, cuja criagdo Lucien Febvre ar- rancou dos governos da Libertacao. O programa dessa VI se¢ao — 26 JACQUES LE GOFF interdisciplinar, aberto Para o mundo inteiro, baseado na pesquisa © nas enquetes coletivas — é 0 dos ‘‘Annales’’ e nele a histéria® de- sempenha um papel de inspiragdo elideranga. Acontecimento capital para a histdria nova que, a partir de entao, se transmite pelo ensino, pela pesquisa, pela discussdio — ao lado das disciplinas irmas — ¢ de- semboca numa instituicéo. Uma penetragdo mais profunda nas es- truturas e nas praticas universitarias se chocaracom numerosas resis- tencias. Quando, de 1950 a 1955, Fernand Braudel preside o juri do exame de histéria do concurso para professor secundario, elenio po- de impregnd-lo de todo o espirito da historia nova. Rumo a uma outra historia... com Fernand Braudel Por outro lado, convocado por Lucien Febvre, Georges Fried- mann — que vai se tornar o pai da sociologia nova na Franga, uma sociologia repleta de historia ¢ qué situa o taylorismo na evolucao do trabalho industrial— apreende o presente em sua densidade de tradi- ¢40 e mudanca”, em seus mitos ideoldgicos*!, e dois jovens historia- dores, Fernand Braudel ¢ Charles Morazé, voltam a proporcionar aos “‘Annales’’ oimpulso rumo a essa histériaem que passado e presente se iluminam mutuamente. Logo Fernand Braudel Proporciona a historia nova sua obra- prima, “O Mediterraneo eo mundo mediterranico na época de Filipe IP’, Lucien Febvre, que ‘“‘descobriu’’ Fernand Braudel, assim apre- senta a obra, num artigo de titulo significativo: “‘Rumo a uma nova historia: ‘O Mediterraneo eo mundo mediterranico na época de Fili- pe IT’ (duas personagens de grandeza desigual, endo éo segundo que sobrepuja o primeiro, 0 que ja € uma grande novidade) — ontem, a tese de Fernand Braudel nos trazia um plano totalmente novo e, em certo sentido, revoluciondrio. Decidido arecolocar os grandes proje- tos da politica espanhola, no sentido mais amplo da palavra ‘politi- ca’, em seu contexto histéricoe geografico natural, ele estuda em pri- meiro lugar as forgas permanentes que atuam sobre as vontades hu- manas, que pesam sobre elas sem que elas disso se apercebam, que as vergam nesta ou naquela direcdo; ¢ é toda uma andlise, nunca an- tes tentada, do que o Mediterraneo — como o chamamos, com uma palavra negligentemente Pronunciada — representa como forga que conduz, canaliza, contraria também € freia, ou, ao contrario, exalta eacelera o jogo das forcas humanas. Depois disso, numa segunda par- te, ele arrola as forcas particulares, mas animadas de certa constante, forcas impessoais ¢ coletivas, mas, desta vez, datadas e, porassim di- zer, assinaladas como sendo estritamente aquelas que atuam no sécu- iSTORIA NOVA XVI, na segunda metade do século XVI, isto é, ne espago de temne oe i i ili Espanha. Terceira parte: eenche a vida reinante de Filipe II dal ' 0 Boniecimentos. O fluxo tumultuoso, agitado e confuso dos fatos. lagnetizados com freqiiéncia pelas forgas permanentes que o primeiro livro estuda, influenciados e dirigidos pelas forcgas estaveis cue es “gundo livro enumera. Mas 0 acaso age sobre elas, 0 acaso borda ni tulagarga dos encadeamentos suas variagSes mais brilhantes e mais odd ree Febvre morre em 1956. Fernand Braudel, secundado a i torna-se o prin- incipio por Robert Mandrou, depois por Mare Ferro, Nr : pal eaimder dos ‘‘Annales’’. Em 1958, ele publica aio artigo que vai marcar profundamente a etapa atifal da ea nova eee iai ao”” ernant * ‘iéncias sociais: a longa duragao”’™’. Em ls 7 Charles Morazé e Georges Friedmann confiam os Annales a uma no ya equipe: André Burguiére, Marc Ferro, Jacques Le Goff, Emma- 1 Le Roy Ladurie e Jacques Revel. = . . - No cnlantn, antes de tentar definir a historia nova hoje, convém recordar a longa ¢ ilustre linhagem de que ela descende. OS PAIS DA HISTORIA NOVA De fato, além da ‘‘escola dos Annales”, ahistéria nova pode rein- vindicar alguns dos maiores nomes da hist6ria desde o século XVIII. Voltaire ja definira o projeto da histéria nova E Voltaire, escrevendo em suas “Novas consideragdes sobre a historia’’ (1744): ‘‘Talvez aconteca em breve, na maneira de ae ahistéria, o que jd aconteceu na fisica. As novas descobertas en 4 proscrigao dos antigos sistemas. Vai-se querer conhecer o Fe i. humano naquele detalhe interessante que constitui, hoje, a ba: a filosofia natural (...). E bom que existam arquivos de ne ale ae se possa consultar, se necessario; ¢ atualmente encaro todos os ne : volumosos como dicionarios. Contudo, depois deter lido oe oug , tro mil descrigSes de batalhas, eo teor de algumas aes le tral a dos, percebi que, no fundo, quase nao estava mais instruido. Sé a dia acontecimentos. Nao conheco os franceses ¢ os sarracenos pela batalha de Charles Martel, do mesmo modo que nio conheco os a taros e os turcos pela vitoria que Tamerlao logrou sobre Bajazet. Eu gostaria de saber quais eram as forcas de um pais antes de ne aa ra, €s€ essa guerra aumentou-as ou diminuiu-as. A Espanha foi mais 38 JACQUES LE GOFF rica antes da conquista do novo mundo do que hoje? Quantos habi- tantes tinha na época de Carlos V a mais do que sob Filipe II? Por que Amsterdam continha apenas vinte mil almas ha duzentos anos? Por que conta hoje 240 mil habitantes? E como se sabe isso positiva- mente? Quantos habitantes a Inglaterra tem a mais do que na época de Henrique VIII? Seria verdadeo que se diz nas ‘Cartas persas’, que faltam homens na terrae que ela esta despovoada em comparagao com © que era ha dois mil anos? (...) Eis ai, jd, um dos Objetos da curiosi- dade de quem quer que queira ler a historia como cidadao e fildsofo. Ele nao se limitara a esse conhecimento; procurara saber qual foi o vicio radical ea virtude dominante de uma nacao; por que ela foi po- derosa ou fraca no mar; como e até que ponto ela se enriqueceu no ultimo século: os registros das exportagSes podem informa-lo. Ele vai querer saber como as artes, as manufaturas se estabeleceram: seguira a sua passagem e a sua volta de um pais a outro. As mudangas nos costumes e nas leis sero, enfim, seu grande objeto. Saber-se-ia, as- sim, a historia dos homens, em vez de saber-se uma pequena parte da histéria dos reis e das cortes. Em vo, leio os Annales da Franca: nossos historiadores se calam sobre todos esses detalhes. Nenhum te- ve como divisa: Homo sum, humani nil a me alienum puto.?45 Historia econémica, demografica, historia das técnicas edos cos- tumes, ndo apenas histéria politica, militar, diplomatica. Historia dos homens, de todos os homens, nao unicamente dos reis e dos grandes. Histéria das estruturas, nao apenas dos acontecimentos. Historia em movimento, historia das evolucoes e das transformagées, nao histéria estatica, historia quadro. Histéria explicativa, nao his- toria puramente narrativa, descritiva — ou dogmatica. Historia to- tal, enfim... Esse programa da historia nova, que tem mais de dois séculos, vai ser retomado por Chateaubriand e Guizot, na primeira metade do século XIX. Um verdadeiro manifesto em Chateaubriand O prefacio dos ‘Estudos histéricos” de Chateaubriand (1831) éum verdadeiro manifesto da historia nova: “As sociedades antigas Perecem; de suas ruinas surgem sociedades novas: leis, habitos, usos, costumes, opiniGes, principios até, tudo é mudado. Uma grande re- volugao se realiza, uma grande revolucdo se prepara: a Franca deve recompor seus Anais, a fim de relaciona-los com os Pprogressos da in- teligéncia... Os analistas da Antiguidade nao introduziam em suas nar- rativas 0 quadro dos diferentes ramos da administracdo: as ciéncias, as artes, a educacao ptiblica eram rejeitadas do dominio da histéria, HISTORIA NOVA (iio caminhava com leveza, desembaracada da pesada bagagem que Nije atrasta consigo. Com freqiiéncia, o historiador era apenas um Yinjante que contava o que vira. Agora, a histéria éuma enciclopé- iin; é preciso enfiar tudo nela, desdea astronomia até a quimica, des- dea arte do financista até a do manufator, desde o conhecimento do pintor, do escultor eda arquitetura até odo economista, desde o estu- dlo das leis eclesidsticas, civis e criminais até o das leis politicas. O his- toriador moderno deixa-se levar a narrativa de uma cena de habitos ede paixdes, a gabela*® sobrevém de repente; outro imposto recla- ma; aguerra, anavegacdo, ocomércio acorrem. Como as armas eram feitas entéo? De ondeera tiradaa madeira para as construgdes? Quanto @ustava alibra-peso de pimenta-do-reino? Tudo esta perdido, se o au- {or nao notou que o ano comecava na Pascoa e que ele o datou de 1? de janeiro’, Como pretender que as pessoas confiem em sua pa- Javra, se ele se enganou de pagina numa citagao, ou seele numerou mal a edicao? A sociedade permanece desconhecida, se se ignorar a cor dos calgGes do rei e 0 prego do marco de prata‘’, Esse historia- dor diz saber nao s6 0 que acontece em sua patria, como também nas egides vizinhas, e entre esses detalhes é preciso que uma idéia filos6- esteja presente em seu pensamento e lhe sirva de guia. Eis os in- convenientes da histéria moderna: sao tamanhos, que talvez nos im- am de termos um dia historiadores como Tuciclides, Tito Livio ¢ Tacito, mas nao podemos evitar esses inconvenientes e temos de submeter-nos a eles.’’49 . . Historia global de novo, onde o econdmico, oartistico, o antro- pologico ocupam o primeiro plano. Historia dos precos ¢ da econo- mia politica (e nao histéria politica). Historia “filoséfica’ , isto é, pro- blematica e explicativa. Historia pronta, enfim, a renunciar ao pres- tigio do estilo, a concepedo do historiador escritor e artista, se for pre- ciso pagar esse prego pelo rigor cientifico... Historia nova que Cha- teaubriand chama de historia ‘“‘moderna’’, expressao que teria sem divida feito fortuna, se a divisdo da historia pelos humanistas do sé- culo XVI em histérias antiga, medieval e moderna, entronizada pelo uso universitario, nado houvesse detido a sua carreira, por temor de equivoco. Todavia, a histéria “moderna”? de Chateaubriand em 1831 ja € nossa historia nova. Guizot e a civilizagao como objeto da historia Pouco tempo antes, em 1828, Guizot — na primeira ligao do seu “Curso de histéria moderna: historia da civilizacéo na Europa, des- dea queda do império romano atéa Revolucdo Francesa’’ — atribui- 40 JACQUES Lk GOTT ra como objeto central da histériaa civilizagao: ‘Desde ha algum tem- po, fala-se muito, ecom razao, da necessidade de encerrar a historia nos fatos, da necessidade de contar. Nada mais verdadeiro. No en- tanto, ha muitos mais fatos a contar, ¢ fatos bem diferentes do que talvez sejamos tentados a acreditar num primeiro momento: ha fatos materiais, visiveis, como as batalhas, as guerras, os atos oficiais dos governos; ha fatos morais, ocultos, que nem por isso sao menos reais; ha fatos individuais, que t@m um nome préprio; ha fatos gerais, sem nome, aos quais ¢impossivel atribuir uma data precisa, que ¢ impos- sivel encerrar em limites rigorosos e que nem por isso deixam de ser fatos como os outros, fatos histdricos que nao se pode excluir da his- toria sem mutild-la... Nao parece, de fato, senhores, que o fato da civilizacao seja o fato por exceléncia, 0 fato geral e definitivo em que todos os outros vém dar, em que se resumem? Peguem todos 0s fatos de que se compoe a historia de um povo, que acostumamos a conside- rar como os elementos da sua vida; peguem suas instituigdes, scu co- mercio, sua indtistria, suas guerras, todos os detalhes de seu governo: quando queremos considerar esses fatos em seu conjunto, em sua li- gacao, quando queremos aprecia-los, julgd-los, o que perguntamos aeles? Perguntamos-lhes em que contribufram para acivilizagao des- se povo, que papel desempenharam nela, que importdncia tiveram, que influ€ncia exerceram... Qual é, pois, senhores, pergunto, qual é, antes de empreender a sua histéria e considerando-o unicamente em si mesmo, esse fato tao grave, tao amplo, tao precioso, que parece © resumo, a expressao da vida inteira dos povos?... Desde ha muito eem muitos paises, utiliza-se a palavra civilizagdo: vinculam-se a cla idéias mais ou menos nitidas, mais ou menos amplas; mas, enfim, as pessoas utilizam-na e se entendem. E o sentido dessa palavra, seu sen- tido geral, humano, popular, que ¢ preciso estudar.’*5? Claro, Guizot, homem de seu tempo, porta-voz dos “‘burgueses conquistadores”’ para usar a feliz expressao de Charles Morazé5!, vé sobretudo na civilizagao a idéia de progresso (‘‘A idéia do progresso, do desenvolx imento parece-me sera idéia fundamental contida na pa- lavracivilizagao”’), Mas acreditariamos jd estar ouvindo Lucien Feb- vre apresentando na primeira Semana Internacional de Sintese, em 1930, seu célebre estudo ‘‘Civilizagdo: evolugio de uma palavra e de um grupo de idéias’’, Lucien Febvre justificando em 1946 no novo subtitulo dos ‘‘Annales”’: “Economias, Sociedades, Civilizacdes”®2, “civilizagSes no plural’’, como sublinhara Marc Bloch em ‘‘Apolo- gia da historia’. Mas os dois principais precursores da histéria nova sao, sem du- vida, Michelet e um economista francés, Francois Simiand. A HISTORIA NOVA Michelet, profeta da historia nova Profeta da historia nova, Michelet nao o € apenas em sua obra. Ele o foi explicitamente neste grande texto: o Prefacio de 1869 da His- (ria da Franga®, ‘Bla tinha anais, nao uma historia. Homens emi- nentes haviam-na estudado sobretudo do ponto de vista politico. Nin- guém penetrara no infinito detalhe dos diversos desenvolvimentos de sua atividade (religiosa, econémica, artistica, etc.), Ninguém ainda a havia abarcado com o olhar na unidade viva dos elementos naturais ¢ geograficos que a constituiram. Fui o primeiro a vé-la como uma alma ¢ uma pessoa... Mais complicado ainda, mais assustador, cra meu problema histérico colocado como ressurreicdo da vida integral, nao em suas superficies, mas em seus organismos internos e profun- dos... Em resumo, a historia, tal como eu a via nesses homens emi- nentes (e varios admiraveis) que a representavam, ainda me parecia fraca em seus dois métodos: pouquissimo material, levando em conta racas, nao 0 solo, oclima, os alimentos, tantas circunstancias fisicas e fisioldgicas. Pouquissimo espiritual, falando das leis, dos atos poli- ticos, nao dasidéias, dos habitos, nio do grande movimento progres- sista, interno, da alma nacional.’’ De novo a recusa de uma historia essencialmente politica e a aspiracao a uma historia total e profunda. Enfim e sobretudo, o apelo a duas orientagdes essenciais da histéria nova: uma historia mais material, anunciadora da historia da cultura material, que se interessa pelo clima‘4, pelos alimentos®5, pelas cir- cunstancias fisicas®, e uma historia mais espiritual®’. Uma histéria que seja a dos costumes — e com a evocac4o de Voltaire (‘‘Ensaio sobre os costumes”’) anunciam-se a histéria antropoldgica e a volta de nossa época ao belo conceito de ‘‘costumes’’**. Simiand, um economista contra os ‘‘idolos’’ dos historiadores O nome de Francois Simiand pode surpreender aqui. Porque Si- miand (1873-1935) nao foi historiador, mas economista e socidlogo, e porque sua notoriedade discreta nado tem a mesma amplitude que a celebridade dos historiadores que acabo de citar. No entanto, Simiand possui varios titulos para apresentar co- mo aval de seus vinculos com a histéria nova. Mais do que no eco- nomista que enriqueceu a teoria dos ciclos e preparou a problema- tica da ‘‘Revue de synthése historique” e no inspirador dos ‘‘Anna- les’’, penso aqui no autor do memoravel artigo ‘‘Método histérico eciéncia social’”’. Fazendo sua uma metafora de Bacon, nele Simiand denunciava ‘‘trés idolos da tribo dos historiadores’’: JACQUES LE GOR 1. “0 ‘idolo politico’, isto é, o estudo dominante, ou pelomen a preocupacao perpétua com a histéria politica, os fatos politicos, guerras, etc., 0 que leva a dar a esses acontecimentos uma import! cia exagerada...’’ 2. “O ‘idolo individual’, ou o habito inveterado de conceber | historia como uma historia dos individuos, ¢ nao como um estudo’ fatos, habito que ainda conduz comumente a ordenar as pesquit eas trabalhos em torno de um homem, e nao em torno de uma ing tuicao, de um fendmeno social, de uma relacao a ser estabelecida.., 3. “‘O ‘idolo cronoldgico’, isto é, o habito de se perder em esti dos de origem, em investigagdes de diversidades particulares, em de estudar e compreender primeiro o tipo normal, procurando e determinando-o na sociedade e na época em que ele se es contra..,?*59 Destronar a historia politica foi o objetivo nimero um dos “A nales’’ e continua sendo uma preocupacdo de primeira ordem da hig tria nova, ainda que, como direi adiante, uma nova historia p ca, Ou antes uma historia de uma nova concepeao do fato poli deva tomar seu lugar no dominio da histéria nova. Desembaragar-se da histéria dos grandes homens — essa presa esta bem encaminhada, ainda que, de um lado, essa historia das aparéncias ilusérias continue a grassar na produ¢do para @ pseudo-historica e que, de outro, a histéria nova deva reexami a questao dos grandes homens e dar um novo estatuto cientifico | biografia. Mais do que no ‘‘Lutero’’ de Lucien Febvre™, deve pensar aqui no ‘‘Frederico II’’ de Ernst Kantorowicz*®! e no ‘‘Luts XIV e vinte milhdes de franceses’’ de Pierre Goubert®. Rever, @ fim, os habitos cronoldgicos dos historiadores é uma das grandes” tarefas da historia nova, que — tornarei a este ponto — sé foi inke ciada timidamente, por enquanto. Talvez mais do que no sentid@ dessa manipulagao abstrata do tempo que Francois Simiand deseja= va, € no sentido da considerag&o da multiplicidade dos tempos hi i toricos e da elaboracdo de regras precisas da longa duragao que historia nova deve se orientar. UMA HISTORIA FRANCESA? A historia nova parece ser, essencialmente, uma historia fran cesa. E de fato é, em grande parte. Nao ha, que eu saiba, estu aprofundado desse problema, apesar das interessantes observag6es de Luciano Allegra ¢ Angelo Torre®’. No maximo podemos suges rir duas hipoteses, que, alids, devem se completar e ser combinas) INIA NOVA 43 Wi lado, a historia desempenhou na Franca, desde o século Who desde o fim do século XVII, um papel dominador, fe- # plonciro no campo das ci€ncias que iriam chamar-se hu- i) sociais. Vimos alguns dos grandes nomes que manifesta- a papel ¢ contribuiram para fortalec8-lo. Enquanto nos pai- §-4uxGes as ciéncias sociais modernas sdo antes oriundas da ou da antropologia, na Franca foi a historia que desem- © papel-guia, como se pode ver, por exemplo, nas condi- fundagao, no programa e no funcionamento da VI segao Pratique des Hautes Etudes a partir de 1947. Alias, ndorse a Inglaterra, onde o desenvolvimento precoce da cién- Omica e da economia politica e a influéncia americana con- parcialmente essa emergéncia da historia, a Franca é0 uni- ‘Wandes paises modernos a ter uma tradi¢ao historiografica wontinua, ligada tanto aos centros do poder politico e ideo- (Monarquia, Igreja), quanto a evolugdo social (historia nol , historia burguesa) e 4 formacao precoce do sentimento entre os séculos XII e XV. Uma série de estudos, dirigida rd Guénée, mostrou recentemente essa vitalidade e impor- ilu historiografia francesa desde a Idade Média“. if Outro lado, a tradic&o historiografica na Franca protegeu- OU menos contra duas influéncias que, alids, na Alemanha, ld @ especialmente nos paises anglo-sax6es, mais ou menos ‘4am-na, esterilizaram-na ou, em todo caso, desviaram-na des- dria do cotidiano e do concreto em que a histéria nova bebeu hor inspiracdo. Quero falar da filosofia — mais particular- da filosofia da histéria — e do direito, inspirador de uma Juridica, freqiientemente sem contato com o real, combi- §-4e com a erudicao positivista para produzir, conforme a ex- 0 de Marc Bloch, ‘‘esses camponeses que sé lavram cartul4- e *, A historiografia francesa nao foi dominada por um Vico (qual- lle tenha sido o fascinio que este exerceu sobre Michelet), um um Carlyle ¢, mais préximo de nds, um Spengler, um Croce i Toynbee. Esse distanciamento dos historiadores franceses em. © A filosofia da histéria provavelmente contribuiu para limi- Jnfluéncia, sobre a historia francesa profissional de um Taine, lilo XIX, ou de um Raymond Aron, em nossos dias. Teno, é claro, nao deve levar a uma concep¢o ridiculamente na- lista da historia nova. Trata-se, antes de tudo, de uma historia jarmente sensivel as diferencas e que, onde pode se desen- — ese desenvolverd, como, alids, j4 comegamos a ver — Hi de acordo com seus préprios caminhos. Tampouco se deve es- # © papel que alguns estrangeiros desempenharam na génese 44 JACQUES LE GOFF dessa historia, um Pirenne ou um Huizinga, para nao falar de Marx. A histéria nova fora da Franca Enfim e sobretudo, a historia nova também se faz fora da Fran- a, e muitas vezes de uma maneira brilhante e pioneira. Em matéria de revistas, recordemos o papel de modelo representado pela ‘‘Vier- teljahrschrift fiir Sozial- und Wirtschaftsgeschichte’’® no nascimen- to dos ‘‘Annales d’histoire économique et sociale’’. Hoje, a revista britanica ‘*Past and Present’’ (desde 1952) representa a historia no- va. ao mesmo titulo que os “‘Annales E.S.C.’’. E as anglo-americanas “Comparative Studies in Sociology and History’’ (desde 1957) con- tribuiram para essa renovacdo da historia social em sentido amplo. Juntamente com a Inglaterra, a Italia parece abrir-se de modo par- ticular a historia nova, o que é atestado pela atividade de varios de seus editores. Citarei ao acaso (e ha varios outros) a posicao de pri- meiro plano que ocupam em etno-histéria a americana Natalie Ze- mon Davis ¢ 0 italiano Carlo Ginzburg; a brilhante escola histérica polonesa produziu, por exemplo, um dos melhores e mais inovado- tes historiadores dos marginais, Bronislaw Geremek®, ¢ Witold Ku- la renovou os modelos marxistas na histéria econémica e social, tanto com um grosso tratado de histéria econémica, quanto, e talvez prin- cipalmente, com um novo modelo de feudalismo®, que suscitou no Ocidente um vivo interesse, e com um livro pioneiro, ‘‘Das medidas e dos homens’’68, onde mostra como a histéria das lutas sociais muitas vezes travou-se em torno de instrumentos da vida cotidiana. A HISTORIA NOVA HOJE Em ‘‘Faire de histoire’, a histéria nova foi definida pelo aparecimento de novos problemas, de novos métodos que renova- ram dominios tradicionais da histéria (0 essencial dessas renovacées sera encontrado nos verbetes deste diciondrio: por exemplo, demo- grafia historica, historia religiosa, historia social, etc.) e, principal- mente talvez, pelo aparecimento no campo da histéria de novos ob- jetos, em geral reservados, até ent&o, a antropologia (o leitor en- contrard aqui exemplos nos verbetes Alimentacao. Corpo, Gestos, Imagens, Livro, Mito, Sexo). Eu a definirei, ao mesmo tempo, pelos novos desenvolyimentos das suas orientagées nos tltimos cin- qiienta anos e por perspectivas inéditas; e tratarei de indicar 0 que, 4 HISTORIA NOVA 45 hessas opeoes, esta em jogo diante de outras tendéncias ou inércias da historiografia. A longa duracéo A mais fecunda das perspectivas definidas pelos pioneiros da historia nova foi a da longa duracdo. A historia caminha mais ou menos depressa, porém as forcas profundas da histéria so atuam ¢ se deixam apreender no tempo longo. Um sistema econémico e social sé muda lentamente. Marx — que pelo conceito de modo de produgio, pela teoria da passagem da escraviddo ao feudalismo, de- pois ao capitalismo, designou como formacGes essenciais da histé- ria sistemas plurisseculares — compreendeu isso. Podemos defini- los de outras maneiras, cscolher como medida da histdria os costu- mes ou as mentalidades, distinguir periodos de acordo com as téc- nicas, de acordo com as formas energéticas (predominancia suces- siva do motor humano, do motor animal, do motor mecdnico), de acordo com as atitudes diante de fendmenos e problemas fundamen- tais: 0 trabalho, por exemplo (quando se passa da idéia de trabalho desprezivel a de trabalho progressista, de morte inteiramente amar- gada a morte parcialmente dominada?). A historia do curto prazo é incapaz de apreender e explicar as permanéncias e as mudangas. Uma historia politica que se pauta pelas mudangas de reinados, de governos, nao apreende a vida profunda: © aumento da estatura dos humanos, ligado as revolugdes da ali- mentagao e da medicina; a mudanga das relacdes com 0 espaco, de- corrente da revolucdio dos transportes; a subversdo dos conhecimen- tos, provocada pelo aparecimento dos novos meios de comunica- do de massa, a imprensa, 0 telégrafo, o telefone, o jornal, o radio, a televisdo, nado dependem das mudangas politicas, dos acontecimen- tos que ainda hoje ocupam as manchetes dos jornais. Portanto, é preciso estudar o que muda lentamente € 0 que se chama, desde ha alguns decénios, de estruturas; mas também ¢€ necessario resistir a uma das tentagdes da histdria nova. Fixados na importancia do que dura, alguns dos maiores historiadores de hoje em dia empregaram — sem se iludirem, forgando as palayras, para melhor explicar as coisas — expressdes perigosas: “‘histdria quase imovel” (Fernand Braudel) ou ‘‘hist6ria imével” (Emmanuel Le Roy Ladurie). Nao, a histéria se move. A historia nova deve, ao contra- rio, fazer com que a mudanga seja melhor apreendida. 46 JACQUES LE GOFF O homem selvagem e 0 homem cotidiano A teoria fecunda da longa duragao propiciou a aproximacao entre a historia e aquela ciéncia humana que estudava sociedades “‘quase iméveis”’ — a etnologia ou, como se diz mais naturalmente hoje, a antropologia. Daj o interesse crescente pelo nivel dos costu- mes, do que Marcel Mauss chamava técnicas do corpo”, das ma- neiras de se alimentar, de se vestir, de morar, etc. Foi 0 programa de estudo do homem selvagem e do homem cotidiano que Francois Furet e eu tentamos esbocar’!. Dai a necessidade de desenvolver os métodos de uma histéria a partir de textos até entao desprezados — textos literdrios ou de arquivos, que atestam humildes realidades cotidianas —, os “‘etnotextos’’?2 - Entretanto, a aproximago entre historiadores e antropdlogos nao se dé sem problemas. Nos ultimos decénios, a antropologia desenvolveu-se sobretudo nos dominios extra-europeus e, no domi- nio das sociedades desenvolvidas, deixou o campo livre para o fol- clore — que retine uma riqueza nao raro mal ou pouco explorada —, reduzido a. uma situacdo de etnologia do pobre. Com esse folclore, a histéria nova sente-se muitas vezes em pé de igualdade, enquanto a antropologia continua nao dando muita importncia a ele. Por outro lado, a historia nova interessou-se sobretudo por uma etnolo- gia das diferengas, enquanto a antropologia — e nao sé sob a in- fluéncia do estruturalismo — voltou-se para o homem, abstracdo sempre pouco atraente para a histéria nova. O pensamento dos sel- vagens interessa mais aos historiadores do que 0 pensamento selva- gem — apesar da importancia da obra de Claude Lévi-Strauss para toda uma nova geracdo de historiadores dos mitos. A histéria e as outras ciéncias humanas Esse didlogo privilegiado da histéria com a antropologia nao deve fazer esquecer os esforgos da historia nova para melhor enta- bular 0 didlogo com as outras ciéncias humanas. A escola francesa de sociologia de Durkheim exercera uma inegavel influéncia sobre os. “Annales’’, quando do nascimento destes. A presenca de Geor- ges Friedmann e os vinculos de Fernand Braudel com Georges Gur- vitch nao bastaram para garantir 0 prosseguimento de um intercam- bio fecundo. A historia nova nao encontra com facilidade uma lin- guagem comum a uma sociologia que oscila entre um discurso dog- matico filoséfico e abstrato e métodos demasiado empiricos, proce- dendo por questiondrios por tras dos quais nem sempre se delineia A HISTORIA NOVA at uma problematica sdlida. De sua parte, os socidlogos sentem-se al- go inquietos diante das pretensdes expansionistas da histéria’3, acham-na demasiado conceitual e, com freqiiéncia, continuam a ver nela apenas um reservatério de exemplos e de experiéncias. Com a economia, o didlogo nao é mais facil. Claro, o desen- yolvimento da historia econémica e sua presenca sempre indispen- savel na histéria nova mantém passarelas entre as duas ciéncias. Con- tudo, a tecnicidade crescente da economia ¢ a tirania da economia matematica, a tendéncia dos economistas a se limitarem aos estu- dos de curto e médio prazo também conduzem, aqui, a uma distor- gao entre as orientagdes das duas ciéncias. No entanto, a colabora- cao, por exemplo, de um Serge-Christophe Kolm com os “‘Anna- les’? atesta uma evolugdo nessas relacdes’4. A obra de um grande historiador da historia nova, como Georges Duby — que, partindo de bases de historia econdmica e social, amplia esses horizontes pe- la integracao dos sistemas de representagdo’5 — é de natureza a fa- cilitar essa evolucao. A crise atual da geografia também acarretou um afrouxamen- to nas relagdes entre a historia e a geografia, de que ja vimos 0 papel essencial que representou no pensamento de Marc Bloch, de Lucien Febvre e de Fernand Braudel e nos “‘Annales”’ até um perio- do recente. Porém, as premissas de um renascimento da geografia, a partir de uma nova problematica do espaco e de uma melhor inte- grac&io da duracao — portanto, da historia — no estudo dos fené- menos espaciais permitem esperar uma renovagao promissora das relagGes entre as duas ciéncias. O degelo é menos nitido nos dominios da psicologia e da lin- giiistica. O desenvolvimento da psicologia social, mais em contato com a sociologia do que com a histéria, e os progressos de uma psi- cologia cientifica, mais ligada as ciéncias naturais (ou bioldgicas) do que as ciéncias humanas, mantiveram ou agravaram as ignoran- cias entre psicologia e historia. A evolucdo da histéria da psicologia coletiva, no sentido do conceito de mentalidade, pouco interessante para os psicdlogos, aumentou ainda mais as distancias entre as duas ciéncias. A lingiiistica moderna — com suas orientaces estrutura- listas — tampouco se aproximou da histéria nova, apesar da aten- co que os historiadores dedicam 4 obra de um Emile Benveniste, ou as pesquisas dos semiologistas ¢ semidticos, que ocuparam um lugar de destaque na VI secdo da Ecole Pratique des Hautes Etu- des, que se tornou, em 1975, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Restam trés evolucées interessantes, mas de resultados ainda limitados. 4s JACQUES LE GOFF A primeira, no proprio campo das ciéncias humanas, é 0 inte- resse pela psicandlise. Dele resultou, inclusive, o nascimento de uma historia psicanalitica, mais desenvolvida talvez nos paises anglo- saxOes do que na Franga, onde, no entanto, vias bem diferentes, ca- minhos sugestivos foram abertos por Michel de Certeau, de um la- do, ¢ Alain Besancon, de outro’®, Todavia a dificuldade, para a psi- candlise, de passar cientificamente do individual ao coletivo, a des- confianga de muitos historiadores acerca do pensamento de Jung, apesar de mais apto a coincidir com as preocupagées dos historia- dores, de certos historiadores, em todo caso, como Alphonse Dupront”’ e Luigi Aurigemma’’, pararam um pouco essas pesqui- sas; provisoriamente, sem diivida. A segunda via é a do encontro da histéria com as ciéncias exa- tas, em particular com a matematica. Aqui também, uma nova cién- cia nasceu, a matemética social, mas a sua utilidade tem sido até hoje mais clara para a sociologia, a psicologia, a lingiiistica ¢ a geo- grafia, do que para a historia. A via mais promissora talvez seja a que tende a baixar, sendo a derrubar as paredes entre as ciéncias humanas (em primeiro lu- gar, a historia) e as ciéncias bioldgicas. O desejo da historia nova de construir uma histéria do homem total, com seu corpo e sua fi- siologia situados na duracdo social, a preocupacao de alguns gran- des bidlogos com fazer da historia de sua ciéncia um instrumento de pesquisa de uma maneira nao externa, mas interna” e ampliar suas pesquisas as dimensdes da ecologia humana fazendo intervir a historia, a geografia, a antropologia, a sociologia, a demografia, juntamente com a biologia propriamente dita®, deixam entrever grandes perspectivas*!, O papel da historia nova é determinante ai. A histéria das mentalidades Lucien Febvre ¢ Marc Bloch, atraidos pela psicologia coletiva € pelos fenémenos espirituais na historia, abriram os enfoques de uma histéria nova, a das mentalidades. No entanto, Lucien Febvre s6 explorou dois aspectos — alias bastante importantes — desse no- vo dominio: a nocao de aparelhagem mental e a de sensibilidade®?. Lucien Febvre orientou Alberto Tenenti para o tema da sensibili- dade diante da morte. ‘‘A vida e a morte através da arte do sé- culo XV”’S3, do jovem historiador italiano, abre caminho para um tema que ia se revelar de extrema fecundidade e suscitar obras fun- damentais: a de Michel Vovelle®4, a de Pierre Ariés®’, a de Pierre Chaunu®, | AWISTORIA NOVA 49 Depois da morte de Lucien Febvre, varios historiadores, seguin- to seus passos, esforcam-se em praticar e definir a nova historia das mentalidades: Georges Duby*’, Robert Mandrou®® e Jacques Le Goff®. Philippe Ariés e Roger Chartier falam neste dicionario so- bre a importancia essencial desse dominio para a historia nova re- gente. Eu me contentarei aqui em recordar que essa nocao vaga, am- bigua e, por vezes, inquietante de “‘mentalidade’’, como muitos fermos vagos, é uma das que mais agitaram, nestes Ultimos | anos, 6 dominio da historia e trouxeram, especialmente para a historia eco- némica, um contrapeso desejado. As mentalidades deram oxigénio A historia. A historia quantitativa e a revolugdo documenial O historiador economista trabalhou com nuimeros desde bem cedo e recorreu a estatistica; todavia, de vinte anos para ca, quase todos os historiadores que se puseram a contar interessaram-se pe- los computadores, ¢ veio dai uma revolucdo: a histéria quantita- tiva. Emmanuel Le Roy Ladurie, forjando com humor uma for- mula conscientemente exagerada, declarou que, de agora em dian- te, ou o historiador sera programador, ou nao seré historiador. O desejo de se interessar por todos os homens De fato, a revolugdo proveio da extensao da histéria quantita- tiva a tudo o que podia ser contado, especialmente a histéria demo- grafica e a histdria cultural. As familias, os recrutas, a producao literdria foram colocados em cartédes perfurados e postos no com: putador. Em estudos fundamentais e inovadores, Frangois Furet’ e Pierre Chaunu, pioneiros da histéria nova — este ultimo ‘‘inven- tor” da historia serial, que, 4 imagem das séries de pregos da histéria econémica, constitui séries de tudo o que pode ser contado na duragaio — explicaram, de maneira excelente, os Progressos ex- cepcionais que a histéria quantitativa levou a histéria tout court a realizar, bem como os limites desse método. Marc Bloch ja ressalta- ra os perigos da “‘supersticéio do ntimero”. A histéria nova conti- nua sendo, em grande parte, qualitativa, e sabe-se que a fecundida- de da histéria quantitativa depende da qualidade do programa do historiador ¢ que o essencial do trabalho histérico ainda esta por fazer, depois que o computador fornece seus resultados. A prudén- cia se impée, tanto mais que a histéria quantitativa se situa no inte- 50 JACQUES LE GOFF rior de uma verdadeira revolucao documental, que Jean Glénisson descreveu perfeitamente e que nao é desprovida de ambigiiidades e perigos”’. O documento basico, a unidade de informacao ¢, de agora em diante, o dado, nao o fato, e o corpus é o agrupamento de dados reclamado pelo computador. As melhores fontes sao as que fornecem dados macigos, cujo modelo € 0 registro paroquial. A explosao documental é, em parte, resultado do desejo do histo- riador de se interessar, de agora em diante, por todos os homens. Contudo, o historiador novo nado deve nem forcar 0 computador a contar 0 que nao pode ser contado, seja em razao do estado da documentacao, seja da natureza do fendmeno, nem negligenciar o que ndo. € quantificavel, nem deixar ao computador o cuidado de “fazer a historia” e realizar o velho sonho do historiador positivis- ta: assistir passivamente 4 produgao “objetiva’’ da historia pelos documentos. Historia e tempo presente Lucien Febvre e Marc Bloch eram fascinados pelo presente, por mais que um fosse setecentista e o outro medievalista. Marc Bloch concebia como uma audacia necessdria estender 0 dominio da histéria ‘‘até 0 conhecimento do presente’’, sendo consideravel a parte reservada a artigos de histdria bastante contemporanea nos “Annales dhistoire économique et sociale”. Ndo obstante, os prin- cipais avancos da historia nova produziram-se nos dominios da his- toria medieval e da moderna. Decerto, ha notdveis excec6es, indivi- duais ou coletivas. No dominio da historia antiga — em que o peso da historia tradicional, ligada 4s humanidades classicas e 4 erudi- cao igualmente tradicional, é grande, em que, apesar da arqueolo- gia, o conhecimento do homem cotidiano é dificil de ser alcancado, em que, salvo ainda na arqueologia, a possibilidade de uma histéria quantitativa é fraca —, o grupo dos historiadores franceses do mito na civilizagdo helénica antiga” atesta o formidavel avanco da his- toria nova. No dominio da histéria contemporAnea, podemos citar especialmente as obras ¢ as pesquisas exemplares de Maurice Agulhon™, em que aparece o conceito novo de ‘‘sociabilidade”’. Entretanto — e a fraqueza desse periodo nos ‘‘Annales E.S.C.”’ recentes é um signo disso —, a penetracao da historia nova no setor da historia contemporanea é limitadissima. O prestigio da histéria fatual e da histéria politica permanece grande nesse setor. A histé- tia do presente nao raro é mais bem feita pelos socidlogos, os politi- célogos, certos grandes jornalistas, do que por historiadores de ofi- A HISTORIA NOVA 51 elo. Annie Kriegel, historiadora perspicaz ¢ completa do fendmeno eomunista, trocou a etiqueta de historiadora pela de socidloga. No entanto, como tentam com éxito Jacques Julliard, Pierre Nora e Jac- ques Ozouf, entre outros, a conquista da histéria contemporanea pela histéria nova é uma tarefa urgente. A possibilidade de uma his- tdria total salta aos olhos nesse campo; a ‘‘volta do acontecimen- to” analisada com tanta perspicdcia por Pierre Nora, e a predomi- nincia das ideologias, alvo ideal para a histéria nova, fazem dela uum terreno de pesquisas-modelo para o historiador novo. Uma resposta a nossas interrogagdes Ha mais. A histéria nova tem o dever de responder a pelo me- nos algumas das grandes interrogagées da nossa época. Desde 1946, Lucien Febvre afirmava: ‘Fazer a histdria, sim, na medida em que a historia é capaz, e a unica capaz, de nos permitir, num mundo em estado de instabilidade definitiva, viver com outros reflexos que nao os do medo...’’®> Eu precisaria: ‘‘na medida em que a historia nova é a mais capaz...”” Porque em nosso mundo, onde muda a me- moria coletiva, onde o homem, o homem qualquer, diante da acele- racdo da historia, quer escapar da angustia de tornar-se drfao do passado, sem raizes, onde os homens buscam apaixonadamente sua identidade, onde procura-se por toda parte inventariar e preservar os patrimGnios, constituir bancos de dados, tanto para o passado como para o presente, onde o homem apavorado procura dominar uma historia que parece Ihe escapar, quem melhor do que a histéria nova pode lhe proporcionar informa¢Ges e respostas? Essa historia, que trata dele por inteiro, em sua duracdo secular, que o esclarece sobre as permanéncias e as mudancas, proporciona-lhe o equilibrio entre os elementos materiais e espirituais, 0 econémico e o mental, propde-lhe opgdes sem impé-las. Sempre coube a histéria desempe- nhar um grande papel social, no mais amplo sentido; e em nossa época, em que esse papel é mais que nunca necessdrio, a historia nova, se hes forem proporcionados os mcios de pesquisas, de ensi- no (em todos os niveis escolares) e de difusdo de que necessita, esta em condigdes de desempenha-lo. Hist6ria nova e marxismo A renovacao global da historia, representada pela historia no- va, s6 encontrou problemas fundamentais diante do marxismo. JACQUES LE GOFF Nao que se trate de uma incompatibilidade, mas as circunstancias historicas nas quais se desenvolveu a historia nova — num momen- to em que os historiadores que reivindicavam abertamente 0 mar- xismo praticavam, em geral, uma historia que, embora combaten- do as bases ideologicas da historia positivista, se acomodava com seus métodos — devem trazer uma clarificagao das relacées entre historia nova e marxismo, Pierre Vilar, autor aqui dos verbetes Marx e Nagao, provou em suas obras® que é possivel ser discipulo de Marx e de Lucien Febyre ao mesmo tempo. Guy Bois da aqui seu Ponto de vista de historiador marxista atual. Publicaces recentes”” permitem perceber a evolucio dos historiadores marxistas a esse res- peito, Eu me contentarei em evocar sumariamente os principais pon- tos de convergéncia e de possiveis desacordos entre 0 marxismo e a historia nova. O marxismo, uma teoria da longa duracao Marx, sob varios aspectos, é um dos mestres de uma histéria nova, problematica, interdisciplinar, ancorada na longa duracdo e com pretensdes globais. A periodizacao (escravidao, feudalismo, ca- pitalismo) de Marx e do marxismo, ainda que nao seja aceita dessa forma, é uma teoria da longa duragaio. Se bem que as nogées de infra-estrutura e de superestrutura parecam incapazes de dar conta da complexidade das relacGes entre os diversos niveis de realidades histdricas, elas decorrem de um apelo a nogao de estrutura, que re- presenta uma tendéncia essencial da histéria nova. A colocacao, em primeiro piano, do papel das massas na historia pode coincidir com ointeresse da historia pelo homem cotidiano, que também é um ho- mem socialmente situado. Contudo, o primado grosseiro do econé- mico na explicagdo histérica, a tendéncia a situar nas superestrutu- ras as mentalidades, cujo lugar, sem ser o de um nivel fundamental de causalidade, é mais central na historia nova e, sobretudo, a cren- ¢a numa historia linear, que se desenvolve segundo um s6 modo de evolucdo, enquanto a hist6ria nova insiste sobre as diferengas das experiéncias histéricas ¢ sobre a necessidade de uma multiplicidade de enfoques, todos esses problemas indicam que a historia nova po- de ser considerada pela histéria marxista oficial como um desafio. Cabe aos historiadores da historia nova — marxistas e ndo-marxistas — aprofundar essa confrontacdo. E uma das tarefas da histéria, hoje... HISTORIA NOVA ‘Ay tradigdes da “‘escola dos Annales”’ # anova geracao de historiadores E inttil, creio eu, repetir que a historia nova foi forjada, em grande parte, pela equipe dos “Annales” eem torno da revista. Nao que, ontem como hoje, eminentes historiadores — que nao tém vin- culos com os ‘‘Annales”’ € que, por vezes, nao simpatizam com essa yevista — ndo tenham um lugar de destaque na histdria nova. Pen- 0, em particular, em Louis Chevalier, cuja obra “Classes laborio- sus e classes perigosas, em Paris, na primeira metade do seculo XIX’® renovou, por alianga entre a historia e a demografia, a hi {ria das estruturas sociais e a historia social, de acordo com as pers- pectivas da histéria nova. . oe Mas € importante situar, ainda que rapidamente, a historia no- va — tal como ela se me apresenta hoje — em relacdo as grandes opgdes dos “Annales”? de Lucien Febvre e Mare Bloch, a fim de medir melhor o caminho percorrido, como Lucien Febvre convida- va os jovens historiadores no prefacio de ‘‘Combates pela historia’?9. A antropologia, uma interlocutora privilegiada Batalhas importantes foram ganhas. A historia cconémica ¢ s\ O- cial adquiriu direito de cidadania e tornou-se fundamental O mé- todo das pesquisas e a pratica da pesquisa histérica em equipe se desenvolvem. A abertura para as outras ciéncias humanas, apesar das dificuldades e das decep¢es, continua na ordem do dia. A ne- cessidade de salvaguardar um olhar novo, de encontrar problemas, campos em que a pesquisa historica esteja na ponta, é percebida por inumeros historiadores. O objetivo de uma historia total, que pro- grida por problemas e seja realizada pela colaboragao internacio- nal, permanece como o objetivo a ser atingido. Contudo, a histéria econdmica ¢ social, sob a forma em que os ‘‘Annales’’ do primeiro periodo a praticavam, nao é mais a fren- te pioneira da histéria nova: a antropologia — de Pouco peso no inicio dos ‘‘Annales’’, ao contrario da economia, sociologia, Beo- grafia — tornou-se a interlocutora privilegiada. A fobia da historia politica nao é mais um artigo de fé, porque a nogao de politica ee luiu e as problematicas do poder impuseram-se a historia nova!0, Do mesmo modo, como Pierre Nora mostrou, 0 acontecimento es- td sendo reabilitado, em novas bases!®!. A historia das mentalida- JACQUES LE GOFF des e das representagdes, apenas esbocada na primeira fase dos “An- nales’’, tornou-se uma das principais linhas de forca. A historia quan- titativa é uma novidade. AS TAREFAS DA HISTORIA NOVA Tal como se apresentam a mim, os desdobramentos provaveis € necessdrios da histéria nova de amanha sao em mimero de trés. A promogdo de uma nova erudicao A hist6ria tradicional se impés e legou uma heranca sempre pre- ciosa, gracas a seus métodos e a suas técnicas. A historia nova nao fez a renovacao dos problemas acompanhar-se de uma renovagao paralela das técnicas de erudigao. Essa tarefa deve compreender no- tadamente: a) Uma nova concep¢do do documento, acompanhada de uma nova critica desse documento. O documento nao € inocente, nao de- corre apenas da escolha do historiador, cle préprio parcialmente de- terminado por sua €poca e seu meio; 0 documento é produzido cons- ciente ou inconscientemente pelas sociedades do passado, tanto pa- ra impor uma imagem desse passado, quanto para dizer ‘‘a verda- de’’. A critica tradicional das falsificacées (e Mare Bloch pouco foi além dela em sua ‘‘Apologia da histéria’’) é muito insuficiente. E preciso desestruturar 0 documento para descobrir suas condicdes de producao. Quem detinha, numa sociedade do passado, a produgao dos testemunhos que, voluntaria ou involuntariamente, tornaram- se os documentos da histéria? E preciso pesquisar, a partir da no- go de documento/monumento, proposta por Michel Foucault em “A arqueologia do saber’’!©2, Ao mesmo tempo, é preciso delimi- tar, explicar as lacunas, os siléncios da histéria, e assenta-la tanto sobre esses vazios, quanto sobre os cheios que sobreviveram. b) Um “‘retratamento” da nocgdo de tempo, matéria da hist6- ria. Aqui, também, pesquisar quem tinha poder sobre 0 tempo, sua medida ¢ sua utilizacdo. Demolir a idéia de um tempo tnico, homo- géneo e linear. Construir conceitos operacionais dos diversos tem- pos de uma sociedade histérica — com base no modelo da multipli- cidade dos tempos sociais, definidos por M. Halbwachs e Georges Gurvitch!, Constituir uma nova cronologia cientifica, que data os fenémenos histéricos muito mais segundo a duracao da sua eficacia A HISTORIA NOVA 55 na historia, do que segundo a data da sua producao. Isso vale tanto para fendmenos materiais, quanto espirituais. Como ha uma cro- nologia das fontes de energia (motor humano, motor animal, va- por, eletricidade, petrdleo, etc.), também ha uma cronologia das crengas (0 purgatério, na sociedade crista, nasceu em fins do século XII c morreu praticamente com o concilio do Vaticano II). ) O aperfeigoamento de métodos de comparatismo pertinen- tes, que possibilitem comparar apenas o que ¢ comparavel. Por exem- plo, a propésito do feudalismo, evitar uma definig&o demasiado am- pla, que coloque sob um mesmo rotulo realidades demasiado d tantes no tempo e no espaco e que nao dependam de sistemas hist6- ricos compardveis — os pretensos feudalismos africanos, no fundo, nao tém muita coisa a ver com o feudalismo europeu dos séculos 1X e X (ele préprio a ser diferenciado em varias fases) —, mas tam- bém no se contentar com uma concepgio estreita que sé julgaria comparaveis 0 feudalismo europeu e o feudalismo japonés. O progresso no sentido de uma histéria total e o imagindrio Ele deve se realizar, antes de mais nada, pela consideracao de todos os documentos legados pelas sociedades: 0 documento litera- rio e 0 documento artistico!™, especialmente, devem ser integrados em sua explicacio, sem que a especificidade desses documentos e dos designios humanos de que sao produto seja desconhecida. Vale dizer que uma dimensao — essencial — que, em grande parte, ain- da falta 4 histéria é a do imagindrio, essa parte do sonho que, se deslindarmos bem suas relagGes complexas com as outras realidades historicas, nos introduz tao longe no amago das socieda- des. A esse respeito, deveria estabelecer-se uma melhor ligag4o, por exemplo, entre os historiadores ¢ o Centre de Recherche sur l’Ima- ginaire [Centro de Pesquisas sobre o Imagindrio] de Chambéry, em torno de Gilbert Durand, vindo da historia literaria e da lingiiistica. Para tanto, o historiador deve escolher como tema de pesquisa o que Pierre Toubert e eu chamamos de estruturas globalizantes!. E evocamos o fenémeno do “‘incastellamento”, forma original do habitat rural, constituida entre os séculos X ¢ XIII, a nog&o de trabalho, a guerra!’ (cf. P. Contamine), 0 éxodo rural!%, a marginalidade!, etc. A preocupacdao com as idéias e as teorias Inaugurando seus cursos no Collége de France em 1933, Lucien Febvre desejava que se pudesse dizer dele: “‘Teve a preocupacao com 56 JACQUES LE GOFF as idéias ¢ as teorias; com as idéias, porque as ciéncias s6 avancam. gracas ao poder criativo e original do pensamento; com as teorias, porque sabemos perfeitamente, sem dtivida, que elas jamais abar- cam a infinita complexidade dos fenémenos naturais; nao obstan- te, elas sio seus degraus sucessivos, que, em seu insacidvel desejo de ampliar o horizonte do pensamento humano, a Ciéncia galga um apds o outro...’711 Até agora, a historia nova tentou escapar de dois perigos: ser sistematica, de um lado, ser puramente empirica, de outro, a ima- gem da escola positivista (que acreditava ser objetiva porque sem teoria, e que, na maior parte dos casos, era sem idéias). Contudo, cumpre reconhecer que, apesar das declaracdes de Lucien Febvre, os historiadores da histéria nova, insistindo, a justo titulo, sobre a multiplicidade dos enfoques, nem por isso deixaram de lado 0 teé- rico. Este, longe de ser dogmatico, é tdo-s6 a explicacdo das teorias implicitas que, fatalmente, o historiador, como qualquer cientista, coloca na base de seu trabalho. Ele tem todo interesse em tomar cons- ciéncia dessas teorias, bem como o dever de declara-las aos outros. Fago votos de que, especialmente, o historiador, ainda que se man- tenha afastado dos sistemas rigidos de explicagGes histdricas, reco- nheca a existéncia de sistemas histéricos cuja estrutura e cujas trans- formagées Ihe incumbe analisar. O futuro da histéria Podemos, enfim, nos perguntar 0 que a histéria pode vir a se tornar depois de amanhd, se néo amanha. Marc Bloch, entre outros, colocou-se a questao: ‘‘Portanto, ha apenas uma ciéncia dos homens no tempo, a qual necessita, sem cessar, unir 0 estudo dos mortos com o dos vivos. Como chamé-la? (...) O antigo nome de histéria parece-me 0 mais compreensivel, o menos exclusivo; também o mais carregado das comoventes recordagdes de um esforco mais que secular.’?1!1 Sem bancar o profeta ou o adivinho, podemos aventar trés hi- pdteses: — ou a histéria, prosseguindo sua investida sobre as outras cién- cias humanas, absorve-as numa pan-histéria, ciéncia global do ho- mem, dos homens no tempo; — ou produz-se uma fusao entre as trés ciéncias sociais mais préximas: histéria, antropologia e sociologia. A essa eventual nova ciéncia, Paul Veyne daria com prazer o nome de ‘historia sociold- gica’’; eu preferiria chamda-la de ‘‘antropologia histérica’’; HISTORIA NOVA 57 — ou, deixando de ser sem fronteiras e de flertar com todas outras ciéncias humanas, a histéria se entrincheiraria num novo {errit6rio, operando um novo “‘corte epistemoldgico”. Penso que 4m Michel Vovelle, tal como se exprime aqui (cf. pp. 300-301), iria busca-la de bom grado no sentido de “uma nova dialética do tempo eurto e do tempo longo’. Em todo caso, 0 que se deve esperar é¢ que a ciéncia histérica possa evitar melhor, de agora em diante, as tentagdes da filosofia da histéria, que renuncie as pretensGes da miatscula — a historia com H — ¢ se defina melhor em relacao a histéria vivida dos ho- mens. Os interessantes desdobramentos da histdria da histdria de- vem prosseguir e contribuir para tanto. Jacques Le Goff Notas 1. Henri Berr, in Revue de synthese historique, t. $0, p. 19, em que 0 adjetivo ‘snova"” refere-se a0 movimento da New History, lancado em 1912 nos Estados Uni- dos, e sobretudo a H. E. Barnes, que publicou em 1919 Psychology and History e ‘apresentou o movimento em The New History and the Social Sciences (1925). 2. L. Febvre, “Deux amis géographes”, in Annales d'histoire sociale (It1, 1941), reeditado em Combats pour I’histoire (Paris, A. Colin, 1953). 3. L. Febvre, ‘“Marc Bloch et Strasbourg”, in Mémorial des années 1939-1945 (Strasbourg, Faculté des Lettres), reeditado em Combats pour Vhistoire (op. cit.). 4. L. Febvre, La terre et ’évolution humaine (Paris, Albin Michel, 1922). 5. M. Lombard, L’Islam dans sa premiere grandeur (VIIF-X§F siécles) (Paris, Flammarion, 1971), primeira parte: ‘Les terrains de I’Islam, espaces et réseaux””. 6. M. Bloch, Les caractéres originaux de l'histoire rurale francaise (Paris, A. Colin, 1931). 7. P. Goubert, Beauvais et le Beauvaisis de 1600 a 1730 (Paris, $.E.V.P.E.N., 1960), reeditado com o titulo Cent mille provinciaux au XVI siecle (Paris, Flam- marion, 1968). 8. N. Wachtel, La vision des vaincus (Paris, Gallimard, 1971). 9. E. Le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294 @ 1324 (Paris, Galli- mard, 1975). 10. P. Veyne, Le pain et le cirque, sociologie historique d’un pluralisme politi- que (Paris, Le Seuil, 1976). 11, A. Besangon, Le ¢sarévitch immolé (Paris, Plon, 1967). 12. M. Bloch, ‘Vivre histoire”, conferéncia para os alunos da Ecole Norma- le Supérieure em 1941, publicada em Combats pour I’histoire (Paris, Armand Colin, 1953), pp. 19-20. 13. Ver sobretudo as obras de C. Seignobos, Méthode historique appliqué aux sciences sociales (Paris, 1909), ede C. V. Langlois ¢ C. Seignobos, Iniroduction aux études historiques (Paris, 1898). 14. M. Bloch, Apologie pour I’histoire ou Métier d’historien (Paris, A. Colin, 1964), p. 36. 58 JACQUES LE GOFF 15. Sobre a hisiéria sem textos ou além dos textos, convém ler Lucien Febvre em sua aula inaugural no Collége de France em 1933 (Combats pour ’histoire, op. cit., pp. 3-17) ¢ A. Leroi-Gourhan, ‘Les voies de histoire avant l’écriture”, in Fai- rede Uhistoire, organizado por J. Le Goff ¢ P. Nora, t. I (Paris, Gallimard, 1974), 16. L’histoire et ses méthodes (Paris, Gallimard, 1961), sob a direcdo de C. Samaran, 17. Por exemplo, Le temps historique, por G. Beaujouan, Histoire des menta- lités, por G. Duby, as contribuigdes de G. Sadoul sobre a fotografia e 0 cinema. 18. J. Le Goff, “Documento/Monumento”, in Enciclopedia Einaudi, t. IV, 1978, 19, E, Evans-Pritchard, Anthropology and History, wradugao francesa: “An- thropologie et histoire”, in Les anthropologues face a Ihistoire (Paris, PUF, 1974). 20. L. Febvre, Combats pour histoire, op. cit., p. 343. 21. H. Pirenne, Histoire de |"Europe (Paris, Alcan, 1936). 22. F. Braudel, La Méditerranée et le monde méditerranéen a |’époque de Phi- lippe I (Paris, A. Colin, 1976). 23. H. Berr, L’histoire traditionnelle et la synthése historique (Paris, Alcan, 1921). 24. M. Bloch, Apologie pour I’histoire ou Métier d’historien, op. cit. 25. A. Burguiére e F. Furet dirigem uma enquete, apoiada num semindrio da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, consagrada a histéria dos Annales. 26. L. Febvre, in Combats pour 'Histoire, op. cit., p. 63. 27. L. Febyre, in Combats pour I’Histoire, op. cit., pp. 68-69. 28. L. Febvre, in Combats pour ’Histoire, op. cit., p. 7. 29. M. Bloch, Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien, op. cit., p. 96. 30. A. Toynbee, A Study of History, 12 vol., Londres, 1934-1961, tradugZo em francés de uma versdo resumida dos 6 primeiros volumes por D. S. Somervell, L’Histoire, un essai d’interprétation (Paris, Gallimard, 1951), tradueao francesa da versio resumida definitiva de A. Toynbee e J. Caplan (Londres, 1972), L’histoire (Paris-Bruxelas, Elsevier, 1978), com um prefaicio amenizado de Raymond Aron. 31. Artigo publicado em 1936 na Revue de métaphysique et morale e reeditado em Combats pour (Histoire, op. cit., p. 42. 32. ‘Face au yent”’, manifesto dos ‘Annales nouvelles”’, in Annales E.S.C. (1946), reeditado em Combats pour I’histoire, op. cit., p. 42. 33. M. Bloch, La société féodale (Paris, Albin Michel, 1939). 34. L. Febvre, Le probléme de I’incroyance au XVI siécle: la religion de Ra- belais (Paris, Albin Michel, 1942; 2% ed. revista, 1947), 35. M. Bloch, Apologie pour "histoire ou Métier d’historien, op. cit. 36. L. Febvre, in Combats pour I’Histoire, op. cit. 37. Trata-se essencialmente do de Antoine Meillet, Introduction 4 l'étude com- parative des langues indo-européennes (1* ed., 1912) (Alabama, University of Ala- bama Press, 1964). 38. A de C. Blondel, Introduction a la psychologie collective (Paris, A. Colin, 1928) cade H. Wallon, Principes de psychologie appliquée (Paris, A. Colin, 1930). 39. Com F. Braudel, L. Febvre, E. Labrousse, C. Morazé. 40. G. Friedmann, La crise du progres (Paris, Gallimard, 1936). 41. G. Friedmann, De la Sainte Russie @ ’URSS (Paris, Gallimard, 1938). 42. F, Braudel, La Méditerranée et le monde méditerranéen i l’époque de Phi- : lippe II, op. cit. 43. L. Febvre, “Vers une autre histoire”’, in Revue de métaphysique et de mo- rale (1949). A HISTORIA NOVA 59 44, Annales E.S.C., 1958, pp. 725-753. 45. “Sou homem e nada do que é humano me ¢ estranho"* (Teréncio, Heau- fontimoroumenos, 1 1). O texto de Voltaire é citado por J. Ehrard ¢ Guy P. Palma- de, L’Histoire (Paris, A. Colin, 1964, pp. 161-163). 46. Imposto sobre o sal na Franga do Antigo Regime. 47. Na Franca, por exemplo, 0 ano comecava na Pascoa até um edito de Car- Jos IX, que fixou em 12 de janeiro 0 inicio do ano de 1564. 48. Unidade de peso para os metais preciosos na Franca antiga. 0 marco de Paris: 244,7529 gramas. A autoridade real fixava a cotacdo das moedas ¢ a modifi- eava quando necessario, atribuindo certo valor em moeda contabil (libras, soldos, dendrios) as moedas de ouro ou prata de determinado peso. 49. Citado por J. Ehrard e G.-P. Palmade, L’Histoire, op. cit., pp. 189-190. 50. Citado por J. Ehrard ¢ G.-P. Palmade, L’Histoire, op. cit., pp. 203-207. 31. C. Morazé, Les bourgeois conquérants (Paris, A. Colin, 1957; reed. Bru- xelas, Complexe, col. ‘“Historique””, 1985). 52. L. Febvre, Combats pour I’Histoire, op. cit., pp. 34-37. 53. Citado por J. Ehrard ¢ G.-P. Palmade, L’Histoire, op. cit., pp. 261-265. 54. Ver E. Le Roy Ladurie, Histoire du climat depuis l’an mil (Paris, Flamma- rion, 1967). 55, J.-J. Hemardinquer, org., Pour une histoire de I’alimentation (Paris, Ar- mand Colin, 1970); L. Stouff, Ravitaillement et alimentation en Provence aux XIV e XV« sidcles (Paris-Haia, Mouton, 1970); J.-P. Aron, Essai sur la sensibilité alimentaire & Paris au XIX¢ siécle (Paris, A. Colin, 1967). 56. J. Revel e J.-P. Peter, “Le corps: homme malade et son histoire", in Fai- re de V’histoire (Paris, Gallimard, 1974), t. Il; E. Le Roy Ladurie, Le territoire de Vhistorien (Paris, Gallimard, 1978), t. U1. 57. J. Le Goff, “Les mentalités, une histoire ambigué", in Faire de I'histoire, op. cit,, t. ILL. 58. N. Elias, Uber den Prozess der Zivilisation (1939), trad. franc., La civilisa- tion des moeurs (Paris, Calmann-Lévy, 1974), t. I. 59. F. Simiand, “Méthode historique et science sociale””, in Revue de synthése historique (1903), republicado em Annales (1960). 60, L. Febvre, Un destin: Martin Luther (Paris, Rieder, 1928). 61. E. Kantorowicz, Kaiser Friedrich der cweite (2 vol., Berlim, 1927-1931). 62. P. Goubert, Louis X7V et vingt millions de Francais (Paris, Fayard, 1966) 63. L. Allegra, A. Torre, La nascita della storia sociale in Francia datla Comu- ne alle “Annales” (Turim, Fondazione Luigi Einaudi, 1977). 64. B. Guénée (org.), Le métier d’historien au Moyen Age. Etudes sur l'histo- riographie médiévale (Paris, publications de la Sorbonne, 1977). 65. Revue trimestrielle d’histoire sociale et économique, desde 1903. 66. B. Geremek, Les marginaux parisiens aux XIV: et XV* sidcles (Paris, Flam- marion, 1976). 67. W. Kula, Théorie économique du systeme féodal. Pour un modele de I'éco- nomie polonaise, XVI-XVIF siécles, wad, francesa (Paris-Haia, Mouton, 1970). 68. Em polonés, traducao francesa em preparacao. 69. J. Nora, J. Le Goff, Faire de !’histoire (Paris, Gallimard, 1974). 70. M. Mauss, ‘‘Les techniques du corps””, in Journal de Psychologie, 1936, reeditado em Sociologie et anthropologie (Paris, PUF, 1950), pp. 363-386. 71. F. Furet, ‘“L’histoire et "homme sauvage”; J. Le Goff, ““L’historien et Vhomme quotidien’’, in L’historien entre Vethnologue et le futurologue (Paris-Haia, Mouton, 1972), pp. 213-237 ¢ pp. 238-250, versdio revista em Mélanges en I’honneur de Fernand Braudel, t. Ul, Méthodologie de l'histoire et des sciences humaines (Tou- louse, Privat, 1973), pp. 227-244. JACQUES LE GOFF 72. Sob a diregiio de P. Joutard e M. Vovelle, um grupo se consagra 4 sua cole- tae estudo na Universidade de Provenga. 73. Ver, a propsito de um problema preciso, o da multiplicidade dos tempos sociais, a declaracdo caracteristica de G. Gurvitch, La multiplicité des temps sociaux (Paris, CDU, 1958), p. 38. 74. Ver também J. Lnomme, Economie et histoire (Genebra, Droz, 1967). 75. Ver G. Duby, “Histoire sociale et idéologie des saciétés”, in Faire de l’his- toire, op. cit. 76. A. Besangon, L histoire psychanalytique. Une anthologie (Paris-Haia, Mou- ton, 1974). 77. A. Dupront, ““Problémes et méthodes d’une histoire de la psychologie col- lective”, in Annales E.S.C. (1961). 78. L. Aurigemma, Le signe zodiacal du scorpion dans les traditions occiden- tales de l’Antiquité gréco-latine a la Renaissance (Paris-Haia, Mouton, 1976). 79. F. Jacob, La logique du vivant. Une histoire de I'hérédité (Paris, Gallimard, 1970). 80. J. Ruffié, De Ja biologie a la culture (Paris, Flammarion, 1976). 81. Ver a obra coletiva publicada pelo Centro de Royaumont, L ’unité de l’hom- ‘me: invariants biologiques et universaux culturels (Paris, Le Scuil, 1974). 82. L. Febvre, ‘Comment reconstituer la vie affective d’autrefois”, in Anna- les d'histoire sociale, III, 1941. 83. A. Tenenti, La vie ef Ia mort a travers l’art du XV* siécle (Paris, A. Co- lin, 1952). 84. M. Vovelle, Piété baroque et déchristianisation. Attitudes provencales de- vant la mort au siécle des Lumidres (Paris, Plon, 1973); Mourir autrefois; attitudes collectives devant la mort, XVIF-XVHE siécles (Paris, Gallimard-Julliard, 1974). 85. P. Arits, L’homme devant la mort (Paris, Le Sevil, 1977). 86. P. Chaunu, La mort @ Paris aux XVI¢, XVIE et XVIIF sidcles (Paris, Fa- yard, 1978), 87. G, Duby, “Histoire des mentalités”’, in L’histoire et ses méthodes (Paris, Gallimard, 1961). 88. R. Mandrou, “L’histoire des mentalités”’, in Encyclopaedia Universalis, vol. 8 (Paris, 1968). 89. J. Le Goff, “Les mentalités, une histoire ambigué”’, in Faire de Vhistoire, op. cit., t. I. 90. Ver F. Furei, “Le quantitatif en histoire”, in Faire de histoire, op. cit., 1. 91. Ver P. Chaunu, “Un nouveau champ pour l’histoire sérielle: le quantitatif au troisiéme niveau”’, in Mélanges en I’honneur de Fernand Braudel, op. cit., t. I. 92. Ver J. Le Goff, verbete “Documento/Monumento”’, in Enciclopedia Ei- naudi (Turim, 1978), t. IV. 93. M. Détienne, N. Loraux, J.-P. Vernant, P. Vidal-Naquet. 94. M. Agulhon, Pénitents et francs-macons de l’ancienne Provence; Essai sur la sociabilité méridionale (Paris, Fayard, 1968). 95. L. Febvre, Combats pour l’Histoire, op. cit., p. 41. 96. Especialmente em P. Vilar, La Catalogne dans l’Espagne moderne, recher- ches sur les fondements économiques des structures nationales (Paris, S.E.V.P.E.N., 1962), 3 vol.; edicdo resumida (Paris, Flammarion, 1977). 97. Em particular, a enquete de La nouvelle critique, dirigida por F. Hincker eA. Casanova, Aujourd hui I’'Histoire (Paris, Editions Sociales, 1974); ver também a obra coletiva Ethnologie et histoire (Paris, Editions Sociales, 1975). 98. L. Chevalier, Classes laborieuses et classes dangereuses i Paris dans la pre- midre moitié du XIX* siécle (Paris, Plon, 1958). 99. L. Febvre, Combats pour l'histoire, op. cit. A HISTORIA NOVA 61 100. J. Le Goff, “Is politics still the backbone of History?”, in Historical Stu- dies Today, ed. F. Gilbert e St. R. Groubard (Nova York, W.W. Norton and Co, 1972, pp. 335-337). 101. P. Nora, “Le retour de l’événement”’, in Faire de I’histoire, op. cit., t. 1. 102. M. Foucault, L’archéologie du savoir (Paris, Gallimard, 1969). 103. M. Halbwachs, Les cadres sociaux de la mémoire (Paris, Alcan, 1925); G. Gurviteh, La multiplicité des temps sociaux (Paris, CDU, 1958); J. Le Goff, “Temps de 'Eglise et temps du marchand’’, in Annales F.S.C. (1960), reeditado em Pour un autre Moyen Age (Paris, Gallimard, 1978). 104. Ver, em particular, G. Duby, Saint Bernard et l'art cistercien (Paris, Arts et Métiers graphiques, 1970) ou Le temps des cathédrales (Paris, Gallimard, 1976). 105. P. Toubert, J. Le Goff, ‘Une histoire totale du Moyen Age est-elle possi- ble?”, in Actes du centiéme congres national des sociétés savantes (Paris, Bibliothe- que Nationale, 1975), t. 1, 1977, pp. 37-38. . 106. P, Toubert, Les structures du Latium médiéval (Roma, Ecole Francaise de Rome, 1973). - 107. P, Contamine, Guerre, état et société a la fin du Moyen Age. Etudes sur les armées des rois de France (1337-1494) (Paris-Haia, Mouton, 1972). 108. W. Abel, Die Wiistungen des Ausgehenden Mittelalters (1943; 3? ed., Stutt- gart, G. F. Verlag, 1976). 109, B. Geremek, Les marginaux parisiens aux XIV¢ et XV« sidcles (Paris, Flammarion, 1976). 110. L. Febvre, Combats pour l’Histoire, op. cit., p. 17. 111. M. Bloch, in Combats pour l’Histoire, op. cit., p. 15. Notas complementares (1988) Aclaboracdo de novas conceprées do espaco e do tempo, de suas relacdes com a historia e de seu lugar na renovacdo da metodologia histérica ¢ 0 tema de pesquisa do Centro Internazionale A. Beltrame di Storia dello Spazio e del Tempo, situado em Brugine, na provincia de PAdua, que publica um Bollettino desde 1983. A cartografia estendida a um sistema de representacdo do espago deu lugar a importantes trabalhos metodolégicos ¢ aplicados, que ajudaram a nova histéria a se exprimir graficamente no espaco. Essa renovacao foi, sobretudo, obra de Jacques Bertin e seus alunos. J. Bertin, La graphique et le traitement graphique de l'information, Pacis, Flamma- rion, 1977. S. Bonin, verbete ‘‘Graphique”’ in A. Burguiére, org., Dictionnaire des Sciences His- toriques, Paris, PUF, 1986, pp. 306-311. Um exemplo de realizacdo no espirito dessa cartografia histérica nova: G. Arbellot, B, Lepetit, J. Bertrand, Atlas de la Révolution Francaise, 1. Routes et communications, Paris, EHESS, 1987. Para uma historia total do tempo e dos tempos: K. Pomian, L’ordre du temps, Paris, Gallimard, 1984. Testemunha do arraigamento profundo, caracteristico de uma linha tradicio- nal da nova histéria na Franca, os trés volumes péstumos (prelidio a uma Histdria

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